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Nas Profundezas do Bosque

Summary:

Todo mundo sabe que o bosque é cheio de fadas, e não é muito sábio ir para lá. Porém, Soluço nunca foi de fazer coisas inteligentes, então ele mora no bosque, sozinho, junto do Grimalkin, Banguela, que apareceu um dia e não parece querer ir embora.

Um dia o vento leva Jack Frost até a sua cabana, e ele parece convencido de que Soluço precisa ter mais do que um único amigo.

Contudo, Breu tem planos, e para esses planos ele precisa do seu Grimalkin de volta. Ele está certo de que convencer seu novo mestre a se juntar a ele não será difícil. Afinal de contas, o garoto é só um humano...

Notes:

  • A translation of [Restricted Work] by (Log in to access.)

mais uma tradução! até o momento da publicação desse capítulo eu só traduzi os dois primeiros. conforme finalizo um capítulo, vou corrigir e postar.

aproveitem!

Chapter 1: Em uma casa no bosque

Chapter Text

Soluço Spantosicus Strondus III resmungou para si mesmo enquanto tentava ajeitar folhas e caules quebrados.

Perto dele estava um gato preto gigante, com orelhas tufadas contrastando com o focinho, onde o pêlo dava lugar para escamas de um verde tão rico e brilhantes que podiam até ser feitas de seda. Suas patas eram igualmente escamosas, e sua cauda era tufada como as orelhas. Com ele de joelhos e o gato sentado ao seu lado, a cabeça do animal ficava mais ou menos na altura da sua.

Naquele momento, pelo menos o gato teve a decência de parecer envergonhado.

— Eu falo toda hora para você ficar longe da horta — Soluço brigou com o gato. — Agora olha o que você fez! Isso é minha comida, sabia? Não um coçador de costas.

O gato choramingou e deu uma cabeçadinha em seu ombro.

Soluço suspirou e coçou-o atrás das orelhas.

— Banguela — ele resmungou. — Às vezes você tem sorte de ser o único ser inteligente para conversar por aqui.

Ele levantou e se espreguiçou. A luz forte o fez apertar os olhos — ele tinha acabado de acordar ao som de plantas farfalhando e do seu gato inútil esmagando suas ervas. Ele ainda estava de pijama. A única coisa que ele tinha colocado para sair de casa tinha sido sua perna esquerda de madeira. Ele suspirou e tentou tirar a terra do espaço entre seus dedos descalços. A terra se destacava contra a sua pele pálida, não como mármore ou alabastro, mas sim pálida como um cadáver sem sangue, morto há três semanas, como se a carne tivesse se esquecido de como era ter sangue correndo por ela. Onde ele tinha sardas, que era na maior parte do seu corpo, elas não eram do marrom-alaranjado de sua juventude, e sim de um forte cinza-escuro.

— Criatura irritante — Soluço disse, mas dessa vez sem maldade, fazendo outro carinho atrás das orelhas do Banguela. Banguela levantou o olhar para ele, encarando-o com olhos grandes e inocentes, fingindo estar magoado com as acusações. Soluço sacudiu a cabeça de um lado para o outro, e entrou para se vestir.

 

***

 

Soluço saiu de casa alguns minutos depois, agora apropriadamente vestido. Todas as suas roupas estavam velhas, remendadas e eram simples: uma túnica para trabalhar e calças de linho. Seus sapatos eram de couro simples, do tipo que ia só até o tornozelo e amarrava-se com cadarços. Ele certamente não tinha o equipamento para fazer fivelas. Os meses quentes do outono já haviam passado, mas ainda não estava particularmente frio. Apesar disso, a túnica era uma versão com mangas longas, e um pouco mais comprida que o normal, indo quase até os joelhos. Para jardinagem não havia motivo para usar o avental, e ele decidiu não vestir seu casaco. Ele colocou o colar que continha um único disco de bronze para dentro da camiseta, enquanto amarrava-a até a altura do pescoço.

Sentindo só um pouquinho de resignação, ele começou a arrumar sua horta, removendo as plantas mais danificadas e reforçando as que ainda podiam sobreviver. Então ele deu uma olhada nas colmeias. Tudo certo com elas, do seu ponto de vista. Ainda não era necessário coletar o mel, talvez na próxima semana. Aparentando ter se contentado em esmagar a horta do Soluço, Banguela havia saído para caçar, o que deu a ele muito tempo e espaço livres para trabalhar sem que o gato enorme o atrapalhasse.

Então deu comida para os coelhos e contou quantos havia — ele tinha aprendido por experiência que coelhos eram sagazes quando se tratava de escotilhas e cavar tocas. Ele alimentou as galinhas também.

Àquela altura Banguela havia voltado, aparentando estar alimentado e satisfeito. Banguela se transformou em um gato preto comum a fim de se sentar no colo do Soluço enquanto este comia e contemplava o resto do seu dia. Provavelmente iria buscar por comida no bosque.

— Está feliz com como o seu dia está indo? — perguntou ao gato preto, que fez um som de prr-au para ele. — Bem, você é fácil de agradar, né?

Banguela abriu um olho preguiçosamente, e prr-auou para ele de novo.

Soluço, com uma mão nas costas do gato para se assegurar de que ele não o derrubaria sem querer no chão, esticou o braço até um caderno no outro lado da mesa, e puxou-o para perto.

Ele o abriu na última página que havia sido usada e, com um lápis feito de carvão, alterou uns detalhes no esboço que havia sido feito nela, e então adicionou uma frase no final da folha.

Então voltou para uma tabela perto do começo do livro e fez algumas anotações sobre as ervas danificadas.

Ele não lia mais as primeiras páginas — até porque havia arrancado a maiorias delas.

Mas apesar do quão econômico ele havia sido com o espaço do caderno, ele já estava ficando sem. Hora de aprender como fazer papel, pensou.

Hum, papel. Para isso ele precisaria de bagaço de madeira. E uma fôrma. Um bom projeto para o inverno, quando era frio demais para plantas crescerem ou para buscar comida na natureza.

Ele deu um toque na cabeça do Banguela.

— Hora de levantar — disse.

Banguela se alongou, bocejou e, enquanto saltava do colo do Soluço, se transformou em sua forma reptiliana maior. Soluço ajustou as amarras em sua perna de madeira — o couro já estava esticando, então ele teria que consertar isso também — e, com o caderno, uma cesta e um machado pequeno, guiou Banguela para fora, bosque adentro.

Chapter 2: Visita voadora

Chapter Text

Jack Frost se espreguiçou, se esticando sobre o tronco da árvore, cheia de marmelos quase prontos para serem colhidos. Não deve demorar muito agora...

— Frost — uma voz com um forte sotaque estrangeiro, cheio de vogais anasaladas, o cumprimentou. — Devia saber que tu taria aqui.

— Own, e dessa vez eu estava sendo sorrateiro — Jack respondeu, sorrindo e exibindo dentes que eram quase, quase da mesma cor que seu rosto pálido. A única diferença entre eles era que seu rosto tinha a tonalidade azulada de congelamento iminente, mas seus dentes eram só brancos, como neve recém caída. Os seus olhos eram de um azul bem vibrante. O resultado era como se a delicada escultura de gelo do banquete de um rei tivesse ganhado vida e dado um sorriso.

— Não achei que fosse o tipo de pessoa que gostasse de marmelos — disse Aster, ajustando a alça da sua mochila. Diferente de Jack, Aster era bronzeado e tinha uma barba, e era pelo menos vinte anos mais velho. Ele usava roupas de trabalho: uma túnica velha com as mangas longas desenroladas para protegê-lo contra espinhos. As mangas já estavam cheias de espinhos e desfiando de excursões passadas. Ele usava um sobretudo de viagem, com as mangas amarradas para trás para não atrapalhar, e ele tremeu um pouco quando olhou para Jack, que nunca vestia nada mais espesso que uma calça e túnica finas em marrom claro, e um simples casaco azul circular, sem capuz, cobrindo seus ombros. Em outras palavras, roupas de primavera, mais apropriadas para lidar com chuviscos primaveris do que com o frio do meio do outono e do inverno.

— É, marmelos requerem muita paciência para o meu gosto. Pensei em vir e encontrar minha pessoa favorita — disse Jack.

— Tá bom. — Aster, parecendo claramente cético, começou a cuidar do marmeleiro enquanto falava, tirando a mochila das costas e abrindo-a aos seus pés a fim de jogar as frutas dentro, enquanto as colhia dos galhos mais baixos.

— Para a esquerda, na verdade — Jack disse.

Aster o encarou. — O que?

— Eu vi alguém no caminho para cá. Achei que seria melhor você buscar ela do que eu.

Aster assentiu. — Pode ser um pouco mais específico do que só “para a esquerda”?

Jack indicou a direção.

Aster suspirou, fechou a mochila e a colocou nas costas. — Valeu, Frost. Eu vou cuidar disso.

Jack se espreguiçou de novo. Ele havia descoberto há muito tempo que era melhor mandar o Aster atrás das crianças perdidas do que ele mesmo ir. Algo sobre serem resgatadas por ele deixava as crianças desconfiadas. Não que ele as culpasse. Fadas não tinham a melhor reputação, e elas totalmente mereciam isso. Ele não era uma fada, é claro, mas às vezes era difícil para as crianças diferenciarem.

— Ah, mais uma coisa — Aster gritou de mais à frente na trilha. — Eu sei que você sabe sobre aquele evento na casa do Norte. Eu vou trancar a casa e dormir cedo. Não vai se meter em encrenca, viu? — Mas seu conselho tinha um quê de resignação. Aster sabia que Jack geralmente não dava ouvidos a avisos, mesmo assim ele parecia gostar de dá-los.

Jack o agradeceu com um aceno, e então, usando seu cajado como em saltos com vara, se lançou à brisa que farfalhava a copa das árvores. Por causa da falta de vento ele não podia viajar rapidamente, mas hoje era um dia para calmaria mesmo.

Ele relaxou e deixou o vento carregá-lo para onde fosse. Ele não tinha que estar em lugar nenhum até o anoitecer, e estava entediado. Não tinha neve a essa altura da estação, nem gelo na água.

— Me leve para algum lugar que ainda não fui — ele disse ao vento, que soprou um pouco mais forte, levando-o junto. Tinha sido mais uma pergunta retórica, já não existia lugar na floresta que ele não tivesse visitado.

Mas ele não se importava muito aonde ele fosse, contanto que tivesse alguma coisa para fazer lá.

 

***

 

Como ele já esperava, Jack de fato se lembrava do lugar para onde o vento o trouxe, apesar de ficar mais distante dos lugares que ele geralmente frequentava.

Contudo, ele não se lembrava das abelhas. Elas zumbiam e enxameavam-se ao seu redor. Ele não se preocupa com elas — abelhas normalmente toleram sua presença, a não ser que ele propositalmente bata nelas. Deve haver uma colmeia por perto.

Ao olhar para baixo, percebeu que não era uma colmeia natural. Era uma feita por humanos.

E não havia só abelhas — havia também uma cabana, com galinhas e alguma coisa em uma gaiola! E uma horta!

Tudo aquilo o lembrava um pouco das coisas do Aster, apesar de que o Aster comprava a maior parte de sua comida de uma vila próxima, e não plantava seus vegetais de forma tão organizada. Jack estava meio impressionado, na verdade. Longe dali, no outro lado da clareira, havia um poço de curtimento também, o mais distante possível da casa, mas ainda fora do bosque. Todavia, os poços estavam vazios e descobertos no momento, e parecia que estavam assim há algum tempo.

Jack se sentou no telhado por um tempo, olhando ao redor. Algumas das plantas na horta estavam esmagadas, mas o resto parecia estar saudável e crescendo.

Então ele viu as pegadas que levavam para fora da casa. Eram estranhas — quatro eram de algum tipo de gato grande, que ele não conseguia identificar de cara; uma era meio quadrada, meio redonda; e uma...

Era uma pegada humana, com sapato e tudo.

Jack sorriu. Um humano, é? Já fazia um tempo que um humano tinha se aventurado tão fundo no bosque. Mas havia muita coisa ali, e Jack se perguntou se podia haver ainda mais.

Ele guardou a informação das pegadas para depois, e andou a redor da casa para estudar a horta um pouco mais.

Ele voltou para a frente da casa bem a tempo de ver o rapaz que deixara as pegadas. Ele tinha mais ou menos a altura do Jack, e o rosto quadrado. Os olhos dele eram do tipo de verde presente em lagoas cheias de algas, do tipo que parecia seguro até você começar a perceber os coelhos mortos. As pegadas meio quadradas estranhas haviam sido deixadas por uma perna de madeira, que substituía seu pé esquerdo. Jack não conseguia ver o quanto da perna em si havia sido substituída. A pele dele parecia de um morto, e ele era cheio de sardas, negras como partículas de fuligem. A área ao redor de seus olhos também era escura. Se ele não estivesse tão ereto, observando Jack tão atentamente e desconfiado, Jack talvez teria achado que ele estivesse doente.

E então ele viu o Grimalkin atrás do homem; grande e preto, cujos olhos eram quase do mesmo tom de verde dos do rapaz, mas muito, muito mais vívido. A sua saudação alegre morreu nos seus lábios.

Os Grimalkins, todos sem exceção, eram criaturas do Breu e de sua corte. Se havia um com esse rapaz então ele também era, apesar de que ele não se parecia com nenhuma fada que Jack havia visto antes. Ele tinha uma horta também — e abelhas. Jack nunca tinha visto fada nenhuma criar abelhas. Pelo menos, não em colmeias organizadas feitas à mão perto de poços de curtimento. Fadas meio que só... convenciam abelhas a construírem suas próprias colmeias em locais próximos e convenientes, e elas costumavam focar em um só hobby de cada vez.

— Boa tarde — Jack preferiu dizer, se apoiando em seu cajado e usando uma versão mais cautelosa do seu sorriso amigável.

— O que você está fazendo na minha casa? — foi a resposta que obteve, curta e grossa.

— Estou só de passagem — Jack disse, erguendo uma das mãos. — Faz um tempo desde que estive aqui. Não sabia que havia uma casa.

— E depois disso?

— Quê?

— Você não chegou agora. Quando eu cheguei aqui, você estava passeando, olhando meus vegetais. Você decidiu parar e bisbilhotar.

— Você não ficaria curioso? — Jack protestou. Isso tudo era franqueza demais para um truque de uma fada, mas ainda se encaixava nos padrões de um, então ele escolheu suas palavras com cautela. — Eu não quis ofender.

— Me diga seu nome — o rapaz demandou. Ele era humano, então. Esse era um truque humano tão básico que Jack já havia escutado até de crianças tão pequenas que nem conseguiam pronunciar os próprios nomes muito bem.

— Ei — Jack disse — eu não sou uma fada. — Ele pausou por tempo suficiente para provar que ele não precisava responder se não quisesse, então disse: — Eu sou o Jack. E você?

— Também não sou uma fada.

Jack esperou que ele desse um nome, mas parecia que não aconteceria.

— Tá bom, entendi — disse. — Você não é uma fada, então não tem que responder com a verdade. Eu acredito em você. Então, qual é o seu nome?

— Soluço — o rapaz disse muito rápido, como se fazer isso fosse minimizar qualquer comentário que Jack teria feito sobre seu nome.

Então, mesmo que Jack quisesse desesperadamente rir, ele se segurou e ao invés disso perguntou: — E você é o Mestre daquele Grimalkin, certo?

Soluço olhou de relance para o Grimalkin.

— Quem, o Banguela? Não, eu não sou Mestre de ninguém. Muito menos dessa criatura teimosa.

Distraidamente, ele acariciou o Banguela atrás das orelhas, e ele se inclinou na direção da sua mão, de olhos semicerrados, mas nunca fechados o suficiente para o grande felino perder Jack de vista.

Jack bufou.

— Quase me enganou — disse. — Eles não ficam com qualquer um, sabe.

Soluço passou por Jack, deixou sua cesta e trouxa perto da porta, depositando seu machadinho ali também. Aparentemente ele tinha ido coletar madeira e buscar comida.

Murmurando para si mesmo, Soluço deu uma volta pelo lado da casa, indo em direção a um pequeno barraco perto das gaiolas dos coelhos e do galinheiro.

Jack elevou-se com o vento e flutuou até Soluço, e como recompensa recebeu a porta do barraco fechado em sua cara.

Banguela se colocou entre a porta e Jack e começou a rosnar. Jack recuou com as mãos para o alto.

— Tá bom — disse — já entendi. Não sou bem-vindo.

Soluço saiu do barraco com uma fôrma de madeira, palha entrelaçada e uma caixinha para ferramentas.

— Olha — Soluço falou — já satisfez a sua curiosidade? Ou gostaria de me encarar mais um pouco?

— Encarar? — perguntou Jack. — Você acha que estou aqui para ficar encarando?

— Não foi isso que você disse? Você viu uma casa, ficou curioso e decidiu ficar por perto para descobrir quem morava aqui?

— Bem, é, mas aí eu queria tentar conversar com você. Sabe, interagir de verdade?

— Na verdade, não — Soluço disse.

Jack olhou para o céu. Se ele fosse agora, chegaria cedo demais. Mas não valia a pena. Ele acharia alguma outra coisa para fazer.

E então Soluço deu um suspiro.

— Desculpa — ele falou. — Visitas não são muito minha praia.

— Eu posso ir embora — disse Jack.

— Poderia... explicar uma coisa primeiro? Você disse que o Banguela é um Grimalkin, e que eu sou o Mestre dele. O que isso quer dizer?

Jack não pôde deixar de sorrir. Então aparentemente ele não era tão indesejado no final das contas!

— Qual parte: a do Grimalkin ou a do Mestre?

— As duas. Tudo.

Jack se viu indeciso por um instante. Por um lado, o Soluço parecia tão envergonhado que era quase cômico. Por outro... como raios ele tinha virado Mestre de um Grimalkin sem nem sequer saber nada sobre a criatura?

— Bem — ele disse, apontando para o Banguela. — Aquilo é um Grimalkin.

— Hilário — disse Soluço.

— Ei, você disse “tudo”! — Jack respondeu. Mas muito do antagonismo tinha sumido da voz do Soluço, e ele pareceu levar a resposta brincalhona de Jack numa boa. — Mas é sério agora, há quanto tempo você vive com o Banguela?

Soluço semicerrou os olhos com desconfiança.

— Bem, há quanto tempo seja — Jack disse rapidamente — aposto que é tempo suficiente para saber mais sobre Grimalkins do que eu jamais saberei. Eu sei que eles podem tomar essa forma — ele gesticulou na direção do Banguela — ou a de um gato preto doméstico. Eu sei que eles são grandes, fortes, e que eu definitivamente não quero irritar um. Sei que eles seguem, protegem e servem a um único Mestre, acima de tudo.

Soluço olhou de relance para o Banguela.

— Ele não me segue — murmurou. — Ele passa tanto tempo caçando quanto dentro de casa.

— Aposto que se você entrasse em apuros, sem dúvidas ele apareceria em instantes. Ele nunca iria para muito longe.

A expressão no rosto do Soluço informou a Jack de que ele estava se lembrando de uma ocasião em que o Banguela tinha feito exatamente isso, mas não queria admitir que Jack estava certo.

— Bem, acho que isso cabe ao Banguela — Soluço disse. — O que mais você sabe?

Jack hesitou, e então disse — Eu sei que o Mestre deles é sempre o Breu, ou alguém da corte dele.

A expressão do Soluço foi de uma de curiosidade para uma de total confusão.

— Quem é Breu? — perguntou.

Jack gesticulou com as mãos. — Acho que... — disse, e então hesitou. Como se explica o Breu sem também explicar o Norte? E as cortes? — Bem, ele é meio que importante por aqui. A maioria das fadas nessa parte da floresta são seus seguidores. Especialmente as... não tão agradáveis. Ouvi dizer que ele fez um grande acordo com os Grimalkins há muito tempo, e todos eles trabalham para ele agora. Às vezes ele os dá para membros favoritos da corte dele, como uma espécie de recompensa. Achei que talvez você...

