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Apesar da doença da mulher e da angústia de a saber condenada, Afonso nunca abrandara a sua atenção ao comportamento do Pedrinho, receando precisamente o que primeiro desconfiara e acabara finalmente por saber. Benfica era uma aldeia, tudo se sabia. A rapariga, prestes a terminar o aprendizado de costura, não era nem fútil nem leviana, era uma menina séria, de família modesta, mas honrada. Órfã de mãe desde os seis anos, vivera sempre com o pai, um homem discreto, reservado, culto e muito lido, por gosto e necessidade da sua arte de tipógrafo. Afonso conhecia-a de vista e muitas vezes admirara a beleza serena e o belo porte daquela moça que todas as manhãs passava apressada pelo outro lado da rua, a caminho da modista onde era aprendiza.
Não se colocando a questão de casamento, tanto pela evidente diferença de meio, de educação, de fortuna, e até porque Pedro era demasiado jovem e, com toda a franqueza, dissera mesmo Afonso ao Vilaça, a rapariga estava bem melhor sem ele; Afonso nem por um momento duvidou da palavra dela ou da do tipógrafo, que o procurara para o informar da situação. Ao pai alarmado e furioso, Afonso explicou exatamente o mesmo que conversara com o Vilaça: não era tanto por motivo das diferenças sociais que achava o casamento má ideia, era pela imaturidade e falta de consciência do seu Pedro.
- Meu amigo, o rapaz é o meu único filho e por si deve calcular o quanto lhe quero. Mas isso não me cega para os defeitos dele. Fui talvez fraco por não querer contrariar a minha pobre Maria, e não teimei quando devia tê-lo feito. Saiu-me o rapaz mal-educado e às vezes até me parece fraco de cabeça. Acredite quando lhe digo que a Angélica está melhor sem ele. Mais vale só do que mal-acompanhada… Não é por ela, é por meu filho. Creia que era uma desgraça casá-los; em seis meses acabavam a atirar a loiça um ao outro. Nem seria ambiente para educar uma criança!
O tipógrafo concordara. Também a ele o namorico não tinha agradado. O rapaz era um estroina, um doidivanas, bonito e simpático, sim senhores, mas sem cabeça e sem futuro. Angélica, contudo, sem mãe nem outra parenta mais velha que a guiasse, ingénua e ignorante como o devia ser qualquer menina solteira, facilmente sucumbira aos encantos do moço, aos seus bonitos olhos e às bonitas palavras, aos versos e às flores, à atenção, à persistência… O mal estava feito, agora era remediá-lo o melhor que se pudesse.
O plano de Afonso era mandar a moça para Santa Olávia, onde havia uma casinha discreta e retirada, que em tempos pertencera a um dos rendeiros, estava ainda em muito bom reparo e rapidamente se arranjava. Lá teria bom ar e excelente água, sossego e companhia: a Maria do Amparo, uma pequena da aldeia que tivera umas febres em criança e ficara demasiado frágil para os trabalhos da lavoura, e devia andar pela mesma conta de anos, faria os trabalhos da casa e ajudaria depois com o bebé. Em Resende, havia o excelente Doutor Trigueiros que em meia hora a cavalo lá estaria e a Ana Rosa, parteira afamada na região, tão asseada e cuidadosa que nunca perdera uma criança em mais de dez anos de actividade.
- Em nascendo o pequeno, ou a pequena, e assim que a mãe estiver recuperada, tratamos de casa onde possam viver, fora daqui já se sabe, em Lisboa, onde o meu amigo encontre trabalho com facilidade e ninguém queira saber miudezas da vida alheia. Se não posso dar um marido de jeito à sua filha, posso pelo menos deixá-la, a ela e ao nosso neto, ao abrigo das más surpresas da vida. E creia-me, meu caro Alberto, que ninguém lamenta mais do que eu que o meu desgraçado filho não seja forma para o pé dela!
