Chapter 1
Summary:
— E eu realmente tenho interesse em um período sabático. — Doied o ignorou. — É onde você entra.
— Eu?
— Sim, trocando de vida comigo e se passando por mim em meu lugar.
Chapter Text
Que ideia estúpida.
Impaciente, Doied retirou seus óculos e franziu o cenho para as lentes. Estavam sujas e grudentas, mesmo que ele houvesse as limpado há exatos quinze minutos. Ele estava suando mais do que o normal. Doied culparia o nervosismo do momento.
Tudo simplesmente poderia dar muito errado.
Ou muito certo, é claro. Ele trabalha com o mercado de ações, é parte de sua rotina entender que altos e baixos existem e que probabilidades são traiçoeiras. Nesse meio, a graça é jogar conforme o fluxo do mercado, até porque não é sempre que você pode jogar fora um milhão de cédulas em uma aposta instável e incerta — ou ganhar o dobro, caso seja sortudo o bastante.
— Ei, hermano estúpido! — um grito sussurrado, talvez a forma mais baixa que seu irmão soubesse falar, veio pelas suas costas. Doied chiou, estremecendo do primeiro fio de cabelo até o último fiapo do dedinho do pé.— Assustou, foi?
Muito, muito estúpida.
— Sente-se. Não temos muito tempo a perder, Roier. — disse entredentes. — Cada minuto em que passamos juntos é um pote de ouro que a mídia pode ganhar se formos flagrados juntos. E você não vai querer deixar um chofer esperando plantado atrás desse… — Torceu o nariz. — adorado e bem cuidado café.
A cafeteria era, em palavras curtas e sinceras, uma merda. Primeiro, porque Doied odeia café. Apenas sentir o cheiro forte da cafeína o dava ânsias fortes, sendo um grande motivo para ser um assíduo adorador de chás. Segundo, aquele era um estabelecimento de baixíssima categoria, e seu gosto refinado não era mais tão suscetível a esse tipo de espelunca . O que poderia esperar de um lugar recomendado pelo idiota do seu caçula?
Roier obedeceu, mas não antes de revirar os olhos ao praticamente jogar-se contra a cadeira bamba e dura. Suas roupas chamativas repletas de estampas trouxeram ardência aos olhos de Doied. Muita saturação. Muito intenso. Muito Roier.
— Que porra é um “xôfér”?
Tantas coisas mais importantes… Doied revirou os olhos. Ele tirou os óculos e colocou-os na mesinha do café, cruzando os dedos amargamente sobre o plástico da mesa.
— Você é um caso perdido.
— Doied e seus elogios. — Riu, azedo. — Bom saber que nada mudou.
Há acidez — figurativamente falando — vazando da boca de Roier, que agora cruza os braços enquanto encara o irmão com igual impaciência. Eles não se falavam há uns bons meses quando Doied inesperadamente entrou em contato por mensagem, alegando querer propor um acordo. Suas orientações foram extremamente breves e que não levavam a lugar nenhum. Em retaliação, Roier pediu para marcar o local do encontro, deixando claro que nenhum conhecido do irmão o veria por lá.
O motivo da última afirmação é óbvia, já que ninguém espera encontrar Doied de Luque, CEO e maior sócio do Banco Federation Ore, em uma cafeteria de esquina em um bairro de invasão da cidade. Roier, por outro lado, adora os salgados engordurados daqui.
É uma pena não ter tempo o suficiente para pedi-los. Ele adoraria se deliciar com a careta de nojo do irmão ao vê-lo engolir litros de óleo de uma só vez.
— Serei breve.
— Por favor.
Doied recapturou seus óculos, limpando vagarosamente as lentes com um paninho macio e fino tirado do bolso do colete. Ele deveria ter notado que seu padrão de vestimenta era um pouco deslocado em comparação com o resto da clientela que, trajada em suas regatas e sandálias, às vezes olhava-o com curiosidade.
— Irei me casar em seis meses, você já deve ter ouvido por aí.
Sim, Roier sabia do casamento do irmão. Ele descobriu o evento há dois meses, na verdade. Por uma postagem no Twitter.
— Não serei seu padrinho.
— Eu não pediria por isso.
Roier não irá admitir, mas doeu um pouco ouvir isso. Ele não demonstrou, no entanto, sorrindo de canto.
— Medo de eu te envergonhar na frente dos seus convidados?
— Não é esse o ponto. — Doied bufou. — Estou sendo chamado para conferências, entrevistas, patrocínios, reuniões e, certo, essas coisas são legais. — diminuiu o tom de voz, pensativo. — Mas estou cansado da rotina. Sei que as coisas piorarão até o grande dia, então gostaria de um pouco de folga.
— Tire férias, então. — Roier deu de ombros. — Você é seu próprio chefe.
— As coisas não são tão simples assim. Não posso ficar fora da empresa por um longo período de tempo, nem que seja apenas para piscar, acenar e ser um rosto bonito.
— A última coisa é questionável…
— E eu realmente tenho interesse em um período sabático. — Doied o ignorou. — É onde você entra.
— Eu?
— Sim, trocando de vida comigo e se passando por mim em meu lugar.
Roier riu. Mas a pior parte é que Doied não ri de volta. E certo, seu irmão não tem senso de humor algum, porém até piadas como essa deveriam tirar alguma reação dele. Nada veio além da seriedade costumeira e do arranjar característico dos óculos que vivem escorrendo pelo nariz.
Ele estava falando sério, puta merda.
— Você bebeu?
— Eu odeio álcool — Doied retorce o rosto de nojo.
— Se não é uma piada — Roier explica —, então você só pode ter ou enlouquecido ou bebido até perder todos os miolos.
— Estou perfeitamente bem e não bebo uma gota de álcool há meses, obrigado.