Soluço negou com a cabeça.

— Nunca ouvi falar dele.

Jack assentiu.

— É, eu acredito em você.

Soluço então arqueou uma sobrancelha — É mesmo?

— Você fala dele de um jeito informal demais para ser qualquer outra coisa senão totalmente ignorante.

— Ele é tão odiado assim? — Soluço deduziu.

— Bem, mais ou menos. Se você não é da gente dele, provavelmente tem medo dele. E se é, ele provavelmente fez um acordo com você para que nunca fale mal dele, ou então Encarará as Consequências! — Para enfatizar a última parte, Jack fez garras com as mãos e rosnou.

Soluço riu dele de verdade por isso. Não foi mais do que uma risadinha pelo nariz, mas ainda assim foi a primeira risada genuína que Jack o viu dar.

Jack sorriu. É isso, ele estava progredindo!

— Pelo menos, essas são as alternativas mais prováveis.

— O que isso faz de mim, então? — Soluço perguntou, e Jack indagou sobre o quanto da pergunta havia sido feita para ele, e o quanto para si mesmo. Ele respondeu mesmo assim.

— Provavelmente ingênuo e não muito sensato, ou algo do tipo. Por que, o que você achava que seria?

Dessa vez a risada foi sarcástica.

— Provavelmente é isso mesmo — ele disse.

Eles ficaram em silêncio.  Soluço olhou para o jardim.

— Ei, se importa se eu ficar um pouco por aqui? — Jack perguntou. — Eu tenho um compromisso ao anoitecer, então não se preocupe que eu não vou ficar para sempre. É só que eu tenho tempo de sobra até lá, sabe...

Soluço deu de ombros.

— Acho que não faz diferença — ele disse, e se sentou, depositando suas ferramentas à sua frente. Banguela se aconchegou na frente dele, apoiando a cabeça em suas grandes patas, com os olhos semicerrados, mas claramente observando com atenção.

Jack se sentou com seu cajado no colo e observou Soluço enquanto ele pegava uma faca e começava a cortar fora lascas da madeira macia. Soluço não parecia interessado em falar, e Jack não queria testar sua sorte, mas depois de uns cinco minutos ele começou a ficar inquieto.

— O que você está fazendo? — enfim perguntou.

— Papel — Soluço disse distraidamente, sem desviar a atenção das lascas de madeira à sua frente.

— Abelhas, galinhas, curtimento, papel... — Jack disse — Você faz tudo sozinho, não faz?

Soluço abaixou a cabeça, escondendo o rosto na gola da camisa.

— Desculpa — disse Jack.

Soluço continuou a trabalhar na madeira. Uma ou duas vezes Jack o viu abrir a boca como se fosse falar algo, mas em momento nenhum ele olhou em sua direção.

Depois de alguns minutos de silêncio, Jack comentou: — Você não fala muito, fala?

— Você fala muito — Soluço respondeu.

Jack se levantou, colocando as mãos para o alto.

— Tá bom, já entendi. Quer saber, eu vou deixar você em paz, e talvez eu o veja alguma outra vez.

Soluço assentiu.

— Uhum.

Jack não apontou o fato de que o Soluço soou particularmente incerto quanto a essa possibilidade. Ele só foi embora. Banguela o observou ir, mas Soluço nem sequer olhou para cima.

Chapter 3: Uma festa para invadir

Chapter Text

Jack não se apressou enquanto ia para o palácio do Norte, e voou por entre as árvores, ponderando sobre a sua conversa. Aquele “Soluço” não parecia muito interessado em vê-lo de novo, mas ele obviamente não era uma fada e era o mestre de uma das criaturas do Breu, isso sem sequer saber do nome “Breu”. Só isso o fazia valer um pouco de persistência. Além disso, Jack havia quase ganhado a amizade dele, antes de ele ficar todo focado em fazer papel. Quando se tratava de amigos, Jack não conseguia resistir a um desafio. Afinal ele passou todos esses anos insistindo na amizade com o Aster, não passou?

 

***

 

O sol já estava começando a se pôr quando Jack se aproximou das antigas ruínas que continham o palácio do Norte. A clareira ficava no meio de ruínas antigas, agora tomadas pelas árvores. Se você soubesse onde procurar, encontraria pedras aparecendo entre raízes e musgo, muitas delas sendo os rostos de estátuas destruídas. O solo inclinava-se ligeiramente naquela área, e Jack se viu tanto flutuando quanto voando em direção ao centro das ruínas, um lugar que no passado ficava debaixo da terra.

As árvores deveriam ter se espalhado até o monte, assim como haviam tomado conta do resto das ruínas; mas fadas eram fadas, então havia ali uma área totalmente vazia, grande o bastante para organizar um piquenique para uma vila inteira, exceto pelo monte bem no centro, cuja lápide de granito havia sido tomada por líquen e hera. Se você soubesse onde procurar no monte, e como procurar, encontraria uma porta enterrada na vegetação, que antes levava à tumba de um velho imperador — e de uma centena dos seus melhores soldados, se as histórias fossem verdadeiras.

Jack conferiu o sol e se abaixou para afastar os galhos de hera. Ali estava a porta de madeira, quase tão pesada quanto uma rocha. Jack a golpeou duas vezes com a base do seu cajado, fazendo um barulho estrondoso e ecoante.

Não havia ninguém atrás da porta, mas ela se abriu para ele mesmo assim.

— Obrigado — Jack disse para ninguém em específico. A porta fechou-se atrás dele.

 

***

 

O monte talvez tivesse pertencido à tumba de um imperador no passado, mas agora ele terminava em arco que levava a um pomar.

Seria muito difícil perceber que o lugar era na verdade um jardim se você não tivesse o costume de passar por ele, ou se não prestasse atenção. Ele era quase indistinguível da floresta do lado de fora do monte: o sol estava no mesmo lugar, as árvores eram tão altas quanto, os troncos eram igualmente marrons e a terra e o musgo pareciam os mesmos aos pés descalços do Jack.

Mas na floresta acima, as árvores competiam pela terra e pelo sol, e cresciam de todos os tipos e variedades. Aqui, cada árvore crescia rica e selvagem, não organizadas em fileiras, mesmo assim prosperando, todas carregadas de frutas. Cada fruta era volumosa e vibrante; não havia frutas podres nos pés das árvores, e não havia frutas verdes.

Jack colheu e comeu uma pera enquanto caminhava. Quando terminou, jogou o que sobrou no solo. Àquela altura ele estava perto dos limites do pomar, onde de repente não havia mais árvores.

O castelo — porque Jack ainda tinha dificuldade de chamar aquilo de palácio — era um colosso de pedra. Era o tipo de castelo que parecia ter sido construído quando as pessoas tinham começado a empilhar pedras. Ele era um bloco, todo quadrado, e possuía uma torre no canto sudoeste que nem em contos de fadas. Entre Jack e o castelo havia gramados e floreiras em diferentes níveis, com galhos de hera cuidadosamente manipulados para formar molduras ao redor de lugares específicos, que podiam ser admirados e analisados por visitantes. Era um lugar bem cuidado, composto de sebes e jardins secretos dos quais você sentia o cheiro muito antes de vê-los.

Jack passou por tudo aquilo — eram mais como pontos de referência do que algo inédito para ele — e foi em direção ao som de música e festividade vindo de perto do castelo.

Quando chegou na festa, se deparou com fadas em duplas e trios, reunidas com bebidas e conversando. Jack as ignorou, se dirigindo às portas de entrada do palácio. Ele sabia que Norte estaria no centro de tudo, então isso significava que ele estaria ou nos jardins, perto dos portões de entrada, ou no salão de entrada e jantar, que eram os primeiros cômodos.

Hoje, Norte estava do lado de fora. Cadeiras haviam sido trazidas para a ocasião e a mesa de comida estava atrás dele. Devido à agitação do lado de dentro, Jack deduziu que havia outra mesa lá também. Nos arredores, Jack conseguia ver os minúsculos serviçais elfos andando de um lado para o outro carregando coisas — eles eram todos bem parecidos uns com os outros, extremamente pequenos e pareciam se atrapalhar tanto quanto se ajudavam, então Jack ainda não havia entendido o propósito deles. Por um tempo ele tinha achado que eles eram criações do Norte já que ele estava sempre fazendo experimentos, então servos minúsculos não pareciam muito improváveis. Ou vai ver havia algum pacto ou acordo envolvido.

Jack havia perguntado sobre isso de um deles uma vez, mas a criatura só tinha feito uns barulhos estridentes e gesticulado freneticamente por uns segundos; no final das contas Jack não havia conseguido extrair resposta nenhuma. Ele nem perguntou do Norte. Qualquer que fosse o propósito deles, era óbvio que o trabalho de verdade era feito pelos enormes yetis peludos, maiores do que muitas fadas, que eram surpreendentemente delicados para o seu tamanho. Jack havia descoberto isso nas poucas vezes que ele tentou entrar no castelo de fininho.

Jack se aproximou do maior grupo de fadas, aglomeradas ao redor dos assentos e dos músicos. Estavam dançando, mas não era nenhum tipo de dança que Jack achasse divertido.

Norte levantou o olhar.

— Frost?

Jack fez um gesto que era meio um aceno, meio uma continência, enquanto se apoiava em seu cajado.

— Norte. Há quanto tempo.

— Sim — Norte concordou — quanto tempo.

Jack olhou ao redor.

— Você não parece feliz em me ver.

Norte deu de ombros.

— É surpresa. A gente não sabia que você viria.

— Mas a essa altura não devia ser surpresa nenhuma... — uma das fadas próximas disse, por trás de seu leque para que Jack não soubesse qual delas foi. Jack fingiu não ter ouvido.

— Jack — Norte disse, se levantando de sua cadeira. Ele se aproximou de Jack, colocou uma mão nas suas costas e começou a levá-lo para longe da conversa. Assim que estavam um pouco mais distantes, ele disse: — A gente conversou. Se eu precisar de entretenimento, eu chamo você.

Jack se afastou dele.

— Entretenimento? Se eu me lembro bem, a gente também conversou sobre eu sempre ser bem-vindo para a janta. Então, aqui estou. Me deixa pegar um pouco de janta, me enturmar. Sabe, igual todo mundo faz.

— Isso não é jantar — Norte disse. — Isso é festa. Diferente.

— Norte, você não pode me deixar ficar pelo menos uma vez? Metade dessa gente nem saberia que eu não sou... sabe, um de vocês... se você não insistisse em contar para eles sempre que pode!

Norte deu um suspiro.

— Jack, por que você continua voltando? Você vem, eu falo para ir embora, você vai. E volta na próxima. Por mim não é problema, mas deve ser embaraçoso para você, não? E não aja como se você não contasse para os outros que você não é uma fada. Eu converso com a Dentiana, sabe.

— Seria menos embaraçoso se você só me deixasse ficar — Jack disse, tentando disfarçar sua rispidez com um sorriso. — Qual é, Norte! Você convida todo mundo para essas festas!

— Eu convido todas as fadas para essas festas — Norte o corrigiu. — Você fala que não é. Fala isso muitas, muitas vezes.

Jack deu um suspiro.

— Tá bom. Já entendi.

— Eu deixo você entrar muitas vezes também.

— Eu sei, eu sei.

Norte lhe deu um sorriso de pena e uma batida em suas costas.

— Pegue prato quando estiver saindo, viu? Nós pelo menos damos comida, né?

— É claro — Jack disse. Esse era um acordo que Norte nunca iria oferecer para qualquer outra pessoa. Afinal de contas, comer a comida de alguém significava aceitar sua hospitalidade. Não se come a comida de alguém só para ir embora. Mas Jack não era uma fada, então aparentemente Norte estava disposto a fazer vista grossa para ele. Pelo menos ele podia interpretar isso como o Norte se sentindo um pouco culpado toda vez que ele tinha que expulsá-lo da sua casa.

Ao passar pelo buffet Jack apanhou um prato de doces meio-cheio, e então saiu pelo mesmo lugar por onde havia entrado.

Chapter 4: Mimos odontásticos

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Jack não comeu os seus doces logo de cara. Ao invés disso, ele pegou um saco de um dos yetis do Norte e voou do monte até uma casinha no bosque. Não muito distante da do Aster, mas ele sabia que o Aster e a moradora desse chalé não se falavam.

Os portões estavam fechados, mas só iam até a cintura. Jack os abriu e atravessou o arco de metal, ornamentado com galhos de hera. Ele poderia facilmente ter passado por cima voando e seguido direto para a porta de entrada, sem sequer perturbar as folhas da planta, mas por consideração ele sempre percorria todo o caminho.

O primeiro arco estava decorado com hera, e as cercas de arbustos e os jardins dos lados da passagem eram tão densos que o caminho pavimentado era o único lugar por onde alguém conseguiria andar depois de passar da cerca.

No entanto, o segundo arco e a maior parte da área além dele estavam enfeitados muito mais de acordo com o gosto pessoal da moradora.

Muitos e muitos fios de barbante com dentes decoravam o jardim. Estavam pendurados do segundo arco como enfeites da véspera do Halloween, e estavam presentes nos arbustos ao longo do caminho. Jack os afastou com seu cajado para que eles não o encostassem enquanto ele passava, e os dentes chacoalharam quando voltaram ao lugar. O ruído rapidamente desapareceu, absorvido pelos sons naturais de pássaros cantando e de folhas farfalhando do restante da floresta. Jack bateu na porta com seu cajado, e esperou até que ela abrisse.

— Denti! — ele cumprimentou a fada que abriu a porta. — Você não estava na festa hoje.

Os olhos claros do outro lado da porta se apertaram conforme um grande sorriso se abria abaixo deles, e então a porta foi totalmente aberta.

Quase todas as descrições que Jack tinha de Dentiana se resumiam em “meio que uma ave”; ela tinha o rosto angular, o nariz meio triangular e um largo sorriso, com dentes incrivelmente brancos. Ela usava um vestido, justo no corpo e mais solto nas mangas, com estampa de penas de pássaros. Seu pescoço e pulsos estavam enfeitados com dentes, amarelados e velhos devido aos séculos de desgaste.

Jack mostrou o saco de doces e o chacoalhou.

— Da festa do Norte.

Denti deu um longo suspiro.

— Festa do Norte? Jack, não é à toa que eu não vou para aquelas coisas.

Jack sorriu.

— Mas não tem por que não aproveitar a comida.

Dentiana se afastou da porta e Jack entrou. Do lado de dentro havia menos dentes do que lá fora: não havia nenhum objeto feito deles, nem murais de incisivos e pré-molares. Mas eles estavam aqui e ali se você soubesse onde procurar, como uma caixa acima da lareira que Jack sabia estar cheia dos favoritos da Dentiana. Havia alguns guardados em potes na cozinha e alguns barbantes pendurados em batentes específicos.

Jack colocou o saco de doces na mesa da Denti, e ela o abriu para espiar o que tinha dentro. Despejou-os em um prato no centro da mesa, mas não pegou nenhum. Jack pegou um de massa crocante com fios de açúcar, bem delicado, com creme e metade de uma fruta no centro.

Ele gesticulou para Denti pegar um, mas ela negou com a cabeça.

— Não sou muito fã de doces. Você sabe disso, Jack.

Jack deu de ombros.

— Era a única coisa que caberia no saco — ele disse de boca cheia. — Sem vazar, no caso. Além disso, você sabe como o Norte é.

— Eu sei — Denti disse.

Houve um longo silêncio. Jack sorriu sem entusiasmo.

— Bem, não me faça levar o resto para o Aster.

Uma piada ruim, e ambos sabiam disso. Jack jamais levaria comida de fada para o Aster, um humano. Denti sacudiu a cabeça.

— Eu não quero nenhum. Aceita um copo de... alguma coisa?

Jack sacudiu a cabeça.

— Não, obrigado.

Fez-se silêncio por um momento.

— Andou fazendo alguma coisa recentemente?

— Sem adições à coleção — Denti disse.

Jack não pôde deixar de se sentir um pouco feliz com isso. Nenhum dente novo significava que nenhuma criança havia sido enganada em troca de um. Tudo bem, a Dentiana era bem menos maliciosa do que as outras fadas nos os acordos dela, mas dentes eram magia antiga e não havia nada que podia ser feito com eles que não fosse sinistro de alguma forma. Até onde Jack sabia, ela só gostava de colecioná-los, mas... ela teria contado para Jack se essa não fosse a verdade?

— Por que você continua voltando para as festas do Norte? — Denti perguntou, dando um suspiro.

Jack deu de ombros e pegou outro doce.

— Os doces são bons — ele disse.

— Você é expulso toda vez.

— Mas será que a noite do Norte estaria mesmo completa se ele não tivesse a chance de me afugentar para fora da propriedade dele? Além disso, você sabe que os convidados dele falam sobre isso por um mês sempre que apareço. É até um pouco triste.

— Mas parece que você só se chateia por causa disso. Não há mais nada em que você possa focar?

— Claro que tem. Eu só prefiro fazer isso.

Denti deu de ombros, desconfortável, e finalmente pegou um doce. Enquanto mastigava, ela o ergueu como uma taça em um brinde.

— Meus parabéns aos chefs do Norte — ela disse, resignada.

— Eles não fazem muita coisa além de doces, mas isso eles fazem incrivelmente bem — Jack concordou, terminando de comer seu segundo doce.

Eles se sentaram em silêncio por um tempo, enquanto do lado de fora os pássaros cantavam, as folhas farfalhavam e os dentes chacoalhavam na brisa.

— Você está muito quieta — Jack disse depois de um tempo.

— Eu sei que você não gosta quando eu falo sobre os dentes — Dentiana disse.

— Sabe de uma coisa? — ele disse, se levantando repentinamente. — Hoje foi um longo dia. Desculpe por ter vindo sem avisar.

— Leve os doces — Denti disse — eu não vou comer eles.

Jack acenou com a cabeça, virou o prato de doces de volta para dentro do saco, saudou Denti e foi embora. Por consideração, ele percorreu o caminho de entrada antes de decolar.

Chapter 5: é doce, mas é doce

Notes:

N/T: meu deus, cara, a palavra doce perdeu todo o sentido e derreteu meu cérebro

Chapter Text

Soluço já tinha picotado quase metade da madeira que precisava para o seu papel quando o sol se pôs o suficiente para que ficasse difícil de enxergar. Ele suspirou.

— Tá, já chega por hoje. Vamos entrar, Banguela.

Ele acariciou o Grimalkin atrás das orelhas, arrancando um ronrono intenso do grande gato, e levou a tigela com lascas de madeira para dentro.

Banguela entrou depois dele e, se transformando na sua forma menor de gato, saltou para a cama do Soluço e se aconchegou.

Soluço aprontou sua janta. Banguela já havia caçado, mas ele sempre fazia umas expressões ridiculamente tristes toda vez que Soluço comia sem lhe dar nada, então ele jogou uma perna coelho para ele para deixá-lo feliz.

Quando ele havia terminado de jantar, a cozinha estava limpa, Banguela estava ronronando na cadeira em sua forma de gato e estava quase na hora de ir para a cama, houve uma batida na porta.

Soluço grunhiu.

— É ele de novo, não é? — articulou em silêncio para o Banguela, que inclinou a cabeça e disse prr-eu?

Ele deu um suspiro e começou a colocar de novo sua perna de madeira. Houve outra batida.

— Estou indo! — Soluço respondeu. — Caramba, já estou indo.

As batidas pararam. Ele terminou de colocar a perna e vestiu sua túnica de couro de inverno por cima do pijama, assim pelo menos ele não atenderia a porta mal vestido.

Afinal não era como se Jack fosse ficar por muito tempo.

Soluço abriu a porta e viu Jack, com um sorriso que de alguma forma conseguia trazer vida ao seu rosto azulado. Ele estava encostado no batente da porta, e sacudiu um saco na frente do Soluço.

— Oferenda de paz?

Soluço fechou os olhos momentaneamente, como se pudesse dormir de pé e evitar completamente essa conversa.

— O sol se pôs há muito tempo.