Alberto era um homem inteligente e ponderado e sabia bem demais que Afonso tinha razão. Bem pesados os lados todos, quase lhe agradava a perspectiva de manter a filha junto de si, com um netinho ou netinha e sem o risco de um que homem estranho lha viesse reclamar. Desde que perdera a mulher que secretamente receara o dia em que o casamento lhe viesse roubar a filha. Longe das línguas faladeiras de Benfica, facilmente Angélica passaria por viúva. Encerrar-se-ia ali um capítulo da sua vida, mas outro principiaria.
***
Tudo viera a correr como Afonso planeara. Entre as frondosas sombras de Santa Olávia, Angélica tivera o que se podia chamar uma gravidez santa, sem agonias nem desmaios. Todos os fins de tarde, desde que estivesse bom tempo, dava, por avisado conselho do Doutor Trigueiros, um grande passeio pela mata em redor da casinha, acompanhada por Maria do Amparo que nunca a deixava só. Liberta dos cuidados da casa, excelente costureira, fizera todo o enxoval do filho e, terminado este, ainda arrecadara um pequeno pé-de-meia bordando e embainhando, para não se enfadar da inatividade forçada, meia dúzia de lençóis e fronhas para uma menina, filha de um brasileiro rico das cercanias, que estava para casar e ficara encantada com a perfeição dos bordados do enxoval quando encontrara Maria do Amparo na venda, a escolher botões de madrepérola que coubessem nas casas minúsculas das pequenas fronhas. E não lhe faltava o tempo para escrever todas as semanas ao pai, longas cartas em que relatava com graça o seu calmo dia a dia.
Na aldeia falava-se, à boca pequena, embora respeitosamente, da jovem viúva que viera esperar a chegada do filho no retiro da quinta dos Maias. Admiravam-lhe a beleza, a gravidade e os sorrisos e as boas palavras que sempre tinha para quem encontrava nos seus passeios ou nas raras idas a Resende. Afirmavam uns que era uma parenta afastada, de um ramo menos afortunado da parentela. Outros juravam ter ouvido dizer que era a viúva de um conhecido da família, um jovem solicitador de Lisboa, por quem a caridade de Afonso, quase lendária na região, se interessara. E Maria do Amparo, nas visitas à mãe, só tivera bem a dizer da sua jovem patroa, tão bonita e amável, tão distinta, mas tão prática que não desdenhara ganhar um dinheirito por sua conta e tão despretensiosa que a ajudava a levantar a loiça do almoço e muitas vezes lhe pedia que ceasse com ela à mesa.
O pequeno nascera no final da Primavera, de um parto muito bem-sucedido e sem complicações. Era um rapazinho saudável e Angélica recusou imediatamente a hipótese de ele ser criado por uma ama. Fora baptizado em Santa Olávia, com o abade Custódio por padrinho, a pedido de Afonso, que sem dificuldade lhe arrancara a promessa de segredo absoluto, e Maria do Amparo por madrinha: sem pretensões de ligações vantajosas, Angélica quis dar ao filho uma madrinha que efectivamente o pudesse cuidar caso lhe viesse a faltar a mãe. Deu-lhe o nome de Eduardo, numa discreta homenagem à avó que nunca conheceria e que falecera pouco tempo antes.
Quando os grandes calores passaram, em fins de Setembro, voltou a Lisboa e instalou-se com o filho, o pai e Maria do Amparo, que não quisera separar-se dela nem do menino, num rez-de-chaussée que Afonso alugara, e que fazia esquina com a Rua do Loreto. Era uma casinha aconchegada, modesta mas desafogada, que tinha até um palmo de quintalzinho onde duas roseiras, anémicas mas cheias de boa vontade, em breve dividiam o espaço exíguo com pés de salsa, hortelã, salva e cidreira, tudo cuidado amorosamente por Maria do Amparo, e onde, nos dias bons, Alberto se sentava depois do jantar a fumar o seu cachimbo e a ver o neto estender as mãozitas gorduchas para os fracos raios de sol que ali chegavam coados pelos prédios circundantes.