— Que verga…
É por isso que é uma ideia estúpida. Doied sabe que é. Ao mesmo tempo, é a única que menor teria consequências. Seus acionistas e clientes ficariam tranquilos acreditando que ele estaria trabalhando todos os dias, seus funcionários não temeriam pela saúde mental do chefe e Doied não teria que lidar com reuniões e nem maiores teatros com seu noivo até terminar de recarregar as energias em um hotel chique, confortável e bem longe de tudo e todos.
E não era um bom plano porque apenas ele se beneficiaria. Veja bem, Doied pensa no bem estar coletivo também.
— Se aceitar, estará morando em meu apartamento pelos próximos meses. Você comerá, se vestirá e viverá do bom e do melhor. — Doied trata aquilo como uma conversa de negócios entre empresas, e Roier não sabe se aquilo o dá sono ou o intimida. — Meu motorista é o único que saberá do nosso acordo. Ele é o chofer, caso sua dúvida anterior tenha sido genuína.
— Era genuína.
— Que trágico. — Ele não perde oportunidades de alfinetá-lo. — É claro, isso também te daria alguns deveres, nada que não fosse compensado com comida, produtos e lençóis caros.
— Comer, vestir e usar o que eu quiser?
— E sem estar devendo nada a ninguém. Eu não o cobrarei pelos seus gastos, já que o acordo já será seu pagamento.
E era a coisa mais idiota que Roier já ouvira sair da boca do irmão, mas ele estava muito interessado.
Roier não é como Doied, mesmo que a aparência engane. Seus cabelos têm o mesmo tom achocolatado, e seus olhos seriam do mesmo tom de café se os do caçula não prendessem um pouco mais para o caramelado. No porte, Doied é magro e menos atlético e mais pálido pela vida no escritório. Se chamassem-os para carregar caixas, Roier estaria na vigésima quando o irmão desistisse de pegar a terceira.
A maior diferença, no fim, é suas contas bancárias. A de Doied tem tantos dígitos que mal cabem nos dedos das mãos. E Roier sabe que se abrir seu aplicativo do banco agora, verá apenas zeros, zeros e mais zeros.
Ele nunca teria a chance de viver uma vida de luxo. De comer como um rei e de vestir roupas finas e macias sem medo de receber e-mails de cobradores e gritos de dívidas. Porra, ele nem precisaria lidar com aluguel.
E seria uma mentira? Seria. Mas Roier se formou em Teatro, ele foi treinado para mentir como um profissional.
— Tô dentro.
Doied não sorriu em satisfação, mas suspirou, e talvez seja o máximo de reação que conseguiu do irmão em eras.
— Certo, alguns apontamentos então.
— Devo considerar isso como as nossas letras miúdas?
— Talvez. — Doied tirou algo de dentro dos bolsos. Uma capinha de celular cinza e sem estampa. Extremamente sem graça. — Essa capinha é idêntica a minha, mas para o seu celular. Não confio em você com meu celular, então isso deverá servir.
— Como você sabe qual capinha eu uso?
Seu irmão piscou, entediado.
— Você postou uma foto da caixa no Instagram.
Merda.
— Vou deixar meu microchip com meus contatos com você. Eu poderia manter a conversação com meus conhecidos, mas seria arriscado demais já que não estaríamos vivendo a mesma rotina. Você deve se lembrar de escrever, digitar e se portar como eu.
— Ser robótico, falar devagar e sem piscar e usar palavras difíceis e que ninguém conhece? — Roier traduziu para a própria língua. — Moleza.
— Você faz parecer fácil.
— Para mim, é. — Deu de ombros enquanto trocava a capinha do celular. — Vou deixar meu chip com você também, então?
— Não vejo necessidade. Acho que nem você e nem eu gostaríamos de me ver tendo contato com sua gente.
Roier apertou as mãos em torno do telefone, meio irritado com aquela frase mesquinha e fútil. Ele se resguardou a apenas um sorriso pequeno e ácido, aqueles que Doied adorava mostrar quando queria uma vantagem sobre o irmão.
A imagem deve ter assustado um pouco Doied, se considerar o levantar brusco de seus ombros.
— Eu insisto. — Deixou o microchip sobre a mesa. O de Doied já estava solto sobre o plástico amarelo mostarda. Roier o pegou, vendo que era de uma operadora melhor que a sua. Típico. — Se eu serei você, você será eu. Certo, hermanito ?
Doied parecia querer retrucar, mas não o fez, talvez com receio de perder sua única oportunidade de escapismo em anos de trabalho duro e consecutivo. Ele bufou e pegou o próprio celular, colocando o chip barato de Roier com falta de delicadeza.
— Apenas se for extremamente necessário.
— Só tente ser educado, hermanito.
— Eu sei ter classe, pirralho.
Roier abafou a risada com uma mordida no lábio. Ele nem tentou esconder, infantil.
— Ramón, meu chofer, estará te esperando do lado de fora, como eu disse. Não precisa de maiores teatros com ele. É um dos meus homens de maior confiança, então trate-o bem. Ele te levará daqui para o apartamento, para a empresa e para qualquer lugar que queira. Apenas tome cuidado com os paparazzi . Os sanguessugas estão em todos os lugares.
Se não descobriram até hoje que você tem um irmão gêmeo, Doied, eu duvido que irão saber por mim.
É o que Roier quis dizer, mas não falou.
— Para usar o elevador do meu prédio, você precisa do cartão. Pelo amor de Deus, Roier, nunca perca a droga desse cartão. Ramón já te dará o meu reserva, e ter que pedir outra cópia seria estranho e vergonhoso demais para nós dois.
— Não sou tão imprestável assim, sabe.
— É apenas por precaução. — Os dois sabiam que não era. — A tranca da porta principal do meu apartamento abre com senha ou com biometria. Eu costumo usar a biometria. A sua será cadastrada o mais rápido o possível, então trate de usá-la. Para viver como eu, você deve se ater aos detalhes. — Inclinou-se com os olhos semicerrados. — Até lá, use a senha. É 250897.