— Ainda estava claro aí dentro — Jack ressaltou.

— Por no máximo três minutos. Eu estou para ir me deitar. Isso não pode esperar?

Jack abriu o saco e mostrou o que tinha dentro para ele.

— Sabe o quão rápido essas coisas ficam velhas?

Ele tentou olhar dentro do saco.

— Está escuro demais para ver. O que tem aí?

Jack tirou um doce, exibiu-o e então deu uma mordida.

— São bons. Mas são de fada. Eu estava meio que torcendo para estar certo sobre você não ser exatamente... humano.

Bem, ele não era, mas isso não queria dizer que comida de fada não seria um problema. Soluço olhou para o Banguela, que deu uma cabeçada em sua perna, e ele interpretou como se não houvesse problema. Bem, o Banguela sabia mais sobre essas coisas do que o Soluço, então ele decidiu confiar no gato.

Droga. Então não daria para usar isso como desculpa para mandar o Jack embora educadamente.

Ele deu um suspiro e encostou a testa na porta.

— Jack, não há mais ninguém para quem você possa levar esses doces?

— Já tentei. Duas vezes, se ir pegá-los conta como uma delas.

Soluço hesitou. Jack ainda estava sorrindo e seu tom de voz era descontraído, mas o sorriso em si estava um pouco... convincente demais. Algo não estava certo.

— Por favor? — Jack pediu. — Me sinto mal por ter te perturbado hoje. Me deixe compensá-lo por isso.

Ele suspirou de novo.

— Me dê dois minutos — e fechou a porta.

Ele percebeu que não daria para se trocar totalmente, então só continuou usando a túnica e vestiu uma calça por baixo, para cobrir as pernas quando ele se sentasse à mesa.

— Quantas roupas para uma noite tão quente — Jack disse.

Soluço colocou um prato na mesa, com um pouco mais de força do que o necessário, e Jack depositou alguns doces nele.

Ele se sentou com um suspiro e pegou um, ao mesmo tempo em que colocava um suporte de velas na mesa. Ele praticamente conseguia ver Jack segurando uma piada de “ó, que romântico!”, o que Soluço tentou ignorar. Ele usou uma das velas para ver melhor o que estava no prato. Os doces eram de um marrom dourado, esfarelavam-se com o menor dos toques e continham frutas.

Jack estava observando-o, escondendo um sorriso por trás de um doce.

Soluço rapidamente colocou um pedaço na boca. Era tão doce. Mais doce do que o mel das abelhas que ele cultivava. Começava crocante, e depois ficava macio. Ele não conseguia identificar todos os sabores exceto o da fruta, a doçura e talvez algo como ovos. Ele nunca havia experimentado algo assim em toda sua vida.

Jack nem estava mais tentando esconder o sorriso. Aliás, ele já havia quase terminado de comer.

Soluço engoliu depressa e tampou a boca com uma das mãos.

— Gostou? — Jack perguntou. Soluço não respondeu. — Ou você gostou, ou achou horrível. Você meio que só ficou encarando o nada por um tempo.

— É estranho — ele disse.

O que se faz quando se tem visitas? O que era essa coisa que Jack havia colocado em sua mesa?

Ele quase se levantou para pegar chá para ambos, mas o Banguela escolheu aquele momento para subir no seu colo e esfregar a cabeça em seu braço, então ele foi obrigado a se sentar de novo.

— Relaxa — Jack disse com uma risada.

— Desculpe — Soluço disse, olhando para o Banguela e acariciando-o atrás das orelhas.

— Não precisa se desculpar — ele respondeu. — Só relaxa. Você parece... não muito bem.

— Você estava prestes a falar “pálido”, não estava?

— Eu ia dizer “parece que viu um fantasma” — Jack disse.

— E por que não disse?

 Soluço nem sabia qual era a resposta que queria ouvir. E era mesmo importante que o outro respondesse com sinceridade ou não?

— Mudei de ideia — Jack disse sem nem titubear e comeu metade de outro doce.

Soluço brincou com o que estava na mesa. Era doce demais para ele, e muito estranho também.

— Por que eu? — perguntou de repente.

— Hã?

— Por que eu? Você pegou esses doces das fadas, certo? Isso quer dizer que você tem amigos entre elas. Então por que vir aqui comigo?

— Está se perguntando se eu vim para tentar te envenenar? — Jack questionou. Soluço sabia que ele estava se esquivando da pergunta, mesmo assim decidiu entrar no jogo.

— O Banguela parece achar que não há nada de errado — ele disse. — Eu acho. Tem certeza absoluta de que é seguro?

— Totalmente seguro — respondeu Jack, gesticulando com uma mão. — Contanto que você não seja humano.

— Certo... — Soluço disse. — Totalmente seguro.

E esse era o motivo de ele nunca ter tido visitas.

— Ainda não respondeu minha pergunta — ele insistiu, trazendo o assunto de volta para Jack, e o sorriso dele congelou um pouco, como quando ele havia atendido a porta.

— Desculpe — disse Soluço novamente. Ele de repente entendeu como Jack havia interpretado aquela pergunta, quando na verdade ele só queria saber... não, ambos os sentidos eram igualmente desconfortáveis e ele sabia disso.

Jack deu de ombros e ajustou seu cajado, que estava apoiado na mesa. O silêncio desconfortável se prolongou enquanto Soluço acariciava o Banguela só para ter alguma coisa para fazer com as mãos.

— Acho que isso quer dizer que você não gostou do doce — Jack comentou, e começou a colocá-los de volta no saco.

— N-não. Não é muito do meu... — sua voz foi sumindo. Ele concentrou-se na cabeça do Banguela, onde suas mãos faziam carinho no pelo do gato.

Jack o olhou de cima para baixo e lentamente se sentou novamente.

— Uau — disse. — Você está bem nervoso, não está?

Soluço se levantou, expulsando o Banguela do seu colo. Tenso, ele pegou o prato e começou a lavá-lo na pia. Ele sabia que só estava piorando a situação, e que Jack não quis dizer nada demais, mas ele só... precisava fazer alguma coisa.

De canto de olho, ele viu Jack se levantar, esfregando a nuca.

— Soluço, me... desculpe. Eu não devia ter vindo.

Soluço colocou o prato para escorrer e sacudiu as mãos para secá-las.

— Não — ele disse. — Obrigado... pelo doce. Mesmo que não estivesse... digo, que eu não...

— Você não precisa ser tão educado.

— Eu sei — respondeu. — Não estou só sendo educado.

— Não? — Jack perguntou, lançando um olhar para o doce na mesa.

­— Não, eu não... — Soluço levou os dedos à ponte do nariz. — Eu só... é muito doce.

Jack riu.

— É doce, mas muito doce?

— É — ele disse, detectando na piada a necessidade do Jack de dissipar a tensão. — Algo assim.

Soluço se virou para ele e o viu sorrir esperançosamente. Ele tentou sorrir de volta, mas viu o rosto do outro se entristecer.

— Já vou — Jack murmurou. — Pode ficar com... — Ele gesticulou em direção ao doce parcialmente comido que estava na mesa.

Soluço havia esperado para ter sua casa toda para si desde o cair da noite, mas agora que Jack estava prestes a ir embora, ele sentiu pontadas de culpa e solidão no coração. Ele detestaria continuar sem ter sua própria casa para si, mas não podia deixar que Jack fosse embora assim.

— Espere — ele disse, estendendo uma mão, e Jack parou na porta. De repente, Soluço percebeu que não sabia o que fazer dali em diante. — É...

Jack se voltou para ele.

— Olha, você pode parar de ser educado. Eu sei que você não me quer aqui. Eu não sou estúpido.

— Volte outro dia — Soluço disse. — Por favor.

Jack passou uma mão no cabelo.

— Bem, já que você pediu com tanta educação... — ele disse.

— Só... durante o dia — disse Soluço. — Eu geralmente estou lá fora na horta, mas a gente pode conversar ou algo assim.

Jack acenou com a cabeça lentamente.

— Sem estranhos dentro de casa, né?

Soluço desviou o olhar.

— Eu não gosto de... visitas inesperadas.

— Entendi. Vou avisar da próxima vez. Eu prometo.

Ele assentiu.

— Obrigado.

— E eu prometo não perguntar sobre coisas pessoais — Jack disse sorrindo. — Não ache que eu não notei isso também.

Então a porta estava se fechando e ele havia ido embora. Soluço sentiu seu rosto empalidecer, suas mãos começarem a tremer, e ele afundou-se em sua cadeira. Banguela pulou de volta para o seu colo, e ele acariciou-o atrás das orelhas.

Ele pegou o doce da mesa e ofereceu-o para a criatura.

— Quer isso?

Banguela deu uma farejada e então virou a cara, dando uma cabeçada em sua barriga, pedindo mais carinho.

Ele o acariciou atrás das orelhas e colocou o doce de volta na mesa.

— Não achei que fosse do seu gosto mesmo — disse.

Antes de ir se deitar, Soluço jogou o doce no bosque.

Chapter 6: 6. A torre

Notes:

N/T: nossa, esse foi tão mais tranquilo!

Chapter Text

De manhã, Soluço se sentou em sua cama e passou um bom tempo olhando para o Banguela, que como de costume estava em sua forma menor de gato preto para que ele conseguisse dormir em seu peito.

Durante anos ele havia meio que deixado de lado o fato de que ele não sabia quase nada sobre o Banguela. Quando eles se conheceram, ele sempre presumiu que com o tempo descobriria mais sobre o ga... Grimalkin. Mas os anos haviam passado e ele havia se acostumado tanto com o Banguela que eventualmente ele meio que havia se esquecido de continuar questionando. O Grimalkin nunca fazia nada além de caçar e implorar por comida, e ocasionalmente dormir na sua horta também.

Soluço colocou uma mão na cabeça do Grimalkin, fazendo-o soltar um prrp sonolento.

— De onde você veio, hein? — ele perguntou baixinho. — Jack tinha razão, sabe. Você caça o dia inteiro, mas parece sempre estar por perto.

Banguela não parecia estar prestando atenção. Sua orelha se mexeu quando o seu polegar encostou nos pêlos sensíveis.

Soluço se reclinou.

— Deixa para lá — murmurou. — Eu nunca ouvi nada sobre o Breu. Bem, contanto que você não esteja trabalhando para ele, né?

Para a sua surpresa, isso fez o gato soltar um rosnado grave. Um olho verde se abriu e o fitou com raiva.

— Eu não disse que estava. Acredito em você.

Banguela mexeu os ombros e voltou a se encolher. Essa foi a única resposta que obteve.

 

***

 

Jack deu uma última olhada em direção às árvores antes de passar pelos galhos de hera suspensos, e atravessar a porta secreta de outro monte de fada. Do outro lado, ele parou para olhar ao redor.

Parecia com uma clareira normal no bosque, apesar de que não podia ser vista de fora do monte. No centro havia uma torre alta de pedra, com o telhado pontiagudo e fumaça de lareira saindo da chaminé. Não havia portas nem escadas na base da torre, somente algumas janelas no andar mais alto, uma das quais tinha uma varanda decorada com vasos de plantas.

Ele provavelmente deveria ter vindo aqui primeiro, assim que pegou os doces. Mas ele já sabia que a Dentiana iria recusá-los, e ele devia um pedido de desculpas ao Soluço. Da próxima vez, ele prometeu, direto para cá.

O som de cantoria podia ser ouvido da base da torre, o que significava que a residente estava sozinha. Jack decolou e deixou-se ser levado torre acima, enfim pousando no parapeito. Ele deu uma batida na parede de pedra.

De dentro de um dos cômodos, a cantoria cessou de repente. Ouviu-se um baque e o som de pés escorregando no chão. Jack deu uma risadinha.

Do andar de cima surgiu uma jovem, segurando um volume extraordinário de cabelo em um braço e um espanador no outro. Seu vestido era rosa-claro, mas tanto ele quanto seu rosto estavam sujos de poeira. Em seu ombro havia um lagarto verde minúsculo — Jack sabia que era um camaleão, mas ele jamais deixaria a criatura saber disso — olhando-o com insatisfação. Um sorriso se abriu no rosto dela, mas ela voltou a franzir o cenho conforme se aproximava.

— Jack! Se a Mamãe vir você...

Jack sacudiu a cabeça. A Punzie sempre se preocupava com isso, mesmo quando sua “mãe” passava dias fora em uma das suas viagens. Ele deu o seu sorriso mais casual e reconfortante.

— Ela não está por perto. Além disso, você sabe que ela tem que me pegar antes de fazer qualquer coisa comigo.

Rapunzel balançou a cabeça.

— Você vai se meter em uma encrenca qualquer dia desses...

Jack esfregou a nuca e fingiu estar o mais arrependido possível.

— Na verdade... eu...

Rapunzel se sentou na frente dele, largando seus cabelos e colocando o espanador de lado. Ela colocou uma mão em seu tornozelo.

— Jack, o que aconteceu?

Ele deu um sorriso que era parcialmente uma careta, e esperou só até que os olhos dela se arregalassem em horror antes de largar o saco de doces no colo dela.

— Fui ver um amigo — ele disse. — Trouxe um presente para você, Punzie.

Rapunzel encarou o saco de doces, sem palavras, por um minuto inteiro até se dar conta do que aconteceu. Ela deu um tapa na perna do Jack, franzindo os lábios em reprovação. O lagarto, Pascal, também o olhou feio. Como sempre.

Jack gargalhou, até Rapunzel bater nele de novo.

— Jack! Você me deixou preocupada!

Ele se acalmou e secou as lágrimas.

— Desculpe.

— Desculpas não aceitas — ela disse de mau humor, enquanto abria o saco e olhava o que tinha dentro. — Ah, Jack, não precisava! — Ela ofereceu o saco a ele — Visitas primeiro!

Jack pegou um.

— Tá bem, mas um só. O resto é seu.

Rapunzel também pegou um, sorrindo.

— Jack, você se lembrou dos meus favoritos!

— Talvez tenha sido só no automático — ele disse, sorrindo. — Não, mentira. Você sabe que eu sempre vou lembrar dos seus favoritos.

Apesar de tudo, Rapunzel era humana. Porém todas as refeições dela eram feitas pela Madame Gothel, uma fada como todas as outras, então qualquer estrago proveniente de comida de fada já havia sido feito muito antes do Jack ter começado a trazer os doces do Norte para ela em segredo.

— Seu bajulador — Rapunzel disse, com a boca cheia de doces. — Saiba que eu ainda estou com raiva de você por ter me assustado.

— Valeu a pena — ele disse. — Mesmo com os tapas. Aliás, ai.

Ela o ignorou, concentrando-se em seus doces, e fechou os olhos.

— Huuuum. Esses estão tão bons. Jack, promete para mim que um dia você vai me dizer de onde consegue eles?

— Um dia — ele respondeu. — Prometo. Ei... se você deixar essa torre eu até transformo a história em uma peça.

Rapunzel abaixou os olhos. Ela apoiou a mão que segurava o doce em sua coxa, e seu outro braço abraçou seu tórax de forma protetora.

— Você sabe que eu não posso fazer isso, Jack.

— Qual é — ele disse. — Não vai me dizer que você gosta de ficar presa aqui.

— Não é tão ruim... quando você se acostuma — ela disse, ainda cabisbaixa, dando de ombros.

— Sério? Eu já teria fugido há muito tempo. É sério, Punzie, o que a mantém aqui?

— Já sei — disse Rapunzel, dando um sorriso fraco. — Se você me disser como conseguiu os doces, a gente pode conversar de novo sobre o porquê de eu não querer ir embora.

O sorriso de Jack sumiu.

— Tá bom, já entendi — ele disse. Rapunzel franziu o cenho.

— Você está bem, Jack? Não foi minha intenção...

Ele balançou a cabeça.

— Não é nada.

Ela cutucou sua perna.

— Qual é. Você geralmente faz piadas quando eu falo essas coisas. Sabe, tipo “ai, ai, ai. Se continuar tentando barganhar desse jeito, vai me fazer achar que é uma fada!” — a sua imitação dele era estranhamente boa, mas Jack jamais diria isso a ela. Pascal estava o encarando com presunção, o que é claro que ele ignorou o lagarto.

— Foi mal, Punzie — Jack disse. — Acho que não estou no clima hoje.

Rapunzel se aproximou um pouco mais e apoiou o queixo nas mãos, para indicar que ela estava todo ouvidos.

Jack deu um suspiro e empurrou o rosto dela de leve com seu pé. Ela indignou-se.

— Eca, Jack! Que nojo!

— Então não me olha assim!

Rapunzel soltou um suspiro e gesticulou com impaciência antes de colocar as mãos sobre as coxas de novo.

— Você é impossível — ela reclamou, e Jack deu de ombros.

— Faz parte do meu charme — ele tentou sorrir de novo.

Ela deu uma mexida no saco para pegar outro doce.

— Ah, acho que eu devia contar para você — Jack disse conforme um plano começava a se formar em sua mente. Se desse tudo certo, é claro. Ele ainda não tinha certeza se conseguiria fazer o Soluço fazer qualquer coisa além de resmungar para ele, mas se conseguisse... —Achei outro amigo. Eu acho. Um futuro amigo, talvez.

Rapunzel arqueou uma sobrancelha.

— Futuro amigo? Quer dizer que ele ainda não conhece você?

— Não — ele disse. — Ele me conhece. Ele só é... irritadiço.

Rapunzel parecia estar esperando-o continuar.

— Ele mora sozinho no bosque com um gato — Jack acrescentou. — Mas acho que eu fui visitá-lo em um momento ruim.

— Ah. Bem, tenho certeza de que dá para resolver se vocês só... conversarem?

— Já tentei. Acho que consegui, mas ele é um pouco... difícil de entender.

 — Irritadiço. Você falou.

— Ele parece ser bem interessante depois que você o conhece. Eu estava querendo apresentar vocês dois, se eu conseguir trazer ele aqui. Acho que você iria gostar dele. Ele tem um animal de estimação que também não gosta de mim. Vocês se darão incrivelmente bem — ele olhou para o Pascal — mas não sei o quanto você gostaria do gato.

Pascal mostrou a língua para Jack.

Os olhos de Rapunzel brilharam por um instante, mas então ela pareceu pensar duas vezes.

— Sabe, Jack... você pode ser bem... apressado com essas coisas.

Ele riu.

— Eu sei, Punzie, eu sei. Só se ele concordar. Se ele aceitar, você gostaria de conhecê-lo?

— Bem...  — ela disse, brincando com um dos dedos do jeito que sempre fazia quando queria dizer que queria alguma coisa, mas não queria falar que queria. — Se ele aceitar...

— Então temos um acordo — ele concluiu.

Houve um farfalhar de folhas lá embaixo. Jack olhou pela janela. Rapunzel, com um doce na boca, olhou para ele de repente, e Pascal fez um barulhinho de preocupação.

— Essa é a minha deixa — Jack disse.

— Ela está... — perguntou Rapunzel de boca cheia.

— Aham — Jack pegou um doce do saco.

— Você disse que o resto era meu! — ela reclamou, pegando o saco de volta um pouco tarde demais.

— É para a viagem — ele disse, dando uma piscadela, e flutuou janela afora, se escondendo do outro lado do telhado.

Do lado de dentro ouviram-se baques e outros ruídos conforme Rapunzel recolhia seu cabelo e corria para o seu quarto para esconder o saco de doces antes que a Madame Gothel retornasse.

A voz melosa e melodiosa da Gothel chegou até o alto da torre.

— Rapunzel! Jogue os seus cabeeelos!

­— Estou indo, Mamãe! — gritou Rapunzel, correndo até a janela.

Jack esperou só até Gothel passar pela janela antes de se lançar ao ar e deixar o vento levá-lo para longe de novo, sem ser visto.

Chapter 7: Uma noite no bosque

Chapter Text

No final da tarde, Jack deixou o vento levá-lo onde quisesse. O vento e ele tinham um acordo: se havia algo que ele precisava ver, o vento o levaria para lá.