Quando Afonso viu o garoto pela primeira vez, não lhe restaram dúvidas de que era filho de Pedro. Herdara os grandes olhos escuros, e era o retrato de Pedro aos três meses. Esperneando e palrando no seu berço de verga, entre lençóis primorosamente bordados, o pequeno presenteara o desconhecidos com um daqueles sorrisos radiosos que as crianças de colo ensaiam antes de saberem sorrir com motivo. Receando assustá-lo, Afonso declinara segurá-lo ao colo, mas ficara encantado com a força e determinação da mãozinha gorducha que segurara o seu indicador estendido. Sentado à mesa da sala de entrada, traçara a Angélica e Alberto os seus planos para assegurar o futuro do garoto, com um ligeiro embargo de comoção na voz: afinal, era o seu primeiro neto.
- Para começar, Angélica, quero que saiba que o Eduardo está no meu testamento, reconhecido como meu neto e filho do Pedro: não tem valor jurídico, mas tem o valor de afirmar que eu sempre o soube e reconheci como tal. Baptizá-lo como filho de mãe incógnita teria sido um insulto para si, e compreendo que o tenha recusado, tal como espero que compreenda por que motivo levantei a hipótese. A educação do menino será por minha conta. O Vilaça, a meu pedido, estudou as leis a fundo e deixo ao seu filho o suficiente para que, no caso de eu faltar, ele possa completar a sua instrução na carreira que for da sua escolha e estabelecer-se como entender.
Adivinhando o agradecimento, atalhou, segurando-lhe as mãos.
- Não o fiz para que me agradeça, minha filha. Fi-lo porque é o que está certo. Pensei em não lho revelar sequer, mas quero que viva descansada e sem angústia quanto ao futuro do Eduardo. Quanto a si, sei que é uma mulher corajosa e trabalhadora, mais do que capaz de assegurar o seu sustento, mas gostaria de garantir que, materialmente, nada lhe faltará. Em verdade, é mais por mim que o faço. O arrendamento desta casa está em seu nome, e há provisões feitas para que, mesmo depois da minha morte, a renda continue a ser paga regularmente até que o Eduardo atinja a maioridade ou inicie a sua actividade profissional. Da mesma forma, receberá uma pequena pensão anual, a ser paga duas vezes por ano, em Junho e em Dezembro, que empregará como achar melhor. Se não precisar do dinheiro, pode depositá-lo, ou investi-lo como entender. O Vilaça estará à sua disposição para a aconselhar.
Virou-se depois para Alberto, que ouvira tudo sem uma palavra, embora se adivinhasse que por várias vezes estivera à beira de intervir e só o não fizera graças aos gestos discretos e olhares imperiosos da filha.
- Meu amigo, será seu o privilégio de ouvir o Eduardo chamar-lhe avô. É, de certa maneira, um alívio e uma alegria para mim saber que o neto que não posso acompanhar terá um avô tão sério e tão afectuoso como o Alberto. Entendo que seria errado da minha parte ter uma presença na vida dele, pois que teria sempre de ser à custa de mentiras…
Comovido com a percepção de que aquele homem, rico e poderoso, tinha afinal algo a invejar-lhe, o tipógrafo não pudera manter o silêncio.
- Mas Vossa Excelência há de ter netos, senhor D. Afonso…!
- Ai! meu amigo, sabe Deus quando isso virá a ser! Creia que às vezes duvido que o rapaz venha ganhar juízo para tanto… Que ele não é mau rapaz… é esperto, é valente… mas fraco, inconstante… e desde a morte da mãe… - falhou-lhe a voz - … não sei, não sei o que sairá desta melancolia em que ele anda. Que pena tenho de ele não a ter sabido apreciar como devia, Angélica! Que mundo tão mal feito este, minha filha!