— Isso…
— E se lembre que sou ovolactovegetariano. Eu não como carne. Talvez peixe, mas as exceções são enormes e são tantas que seria estúpido até para mim decorá-las, então…
— A senha do seu apartamento é a data de aniversário do nosso avô? — Piscou. — Com o nosso ano de nascimento?
— Isso é um detalhe irrelevante…
— Um detalhe irrelevante, porém nada seguro ou minucioso vindo de Doied de Luque, ha!
Já estou me arrependendo antes do plano começar.
— Esqueça isso e me escute com atenção. Vou te contar um pouco sobre os meus mais conhecidos.
O primeiro deles é Mariana, seu secretário. É ele quem administra sua agenda, separa a papelada e marca suas reuniões mais importantes. Ele conhece sua rotina de cabo a rabo, o que torna fingir demais perto dele uma verdadeira ameaça ao plano dos dois. Porém, Mariana também é confiável e não irá enchê-lo de perguntas caso Doied — ou Roier, nesse caso — esteja mais distante que o normal, que já é distante por natureza.
Mariana namora com Slime, gerente do departamento de publicidade. Eles são muito grudados e flertam sempre que respiram. É normal que Doied se afaste para evitar ver o espetáculo do casal, então o afastamento também não seria novidade. Além disso, Slime adora combinar suas roupas e troca de paleta de cores a cada semana, sempre se certificando de xingar os ternos monocromáticos de Doied ao pisar na empresa.
— Mariana te enviará agendas com horários todas as manhãs. Não ignore as notificações dele ou teremos problemas. Nós dois sabemos que você é péssimo com horários.
— E as reuniões?
— Você irá, mas não se preocupe em ter que falar sempre. Mariana ou Luzu irá te cobrir.
Luzu é, sem sombra de dúvidas, o funcionário mais importante da Ore. Ele é gerente do departamento de finanças, cuidando dos fundos de investidores e guiando a maior parte das reuniões com acionistas. Doied sempre lhe dá direito à fala por reconhecer sua competência no trabalho, boa parte das vezes comparecendo mais por formalidade do que necessidade real. Luzu é o que Doied tem de mais próximo de um melhor amigo, e é até estranho estar escondendo algo de tamanha magnitude dele.
Mas quanto menos pessoas souberem da verdade, melhor.
— Se é seu amigo, deve ser tão insuportável quanto você.
— Não fale assim dele.
Doied tendo sentimentos positivos e protetores com alguém, Roier ergue as sobrancelhas. Como seu caçula, eu até sentiria ciúmes se não fosse tão magoado com ele.
— E tem Cellbit, meu noivo e dono da Taaffaiete.
A Taaffaiete é uma marca de moda que já foi muito famosa no passado, e que hoje luta para superar o legado dourado dos pais dos atuais representantes, Cellbit e Bagi Balanar. Cellbit é o CEO e Bagi, sua assistente e braço de direito, a COO. Tudo o que Roier sabe sobre a empresa veio da boca de Tina, sua grande amiga e estilista do teatro onde trabalha. Apesar dos tempos difíceis, as coisas estão melhorando para a Taaffaiete desde o noivado entre Cellbit e Doied.
— Nosso casamento é arranjado. — Doied afirmou o que Roier já desconfiava. Ninguém casaria com ele por vontade própria. — Nós nos damos suficientemente bem, mas não somos pombinhos apaixonados. Não se preocupe de ter que tocá-lo ou … Ah…
— Ficar de chamego com ele?
Doied estremeceu.
— Sim, essa coisa. Nós resguardamos esse teatro para quando sairmos em público.
— Você meio que o financia, então?
— Algo do tipo. A ideia é que eu invista na empresa dele em troca de manter a imagem da Ore sempre no topo. Casamentos fazem boa vista para a mídia.
— Entendo.
Doied deve ser viciado em fazer acordos mentirosos por aí.
— E não se esqueça de se vestir como eu. Minhas roupas estarão disponíveis para seu uso.
— Vou ter que usar até suas cuecas?
— Que nojo, honestamente.
— É uma pergunta genuína!
— Pedirei para deixarem uma bolsa com cuecas limpas no quarto. — Doied massageou as têmporas. — Bem na cama para que sua visão deturpada não a perca de vista.
— Eu uso lentes funcionais, sabia?
— Usava.
Ele retirou os óculos mais uma vez, agora arrastando-os em sua direção. Roier não conteve a expressão de desprezo. Os gêmeos são míopes e suas receitas são extremamente parecidas, com a única diferença em Doied preferindo óculos tradicionais e Roier, lentes de contato. As lentes deixam seus olhos pequenos e não valorizam em nada o formato quadrado de seu rosto.
Mas é pelo plano…
— E você vai andar cego por aí?
— Tenho nove exemplares reserva.
— Típico.
— Enfim, essas são as informações primordiais. Não esqueça de me enviar um relatório semanal ou coisa parecida. Estarei de “férias”, mas tenho interesse em saber como as coisas estão.
— Sobre o que? Seu marido?
Levantando-se, Doied alisava as pequenas dobras da roupa com a ponta dos dedos. Ele encara-o com o cenho franzido.
— Somos apenas noivos. — corrigiu. — E não, não me importo com ele. Quero saber sobre a empresa.
É claro…
— Farei o meu melhor.
Ele não enviará relatório de merda algum. Roier sabe. Doied também.
— E não se esqueça, Roier: não estrague tudo.
— Digo o mesmo. — Encarou-o pelo canto do olho. — Esse acordo é de mão dupla, Doied.
Seu irmão apenas bufou e trotou para fora do café sem ao menos se despedir. Vendo-o sumir dentro de outro carro tão caro e fresco quanto ele, Roier colocou os óculos no próprio rosto e riu baixinho. Não era tão ruim assim.
Afinal, o que poderia dar errado?