Ele o levou para o Aster. Jack pousou um pouco antes da cerca, no exato momento em que Aster estava saindo com pressa, colocando seu cinto de armas.

— Jack! É o Breu.

Ele pulou pelo portão ao invés de abri-lo. Jack nem precisou receber ordens, e deixou o vento guiá-lo junto ao Aster, acompanhando as passadas longas dele. Se ele voasse sobre as árvores poderia ir um pouco mais rápido, mas aí deixaria o Aster para trás.

Ele chegou perto do outro e perguntou: — Você tem certeza?

— Só pode ser ele — disse Aster.

— O pessoal do Norte também gosta de causar problemas.

O rosto do Aster estava sério.

— Jack, ele está indo atacar a vila.

— Como assim “indo atacar”? Fadas não atacam, elas espreitam! — Essa era uma das Regras. Espreitar na floresta até alguém aparecer, tudo bem. Mas atacar diretamente?

Aster olhou-o impassivo, e Jack parou de questionar.

 

***

 

Aster reduziu a velocidade conforme se aproximava da borda da floresta, e Jack inquietou-se, movendo-se para lá e para cá na frente dele, explorando o mais longe possível sem perdê-lo de vista. Jack odiava isso. Ele poderia ir rápido e em silêncio se quisesse, mas Aster, sendo humano, precisava ter cuidado com cada folha e cada galho. Se mover tão lentamente era agonizante.

Folhas farfalharam, mas era só o vento. Jack estava completamente tenso, porque apesar de o pôr do sol ainda nem ter começado e eles estarem na borda do bosque, onde a mata não era tão densa, ainda assim estava escuro demais para enxergar além das árvores mais próximas. Os ouvidos do Jack estavam estranhos também; tudo soava meio abafado. Se ele não tivesse acreditado que isso era coisa do Breu, ou de algum dos seguidores dele, isso teria o convencido.

Aster gesticulou com impaciência para ele ir na frente, e Jack finalmente acelerou, malmente se preocupando em continuar escondido nas sombras.

Ali. A borda da floresta, e a vila. Berk, ou do que quer que fosse chamada.

Jack aguardou na mata, fora de vista, procurando por algum sinal de que algo estava errado.

Nada. As tochas da vila crepitavam. Ouviam-se vozes e risos. Era hora da janta.

Jack sentiu seu coração apertar-se em seu peito.

— Eles ainda não chegaram na vila — Jack informou Aster.

— Tem certeza disso?

Ele assentiu.

— O máximo que posso ter.

— Certo. Então a gente espera aqui. Esse lugar é o melhor para eles tentarem invadir, então fique de olho.

Jack subiu na árvore mais próxima.

— Você se prepara, e eu vou ficar de olho.

Abaixo dele, folhas começaram a farfalhar. Jack escaneou as árvores, primeiro para a esquerda, e depois para a direita. O Breu estava encobrindo as árvores, então as criaturas dele deviam estar próximas.

Ele viu uma luz.

Sem falar nada, Jack decolou e voou em direção a ela. Ela oscilava, o que queria dizer que era fogo. Muitas das criaturas do Breu tinham ou usavam fogo — apesar de que não havia cheiro nenhum, então isso excluía algumas. A chama também era pequena demais para ser de algumas outras. Então...

Ela recuou para dentro da mata, movendo-se paralelamente ao limite da floresta. Jack a seguiu, parando de vez em quando para se recuperar e ver em que direção a luz se movia.

Ele sentiu, mais do que escutou, o rosnado atrás dele. A criatura estava sentada bem perto dele no galho da árvore, e tão próxima que ele pôde sentir o ar vibrar em seu ouvido.

Ele congelou. A coisa perto dele não se moveu. Ele olhou para o lado o máximo que podia sem mexer a cabeça, até que seus olhos doessem pelo esforço, mas estava escuro demais e a criatura estava exatamente atrás dele.

O rosnado cessou. Ela o cheirou.

Então houve silencio.

Jack soltou o fôlego que havia segurado. A luz estava tão distante que quase havia desaparecido, mas ele não se atreveu a persegui-la tão rápido quanto antes.

Ela deu uma volta preguiçosa, indo em direção à vila e voltando por onde havia vindo, vagando atrás do limite da floresta. Jack alterou seu percurso, se posicionando para esbarrar no viajante assim que ele se virasse, e chegou mais e mais perto...

Então a lanterna parou de se mover, e Jack, que estava indo mais rápido do que havia pretendido, usou seu cajado para passar entre duas árvores e pousou para encontrar o dono da lanterna.

Soluço estava ajoelhado na frente do Banguela, o Grimalkin, e a lanterna estava na terra ao seu lado. De joelhos ele era só um pouco mais baixo que a grande besta quando sentada, e estava coçando o queixo dela enquanto ela ronronava.

— Bom garoto, Banguela — ele murmurou e então olhou para o Jack.

Jack congelou, sua mente indo a mil. A luz da lanterna roubou toda a cor do seu rosto já pálido, escurecendo a área ao redor dos seus olhos e as cobrindo com sombras, tornando-as impossíveis de decifrar. Jack sentiu que ia vomitar. Como ele poderia ter sido tão estúpido?

Então o semblante do Soluço se suavizou. Ele se virou para o Banguela e continuou acariciando-o sob o queixo.

— Acho que o Banguela assustou você, hein? — ele disse.

A garganta do Jack estava tão tensa que ele nem conseguiu responder. Ele tinha que fazer alguma coisa. Erguer seu cajado, dizer algo, qualquer coisa para impedir o Soluço de se aproximar da vila. Mas seu corpo não se movia para obedecê-lo.

Ele abriu a boca, mas ao invés de falar, sua voz ficou presa em sua garganta. Eles só haviam sido amigos por um dia, como era possível se sentir tão traído?

Aster chegou apressado por trás dele, segurando a própria lanterna com firmeza, cuja chama como se tivesse acabado de ser acesa.

— Jack! Aí está você! Não tem nada lá fora! Depois que você foi embora, tudo ficou... — ele parou quando avistou o Grimalkin (que Jack já não conseguia chamar pelo nome).

Soluço ficou de pé lentamente, com uma mão apoiada de forma protetora na cabeça escamosa do Grimalkin.

— Jack? — ele perguntou.

Jack ergueu seu cajado.

— O Breu atacou a vila hoje — ele rosnou.

Soluço o encarou por longos segundos, confuso. O Grimalkin rosnou, mas sua postura nunca mudou, em obediência ao seu mestre.

— Nada atacou a vila hoje — Soluço disse.

Aster olhou de um para o outro.

— Jack? — ele perguntou, com o tom de voz frio e sério. A respiração do Jack falhou novamente. Ah, pelos deuses, agora o Aster sabia que ele havia tentado fazer amizade com o mestre de um Grimalkin.

Seu cajado começou a tremer. Deuses, o que ele havia feito?

O Grimalkin abaixou a cabeça em direção ao chão, e o seu couro preto e a perna do Soluço ocultaram da luz da lanterna o que ele estava fazendo. Desviando da mão do seu mestre, ele começou a se mover lentamente em direção ao Jack e ao Aster.

Jack apontou seu cajado na direção da criatura. Aster pegou sua besta e mirou-a no Grimalkin.

Mas ele parou no limiar da luz da lanterna, deixou algo cair no chão e então recuou para perto do Soluço, sentando-se com o rabo em volta das suas patas, observando Jack com atenção.

Com mãos trêmulas, ele pegou a lanterna do Aster e se aproximou até conseguir ver o que o Grimalkin havia deixado cair.

Na terra havia uma asa pequena e um braço, de aproximadamente metade do comprimento do braço do próprio Jack, que ainda sangravam por onde haviam sido amputados. As penas eram brancas-fantasmagóricas e o braço era enfeitado com garras quase tão longas quanto os dedos da criatura. Ela era esquelética, estava coberta de sangue e de alguma outra coisa — demorou um pouco para Jack perceber que aquilo era saliva de Grimalkin.

O Grimalkin começou a ronronar contentemente.

Jack sentiu suas pernas enfraquecerem subitamente e ele desabou na terra, junto da lanterna.

Aster enrijeceu-se e Jack conseguiu dizer: — Ele a matou, Aster. Ela está morta.

Houve um longo silêncio. Banguela se levantou e o Soluço se ajoelhou novamente ao seu lado, com uma mão em seu dorso. Aster olhou para Jack e para os membros esquartejados no chão, e então abaixou a sua besta.

— Que diabos — ele murmurou. — Que noite esquisita.

Jack usou seu cajado para virar a asa, mas descobriu que não havia nada de novo para ser visto do outro lado da criatura, exceto a terra que havia grudado no sangue fresco.

Aster descarregou a besta e a guardou.

— Jack? — ele o questionou.

— Está tudo bem. Eu... vou explicar mais tarde.

Aster alternou o olhar entre os dois, e então deu um suspiro, esfregando os olhos.

— Está tarde demais para mim. Toma cuidado, parceiro — ele disse, sem sua despreocupação de costume, ao invés disso olhando feio para o Banguela e o Soluço.

Ele deixou-os sozinho na clareira.

Soluço acariciou o Banguela atrás das orelhas e se aproximou do Jack, se ajoelhando ao seu lado.

—Ei... você está bem?

Jack olhou para ele e deu um sorriso fraco, se levantando com a ajuda do seu cajado e tentando fingir que ele não estava usando-o como apoio.

— A noite foi longa, e eu tenho estômago fraco — disse. Ele preferia que o Soluço acreditasse que ele não tinha estômago para violência do que tentar explicar... tudo.

Por um momento ele achou que o Soluço fosse insistir, mas então ele se afastou e desviou o olhar para onde sua mão estava fazendo carinho no Banguela.

— Está tarde, como seu amigo disse.

— É. A aldeia está segura. Missão cumprida.

— É — disse Soluço, olhando para a borda da floresta. — Vamos lá, Banguela. Ficamos tempo suficiente.

Jack observou-os afastarem-se da vila. Ele entendia o que o Aster tinha contra as criaturas do Breu tentando atacar a vila... mas o Soluço nem sequer havia ouvido falar do Breu antes.

Por que ele se importava?

Chapter 8: Persuasão

Chapter Text

Soluço acordou tarde no dia seguinte. Banguela, pela primeira vez, também havia dormido até tarde depois da longa noite que tiveram. O Grimalkin estava dormindo deitado em cima do seu quadril, o que Soluço interpretou como um sinal de que ele ainda não deveria se levantar, mesmo com a luz do sol passando pela janela e incidindo nele. Ele sabia por experiência que se ele tentasse se levantar enquanto o Banguela estivesse desse jeito, ele se veria imobilizado debaixo da forma maior e escamosa de Grimalkin, ao invés da forma de gato preto, que era muito mais fácil de lidar.

Ele cobriu os olhos com o braço para tampar a luz e colocou sua outra mão no dorso do Banguela, sentindo-o ronronar. O gato fez um mrr para ele.

— Então você está acordado, só quer que eu durma até tarde hoje — Soluço disse. — Tá bom, já entendi.

Ele abriu a boca para perguntar à criatura sobre o Jack, mas isso seria inútil. Banguela não ofereceria nenhuma perspectiva que ele já não houvesse considerado — e não era nem pelo fato de ele não poder falar. Além disso, Jack era como um livro aberto. Soluço podia até não ter convivido com hu... outros huma... não, humanos há vários anos, mas a expressão de traição não era uma muito fácil de se esquecer. Por um momento, Jack acreditou, com toda a certeza, que o Soluço poderia ser quem estava atacando a vila.

E isso... deveria ter doído, mas na verdade ele conseguia se imaginar chegando na mesma conclusão, dadas as circunstâncias.

Depois de alguns minutos, ele decidiu que estava acordado mesmo, e nem mesmo ser feito de colchão mudaria isso.

— Levanta, Banguela — ele disse, e dando um mrrr em protesto, o gato se levantou e se espreguiçou. Ele grunhiu quando as garras do Banguela atravessaram seu cobertor e seu pijama, picando-o.

— Eu sei que você não gosta de ser manuseado, mas não precisa disso.

Soluço se sentou na cama e pegou sua perna, que estava encostada no criado-mudo. Banguela esperou pacientemente ele terminar de amarrá-la para poder sair para caçar.

Ele se vestiu, comeu e pegou as lascas do dia anterior. O céu estava limpo, então não havia chance de ele se molhar.

Enquanto preparava as coisas do lado de fora, ele percebeu que o Banguela ainda estava passeando ao longo da borda da clareira.

Jack estava lá também, observando tanto o Banguela quanto a porta da cabana, com cautela. Soluço tentou disfarçar o pulo que seu coração havia dado. Ele estava mesmo... feliz por ter companhia?

Então ele se lembrou da noite anterior. Será que Jack estava aqui para conversar sobre o que aconteceu? Para exigir uma explicação? Para dizer que ele nunca mais queria ver o Soluço de novo? Ele achava que Jack havia percebido que não era ele que estava atacando Berk, mas e se...?

— Não achei que veria você tão cedo por aqui — ele disse, cauteloso. Ele se sentou na fileira de pedras que delimitavam sua horta, com a tigela de pedaços de madeira apoiada nas suas pernas cruzadas, e começou a trabalhar.

— É, bem, melhor se acostumar — Jack disse, sentando-se na frente dele. — Já me disseram que eu sou persistente.

Soluço tentou dar um sorriso amigável. Jack estava tenso, não havia dúvida sobre isso: seu sorriso parecia forçado e cada movimento parecia exigir esforço para parecer casual, mas aparentemente ele queria evitar completamente o assunto. Bem... Soluço não falaria nada se Jack também não falasse.

— Ei, esse é mais encorajador do que o do outro dia — Jack disse, colocando um saco na frente do Soluço.

— Vai tentar com os doces de novo? — ele respondeu, terminando de despedaçar a madeira antes de pegar o saco.

— Não. Desculpe, mas comigo não há nada além de decepção mesmo. Pode ser frustrante, mas pelo menos não é entediante — disse, dando um sorriso.

Soluço deu uma risadinha.

— Bem, não podemos deixar minha frustração virar tédio.

Ele colocou os fragmentos de madeira na tigela e abriu o saco, que estava cheio de nozes e frutas secas.

Ele sentiu um sorriso se abrindo em seu rosto involuntariamente.

— Bem... — ele disse, pegando um pedacinho de maçã seca e colocando na boca — definitivamente não é doce.

Jack riu nervosamente.

— Mas, você está falando do sabor, ou...? — ele estava sorrindo como se estivesse fazendo uma piada, mas seus ombros estavam meio encolhidos e ele o observava com atenção.

Soluço colocou umas amêndoas na boca e, dando um sorriso maligno como resposta, voltou a despedaçar madeira.

Jack não disse nada.

Ele tentou se concentrar no que estava fazendo, mas ter alguém assistindo o fazia se distrair demais.

— Ei — o outro disse quando Soluço diminuiu o ritmo. — Eu sei que você está... ocupado, mas o que acha de vir comigo?

Soluço olhou para ele. Uma lista dos afazeres que ele ainda tinha que fazer hoje passou pela sua cabeça: ele ainda não havia olhado as colmeias, ele precisava cuidar das plantas quebradas, ele estava ficando sem tempo para fazer papel antes do seu caderno acabar...

Jack ainda estava o observando.

— Para onde? — Soluço perguntou, tentando ganhar tempo para se decidir. — Quão longe é?

Jack deu de ombros.

— Bem, você deu um susto e tanto no Aster ontem de noite...

Soluço abaixou a cabeça.

— Bem, ahn...

— Não é culpa sua — ele disse rapidamente. — Mas, sabe, você e o Aster na verdade têm muito em comum. Vocês se dariam bem!

Soluço duvidava muito disso, mas não disse nada em voz alta.

— Você ainda não está bravo por causa da besta, está?

— Besta? Não, não é isso.

— Bem, então venha conhecê-lo.

Ele olhou para o Banguela, que estava deitado com as patas sob o queixo, observando-os preguiçosamente.

— Que baita ajuda você é — ele murmurou.

Jack olhou por cima do seu ombro para o Banguela, e então sorriu para o Soluço.

— Além disso, vai ser incrível ver a cara do Aster quando um Grimalkin do bem aparecer na porta dele.

Soluço estudou o rosto dele, procurando por sinais de hesitação, ou qualquer um que dissesse que ele estava brincando ou tentando envergonhá-lo; qualquer coisa que ele pudesse usar como desculpa para não ir com ele. Mas não havia nada do tipo — a única coisa presente no rosto do Jack era esperança, honesta e verdadeira.

Ele desviou o olhar.

— Vou pensar — enfim respondeu.

Jack não disse nada por muito tempo. Então ele se levantou.

— Bem.

Soluço deu um suspiro e esfregou o rosto.

— Desculpe — ele disse.

Jack se apoiou em seu cajado, observou-o por bastante tempo e então sentou-se novamente.

— Então... isso não é um sim...?

Soluço pegou mais um pedaço de madeira e começou a cortá-lo. Ele não se sentia assim há anos. Ele tinha um monte de respostas prontas, mas nenhuma delas parecia querer sair da sua boca.

Banguela se aproximou e deu uma cabeçada forte em seu ombro. Ele quase deixou a faca cair.

Olhando para Jack, ele viu o garoto pálido observando-os, confuso. Soluço sorriu timidamente.

— Eu acho que o Banguela insiste — ele disse depois de um tempo, odiando cada palavra que saía da sua boca.

Jack tampou a boca com uma mão, mas não pôde esconder o riso.

Soluço voltou a trabalhar, mas Banguela empurrou seu ombro novamente, forçando-o a afastar sua mão ou se cortar. Ele bateu de leve no gato escamoso, empurrando seu focinho para o lado, o que lhe rendeu outro empurrão.

Jack riu de novo.

— Não ache que eu vou me esquecer de vocês dois se unindo contra mim — Soluço resmungou, antes mesmo de seu cérebro perceber o que estava dizendo.

Mas longe de ficar aborrecido ou com raiva dele, Jack começou a sorrir.

— Parece que o Banguela é só o que se precisa para convencer você.

— Quando o seu animal de estimação é grande assim, ele é uma gangue de um só.

— Então vamos lá — Jack disse, estendendo a mão para ele. — Antes que você pense demais e mude de ideia, está bem?

Soluço segurou sua mão — gelada como gelo, mas não era como se temperatura ainda o incomodasse. Isso já não acontecia há muito tempo.

Chapter 9: Beterrabas

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Soluço manteve uma mão na cabeça do Banguela conforme Jack os guiava pelo bosque. Nenhum deles disse nada por um tempo, até Soluço fazer uma pergunta:

— Então, você não me disse o quão longe é a casa do Aster.

— Ahn... — Jack coçou a nuca. — Na verdade... eu não sei direito.

— Não sabe? Você parece conhecer muito bem a floresta.

— Eu conheço. É só que... eu geralmente passo voando por aqui. É um pouco mais rápido.

Soluço parou de andar bruscamente.

— Voando?

— Aham — Jack disse, um pouco descontraído demais. Soluço se perguntou se ele havia deixado aquela informação escapar sem querer, ao invés de ter tido a intenção de contar para ele.

— Parece, ahn... — algo que uma fada faria. Mas Jack aparentava ser um pouco sensível quanto a isso, então ele não disse mais nada.

— Eu sei — ele respondeu e deu um suspiro. — Olha, você com certeza já percebeu que eu não sou humano, e eu já provei que não sou uma fada.

— Provou mesmo.

— Então... vamos só atribuir isso à minha esquisitice, que tal? Aqui, vou mostrar para você.

Jack fez uma demonstração, decolando e usando seu cajado para se mover entre algumas árvores, e então voltou ao chão.

Soluço teve que sorrir. Havia algumas coisas que combinavam perfeitamente com o Jack: rir era a primeira, e depois pregar peças. Mas ele ainda não havia decidido se voar devia ser a terceira, ou se devia ficar em segundo lugar. O jeito como o cabelo dele se agitava ao vento e como ele parecia planar de galho em galho com uma precisão que simplesmente não existia quando ele caminhava... parecia que ele havia sido feito especificamente para voar.