Chapter 2
Summary:
Quando Roier imaginou o noivo de Doied, ele criou muitas imagens mentais. Ele até pediu por descrições mais detalhadas, mas seu irmão sempre foi péssimo fofoqueiro e era horrível em passar informação. O máximo que conseguiu arrancar foi “é um homem de olho azul, é tudo o que você precisa saber ”. Sem maiores referências, Roier apenas deu de ombros e imaginou o Justin Bieber ou variáveis.
Mas esse cara definitivamente não se parece com o Justin Bieber.
Chapter Text
Ele mora na porra de um condomínio de condomínios.
Depois do encontro com o irmão, Roier tratou de ir conhecer o tal chofer. Ramón é educado e extremamente polido, assim como esperado de alguém contratado por Doied. Ainda assim, ele possui uma aura estranhamente confortável. Estar em silêncio perto dele não o dá ansiedade extrema ou o deixa perturbado por medo de ter quebrado alguma regra desconhecida de etiqueta. Assim, o trajeto não foi ruim.
Doied mora na área nobre da cidade. Roier nunca realmente andou por essas bandas, então cada árvore nova que via era um evento diferente. Aqui as folhas são ainda mais verdes, os prédios mais bem pintados e as pessoas, cada vez mais escassas.
O condomínio do irmão é uma zona privada que poderia até ser considerada como um mini bairro. Ramón o disse que há uma mercearia local, uma academia por prédio, uma sala de SPA e, é claro, um piscinão para adultos, um para crianças e uma jacuzzi. Uma J-A-C-U-Z-Z-I! Roier nunca viu uma de perto, apenas nos filmes assistidos em websites piratas compartilhados em uma seção no Rave com Tina e Jaiden.
— O senhor Doied mora neste aqui.
Ramón havia apontado qual era o condomínio correto antes de deixá-lo. Contudo, todos os prédios são iguais. Todos foram pintados da mesma cor creme desbotado, com as mesmas varandas de vidro escurecido e com as mesmas portas duplas automáticas, também de vidro. Até os vasos de planta pareciam os mesmos, como se alguém houvesse feito o primeiro prédio e depois apenado dado o Ctrl C + Ctrl V para os restantes.
Isso quebrou um pouco a magia das coisas, porque anulou qualquer personalidade que o lugar pudesse ter. Ainda assim, Roier estava animado para encontrar o apartamento do irmão e se jogar na cama enorme e fofa que ele sabe que Doied deve ter.
Mas ele precisava encontrá-lo primeiro.
— Eu só lembro que é uma cobertura…
Roier contou oito prédios. Eram oito coberturas, no mínimo. Se ele subisse até cada uma e testasse as senhas, alguma hora a porta correta se abriria para si.
Genial!
Na verdade, era muito estúpido, mas deixe-o ser brevemente feliz por alguns segundos.
Ele descobriu que eram duas coberturas por prédio, o que diminui sua probabilidade de acerto para uma em dezesseis. Nessa permuta de prédios, ele quase esqueceu o cartão do elevador duas vezes, anotando mentalmente que deveria procurar por algum crachá para andar com aquele pedaço de plástico pendurado no pescoço.
No terceiro prédio, Roier já estava cansado dessa exploração toda. Lá, havia uma moça uniformizada espanando os quadros no corredor.
— Bom dia, senhor Doied.
Isso o animou. Se ela conhecia Doied, então ele deveria morar aqui. Tinha que ser uma dessas portas.
— Bom dia.
Roier respondeu por impulso, colocando a senha na porta da direita. O sensor brilhou em um verde vitorioso junto ao som da fechadura destrancando. Ele suspirou em alívio, entrando no apartamento sem ver a expressão atônita no rosto da mulher. Por ele ter entrado com a senha em vez da biometria ou por ter a cumprimentado com um “bom dia”? Bem, fica o questionamento.
Seu instinto o levou a caminhar até o interruptor. Contudo, as luzes se acenderam quando ele já estava na metade do caminho. Ele encarou o teto para encontrar um sensor de movimento piscante acima de sua cabeça, imediatamente sentindo o friozinho gostoso do ar condicionado da sala ligando automaticamente.
Puta merda.
Chamar aquele lugar de apartamento soaria até injusto.
É enorme, tão grande que caberia dez de sua quitinete e ainda sobraria espaço. Suas costas afundaram quando ele se sentou no sofá enorme e fofo da sala, e o cheiro do perfumador natural era tão bom que o dava a sensação de estar flutuando nas nuvens em um dia de primavera, e olha que Roier nem lembra como é passear na primavera e muito menos sabe como é flutuar nas nuvens.
Roier se divertia há bons 10 minutos desbravando o apartamento que seu irmão chamava de casa. Nessa, ele se assustou com muitas coisas. Ele poderia citar várias, mas resguardará esse pedaço precioso de narração para três delas.
- Ele descobriu que ricos gostavam de ter uma pequena puxadinha dentro de casa para encherem com pedras, luzes caras e plantas de mentira. Pesquisando no Google, descobriu que o nome dado é Jardim de Inverno, o que é estranho porque nem no inverno eles estão e aquela coisa brega é pequena demais para ser um jardim;
- A cozinha de Doied é tão grande que possui uma sala exclusiva para a despensa de alimentos não perecíveis. É como um closet para comidas. As estantes são separadas por tipo de alimentos e guardadas dentro de potes de vidro. Roier pensou que essa forma de organização existia apenas nos vídeos de Restock do TikTok, mas é claro que seu irmão asseado e fresco faria o mesmo dentro de casa. E se isso já não fosse esquisito o bastante, a lixeira tem um armário pronto. Tipo, para ficar escondida. Até a lixeira tem casa própria!
- O apartamento não tem uma, mas duas salas de estar. A única diferença visível entre elas é que apenas a principal — aquela que você olha logo quando abre a porta e passa pelo corredorzinho separado apenas para guardar os sapatos (quem precisa de um armário na entrada para sapatos?) — tem televisão. Uma do maior tamanho de polegadas disponível no mercado, claro. Doied deve estar querendo compensar alguma coisa.
Isso foi o pouco que descobriu ao entrar em três das inúmeras portas que viu. E ainda havia o segundo andar. Roier nem ao menos sabia que apartamentos poderiam ter mais de um andar. E na cobertura, ainda. O preço disso…
— Eu queria ter tudo isso para mim. — Pensou alto. — E não precisar mentir só para ter um gostinho.
Roier balançou a cabeça e voltou a passear pelos corredores. Ele não queria se lamentar pelo pouco que tinha comparado a Doied. Sendo honesto, ele teve muitos anos de ressentimento para pensar nisso por longas noites em claro.
A história entre Roier e Doied é complicada demais para explicar em algumas páginas. Mas você, caro leitor, pode receber um pequeno briefing — em poucas palavras, um guia — para atiçar a curiosidade.
Não, eles não vieram de uma família pobre. Na verdade, são de classe média. Eles nasceram em uma cidade ao norte do México com um pai, uma mãe, uma prima e um avô como qualquer outro. Em algum momento, eles deixaram o país junto com o avô, e seus pais e prima — Melissa, a qual também se mudou depois de um tempo — continuaram em casa.
Por serem gêmeos, algumas coisas eram difíceis, para dizer o mínimo. Havia uma comparação extrema entre o que “um era capaz de fazer” e o que o outro se mostrava “inútil” ao tentar. Por exemplo, Doied era o melhor da turma, o representante, o exemplo; enquanto Roier era apenas mediano em humanas e bom em educação física, mas problemático demais para ter seus resultados válidos para alguma coisa.
Dentro de casa, Roier sempre foi mais amoroso e prestativo. Ele ajudava com as tarefas domésticas, aprendeu a cozinhar e ajudar o avô quando este começou a mostrar os sinais da idade. Doied, no entanto, justificou sua ausência com a ingressão à faculdade de Administração porque estava “procurando formas de tirar essa família da miséria”.
Essas foram as palavras dele. E de certa forma, ele conseguiu o que queria.
E veja, Roier também queria ter cursado uma faculdade cedo e se formado em tempo hábil para conseguir um bom emprego, salário e casa própria. Ele não conseguiu. Com a saúde de seu avô piorando, alguém tinha que ficar para cuidar do velho. Doied nunca o faria.
Roier foi o único que ficou.
Quando o acordo milionário que Doied assinou em nome da Federation Ore — empresa bancária que hoje cuida de 80% das finanças das pessoas do lugar onde moram — deu certo, algumas coisas mudaram.
“Eu não quero colocar o pa- vô na porra de um asilo, Doied.” Roier ainda se lembra de suas palavras. Isso foi há pouco tempo, cerca de três anos. Ele estava no terceiro período da faculdade de Teatro, e estaria no quarto se não a tivesse trancado para cuidar do avô. “Você sabe como são os boatos desse tipo de lugar.”
“Garanto que nosso abuelo terá o melhor que o dinheiro pode comprar. O melhor que eu posso pagar, e eu posso pagar por muito .” Doied foi irredutível. “Essa é a terceira conta de aluguel atrasada sua que eu intercepto. A quarta será o despejo, Roier. Você precisa se mudar para um lugar menor, e para isso terá que deixar nosso abuelo para trás.”
Ele fez o que não queria e ouviu Doied.
Seu avô ainda está no asilo. Roier o visita sempre que pode. Ele parece bem, embora fraco, rabugento e muito rancoroso. Às vezes, ele até esquece o próprio nome, mas ao menos tem vigilância constante, comida boa e uma cama confortável, o que Roier nunca poderia oferecer.
Foi o melhor.
É, realmente foi. Roier ainda não consegue pagar o aluguel em dia, mas a quitinete mixuruca de um quarto é bem mais barata que o pequeno apartamento que antes dividia com o avô.
E com o acordo com Doied, vou guardar uma grana e mudar de vida. Fez uma pequena careta. Vale mais a pena do que esperar por um emprego de verdade. Ele suspira.
Bem, chega de se lamentar.
Ele precisava de um banho.
— Onde é o banheiro nessa merda?
O primeiro que encontrou até tinha uma privada, mas não um chuveiro. Por que alguém teria um banheiro só com uma pia e o sanitário? Pelo menos tinha um espelho e, puta merda, seu cabelo está um horror.
— Espero que o condicionador dele seja bom.
Existem poucas coisas no mundo capitalista as quais Roier gastaria todo o seu dinheiro e uma dessas definitivamente é com cosméticos. Cuidados com a pele e beleza em primeiro lugar, é claro. Ele é ator! Sua aparência também é parte da interpretação.
Não que Doied seja o maior exemplo de pessoa bonita e bem arrumada do mundo, mas…
— Isso me lembra… — Fez bico. — Onde é o quarto dele?
Roier encontrou um quarto ao fim do corredor. Era organizado demais para ser usado, e as cores neutras e mórbidas faziam-no mais parecer com um quarto de visitas do que outra coisa. Nem varanda tinha! Só uma bolsa jogada no rumo da cama. Não deveria ser esse.
No andar de cima, no entanto, ele teve mais sucesso.
O andar superior tinha mais uma sala de estar, aquela sem televisão citada parágrafos antes. Há mais quatro portas. Uma delas era novamente um dos banheiros só com pia e privada; outra, era uma espécie de sala de jogos com até poltronas de cinema; outra era um escritório com biblioteca particular, típico de Doied.
E ao fim, um quarto tão grande quanto sua quitinete e isso sem contar com o espaço da varanda.
Uma das paredes era pintada em verde musgo, uma cor que Roier via facilmente sendo escolhida pelo irmão. De pertences interessantes, ele viu um laptop , meia dúzia de livros grossos e uma caneta tinteiro espalhados pela cama. Há uma caneca de cerâmica em formato de pata de gato sobre a cômoda, também. Estava meio suja de café.