Ele percebeu que estava encarando-o. Mas não deu tempo de fingir que não era isso que ele estava fazendo antes do Jack pousar e fazer uma reverência.

— Bem, você não precisa parecer tão impressionado assim — disse, arqueando uma sobrancelha.

— Nunca vi ninguém voar antes — Soluço murmurou.

O outro garoto sorriu.

— Eu fiz amizade com o vento um tempo atrás. E pelo jeito foi uma ótima ideia.

Soluço olhou para o Banguela, que havia parado para limpar sua cara. Bem, não era como se ele mesmo não tivesse alguns segredos, e havia algumas coisas que ele podia fazer que não eram exatamente humanas também. Ele deu de ombros.

— Acho que não é a coisa mais esquisita que eu já ouvi. Ei, acho que consigo ver uma casa.

— Isso! É a do Aster. Vamos! Vou apresentar vocês.

 

***

 

— Não — Aster disse, fechando a porta na cara deles.

Então tá, fim de papo. Soluço se virou para ir embora, mas parecia que Jack ainda não havia desistido.

— Ah, qual é, Aster! — ele implorou, dando uma batida na madeira com seu cajado.

Aster abriu a porta novamente.

— Jack. Você primeiro. Precisamos conversar.

Jack olhou de relance para o Soluço, deu uma piscadela e entrou junto com o Aster.

Soluço se sentou no degrau na frente da casa, acariciando o Banguela na cabeça e olhando ao redor da horta. A maioria das plantas eram vegetais e ervas, não muito diferente da sua própria horta. Ele podia ver uma pequena gaiola de coelhos do lado da casa, mas os coelhos em si não estavam por perto.

Eles estavam demorando bastante. Para se distrair, Soluço se ajoelhou perto da horta, esfregando algumas folhas de beterraba entre os dedos. Hm. Ele enfiou o dedo na terra perto de uma das plantas. Era difícil ter certeza sem desenterrar uma delas, mas...

Ele colocou a terra de volta no lugar e limpou as mãos.

Aster e Jack apareceram na porta.

Jack estava olhando para o caminho até lá, com o cajado apoiado em seus ombros. Aster se encostou no batente da porta e cruzou os braços.

— O Jack me falou que você não é uma fada — Aster disse, estudando o Soluço da cabeça aos pés. — Onde você arrumou o gato?

Ele abriu a boca, mas... explicar de onde ele arrumou o Banguela significaria explicar o que ele estava fazendo, e isso era...

— Ele... parece achar que me deve um favor — respondeu evasivamente.

— Grimalkins precisam dever favores muito grandes antes de mudarem de lado, cara — o homem retrucou.

Soluço deu um suspiro.

— Tipo, eu meio que salvei a vida dele? Pelo menos, é o que parece que ele pensa.

— Parece?

Ele cerrou os punhos.

— Eu de fato salvei a vida dele, tá bom? Eu só não quero entrar em detalhes.

O silencio que se seguiu era ensurdecedor. Soluço tirou o cabelo do rosto e disse:

— Podridão negra da beterraba.

— Que? — Aster semicerrou os olhos.

— Podridão... negra da beterraba. Nas suas beterrabas. Você... vai à vila, certo? Precisa comprar um saco de sal Costa Leste e regar o solo com água misturada com esse sal. Defume-o se puder. Com água fervente. E se certifique de remover as ervas daninhas direito, para que não se espalhem.

Houve outro longo silêncio, e Soluço estava prestes a dizer para ele deixar para lá quando Aster respondeu.

— Obrigado. Vou fazer isso. — Ele olhou para as beterrabas. — Achei que elas pareciam meio medíocres esse ano mesmo.

— É. Eu percebi porque as folhas estavam um pouco...

— Falando nisso — Aster o interrompeu. — Você também parece um pouco mal.

— Valeu. Vou me certificar de me dedetizar direito da próxima vez — ele respondeu sarcasticamente, por puro reflexo.

Aster balançou a cabeça.

— Que incrível. Você conseguiu achar outro você, Frost.

Jack abriu os braços, novamente sorrindo com sinceridade.

— Ei, você sempre disse que eu tinha talento!

— Que tal uma xícara de chá? — Aster ofereceu, mantendo a porta aberta para eles. — E, ahn... o que quer que sua abominação de pet coma?

— Ele geralmente sai para caçar — Soluço disse, passando por ele para entrar.

O interior da casa era um pouco escuro, já que as janelas eram tão pequenas, e tinha um cheiro de ervas secando — particularmente de alho, que estava pendurado do teto em grandes quantidades. Eles estavam em uma grande área de estar, com a cozinha integrada: havia duas cadeiras de madeira grandes, cheias de almofadas antigas, e um conjunto de cadeiras menores ao redor de uma mesa de centro. Uma única porta em um dos lados do cômodo provavelmente dava para o quarto do Aster. Soluço presumiu que provavelmente havia uma oficina atrás da casa.

Aster desapareceu nos fundos da casa por um momento, e voltou com uma galinha morta, que ele jogou para o Banguela.

— Contanto que ele não coma no tapete — ele disse.

— Banguela — Soluço o advertiu. O Grimalkin olhou feio para ele com seus olhos verdes, mas se sentou perto da porta com a galinha, bem longe do tapete.

Jack e Soluço se sentaram à mesa, e Aster começou a preparar o chá no fogão. Quando terminou, ele colocou um copo na frente de cada um e comentou:

— Podridão negra, hein?

— Costumava ser um problema comum — Soluço clarificou.

— Nunca ouvi falar disso nas vilas.

— Eles... — caramba, que boca grande! — Eles têm plantas resistentes agora. Mas tiveram que negociar para consegui-las.

— Então você também compra coisas por lá?

— O que, com essa cara? — Soluço gesticulou para a sua pele cinza e as suas olheiras. — Não, obrigado. Mas eu costumava comprar.

Aster deu um aceno de compreensão.

— Imagino que você receba algumas perguntas sobre isso.

— Menos do que você imagina — o que era tecnicamente verdade, já que Aster provavelmente achava que ele também interagia com outras pessoas além do Banguela.

Bem, e com o Jack agora, já que ele parecia determinado a ficar por perto.

— Você e as fadas parecem não se dar bem — Soluço disse para Aster.

— Não no geral — ele respondeu, bebericando seu chá com uma delicadeza surpreendente para um homem de aparência tão bruta. — Especialmente as que vivem por aqui. Aliás, Jack disse que você mora por perto.

Ele assentiu. Ele sabia a que fadas ele se referia. A gente do Breu, se o que Jack havia dito era verdade.

— Moro. Eu fico fora do caminho delas, e elas do meu.

— Disse o garoto com o Grimalkin — Aster salientou.

— Bem, não é como se eu soubesse antes do Jack mencionar isso. Para mim, ele era só um bicho da floresta que ficava por perto para me implorar pela minha janta.

Banguela soltou um mrr e tanto Aster quanto Jack o encararam.

Aster desviou o olhar para o Soluço, com uma sobrancelha arqueada.

— Cara. Se um Grimalkin é um gato de estimação para você, por favor nunca me conte como são os animais perigosos de onde você vem.

Jack terminou seu chá, e estava brincando com o copo. Soluço o encarou.

— Ele nunca para para conversar — Aster disse. — Tá bom, podem ir.

Jack deu de ombros, empurrando o copo de chá para longe de si.

— Foi mal, Aster. O Soluço tem mais algumas pessoas para conhecer antes do dia terminar.

Aster resmungou e se virou para o Soluço.

— Aqui vai uma dica, garoto. Ele tem boas intenções, mas um dia vai acabar levando você à morte se não tomar cuidado.

Soluço poderia ter rido, mas ao invés disso ele respondeu:

— Eu... vou ficar atento.

Chapter 10: Fazendo amigos

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Jack caminhou pela floresta, com o seu cajado sobre os ombros, cantarolando baixinho. Assim que saíram de vista da casa do Aster, ele se virou para o Soluço.

— Viu? Eu disse que vocês se dariam bem.

Soluço deu de ombros.

— Eu falei para ele que a horta dele estava morrendo, se isso conta.

— Para o Aster? Provavelmente foram as palavras mais gentis que ele ouviu esse mês.

O sorriso dele deixou claro que ele estava brincando, pelo menos um pouco... mas Soluço suspeitou que fosse só um pouco mesmo.

— Além disso — Jack continuou — conversar sobre a horta dele é o mais perto que ele chegará de ter melhores amigos.

Soluço deu de ombros novamente.

— Então tá bom, eu acho. Para onde vamos? Algum lugar perto?

Outro erro. Ele fez uma careta assim que as palavras deixaram a sua boca. Ele havia sido óbvio demais, mas era verdade: ele estava torcendo para estar indo a um lugar próximo. Havia muitas coisas para fazer em casa... mas para dizer a verdade ele só queria terminar de vez de conhecer todas essas pessoas novas.

— Por quê? — Jack perguntou com um sorriso brincalhão e o tom de voz leve e zombeteiro. — Já está com saudade de casa?

Soluço acariciou o pelo do Banguela.

— Só... por curiosidade.

Jack parou de sorrir.

— Não é muito longe — ele disse.

Soluço não era muito bom com essas coisas. Para ele, essa coisa de conhecer pessoas novas já havia ido incrivelmente bem, e Jack parecia estar tentando o seu melhor. Era só por um dia, e ele podia ser simpático por um dia. Especialmente porque, sinceramente, Jack havia despertado sua curiosidade de verdade. Ele apertou o passo até estarem andando lado a lado novamente, e tentou sorrir de volta.

— Bem, você devia ter me dito isso mais cedo. Eu teria trazido uma marmita.

Jack deu de ombros.

— Vou me lembrar disso da próxima vez. — Ele olhou-o da cabeça aos pés. — Mm... o quão bom você é de escalada?

Soluço franziu o cenho.

— D escalada? Por quê?

— Nada não — e voltou a seguir em frente.

 

***

 

Jack se aproximou de uma grande rocha e começou a procurar por algo entre os galhos de hera.

— Jack, o que você está fazendo?

— Procurando pela entrada — ele respondeu. — Não é difícil, é só... difícil de ver do lado de fora.

Soluço arqueou uma sobrancelha. Ele sabia que Jack não era uma fada, mas aquilo parecia muito ser coisa de fada.

Jack estudou seu rosto por um momento, e então pareceu entender.

— Sim. É o lar de uma fada. Mas eu prometo que ele não é o que você acha que é.

— E o que você acha que eu acho que é?

— Eu não sei, mas não parece bacana porque você está com uma cara feia como uma nuvem de tempestade — ele disse, obviamente tentando aliviar o clima. Soluço tentou colaborar, mas só conseguiu substituir a carranca por uma expressão moderada de preocupação. Ele pôs uma mão na cabeça do Banguela, e o grande gato deu um empurrãozinho em sua perna.

— Você mora com um Grimalkin — Jack salientou. — Prometo que eu não iria querer que você conhecesse essa pessoa se ela não valesse a pena conhecer.

Era verdade, mas Banguela parecia desgostar de alguma coisa naquele lugar. Soluço olhou para ele, que retornou o olhar com uma expressão de indecisão.

— Você não ajuda — ele suspirou e acariciou-o atrás das orelhas. Ele havia prometido que iria conhecer pessoas novas. Por um dia, não era isso que ele havia dito? Ser simpático por um dia? Além disso, Jack estava tão animado e, apesar das suas queixas e lamentos, Soluço percebeu que ele de fato queria deixá-lo feliz.

Ele acariciou Banguela novamente.

— Vamos lá então — ele disse.

Jack deu o sorriso mais largo que ele havia visto e usou seu cajado para afastar alguns dos galhos.

Havia uma fenda na rocha, escondida pelas plantas. Ele achou que precisaria ficar de lado para atravessá-la, mas uma vez que ele havia passado da entrada, ela se tornava surpreendentemente larga.

Do outro lado havia uma clareira que definitivamente não estava lá antes, do outro lado da rocha. As árvores eram densas naquela parte do bosque, mas ali dentro havia um vasto campo. No centro, uma grande torre se erguia, que claramente também não estava lá antes de eles atravessarem a rocha.

Soluço sentiu um leve calafrio. Ele estava mesmo dentro de um monte de fada. Pelo menos dois dos piores pesadelos do seu pai realizados.

Ele olhou para cima, seguindo o prédio com os olhos e protegendo-os do sol parcialmente escondido atrás dele. Era uma única torre construída com tijolos artesanais, mas que não possuía nenhum tipo de entrada, pelo menos não daquele lado.

— Jack.

— Diga.

— Quando você falou de escalada...

Ele riu.

— Não é tão ruim assim, eu juro. Me dê só um segundo.

Soluço o observou enquanto ele se lançava para o alto, para longe dele e em direção à única janela no topo da torre.

Ele o viu pousar no parapeito e se inclinar para dentro pela abertura. Jack ficou naquela posição por um tempo, e Soluço se perguntou se ele estava conversando com quem estava do lado de dentro.

Então, de repente, uma coisa enorme e dourada caiu em sua direção e, com um tumf, parou quando chegou na grama. Soluço tocou nela.

Era cabelo.

Ele olhou para cima. Jack estava se inclinando para fora da torre, em um ângulo que Soluço considerava bem imprudente, com um pé apoiado na beira do peitoril e se segurando no batente de pedra com uma mão enquanto o resto do seu corpo estava suspenso no ar. Ele estava olhando para baixo e gesticulando exageradamente para Soluço subir. A dona do cabelo apareceu — ela havia passado o seu cabelo por um gancho verde acima da janela, além de estar segurando uma grande quantidade com as mãos. Seu vestido era rosa, mas, da base da torre, Soluço não conseguia ver mais nenhum detalhe além desse.

Ele pegou no cabelo e hesitou, imaginando alguém subindo pelo seu próprio cabelo e estremecendo. Ele podia não ser grande, especialmente para os padrões da sua vila, mas ainda assim isso não mudava o fato de que ele era um adulto, e que o cabelo estava presumidamente ligado a um escalpo.

Jack apareceu do lado dele.

— Tem medo de altura? — Jack perguntou.

— Não — ele respondeu. — É só que... não vai doer?

— O gancho é para isso. E ela está preparada.

— Ah. Que bom.

Bem, fazer o que? Ele advertiu Banguela a ficar onde estava, fez carinho nele e começou a subir.

Foi uma escalada ardilosa. Ele não era fraco — era impossível ser com o tanto de lenha que ele cortava, o tanto de peso que ele carregava e o tanto que ele construía — mas a torre era bem alta e os seus músculos não estavam acostumados a trabalhar desse jeito. Porém ele logo percebeu que a dona do cabelo estava ajudando a puxá-lo, e isso tornou a escalada muito, muito mais fácil.

Quando ele se aproximou da janela, Soluço se viu cara a cara com um pequeno réptil verde, de olhos grandes e uma cauda encaracolada. Ele parecia estar analisando-o com desconfiança.

— Pascal, Soluço. Soluço, Pascal. É tipo o Banguela, só que verde. Bem, mais verde ainda.

— Ahn... prazer em conhecê-lo, Pascal.

A criaturinha fez um barulho e então se afastou para que ele tivesse acesso à janela.

Ele subiu e se sentou para tirar o peso do cabelo. A dona dele, uma garota de rosto redondo que parecia um pouco mais jovem que Soluço — apesar de que isso poderia ser só por causa dos seus traços — e usando o vestido mais rosa que ele já havia visto na vida puxou o resto do cabelo para dentro. Seu vestido era mais elegante do que ele havia esperado, com amarras na parte da frente e o punho das mangas decorado, e por baixo ela estava usando uma camisa branca de tecido bastante simples. Claramente uma roupa para se usar em casa ao invés de em eventos. Ela estava levemente corada devido ao esforço de ajudar a puxá-lo até o topo da torre. Havia ainda mais cabelo do lado de dentro do que parecia haver lá de baixo, todo amontoado ao redor dos pés dela.

Soluço se sentou no parapeito, receoso de pisar no chão porque ele parecia estar inteiramente coberto por longos cabelos dourados.

— Ah, me desculpe, ele se espalha por todo canto... — ela disse, sorrindo constrangida e tentando recolher ele.

Ele desistiu de tentar achar uma maneira de ajudá-la, e ao invés disso olhou pela janela lá para baixo, para se certificar de que Banguela ainda estava lá.

Ele estava: sua cara verde escamosa estava virada para a janela, e seus olhos igualmente verdes piscavam lentamente.

A garota pareceu se esquecer totalmente dos cabelos ainda amontoados pelo piso, olhando para baixo com uma certa preocupação.

— O que? Algo de errado?

— Só estou vendo se o Banguela ainda está lá embaixo — Soluço murmurou.

— Quem é... ah! — Ela se inclinou sobre o parapeito em um ângulo que quase o fez segurá-la pela parte de trás do seu vestido para impedi-la de cair.

— Aquele ali é o Banguela? — Ela se virou para ele. — Ele é seu?

— Ele não é... — Ele começou a dizer, mas foi interrompido por Jack.

— É sim, e não deixe ele dizer que não. Ei, Punzie, se importa de recolher seu cabelo para que o Soluço possa entrar? Estou me sentindo meio excluído aqui em cima.

“Punzie” se afastou da janela e juntou o cabelo para dar espaço para o Soluço. Ele desceu do parapeito e Jack entrou, pousando gentilmente no tapete.

— Esse é o Soluço — Jack disse, gesticulando na direção dele com seu cajado. — Sabe, outra alma solitária no bosque. Não ria do nome.

— Como se você fosse deixar alguém em paz o suficiente para ele ser solitário — “Punzie” retrucou, cruzando os braços.

Jack riu.

— Ei, não me culpe, ele estava se escondendo até uns dias atrás. Ah, Soluço, essa é a Rapunzel. Ou Punzie. Já enchi tanto o saco dela que agora ela já nem se importa com o apelido.

Rapunzel deu um sorriso que ele suspeitava de que era para parecer envergonhado, mas havia prazer genuíno demais nele para o convencer.

— Eu não vou rir do seu nome se você não rir do meu, combinado?

Era para ele achar o nome dela engraçado? Mas o lagarto verde, agora sentado no ombro dela, estava lançando-o um olhar muito feio, então ele não disse nada. Jack parecia ter razão sobre ele ser um “Banguela mais verde”.

— Combinado — ele respondeu. — Você mora sozinha aqui em cima?

— Não. A Mamãe deu uma saída — ela olhou de relance para Jack. — Ela não sabe que eu recebo visitas.

Soluço de repente entendeu claramente a situação.

— Ah.

— Aliás, se eu puder fazer com que vocês dois virem amigos, talvez você não precise tanto de mim por perto — Jack disse.

— Acho que eu não posso usar o argumento de que o Banguela conta como companhia, né? — Soluço perguntou, seguindo a mudança de assunto.

— Nem um pouco — Jack respondeu animadamente.

Rapunzel também parecia estar muito feliz pela mudança de assunto.

— Então, o Banguela não parece um gato normal. O que ele é?

Ele olhou para Jack, que com um gesto indicou para ele mesmo explicar. Levando em consideração o fato de que Jack parecia saber muito mais sobre aquilo do que ele, Soluço achou isso bem injusto.

— Ahn. Ele... quer dizer... — Soluço coçou a nuca e apontou para o Grimalkin torre abaixo. — Ele meio que me seguiu até a minha casa e eu fiquei com ele?

Pascal olhou pela janela mais ou menos na direção do Banguela, e então de volta para o Soluço. O pequeno réptil tinha uma face bem pequena, mas isso só fazia com que sua desdenhosa expressão de incredulidade ficasse mais concentrada.

— Como assim? Você falou que salvou a vida dele — Jack disse.

— É verdade? — Rapunzel perguntou, com um brilho nos olhos, enquanto passava uma mecha por trás da orelha.

Soluço desviou o olhar. Ele não queria contar a história.

— É.

Houve um breve silêncio, até Jack o quebrar.