— Incrivelmente confortável para alguém como Doied. — Deu de ombros. — Gostei.
Mas o banheiro foi a melhor parte.
— Puta. Merda.
Primeiro de tudo, tinha uma banheira. Roier sempre quis ter uma banheira. Era enorme, funda e cabia tanta água que ele facilmente poderia vê-la como uma piscina.
Segundo, tinha um tapetinho fofinho e felpudo para pisar ao sair do banho. Deveria ser péssimo de limpar, mas a sensação de andar no fofo compensa o estresse.
Terceiro, os produtos. Muitos produtos. Cosméticos de todas as marcas, tipos e funcionalidades. Ei, isso aqui é hidratante para os pés?
— Hidratante para os pés, hidratante corporal, máscara facial com vitamina C, máscara de carvão ativado… isso é de enxofre? — Roier franziu o cenho e começou a ler os rótulos, um por um. — “Livre de parabenos”. O que é um parabeno?
Será um tipo de parabéns? Mas por que cosméticos precisariam de parabéns? Ah, não importa!
— Uh, isso é glicerina? Sempre quis usar essa coisa no cabelo. — Ele se apressou e encheu os braços com produtos. — Sais de banho… Gostei desse de flor.
Ele nem ao menos sabia que flor era aquela, mas o saquinho cheirava muito bem. E ao encher a banheira, a água inchou em espuma roxa e muito cheirosa.
— Como entra nisso?
Roier experimentou dar um pisão com o pé. Deu certo em partes, porque ele logo escorregou e caiu de mau jeito na borda da banheira. Doeu como um inferno, a dor toda recaindo bem ao meio das pernas.
— CACETE!
Na segunda vez, ele conseguiu sentar na banheira e relaxou. Roier descobriu que jatos de água vinham de todas as direções para massagear os músculos em um misto de pressão e água quente. Foi a coisa mais desestressante que experimentou em anos! Era tão bom que ele quase dormiu ali.
— Esqueci de procurar uma roupa…
Infelizmente, ele teria de se contentar com o estilo de moda horroroso do irmão. Ao menos ele teve o bom senso de pedir para lhe comprar cuecas novas. Uma calça ou camisa era aceitável, mas compartilhar cuecas era demais até para gêmeos.
Estranho porque não lembro de ter visto a tal bolsa de cuecas, ponderou enquanto esvaziava a banheira. Sair dela se mostrou mais fácil do que entrar. Ainda disse que ia ser visível para que eu não fosse idiota de não achar.
Quem é o idiota agora?
Ele encontrou um cesto cheio de roupões debaixo da pia. Todos pareciam limpos, mas alguns até mantinham as etiquetas de compra. São macios e pretos, tão grandes que quase batiam nos pés. Roier quase se sentia nu vestindo um de tão suaves que eram.
— Agora, por onde eu começo…
Roier estava ocupado lendo o rótulo do hidratante para os pés quando o barulho da porta do quarto abrindo chamou sua atenção. Seu rosto estava cheio de uma máscara de argila verde e os cabelos bem escondidos debaixo de uma touca. Por um momento, ele se assustou com a perspectiva de estar sendo assaltado e de precisar fugir, porque não tinha lugar nenhum para correr além de pular para dentro da banheira.
Aí ele se lembrou.
Doied e o noivo dividem o apartamento.
— Olá…? — uma voz veio. Estava abafada pela porta. Roier se sentiu hiperventilando. — Você está no banheiro?
E foi nesse momento que o pesadelo de Roier começou.
Ele refez seu treino de respiração três vezes e até contou carneirinhos mentalmente, parando quando chegou no trigésimo sexto. Ainda assim, nada o preparou para o que esperava do outro lado daquela porta.
Quando Roier imaginou o noivo de Doied, ele criou muitas imagens mentais. Ele até pediu por descrições mais detalhadas, mas seu irmão sempre foi péssimo fofoqueiro e era horrível em passar informação. O máximo que conseguiu arrancar foi “é um homem de olho azul, é tudo o que você precisa saber”. Sem maiores referências, Roier apenas deu de ombros e imaginou o Justin Bieber ou variáveis.
Mas esse cara definitivamente não se parece com o Justin Bieber.
Cellbit franziu o cenho e encarou-o dos pés à cabeça, suas orbes turquesas — como alguém pode ter olhos tão azuis? — arregalando mais a cada segundo.
— Ah… — Ele parece sem reação. —, esse é o meu roupão?
Meu Deus.
Roier piscou e abriu a boca. Sua garganta estava seca. Ele não conseguia parar de olhar. De escutar. De qualquer coisa. Então, essa é a voz do herdeiro da Taaffaiete?
Me sinto abençoado.
Cellbit realmente tem olhos azuis. Olhos de um azul tão intenso quanto o tom do céu sem estrelas. Seus cabelos loiros — mas bem escuros, quase castanhos — estão presos em um coque alto e bem preso com grampos. Ele tem piercings, Roier notou. Um transversal na orelha e um pequeno acima da sobrancelha direita. Cellbit também parece gostar de acessórios, a julgar pela mão cheia de anéis de prata e pelo brinco branco pendido na orelha esquerda.
E ele é muito bonito.
Não o tipo de beleza padrão que você vê nas mídias. É o tipo de pessoa bonita que simplesmente aspira beleza, entende? Talvez seja a sobrancelha arqueada ou o olhar afiado, mas Roier está profundamente intimidado agora para formar frases coerentes e que não o envergonhe mais do que ele já está.
— Você está bem, Doied ?
Isso foi o suficiente para acordá-lo.
Roier pigarreou e reprimiu um suspiro. Ele não estava aqui para passear, merda, por mais que quisesse tanto. Ele fez um acordo com Doied. Iria viver a vida dele em troca de uma vida de luxo. E depois ir embora. Apenas isso.
— Estou bem.
Roier havia feito suas anotações.
Uma coisa que aprendeu no Teatro é que todas as pessoas e personagens possuem formas específicas de falar, gesticular e até mesmo de andar. Doied, é claro, tinha muitos maneirismos específicos.
Primeiro, sua voz é mais grossa. Isso acontece porque Doied tem a língua um pouco presa. Uma das poucas coisas que o tornavam “pior” que Roier era sua dialética ruim, algo que Roier sempre foi bom. Ele até tentou alguns fonoaudiólogos e teve uma boa melhora, mas não o suficiente para superar alguns deslizes.
Segundo, Doied é quase inexpressivo. Quase. Ele gosta de esconder as mãos nos bolsos e franzir o cenho. Quando pensativo, ele murmura seus planos e morde compulsivamente os lábios até sangrarem.
Terceiro, Doied se comunica da forma mais formal, polida e lenta o possível para evitar engolir as palavras. É como se estivesse na velocidade 0.5x o tempo todo.
— Perfeitamente bem — completou.
Aquilo não acalmou Cellbit, mas pareceu ser o suficiente por enquanto.
— Se você diz… — Deu-lhe mais uma bela olhada. Puta que pariu, pare de me olhar! Xô, xô! — Ah, como eu digo isso sem ser insensível?
— É preferível que permaneça de boca fechada.
E o principal: Doied adora ser sarcástico e ter a última palavra.
— De fato. — O sorrisinho esperto de Cellbit não deveria tê-lo afetado, mas afetou. — Mas você me conhece.
— Então, fale.
— Você entrou para a academia?
Roier franziu o cenho, a indignação soando mais real do que deveria.
— Por que… — Eu tenho mais músculos, esqueci. Roier crispou os lábios. — Sempre estive exercitando. Faz bem para os negócios que eu esteja saudável, não acha? — Arqueou a sobrancelha. — Você apenas nunca esteve prestando atenção o suficiente em mim para notar. Típico de você, Cellbit.
Eu acho que eu não deveria ser tão venenoso com meu noivo milionário, não é? Roier se arrependeu instantaneamente. Ele conhecia Doied, mas não o Doied noivo. Ah, merda. Fodi com tudo.
Ao contrário do que esperava, Cellbit apenas balançou a cabeça e riu entredentes.
— Não posso dizer que está errado. — Estalou a língua. — Parece que vou ter que manter meus olhos em você, então. A academia é ok, mas ver você usando os meus produtos? — Riu. — Espero que não esteja doente.
— Estou bem, idiota.
Eu juro que vou dar um grito.
— Claro, claro. — Parece que ele o deixaria em paz agora. — Da próxima vez, apenas peça, ok? Posso comprar uns extras para você.
Doied diria que não.
— Eu poderia aceitar — Mas Roier queria muito ter mais daquela argila poderosa.
Chapter 3
Summary:
“A ideia é que eu invista na empresa dele em troca de manter a imagem da Ore sempre no topo.” Lembrou-se das palavras de Doied. Isso também deveria incluir reuniões e encontros regulares para manter as aparências em dia. Claro, Roier quase se esqueceu de que esse era um casamento arranjado, tal qual os antigos maias, incas e astecas.
Notes:
sou uma máquina de atualizações
Chapter Text
Depois do vexame que foi o primeiro encontro com Cellbit, Roier limpou a cara e se trancou no quarto sem graça de Doied pelo resto do dia. No fim, as cuecas realmente estavam na bolsa perto da cama. Fediam a roupa nova e eram extremamente confortáveis. Surpreendentemente, eram do seu tamanho. Ele não sabe se isso foi um chute certeiro dos funcionários de Doied ou se o irmão ainda se lembrava do seu tamanho de roupas.
A segunda opção é a que ele mais temia, principalmente porque ele mesmo não se lembra do tamanho das cuecas de Doied. E nem quer lembrar.
Ele passou o resto da tarde se dedicando a explorar o quarto do irmão. Você só sabe que o lugar é habitável quando abre o guarda-roupas e se depara com uma imensidão de trajes formais. Doied tem uma gaveta só para gravatas e outra menor apenas para meias, e metade delas são brancas e de cano curto. E da mesma marca.
— Por que ele é assim?
Ao menos, a cama é enorme e fofinha como o esperado. O lençol é de seda, praticamente acariciando seu rosto sempre que Roier se movimenta sobre o colchão. É um paraíso, o ponto mais alto de todo seu primeiro dia como Doied.
O único problema de seu isolamento é o tédio que vem por tabela. Ele passeia pelas redes sociais, mas se sente isolado por não poder conversar com Jaiden ou Tina. A segunda, em principal, estaria adorando a coisa toda. Em situações normais, eles estariam falando mal do gosto de Doied para roupas e sobre como a máscara de Cellbit fez maravilhas para sua pele.
Mas é só lembrar de Cellbit que a vergonha volta e ele reprime a vontade de gritar contra o travesseiro cheio de penas de ganso.
É em um desses surtos que ele se assusta com uma batida na porta. Agora, Roier preferia que fosse um ladrão do que Cellbit, quem ele sabe que está do outro lado agora perguntando preocupado de seu paradeiro. Ele poderia ser menos fofo, talvez ajudasse a acalmar seus ânimos. A situação toda o assustou tanto que ele tropeçou nos lençóis e caiu para fora da cama.
— Doied, você ainda está vivo?
Ai, merda.
Roier mordeu o lábio inferior para se impedir de xingar ruidosamente. As batidas na porta pararam assim que seu corpo veio em contato com o chão. Honestamente, foram batidas muito respeitosas. Se fosse Jaiden ou Tina, as duas dramáticas, é provável que sua porta já estivesse aos pedaços.