— Ah, não se preocupe, Punzie. Ele mencionou isso pela primeira vez hoje de manhã, e eu estive tentando fazer ele contar essa emocionante história desde então, mas aparentemente teremos que esperar.

Jack — Rapunzel disse com desaprovação.

Banguela fez um barulho do lado de fora, e tanto Jack quanto Rapunzel voltaram o olhar para a janela subitamente. Ela correu para a varanda para espiar sobre o parapeito, e então exclamou em surpresa:

— Mamãe!

Jack agarrou Soluço pela parte de trás da camiseta, antes mesmo que ele tivesse tempo de perguntar o que fariam, e o levou escada acima em direção a uma janela do outro lado da torre, no que parecia ser o quarto da Rapunzel. Ele não teve nem tempo de se sentir constrangido por isso. Jack já estava saindo pela janela, e Soluço rapidamente entendeu o plano dele. Jack podia voar. Ele não havia visto uma escada quando atravessaram os aposentos, então por algum motivo o cabelo da Rapunzel era a única forma de se entrar e sair da torre. Jack podia voar, então ele provavelmente havia decidido que o carregaria até o chão de algum jeito — afinal ele o segurou pela camiseta e o arrastou pela torre com bastante facilidade.

Mas Soluço sempre teve aquela vozinha na cabeça que dizia para ele fazer o mais estúpido, tomar a pior decisão. Suba na árvore, vá passear no bosque das fadas à noite. Pule da janela. Além disso, quer Jack soubesse disso ou não, ele não precisava se preocupar sobre o que aconteceria quando ele atingisse o chão.

— Não tenha medo — Jack disse a ele — eu vou pegar voc...

Mas Soluço já estava despencando torre abaixo.

Chapter 11: Pico de adrenalina

Notes:

N/T: fiquei doente :(

Chapter Text

Isso havia sido meio que um sonho do Soluço há muito tempo. Não morrer, isso não, mas pelo menos uma vez dar ouvidos à vozinha na sua cabeça que dizia para ele fazer algo irresponsável. Antes, entrar no bosque havia sido o bastante para satisfazê-la, mas até aquilo havia se tornado rotineiro, e até mesmo ele não era tolo o suficiente para fazer o tipo de coisa que ela sussurrava para ele. Posteriormente, vivendo sozinho, ele podia tecnicamente fazer o que quisesse..., mas ele tinha uma fazenda e um Banguela para cuidar, e não tinha tempo para se entregar a essas fantasias.

Mas o momento pelo qual ele havia esperado havia chegado — e o mundo estava praticamente implorando para que ele aproveitasse! Então assim ele o fez, se jogando da janela para o ar. Ele fechou os olhos quando eles começaram a lacrimejar, e seus cabelos agitaram-se ao vento conforme ele despencava. Seu coração se apertou em uma combinação de sentimentos que há muito ele não sentia — um pouco de medo, óbvio, e um pouco de empolgação; mas o resto era liberdade pura.

Ele quase se sentiu decepcionado quando sentiu os braços do Jack passarem por debaixo dos seus braços e em volta do seu tórax, apanhando-o e rapidamente fazendo ambos ascenderem novamente, expulsando todo o fôlego dos seus pulmões da forma mais exaltante possível e fazendo o vento soprar em seu rosto.

Então, com um grunhido de esforço, Jack o soltou. Soluço não recebeu aviso nenhum e seu corpo ainda estava relaxado em função da queda, o que o fez desabar na grama; seus braços cederam e ele rolou até ficar de barriga para cima. Ele expirou lentamente uma vez, e de novo quando a cara do Banguela surgiu acima do seu rosto, olhando-o feio e dando um empurrão nele, com certa força. Ele afastou o seu focinho molhado e tentou se virar para se levantar, mas de novo seus braços cederam e ele desabou mais uma vez.

Jack apareceu na frente dele, agachado e observando-o enquanto segurava seu cajado com uma das mãos, apoiado no ombro.

— Não que eu me importe — ele disse — mas um aviso seria bacana da próxima vez.

Soluço riu com a voz trêmula, mas não conseguiu responder de nenhum outro jeito por um tempo. Ele conseguiu ficar de pé e tirou a sujeira das roupas. Banguela se esfregou na perna dele, e automaticamente ele acariciou-o atrás das orelhas.

Jack ainda estava o observando, e Soluço finalmente conseguiu tirar o cabelo do rosto e organizar suas habilidades linguísticas o suficiente para dizer alguma coisa.

— Deveríamos ir embora — ele disse. — Só por precaução.

Jack gesticulou despreocupadamente com uma das mãos.

— Ah, ela nunca percebe nada quando entra na torre. E ela normalmente não entra no quarto da Rapunzel, então estamos seguros aqui.

Soluço olhou para o Banguela para desviar seu olhar do Jack, que ainda estava estudando-o, de repente se sentindo envergonhado por causa do sorriso enorme e divertido no rosto dele.

— Quem é ela? — ele perguntou, olhando para a torre.

— A Punzie chama ela de “Mamãe”, mas ela não é a sua mãe verdadeira. O nome completo dela é Madame Gothel.

— Ah. A Pun... Rapunzel sabe disso?

— Ela... sabe, sabe sim — Jack disse, olhando para a torre com uma expressão ilegível, e então deu de ombros. — Enfim, há um tempo eu venho tentando convencer ela a deixar essa torre, sabe.

Soluço assentiu lentamente.

— Eu... compreendo. Então por isso que você me trouxe aqui?

Jack sacudiu a cabeça.

— Que nada, eu só achei que vocês dois iriam se dar bem. Ei, mas se você quiser ajudar, eu aceito.

Soluço não sabia se acreditava naquilo ou não. Porém qualquer resposta que ele poderia ter dado foi interrompida por um pedaço de papel saindo pela janela acima deles. Jack decolou graciosamente, apanhou-o e, conforme retornava ao chão, leu-o. Seu rosto tornou-se sério.

Soluço esperou até que ele estivesse no chão novamente e se inclinou para tentar ler a mensagem, que estava de cabeça para baixo.

Ela viu o Banguela

— Você tem razão — Jack disse. — É melhor irmos.

 

***

 

A volta para a cabana do Soluço foi em silêncio até a metade do caminho, quando Jack se virou para ele e disse:

— Então, hoje foi um dia bem informativo.

— Informativo? — Soluço questionou, menos reservado que antes, ainda sentindo seu sangue correndo rápido em suas veias por ter se jogado da torre.

— Bem, antes de hoje você era só um solitário na floresta com um gatinho de estimação superpoderoso.

Para a sua surpresa, o comentário nem sequer irritou o Banguela, mas sim o fez fitá-lo com orgulho. Aqueles dois juntos dariam muito trabalho, Soluço tinha certeza disso.

— Valeu — ele respondeu, arqueando uma sobrancelha.

Jack prosseguiu como se ele não tivesse escutado.

— E agora eu sei que você gosta de pular de janelas, e que você costumava ir para a vila, mas não vai mais.

Ele deu de ombros.

— Eu, hã... aquela era uma situação um pouquinho desesperadora. E sim, você está... correto.

— Você com certeza não hesitou. Em se jogar da janela, no caso. Ah, eu não vou me intrometer mais do que isso. O que quero dizer é que estou feliz por você ter saído de casa e conversado um pouco hoje.

— Eu estava perfeitamente feliz sozinho — Soluço disse rapidamente.

— Eu sei que estava, mas eu sou naturalmente curioso, e se eu não tivesse descoberto nada sobre você, talvez eu tivesse explodido.

— Eu ainda não sei muito sobre você — Soluço comentou.

Jack ficou em silêncio por um tempo.

— O que você quer saber?

Aquilo o surpreendeu.

— O que, fácil assim?

— Bem, eu lhe pressionei a sair hoje para que eu pudesse saber mais sobre você. É justo.

— Você não é uma fada — Soluço começou. — Nem um humano. Então...?

Jack nada disse por uns instantes, e então riu e tirou a franja do rosto.

— É claro. É o tipo de pergunta que eu devia ter esperado.

— Eu posso perguntar outra coisa — Soluço disse apressadamente.

Jack tocou uma árvore com seu cajado e cristais de gelo começaram a se espalhar a partir dele, cobrindo uma parte do tronco. Soluço teve que parar de andar para processar aquilo.

— Eu recebi uma resposta parcial de você, então você recebe uma parcial de mim também — Jack disse. — Combinado?

— Combinado — ele respondeu, ainda encarando a árvore. Então ele se virou e correu para alcançar o Jack. Sua cabeça estava cheia de perguntas, mas ele se esforçou para contê-las, então não falou nada por bastante tempo.

Jack parou em frente à porta da cabana. Estava de tarde, mas a luz do sol já estava começando a enfraquecer. Soluço teria que se apressar se ele quisesse terminar seus afazeres antes de anoitecer, mas ele se recusava a pensar que havia desperdiçado o dia. Banguela deu um empurrãozinho na mão dele, pedindo um último carinho, e seguiu para o bosque para caçar.

Ele pegou a tigela, a faca e um pouco de madeira, e olhou para Jack, que estava esfregando a nuca sem jeito.

Soluço esperou ele falar, e finalmente ele o encarou com um sorriso envergonhado.

— Bem, acho que eu pelo menos deveria ser sincero sobre isso: todo mundo... o Aster, a Punzie... todos sabem sobre mim. É um assunto meio controverso... — ele hesitou, e então se corrigiu — quer dizer, a Punzie sabe um pouquinho, não tudo. Mas todos os outros sabem de tudo.

— Certo — Soluço respondeu. — Assim, isso meio que não é da minha conta, então você não precisa me contar se não quiser.

Jack deu uma risadinha e balançou a cabeça.

— Você é peculiar, sabia? Que tal um acordo? Eu conto tudo para você quando você estiver pronto para me contar como virou o mestre de um Grimalkin.

Soluço hesitou.

— Ninguém... ninguém sabe essa história — ele murmurou.

— É... — Jack disse, forçando um sorriso novamente. — Não é exatamente justo, né? Desculpe.

— Não... é justo sim. Eu não preciso saber da sua história, então eu provavelmente não ouvirei de outros, a não ser que você queira que eu descubra. Então... temos um acordo — ele assentiu, de forma mais decisiva do que ele estava de fato sentindo. Ele repetiu o que disse, para não deixar dúvidas — temos um acordo. Mas... não agora.

— Não, é claro — Jack disse. — Óbvio que agora não. Mas se você quiser...

— Quando — Soluço o corrigiu baixinho.

O sorriso do Jack de repente se tornou sincero, tão largo que ele receava que fosse partir o rosto dele em dois.

Ele deu um sorriso fraco, mas sincero. Quando sua mente não pensou em nada para continuar a conversa, sarcástico ou não, ele reiterou:

Quando.

Jack voltou a sorrir normalmente.

— Eu diria que hoje foi um sucesso! Vou deixá-lo em paz agora. Você provavelmente precisa de um tempo longe de mim. Nos vemos em breve?

— Claro.

Jack decolou e sumiu de vista.

Ele se sentou nos degraus e tentou se concentrar em picotar madeira. Logo ele terá o suficiente...

Mas... por que ele havia prometido que contaria tudo para o Jack? Mesmo que a ideia não o perturbasse tanto quanto deveria, ele nunca mencionava aquele dia nem para o Banguela se pudesse evitar. Mas contar para o Jack, que ele havia conhecido há poucos dias? E não foi nem por causa da promessa de descobrir mais sobre o passado dele. Isso com certeza seria ótimo, mas não era importante.

Ele deu um suspiro e balançou a cabeça. Esse era um assunto para depois. Primeiro, ele tinha que verificar sua horta e fazer papel.

Chapter 12: Propondo uma ideia

Notes:

N/T: detesto quando eu vou corrigir e percebo que escrevi "Pitch" ao invés de "Breu"

Chapter Text

Jack voou para longe da cabana do Soluço, e seu coração estava batendo tão forte que ele estava sentido um aperto desconfortável no peito. Seus ombros estavam tremendo. Ele voou mais e mais rápido por entre as árvores, mas parecia nunca ir rápido o suficiente. Ele tinha que fazer alguma coisa para descarregar todo o nervosismo dentro de dele.

Ele ascendeu e atravessou a copa das árvores, se expondo à luz do sol. Às vezes ele se esquecia do quão bom era sentir o sol em sua pele gelada.

Quando ele desceu, estava muito escuro. Anormalmente escuro. Jack ficou imóvel.

— Jack Frost. Faz muito tempo desde que eu o vi por aqui.

Toda a animação pareceu ser sugada dele, substituída por uma outra emoção. Uma mais fria e mais sombria na qual ele preferia não pensar.

— Já faz muito tempo que não há nada que justificasse vir até aqui — ele respondeu, tentando soar desrespeitoso, mas sabendo que sua voz possuía um leve tremor.

Breu deu um passo em sua direção. Era difícil de dizer onde as sombras terminavam e o manto dele começava. Até o seu cabelo liso se misturava com a escuridão. A pele dele era cinza, mas enquanto a do Soluço era de um cinza enfermo, a do Breu era de um cinza rochoso e inumano. Ninguém poderia ter se enganado e achado que ele era qualquer outra coisa exceto uma fada.

Ele deu um sorriso sinistro.

— É um prazer vê-lo de novo, como sempre.

— Aham... — Jack disse, olhando para as árvores ao seu redor e para qualquer outro lugar, contanto que não estivesse olhando diretamente para o Breu. Ele preferia fazer as coisas sozinho, mas não era contra esconder umas criaturas horríveis ao redor caso precisasse surpreender alguém de verdade.

— Então, se não havia nada pelo qual valesse a pena vir para cá... o que o fez mudar de ideia?

Jack jamais revelaria a presença do Soluço.

— Só estava me certificando disso. Eu tinha razão.

— Ah — Breu disse casualmente, deslizando um dedo ao longo de uma rachadura no tronco de uma árvore. — E eu aqui achando que era por causa da cabaninha no bosque que você esteve visitando.

Jack manteve-se em silêncio.

— Ah, por favor, né? Jack, não me diga que você achou que eu não ficaria de olho naquela casinha! O único Grimalkin que eu perdi vive lá, e só isso já é interessante o suficiente para ficar de olho nela. Você não concorda?

— Talvez — ele respondeu calmamente.

— Também ouvi dizer que você e o Norte tiveram um desentendimento umas noites atrás.

Jack bufou.

— Você não ouviu nada disso. — Se alguém da gente do Breu tivesse estado perto do monte do Norte, uma guerra teria acontecido. — Você só sabe que ele deu uma festa e presumiu que houve uma discussão.

Breu deu de ombros.

— Você não pode me culpar por isso. Não é como se não houvesse precedentes. Ou ele de repente se tornou mais tolerante das diferenças entre vocês dois recentemente?

Jack se irritou, mas tentou o seu melhor para esconder isso.

— Fique sabendo que ele foi perfeitamente cordial.

— Ah — Breu disse como se tivesse acabado de perceber alguma coisa. — Ele o deixou levar algo para comer antes de você ir embora, ao invés de só expulsá-lo?

Jack se virou para ir embora. O Breu estar lá já era ruim o bastante, ele não precisava estar certo também.

— Ai, me desculpe, Jackzinho — ele disse. Houve um ondular de sombras, e de repente ele estava na sua frente novamente. — Eu magoei você?

— Você é tão sincero — Jack respondeu sarcasticamente.

— Você sabe que a minha proposta ainda está valendo, não sabe? Você e aquele Grimalkin parecem estar se dando bem.

— Sério? Agora você está me usando para conseguir um dos seus pets de volta? Isso não é nada agradável, até para você.

Ele balançou a cabeça.

— Poxa, você pensa tão mal de mim. Na verdade, eu estava esperando que você estivesse de saco cheio de ficar sendo expulso das festinhas do Norte. O Grimalkin fez a escolha dele. Regras são regras, não há nada que eu possa fazer quanto a isso. Pelo menos não até que o humano morra.

Jack se esforçou para manter uma expressão séria no rosto. O Breu muito provavelmente não esteve observando com muita atenção se ele nem sabia que o Soluço não era humano.

Ele o observou, aguardando por uma resposta, e então deu um suspiro.

— E, claro, tem a vila...

Jack nada disse. Fadas atacando a vila era incomum, mas ele não iria de forma alguma perguntar ao Breu sobre isso. Isso poderia ser interpretado como pedir um favor, e dever um favor a ele era a última coisa que Jack queria.

— Primeiro eu pensei que for por causa da vila que você e o garoto da cabana se conheceram — Breu prosseguiu. — Afinal de contas, vocês dois parecem estar de olho naquela vila.

— E você não está, e é por isso que você está tentando conseguir informações de mim — Jack respondeu.

— É muita coisa para eu acompanhar — Breu disse, dando de ombros. — Mas parece que aquele Grimalkin perdido esteve causando um pouco de bagunça recentemente. Achei que você tivesse ficado curioso.

— E que eu diria a você tudo que sei, pelos velhos tempos? — ele perguntou, abrindo os braços e apoiando seu cajado em seu ombro. — Você terá que ser um pouco mais esperto que isso, Breu.

— Cuidado com o que deseja — ele ajeitou sua postura e se virou como se estivesse prestes a ir embora. — É bom ver você, como sempre, Jackzinho. Ainda espero que um dia possamos nos entender.

— Acho que já nos entendemos muito bem.

— Se você acha. Aliás, você talvez queira prestar atenção no céu.

— O que?

Breu apontou para cima.

— No céu. Há muitas coisas acontecendo lá. Só um... aviso.

— Não somos amigos.

— Sim, você diz isso o tempo todo.

Breu se diluiu nas sombras e sumiu. Jack deu um suspiro. Toda vez que ele aparecia, o seu dia era arruinado.

Chapter 13: Mal-humorada

Notes:

N/T: muitas coisas acontecendo, pouco tempo para traduzir :(
aproveitem!

Chapter Text

Soluço ficou olhando Jack pousar no gramado um pouquinho longe da cabana e andar até ele.

— Já faz uns dias — Soluço o cumprimentou.

— Estava achando que eu não voltaria?

— Até pensei nisso, mas todo mundo me diz o tempo todo que eu nunca vou me livrar de você, então...

— E nisso eles acertaram em cheio. — Ele se sentou na frente do Soluço e apoiou seu cajado nos seus joelhos. — Então, se importa se eu lhe interromper de novo?

Soluço olhou para as próprias mãos, que estavam tão sujas de cuidar da horta que era difícil até de ver as sardas nelas.

— O que você tinha em mente? Voltar para ver a Rapunzel? Nós precisaremos ser mais cuidadosos para que a... mãe... dela não veja o Banguela dessa vez.

Jack balançou a cabeça.

— Algo diferente.

Soluço estava desconfiado. Jack estava enrolando, e isso significava que ele provavelmente não gostaria da ideia.

 — Tipo...?

— Bem... você disse que vai à vila para comprar coisas às vezes, mas que não esteve lá recentemente?

— Não — Soluço recusou imediatamente.

— Ah, qual é! Você ainda nem ouviu o que eu tenho a sugerir!

— Eu não vou à vila.

— Qual é, você disse que não vai há muito tempo. Eles provavelmente nem o reconheceriam agora!

Soluço tentou fingir que isso não havia o magoado.

— Não — ele repetiu. — Eu não vou.

— Por quê? Eles expulsaram você ou algo assim?

— E se expulsaram?

— Só estou dizendo que isso nunca me impediu.

— Eles não me querem lá, e eu não vou.

Banguela mexeu uma orelha e abriu um olho. Jack olhou para ele, olhou de volta para o Soluço e deu de ombros.

— Desculpe.

— Está tudo bem.

Soluço desviou os olhos da cesta de vegetais que ele estava organizando e olhou para Jack, que estava evitando seu olhar. Seria aquilo... decepção?

Ele sentiu uma pontada de culpa, mas ignorou-a. Nem pensar. Ele faria qualquer outra coisa; pularia de outra torre e até arriscaria ser capturado pela mãe da Rapunzel. Qualquer coisa que não fosse voltar à Berk.

— Que tal me dar alguma coisa para fazer então? — Jack disse animadamente, erguendo a cabeça de repente. Toda a decepção havia sido apagada do seu rosto, e ele parecia radiante e feliz de novo.

— O que? — ele mudava de assunto tão rápido que dava um nó na cabeça do Soluço.

— O Aster foi fazer compras — Jack clarificou. — A Punzie é legal, mas a mãe dela provavelmente está lá hoje. Eu não tenho mais nada para fazer, mas você tem, então que tal eu lhe ajudar?

— Me ajudar com a horta? — Soluço olhou-o com pena. — Ah, Jack, você deveria ter me dito que estava desesperado!

Ele sentiu um leve momento de tensão quando parou de falar, e torceu para que ele não tivesse ido longe demais, mas a resposta do Jack foi uma gargalhada totalmente sincera.

— Você esteve conversando com o Aster, não esteve?

— Eu? Conversando com alguém? Que não seja o Banguela? Jamais.

Jack deu um sorrisinho.

— Então isso significa há algo na sua horta que precisa ser feito?

Soluço deu de ombros.

— Me deixe guardar essas coisas aqui que eu vou ver.

Ele não ficou muito tempo dentro de casa, só o suficiente para depositar a cesta na parte de baixo da sua dispensa e sair, mas quando ele terminou, Jack já havia se aproximado do Banguela. Soluço o observou por um momento, com uma mão erguida para o Banguela cheirar. O Grimalkin rebelde estava virando o rosto para longe e apoiando a cabeça nas patas, e a sua expressão arrogante era clara mesmo com seus olhos fechados.

Soluço riu.

— Ele está sendo do contra, né?

Jack deu um suspiro.

— Ele faz isso com você também?

— O tempo todo. Não se preocupe, você saberia se ele realmente não gostasse de você.

Jack se levantou e usou seu cajado para voar por cima do Soluço, que já havia o visto fazer aquilo, mas ainda assim se surpreendeu. Saltar pelo ar daquele jeito fazia-o parecer ainda mais leve do que ele já parecia ser. Ele não sabia como Jack não era levado para longe por brisas.

Ele fez um gesto e juntos foram ao depósito. Quando deram a volta nele, Jack franziu o nariz.

— O que diabos...?

Soluço teve que parar para pensar por um momento.

— Hm? Ah! É o papel.

Ele já havia se acostumado com o odor, mas Banguela ainda se recusava a ir àquela parte do bosque, sendo o local mais distante possível da cabana que Soluço estava disposto a colocar a tigela com lascas de madeira. Mas o cheiro ainda estava presente em algumas partes da clareira, um pouco longe dos coelhos e das galinhas, mesmo que a tigela estivesse coberta contra a chuva.

— Eu conseguia sentir um pouco o cheiro de lá, mas não achei que fosse coisa sua!

— Eu tenho que fazer a madeira virar uma polpa de algum jeito — Soluço respondeu. — Se você conhece alguma alternativa mais aromática, sou todo ouvidos.

Jack balançou a cabeça e murmurou:

— O que o faz achar que eu já tive que fazer papel na minha vida?

— Verdade. Que tal coletar ovos?

Jack fez que não com a cabeça.

— Nunca fiz isso.

Soluço assentiu.

— Bem, não é exatamente difícil. Aqui — ele o guiou ao galinheiro, feito de madeira de salgueiro, e à cesta perto dele.

Jack pegou ela.

— Os ovos vão aqui, certo?

— Aham. Cuidado com os pés. Me chame se você quebrar um ovo, encontrar um quebrado, ou qualquer coisa assim. Elas botam em qualquer lugar, mas a maioria deveria estar no ninho — ele apontou para uma caixa grande de madeira no canto do galinheiro. — Não tenha medo de pegar ovos que estão debaixo das galinhas. A maioria delas não tem problema com isso, mas use o senso comum.

— Parece... fazível — Jack disse, analisando a qualidade cesta. — Ei, você é muito bom nisso!

— Prática — ele respondeu, tentando esconder a vergonha por causa do elogio. — Eu tive que... ahn... fazer algumas delas ao longo dos anos.

— Tá bom. Eu chamo você se eu encontrar ovos quebrados, fizer besteira ou tiver terminado?

— Isso mesmo.

Jack destrancou a porta do galinheiro e, andando com cuidado exagerado ao redor das galinhas, começou a atravessá-lo com seus pés azulados. Soluço deixou-o sozinho e foi ver como as ervas que o Banguela havia arruinado estavam, e se alguma delas havia sobrevivido ao transplantio.

Elas estavam ótimas, e ele estava decidindo se ele deveria enfim expandir a gaiola de coelhos quando a comoção começou.

Do galinheiro ouviu-se um poderoso cacarejo seguido de um bater de asas, primeiro de uma ave e depois de várias delas. Ouviu-se também um grito humano e um baque, e então Jack, coberto de penas e palha, saiu apressadamente do ninho.

Soluço, que havia corrido até o galinheiro assim que havia escutado a comoção, teve que se apoiar na cerca por estar rindo tanto.

Jack olhou para ele, franzindo o cenho em descontentamento, o que seria até convincente se não fosse pela pena grudada no nariz dele. Ele soprou a pena para longe.

— Não tenha medo das galinhas, você disse. É só pegar por debaixo delas, você disse.

— Eu também disse — Soluço respondeu, finalmente conseguindo falar apesar do riso e enxugando os olhos — que você deveria usar seu senso comum.

Jack tirou a palha do cabelo, junto de umas penas, e fez uma careta.

— E por que mesmo você achou que eu fosse ter senso comum?

Soluço começou a rir novamente. Jack cruzou os braços, mas não pôde manter a seriedade por muito tempo também, e logo ele também estava rindo.

— Tá bom, tá bom. Já riu de mim o suficiente?

Soluço inspirou lenta e profundamente para se acalmar, e foi até o galinheiro cheio de galinhas descontentes. Ele ajudou Jack a se levantar.

— Você ao menos conseguiu não quebrar os ovos?

— Eu sinceramente não sei. Larguei a cesta.

Ele foi até o ninho, e de fato a cesta estava no chão, e ovos tanto quebrados quanto inteiros estavam espalhados ao redor dela. Uma das galinhas, no fundo do ninho, estava toda arrepiada e soltando cocós raivosos.

— Ops — Jack disse da entrada do ninho e mantendo distância das galinhas.

— Foi essa aqui? — Soluço questionou, apontando para a galinha mal-humorada. Jack assentiu.

Ele colocou os ovos intactos de volta na cesta e recolheu a palha que estava suja dos ovos que haviam quebrado, espantando as galinhas curiosas que haviam se reunido ao seu redor.

Jack o seguiu para fora do galinheiro, abrindo e fechando a porta para ele. Soluço tirou a palha suja de ovos da cesta e a jogou na composteira, bem longe da casa, e deu a cesta para ele.

— Esses vão para a bancada da cozinha para eu lavá-los enquanto eu vou pegar mais palha para o galinheiro.

— Desculpe — Jack disse, constrangido.

Ele de repente percebeu que não havia dito nada para tranquilizá-lo depois do acidente.

— Ahn, não tem problema. Isso é fácil de resolver. Além disso, havia muitos ovos hoje, então você não precisa se preocupar.

Ele pegou a cesta de volta e colocou-a no chão, então pegou as mãos do Jack e as estudou.

— Elas não lhe bicaram muito forte, né? — Ele conseguia ver algumas marcas nas mãos dele, mas não havia sangue. Ele passou o polegar em uma delas. Aquilo era definitivamente um buraco na mão dele. O que quer que ele fosse, aparentemente ele não sangrava. Interessante.

Jack fez uma careta.

— Eu... ahn...

Soluço olhou para ele.

— Precisa de um curativo?

Jack retraiu suas mãos rapidamente.

— Não, está tudo bem. Não sou exatamente humano, lembra? — Ele o olhou de relance, parecendo quase nervoso, e Soluço precisou se abaixar para pegar a cesta afim de esconder o rosto.

— Além disso, você precisava rir, não é mesmo? — ele continuou, pegando a cesta.

— O que o faz achar isso?

— Você é sério demais — Jack respondeu enquanto se afastava.

— É, e você ri demais! — Soluço retrucou, sem conseguir pensar em algo melhor.

Jack só riu de novo.

Ele foi pegar mais palha para o galinheiro. Quando voltou, deu uma outra cesta para ele.

— Toma.

— Eu não vou voltar lá — Jack imediatamente disse.

— Não, você vai colher três daqueles repolhos para mim — Soluço disse, indicando os vegetais.

— Isso parece... eu consigo fazer isso.

— Repolhos não ficam mal-humorados, e é improvável que eles biquem.

Chapter 14: Vigília

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Jack se esgueirou ao redor da torre antes de se aproximar. A mão dele ainda estava doendo por causa do pássaro demoníaco do Soluço, mas ele tinha que confessar que havia sido um pouquinho engraçado.

Depois de eles terem ido visitar a Rapunzel da última vez, ele estava propenso a ser mais cauteloso. Se fosse só por ele, ele teria voado até a janela e que se danem as consequências, mas não seria ele que entraria em uma encrenca, então até que a Rapunzel decidisse deixá-lo levá-la embora era melhor ter cuidado.

Ele conseguia escutar vozes no topo da torre. Às vezes isso era um bom sinal — a Punzie frequentemente cantava para si mesma ou conversava com o Pascal. De vez em quando Jack se sentava e escutava por um tempo antes de subir para vê-la. Mas às vezes... era um mau sinal.

Ele ouviu passos. Aquela voz era da Punzie, alegre como sempre.

Jack se aproximou um pouco mais da base da torre.

Não, aquela voz não era ela. Era a Gothel.

Jack parou e aguardou à base da torre, de olhos fechados para que pudesse ouvir melhor. Aqui embaixo ele estaria obscurecido o suficiente pela varanda acima que mesmo se Gothel de alguma forma ouvisse-o ou sentisse sua presença, ela não conseguiria o ver só de olhar pela janela. Ela teria que sair e procurar, e àquela altura ele já estaria longe.

Mesmo se concentrando o máximo que pôde, Jack não conseguiu escutar a conversa delas. Não parecia ser nada sério, apesar de que a voz da Punzie sempre parecia tensa quando conversava com a Gothel. Ele conseguia notar isso mesmo de onde estava.

Ah, bem. Talvez da próxima vez.

 

***

 

Mais tarde, Gothel ainda estava lá e não dava nenhum sinal de que tinha a intenção de sair naquele dia. Mesmo assim Jack esperou só um pouquinho mais. Não era como se ele tivesse algum compromisso. A Denti... ele meio que nunca aparecia de surpresa para vê-la, ele precisava de um motivo. Ela era uma fada, afinal, e fadas não aceitavam a presença dele a não ser que ele trouxesse algo.

Aster nunca queria ele por perto só pela companhia.

E o Soluço... estava ocupado, e provavelmente não precisava do Jack o atrapalhando.

Depois da Galinha e de colher os repolhos, Soluço havia se concentrado em desenhar um tipo de expansão para a gaiola dos coelhos. Ele havia ficado tão imerso nos esboços e planos que Jack não havia conseguido puxá-lo para uma conversa, e por fim ele começou a se sentir mal por tentar. Parecia que ele sempre estava interrompendo-o de um jeito ou de outro. Além de que, dos repolhos, da Galinha e de mal saber em qual ponta do martelo segurar e qual ponta usar para bater, Jack só havia sucedido em um dos três afazeres domésticos.

Ele encostou a cabeça na torre da Gothel e fechou os olhos.

Ele voltaria outro dia, quando estivesse se sentindo um pouco mais alegre e mais como ele mesmo. Disposto a acreditar no que Soluço dissesse, ao invés de prestar atenção nos seus ombros tensos e em como ele sempre parecia querer se concentrar em tudo menos no Jack.

Sinceramente, se ele não ficasse tão ansioso toda vez que ele mencionava isso, Jack teria até achado que ele não havia sido expulso da vila, mas que na verdade Soluço havia decidido que estava melhor vivendo a sós. Ele queria poder perguntar — a curiosidade estava queimando-o por dentro.

O ar estava ficando mais e mais frio. Ele abriu um dos olhos e viu que a noite parecia estar chegando.

Isso não estava certo; ainda era meio-dia!

E então ele olhou para cima e viu as nuvens se aproximando ameaçadoramente. Metade do céu estava tomado por elas, e elas eram escuras. Não eram cinza-escuro como as de uma tempestade; eram quase pretas, e vindo rápido.

Jack conseguia sentir o vento começando a soprar mais forte também.

Na torre acima, ele ouviu Punzie na varanda, agora perto o suficiente para ele escutar o que ela estava dizendo.

— Mamãe, acho que deveríamos fechar as janelas.

Gothel disse algo ininteligível, mas que soou indiferente, até ela se aproximar. Então Jack ouviu-a hesitar e dizer:

— Hum. Ou talvez você tenha razão. Pegue as trancas das venezianas.

Jack olhou para o céu novamente. Talvez ele devesse encontrar algum lugar para se entocar e se esconder também.

Notes:

N/T: a vida real está me punindo

Chapter 15: A tempestade

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A tempestade demorou algumas horas para começar.

Provavelmente era muito tarde na estação para uma tempestade grande, mas Soluço não queria arriscar com nuvens escuras como aquelas, então ele protegeu tudo da chuva. Felizmente os coelhos já estavam abrigados dentro da cabana por causa da reforma na gaiola deles, então só foi preciso cobrir a horta e colocar as galinhas para dentro também — tarefa essa que foi mais fácil do que deveria, devido à ajuda de um gato escamoso muito intimidador. Gato não, Grimalkin. Ele precisava se acostumar a chamá-lo pelo nome correto.

Banguela manteve os coelhos todos juntos debaixo da cama ao invés de tentando fugir pela porta.

Soluço nunca havia sido muito bom em não fazer nada. Enquanto estava sentado do lado de dentro, esperando a tempestade começar, ele ficou revisando a lista das coisas que precisavam ser feitas. Os animais estavam dentro de casa, e as paredes estavam tão reforçadas quanto possível. Suas janelas estavam fechadas, e as venezianas trancadas com uma ripa também, só por precaução. A horta estava protegida com uma lona bem amarrada e coberta com terra para fazer peso. Ele já havia se certificado de que não havia beiras soltas que poderiam ser puxadas pelo vento. A caixa com a polpa de madeira estava selada, amarrada e com peso em cima. Qualquer coisa que pudesse ser arruinada pela umidade, como a massa de pão e as reservas de trigo, de ervas e similares, estava guardada no armário e envolta em oleado, onde ficaria segura mesmo se a umidade a alcançasse. As abelhas eram um problema um pouco mais difícil de resolver, mas ele esperava que cobrir as colmeias fosse o suficiente. Abelhas eram inteligentes o bastante para ficar do lado de dentro, longe da chuva... certo? Ele nunca precisou descobrir antes.

Assim que as venezianas foram fechadas, Soluço precisou acender os lampiões. A cabana sempre ficava escura quando estava toda fechada, mas agora estava um breu total do lado de dentro. As nuvens de tempestade haviam basicamente transformado o dia em noite.

Enquanto os coelhos tremiam debaixo da cama e as galinhas se acomodavam em suas caixas, ao longo da parede próxima à lareira e ao fogão, Soluço estava sentado escorado no Banguela, em sua forma grande e escamosa, usando a luz do lampião perto dele para escrever listas em seu caderno.

A primeira rajada de vento fez as venezianas tremerem.

 

***

 

Jack quase nunca fazia questão de se abrigar do tempo, mas até mesmo ele iria abrir uma exceção frente àquelas nuvens tempestuosas. Enquanto elas se reuniam no céu acima, ele se acomodou nas raízes de uma grande árvore, abaixo de um galho largo. Ele estava sentado na terra e logo ficaria desconfortável, mas era um bom local para ficar. Jack já havia encarado tempestades nesse mesmo lugar antes.

Houve um clarão, e então um estrondo. O cabelo dele começou a se agitar na brisa.

Então, de repente, o estrondo virou um poderoso estalo, e houve outro clarão tão luminoso que fez o mundo ficar em preto e branco. Ele assoviou, impressionado. A tempestade havia chegado, e parecia que seria uma das boas.

 

***

 

Rapunzel desviou o olhar do seu livro quando um trovão ribombou. A janela do seu quarto estava tremendo. Em algum lugar no andar de baixo, Madame Gothel estava sentada tricotando, talvez no seu quarto ou na sala de estar. Rapunzel estava tentada a abrir sua janela só um pouquinho e espiar do lado de fora, mas o vento já estava atingindo a madeira com tanta força que ela temia que ela fosse se quebrar. Se ela a abrisse, talvez nunca conseguiria fechá-la de novo, e ela nem conseguia imaginar o sermão que levaria da Mamãe por isso.

Pascal fez um barulho, como se fosse uma pergunta. Ela o acariciou no queixo e tentou se concentrar em seu livro novamente.

Houve outro trovão, e dessa vez o vento conseguiu passar pelas rachaduras nas venezianas da janela e fazer sua vela tremular. Ela estremeceu quando, por um instante, um raio iluminou totalmente o seu quarto.

Talvez ela deveria acender algumas velas extras, só por precaução.

 

***

 

As galinhas soltaram sons de preocupação enquanto o vento e a chuva balançavam a cabaninha. A luz do lampião de repente pareceu patética. Havia espaços entre tábuas dos quais Soluço nem sabia sobre, e todo o interior da cabana estava coberto por uma fina camada de água gelada. Ele se aproximou ainda mais do Banguela, que por sua vez se enrolou em volta dele. Ele havia guardado o seu caderno na bolsa de oleado. Não havia nada a ser feito exceto escutar e esperar a tempestade passar.

 

***

 

Em um castelo fora dos limites do bosque, eles não precisavam se preocupar tanto com a tempestade. O castelo era uma construção magnífica, com paredes espessas e fundações profundas. Havia sido construído para durar, capaz de conter o exército combinado de quatro clãs que nunca haviam se dado bem, assim como as travessuras dos três garotos Dunbroch que eram frequentemente mais devastadoras do que os exércitos.

A princesa Merida detestava ficar trancada — ainda mais com a mãe dela, cujo conceito de “manter-nos entretidas enquanto a tempestade passa” era quase mais entediante do que só ficar sentada, fazendo nada.

— Talvez eu devesse ir dar uma olhada nos cavalos, mãe — Merida disse. — Só por precaução.

— Eles estão bem, querida — respondeu a rainha Elinor, sem desviar o olhar do seu bordado. — Você não vai sair nessa tempestade.

— É só chuva.

Um grande estrondo varreu o castelo, tão alto que mesmo se sua mãe tivesse respondido, Merida não teria sido capaz de escutá-la.

— E uns barulhos e umas luzes — ela complementou.

— Não, querida.

Ela soltou um suspiro aflito. Os seus irmãos, dando risadinhas, passaram correndo no corredor, sendo perseguidos pelo pai.

— Você nunca fica tão preocupada com o tempo — Merida disse. — É só uma tempestade.

— Bom, ficaremos do lado de dentro durante essa — disse a rainha, sombriamente.

Merida tentou convencê-la com mais um suspiro, mas quando isso não pareceu funcionar, ela se conformou em pegar a agulha e a linha novamente.

 

***

 

As nuvens acima estavam incrivelmente negras, e a tempestade não dava sinais de terminar. As raízes da árvore do Jack já estavam submersas pela metade, ele estava encharcado até os ossos, e todo raio que perfurava o céu parecia próximo demais da copa das árvores.

Em algum lugar não muito distante dali houve um estalo, seguido do som de algo caindo. Uma árvore havia sido derrubada.

Jack podia aguentar o frio e a água sem problemas, mas o vento estava puxando-o insistentemente, de um jeito que Jack não estava gostando. Suas roupas estavam coladas em seu corpo e seu cajado estava tão escorregadio que estava difícil segurá-lo, e o vento estava ameaçando arrancá-lo de suas mãos. Ele já havia ouvido o Aster, às vezes até o Norte, falar sobre tempo “violento”, mas essa era a primeira vez que ele estava experienciando algo assim.

Quando ele se levantou, saindo do abrigo da árvore, uma rajada de vento o atingiu e quase o levou embora. Ele teve que fincar seu cajado no solo para impedir que seus pés escorregassem.

Isso estava errado. O vento era aliado do Jack — ele pôde contar com ele desde sempre. Ele quase nunca andava! O vento estava sempre disposto a ajudar. Ele definitivamente nunca o derrubava, ou tentava arrancar seu cajado de suas mãos, independente do quão forte ele soprava.

A horta do Aster estava toda coberta e sua porta firmemente trancada, mas mesmo assim Jack bateu nela com força.

A princípio, ele achou que Aster não fosse escutar as batidas, mas depois de mais ou menos um minuto ele escutou o barulho de madeira sendo arrastada, e então Aster pôs a cabeça para fora.

Outra rajada de vento quase fechou a porta novamente, e Jack se segurou na maçaneta para se equilibrar.

— É melhor ser... — Aster resmungou, mas hesitou quando viu Jack. — Minha nossa. Entra logo, antes que essa maldita tempestade entre também.

Jack passou pela porta, sentindo como se o vento estivesse empurrando-o. Ela se fechou com um baque, e Aster trancou-a.

A casa, feita de rocha sólida e madeira, estava segura da tempestade do lado de fora, e os barulhos se abafaram.

Outro estalo de árvore caindo em algum lugar pôde ser ouvido.

— Tá encharcando meu carpete todo — Aster resmungou, empurrando o tapete de entrada com o pé. Ele olhou para Jack. — Frost, o que diabos lhe possuiu para que tentasse ficar lá fora nesse tempo?

A lareira estava tampada com uma tábua, assim como o resto da casa. Não havia fogo, e apenas uma lamparina iluminava o cômodo.

Jack deu de ombros.

— É só uma tempestade — ele murmurou. — Tempestades nunca me preocuparam.

— Bem, se sente e se entretenha de algum jeito — Aster disse, jogando uma toalha e um cobertor em sua direção, e seguindo para o seu próprio quarto. — Parece que você vai ficar aqui até ela passar.

Quando ele foi embora e Jack foi até uma cadeira para se sentar à mesa, ele percebeu que estava tremendo.

Chapter 16: Prejuízo

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Em algum momento durante a noite, Soluço havia adormecido. Banguela ainda estava acordado, mas seus olhos estavam semicerrados, e sua respiração profunda e calma. Soluço fez um carinho tranquilizante nele ao sentar e se espreguiçar.

A luz da manhã estava atravessando as aberturas nas venezianas. Bastante luz, na verdade — provavelmente já estava no meio da manhã.

Ele se levantou e começou a trocar de roupa.

— Mantenha todos aqui dentro, Banguela — ele disse.

Hora de ver quanto estrago a tempestade havia causado.

 

***

 

Rapunzel acordou de manhã com o cheiro do café da manhã sendo preparado pela Madame Gothel.

— Desculpe, mãe! — ela gritou, correndo escada abaixo, ainda de camisola. — Não foi minha intenção dormir tanto! Você devia ter me acordado...

Madame Gothel suspirou, mas não de forma ofendida, como quando ela estava realmente chateada.

— Ah, Rapunzel, já conversamos sobre ficar murmurando. Você deve ter ficado lendo até tarde. Também já conversamos sobre isso.

— Desculpe, mãe — Rapunzel respondeu, passando os dedos por uma mecha de cabelo. — Eu posso ajudar...?

— Não, sente-se, Rapunzel — Madame Gothel disse, misturando o que havia no pote. — Decidi lhe dar um mimo hoje.

Ela se sentou à mesa.

— Um mimo?

Geralmente ela só recebia mimos quando elas discutiam... por que estava ganhando um agora?

— Eu vou precisar me ausentar por um tempinho — ela encheu duas tigelas com mingau, e adicionou às duas porções uma quantidade farta de mel. — Aqui está, querida. Eu sei que geralmente não deixo você tomar tanto mel, mas vou abrir uma exceção hoje.

Rapunzel imediatamente arrumou sua postura e seu estômago até deu um ronco, porque ela realmente gostava do seu mingau com bastante mel...

— Obrigada, mãe.

Havia até avelãs torradas no mingau!

— Por quanto tempo ficará fora? — ela perguntou.

— Apenas quatro dias — Madame Gothel respondeu, se sentando com sua própria tigela de mingau em mãos. — Prometo que não vou demorar. Você vai ficar bem aqui sozinha, não vai?

Ela assentiu.

— Vou ficar bem sim.

— Que bom — ela deu um suspiro. — Sabe que eu detesto lhe deixar sozinha...

Rapunzel deu de ombros.

— Você tem... algo importante para fazer, eu acho.

Madame Gothel deu um sorrisinho para ela.

— Sabia que você entenderia.

Assim que elas terminaram de comer, Rapunzel lavou as tigelas, e quando ela estava quase acabando de lavar a panela, Madame Gothel saiu do quarto dela carregando sua cesta e vestindo sua capa de viagem.

— Estou de saída — disse.

Rapunzel enxugou as mãos rapidamente, foi até ela e, passando por cima dos seus cabelos que estavam espalhados pelo chão, abraçou-a.

— Vejo você quando voltar — ela disse.

— Amo você — Madame Gothel disse.

— Amo você mais — ela respondeu, e recebeu um beijo no topo da cabeça.

— Amo você mais ainda.

Então Rapunzel jogou seus cabelos pela janela, até a grama ainda úmida, para que sua mãe pudesse descer, e voltou para terminar de lavar a louça.

 

***

 

Merida arremessou a bola contra a parede e apanhou-a pela nongentésima octagésima nona vez — não era seu recorde, mas era bem perto dele. Finalmente parecia que a chuva estava cessando. Luz começou a entrar pelas janelas, e ela abriu as venezianas para ver como estava do lado de fora.

Isso, a chuva havia acabado! O sol havia nascido, a grama estava molhada e ela estava indo cavalgar!

Ela escutou sua mãe dar um suspiro resignado ao sair do quarto e atravessar o corredor para ir em direção aos estábulos, tão rápido que suas botas de cavalgar quase não encostavam no chão.

 

***

 

Jack acordou deitado no chão na frente da lareira quando Aster começou a cutucá-lo gentilmente com um dos pés.

— Frost. Ei, Frost!

— Ahn — ele se sentou, esfregando os olhos. Ele se sentia como os convidados do Norte pareciam se sentir na manhã seguinte a uma das suas festas grandes. Sua cabeça doía. Como isso havia acontecido? Desde quando Jack Frost sentia dores de cabeça?

— Café da manhã? — Aster perguntou, e Jack fez que não com a cabeça. Ele olhou-o desconfiado. — Tem certeza? Você parece mal como um cachorro. Certeza de que não pegou nenhuma doença lá fora?

Jack tentou dar um sorriso sarcástico, mas não obteve muito sucesso.

— E eu já fiquei doente alguma vez? — ele retrucou, e se espreguiçou de um jeito que esperava que fosse convincente. — É só que você nunca me viu logo depois de acordar.

Aster deu de ombros.

— Você deve se conhecer bem.

Jack se dirigiu à porta. Quando estava prestes a sair, Aster o chamou:

— Ah, e Frost?

— Sim?

— Da próxima vez, bata na porta antes da tempestade começar, tá legal?

— Pode deixar.

 

***

 

Soluço removeu o último pedaço de lona que estava cobrindo a horta e inspecionou o prejuízo.

O vento não levara nada embora, mas aparentemente havia chovido tanto que alguns brotos haviam sido esmagados, além de algumas alfaces também. Ele deu um suspiro.

Parecia que o Banguela não havia sido a pior coisa a acontecer com aquelas plantas, afinal de contas.

O galinheiro estava intacto, e a gaiola estava como ele a havia deixado, só que molhada. Ele substituiu toda a palha do galinheiro, varreu a gaiola e colocou as galinhas de volta no lugar delas, com um pouco de comida.

Quando ele estava quase terminando de organizar a gaiola dos coelhos, ele ouviu Banguela começar a rosnar e olhou para trás.

Havia um vulto alto adentrando sua clareira — ele tinha cabelos negros penteados para trás e seu rosto tinha um formato de macahdo. A pele dele era ainda mais cinzenta que a do Soluço, e seus pés estavam cobertos por sua túnica preta longa.

Soluço colocou no chão a tábua molhada que estava segurando e o encarou.

— Pois não? — perguntou, desconfiado.

— Ah, não repare em mim — ele disse. — Só estou aqui para visitar um... velho amigo.

Soluço o olhou da cabeça aos pés novamente e estreitou os olhos.

— Você é o Breu, não é?

Breu bateu palmas.

— Ah, que bom! Então eles lhe contaram algo sobre mim. Foi o querido Jackie? Ou um dos amigos dele, talvez?

Ele deu de ombros.

— Não me lembro.

Ele suspeitava de que Jack não gostaria de ser chamado de “querido Jackie” pelo Breu.

— Bom, não importa — ele se agachou e estalou os dedos na direção da porta da cabana, onde Banguela estava, de cabeça abaixada e todo arrepiado. — Vem aqui, garoto. Vamos. Não quer um carinho atrás das orelhas?

Banguela rosnou de novo e colocou as orelhas para trás. Ele andou devagar, para longe da porta e na direção do Soluço, para longe do Breu.

Ele se pôs de pé, levemente decepcionado.

— Bom, então os rumores estavam certos. Você deve ter feito algo especial de verdade.

Soluço deu de ombros.

— Depende do que você considera especial, acho.

— Sabe... qualquer um que consiga ganhar a confiança de um Grimalkin merece uma posição de honra.

— Eu não confio em você. Então, sem ofensa, não, obrigado.

Breu deu de ombros.

— Muito bem, mas a proposta ainda está de pé. Por enquanto. Mas um dia eu voltarei para pegar esse Grimalkin, e talvez você não goste quando os termos do acordo mudarem.

Soluço esfregou a cabeça do Banguela com uma das mãos.

— Tá, vou me arriscar.

Breu deu uma última olhada na horta e foi embora.

Chapter 17: Um pouco de verdade

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Soluço queria ter um jeito de contatar Jack depois da tempestade passar, mas ele nunca precisou esperar muito para vê-lo de novo. Então, ele aproveitou a reforma da gaiola para se distrair e manter-se ocupado.

Ele estava certo. Jack apareceu mais tarde naquele mesmo dia. Seu rosto estava alegre como sempre, mas sua capa e suas calças ainda estavam coladas ao corpo, parcialmente secas, e seu cabelo estava úmido e pingando em sua testa. Soluço franziu o cenho.

— Você pegou aquela chuva? — ele perguntou.

Jack deu de ombros, girando seu cajado e se sentando sem sequer verificar se o solo estava seco.

— Um pouco.

— Você deveria ter me dito que não tinha... ahn... quer dizer, você poderia ter se abrigado aqui se... — sua voz se tornou um murmúrio envergonhado.

Jack deu de ombros de novo.

— Não sou exatamente humano, lembra? Está tudo bem, sério.

Ele pensou em protestar, mas se conteve. Ele meio que não tinha moral naquele assunto.

— Bem, lembre-se disso da próxima vez.

— Tá bom.

— Ei — Soluço disse repentinamente, querendo falar logo antes de ter a chance de pensar melhor e desistir — tem certeza de que está bem? Você... não parece estar.

Ele estava sendo sincero. Jack parecia não ter tido uma boa noite de sono; parecia até estar lidando com os estágios iniciais de um resfriado. O que quer que ele fosse, ele pegava resfriados? Se sim, era meio injusto alguém com poderes de frio e gelo pegar resfriados.

— Olha quem fala — Jack respondeu, com um sorriso meio forçado que Soluço já conhecia.

— Tá legal, desculpe por perguntar — ele disse, tentando não se irritar com o comentário sobre sua aparência.

— Eu fiquei na casa do Aster, então não precisa ficar se preocupando se eu estava do lado de fora na tempestade.

Não era com isso que ele estava preocupado, mas ele sabia a hora de mudar de assunto.

— Tenho uma pergunta para fazer.

— Manda.

— Como o Breu se parece?

Jack travou por um segundo, só um segundo, e então tentou parecer despreocupado de novo.

— Ele tem cabelos pretos e um rosto de cavalo faminto? Usa roupas monocromáticas? — Jack respondeu.

Soluço desviou o olhar.

— É, é ele mesmo.

— Tá. O que ele queria?

— O Banguela. Ele queria o Banguela de volta.

Jack franziu o cenho.

— Ele não pode tê-lo de volta. Você é o mestre dele agora. É assim que funciona.

— Eu sei. Ele queria que eu me juntasse a ele para poder usá-lo através de mim.

Jack hesitou.

— Você o rejeitou, certo?

— É claro! O que você pensa que eu sou? — Soluço acariciou o Banguela atrás das orelhas. — Olha, eu sei que eu provavelmente não lhe conheço muito bem, e você é a única pessoa que já falou comigo sobre o Breu. Mas, bem... o Banguela fugiu dele uma vez. Ele não gosta do Breu, e isso é o bastante para mim.

Ele olhou para Jack com cautela para ver a reação dele. Jack estava olhando para o seu cajado, mas ele conseguia ver um sorriso meio triste no rosto dele.

— É... o Banguela é bom em julgar o caráter dos outros.

— Além disso — Soluço disse, pensativo. — Ele nem se esforçou.

— Como assim?

 — Ele só perguntou se eu gostaria de me unir a ele. Não me ofereceu nada, e tambem nem me ameaçou. Só perguntou, eu disse que não, ele me perguntou de novo e disse que voltaria, e que ele talvez... — ele ergueu as mãos para fazer aspas — “mudaria os termos da proposta” e que eu talvez não gostaria disso. E aí ele foi embora.

— Hum — respondeu Jack. — Bem, posso lhe dizer que ele é um grande fã de falar algo para você e ir embora dramaticamente. É meio que o jeito dele.

— Quer dizer — Soluço disse, gesticulando com as mãos enquanto tentava explicar — tenho a sensação de que se ele realmente quisesse que eu me unisse a ele, ele se esforçaria mais para me convencer. Pareceu que ele estava ocultando algo... ou como se estivesse com pressa.

— E os ataques... — Jack franziu o cenho. — Há algo acontecendo. Não estou gostando disso.

Soluço olhou para as tábuas que se tornariam uma gaiola de coelho. Ele não estava gostando daquilo também, assim como não estava gostando do fato de que ele provavelmente estava prestes a ser envolvido em algo relacionado à Berk. Ele estava sendo egoísta e sabia disso, mas se fosse necessário... não sabia se conseguiria fazer nada além de tentar ajudar das sombras.

Ele colocou uma das mãos na cabeça do Banguela. Não, ele se conhecia bem demais para mentir. Se sentiria terrível, mas... não sabia se conseguiria voltar para Berk. Nem mesmo para salvá-los.

— Deveríamos conversar com alguém — Jack disse, e Soluço olhou para ele.

— Com quem? — perguntou, temendo a resposta. É isso... Jack estava prestes a pedir que ele voltasse e...

Jack deu um sorriso, mas um sem sua energia de costume.

— Uma amiga minha. Mora em um castelo. Não a Punzie, aquilo é uma torre. São coisas diferentes.

Então não era Berk. Soluço parou para pensar e então entendeu.

— Você quer dizer que... é amigo da família real? Dos Dunbrochs?

Jack assentiu, agora com um sorriso mais largo e mais natural.

— Certo — Soluço disse. — Me... me conte se você... se eles...

— Na verdade — Jack o interrompeu como se não tivesse notado o seu desconforto — eu estava pensando que seria melhor se você fosse conversar com ela.

Soluço hesitou.

— Eu? Por quê?

— Vocês vão se dar bem — ele o assegurou.

Ele não se daria, mas não era esse o problema. Os Dunbrochs... talvez se lembrassem dele. De antes.

— Eu não entendo por que você não vai perguntar a ela sobre isso.

— Bom... eu e ela até que nos damos bem, mas... — ele deu de ombros, envergonhado. — Os pais dela e eu não. E é da mãe dela que precisamos: a rainha Elinor sabe mais sobre fadas do que qualquer humano que eu conheço.

— Você? Não se dá bem com alguém? Por que isso não me surpreende?

— Ah, vamos, vai dar tudo certo! Você claramente não é uma fada, então ela provavelmente não vai se incomodar com você.

— Provavelmente? — Soluço apontou para o seu corpo. — Jack, eu também não pareço exatamente humano.

— Qual é, Sô, não é nada demais. Só chegar lá, fazer umas perguntas, dizer que você é um amigo meu.

— Não nessa ordem — ele o interrompeu.

— Tanto faz. Na ordem que for.

— Você está... só tentando me fazer conhecer gente? — Soluço indagou de repente.

— Eu... não, eu estou...

— Se está, não precisa. Agradeço o gesto, mas eu não...

— Não! — exclamou Jack, ficando de pé de repente e encarando-o novamente. — Quer dizer, sim, é um bom efeito colateral, mas não é por isso. Eu realmente acho que eles vão lhe escutar mais do que me escutam. É só que... desculpa. Deixa para lá.

Soluço manteve-se em silêncio por um tempo, e então perguntou:

— É só que o que?

— Eu só... queria uma desculpa para voltar aqui para conversar — ele respondeu, coçando a nuca. — Você está sempre ocupado, e eu não consigo ajudar muito com a horta. Achei que se eu conseguisse que você me ajudasse, eu teria um motivo para continuar voltando.

Ele olhou para o Soluço mais uma vez, mas não pôde manter contato visual por muito tempo.

— O Breu claramente também quer envolver você nisso, então eu não posso simplesmente deixá-lo de fora, sabe?

— Você não tem outros amigos mesmo, não é? — Soluço o questionou. A sua intenção era caçoar de si mesmo, mas quando viu a expressão do Jack, percebeu que havia acertado na mosca. Fazia sentido. Aster não parecia exatamente próximo dele, e mesmo que a Rapunzel gostasse muito dele, Jack havia parecido reservado com ela. Ele deu um suspiro e coçou o queixo. — Desculpa. Não era minha intenção cutucar feridas antigas.

— Não é exatamente uma ferida antiga...

Então ainda era recente.

Houve um longo silêncio, então Soluço respirou fundo, se preparou e disse:

— Eu estou morto.

— Tenho certeza de que você não vai os incomodar tanto assim — Jack disse e depois hesitou. — Ah. Você quer dizer...

— Já vai fazer cinco anos esse ano — ele respondeu com um aceno de cabeça. Ele tocou a pele cinzenta de suas mãos, suas sardas cinza-escuro, suas olheiras. — É bem óbvio, não é?

Jack assoviou baixinho.

— Bom... eu não adivinhei logo de cara, mas quando você fala assim... — ele pausou por um momento. — Então, quando pulou da janela da Rapunzel...?

— Percebi que as coisas não podem piorar de verdade — Soluço respondeu com um sorriso. — Eu saio ileso de quase tudo agora.

— Entendi. E você morava em Berk, né?

— É. Tenho certeza de que a aldeia já me superou agora. Não quero ver o que aconteceria se eu voltasse.

— Ah, entendi — Jack disse baixinho.

— E eu não quero muito ir me encontrar com a família real, até porque... o que é que eu diria para humanos vivos agora?

— Você vai se acostumar se praticar. Eu... consigo.

— Você é bem mais insistente do que eu — disse Soluço com um sorriso fraco.

— Isso é verdade, eu sou. E eu insisto que você vá se encontrar com a Merida.

Soluço queria continuar discutindo — ainda havia a possibilidade de ele ser reconhecido, afinal de contas — mas ele de fato queria que  Jack continuasse voltando. E isso poderia ser algo que ele faria por Berk sem sequer chegar perto de lá.

Nada de bom dura para sempre.

— Você está me fazendo andar muito, hein? Tá bom, eu vou conversar com ela. Me diga o que você quer que eu fale.