Verdade seja dita: Roier não queria ver Cellbit. Ele sabia que precisaria, mas não tinha de ser agora, não é? O cara bem que poderia esperar pela hora do jantar, ou do café do próximo dia ou, melhor ainda, na próxima semana!
Mas as coisas nunca funcionam do jeito que Roier de Luque quer. É por isso que ele se meteu nessa furada, em primeiro lugar.
Muito bem, Roier. Ele tapeou suas bochechas. Primeiro, se levante.
Ele espanou os joelhos e respirou fundo. Diferente do quarto de Cellbit, o de Doied não tinha tapetes felpudos. Não tinha nenhuma decoração marcante ou minimamente saudosista, na verdade. Roier até se surpreendeu ao encontrar uma foto 3x4 dele escondida no meio dos livros de Economia empoleirados na estante.
Roier quase não se reconheceu na foto, tão antiga que parecia ser da época do ensino médio. A única certeza de que era ele em vez de Doied foi a ausência dos óculos. E seus cabelos estavam muito desgrenhados. E a gola da camisa era vermelha, cor que o irmão odeia.
Eu odeio essa coisa, ele bufou ao ajustar a armação torta no nariz. Mesmo seu nariz sendo um pouco mais robusto, o óculos continuava escorrendo sem parar até cair do rosto. Doied bem que podia usar lentes também.
Antes de abrir a porta, Roier penteou os cabelos com os dedos. Doied nunca se mostraria bagunçado ou emocionalmente afetado na frente de outra pessoa, muito menos do noivo.
Ele piscou, parecendo desinteressado.
— Precisa de algo?
O olhar de Cellbit veio silencioso observando todo o quarto. É claro que ele deve ter imaginado toda a cena na cabeça. Roier torce para que ele erroneamente pense que a vítima da queda tenha sido um dos calhamaços velhos de Doied em vez de, bem, o próprio “Doied”.
— Você…
— Precisa de algo? — repetiu.
Cellbit suspirou, dando-se como vencido.
— Queria te perguntar algo. Eu posso?
— Já está perguntando.
Cellbit revirou os olhos e murmurou o que se parecia muito com “ pelo visto a pancada não mudou o mau humor ”. Como Roier sabe? Oras, ele é ator. Ler lábios é uma de suas especialidades.
Belos lábios, inclusive.
FOCO.
— Ok, você está livre essa semana? Na quarta, talvez? — Coçou a nuca. — Pelo turno da tarde inteiro e talvez um pouquinho da noite.
Teoricamente…
— Para o que?
— Bagi conseguiu renovar nosso contrato com a fornecedora de tecidos de seda. Eles vão sair aos montes na coleção da próxima temporada, então é uma aposta muito importante para mim e para empresa. — Gesticulou furiosamente, respirando fundo sempre que pensa que vai atropelar alguma letra. — Sei que você odeia ir a essas reuniões e eu odeio mais ainda ter que encher a sua agenda com isso, mas é parte do nosso acordo.
“A ideia é que eu invista na empresa dele em troca de manter a imagem da Ore sempre no topo.” Lembrou-se das palavras de Doied. Isso também deveria incluir reuniões e encontros regulares para manter as aparências em dia. Claro, Roier quase se esqueceu de que esse era um casamento arranjado, tal qual os antigos maias, incas e astecas.
O jeito que ele fala é totalmente defensivo, quase implorando para que eu vá, Roier não sabe bem como deveria se sentir sobre isso. Doied deve reclamar horrores. Típico dele, insuportável.
— Falarei com Mariana.
— E também… — Ah, não. Lá vem aí as letrinhas miúdas. — A última vez que “saímos” juntos foi há um mês.
— Sim, e…?
— E faz mal para os negócios. Você mais do que eu sabe bem disso.
“Casamentos fazem boa vista para a mídia.”
Aparências em dia.
— É para isso que me quer pela noite?
— Exatamente! A reunião não deve demorar muito, veja, no máximo até umas cinco horinhas da tarde. — Estalou a língua. — Depois disso, poderíamos ir jantar. No seu restaurante favorito, talvez?
Roier não sabia qual era o restaurante favorito de Doied. Na verdade, ele tinha medo de descobrir.
— Qual foi a última vez que fomos no seu favorito?
Cellbit arqueou as sobrancelhas.
— Semestre passado?
— Iremos no seu, então.
Um sorriso pequeno surgiu no rosto de Cellbit.
Conhecendo Doied, é provável que ele tenha pedido para ir sempre ao seu restaurante favorito sem perguntar pela opinião de Cellbit. Roier sabe o quanto seu irmão pode ser controlador nos mínimos detalhes, principalmente com sua rotina alimentar firme e restrita.
Bem, ele não precisa ser igual a Doied em tudo.
— Achei que você odiasse massa.
Como pode Doied errar em tudo? Quarto sem graça, banheiro sem personalidade, roupas ridículas e ainda não gostar de macarrão? Impossível manter o personagem para sempre, meu caro irmão. Você que lute depois.
— Você conseguiu um bom contrato. — Sorriu de canto. — Em honra dos negócios, você merece um pouco da minha benevolência.
Benevolência. Palavra difícil, não é? Roier passou um bom tempo lendo um dicionário enorme que encontrou no quarto de Doied, fruto do tédio. Infelizmente, não é o mesmo da escola que tinha figuras e desenhos fofos. A letra era minúscula ao ponto de realmente obrigá-lo a usar os óculos para conseguir entender alguma coisa.
Tudo pelo personagem.
— Sua benevolência nos permite jantar pizza hoje?
EU AMO PIZZA.
Mas isso não é o que Doied falaria, então Roier conteve sua felicidade e deu uma boa revirada de olhos, fingindo encarar as dobras do teto de gesso.
— Eu posso ser convencido.
— Peço aquela vegetariana com molho extra.
Isso definitivamente não me convenceu nadinha.
Roier ajustou os óculos. Eles estavam caindo. De novo. Será possível que o rosto de Doied seja mais largo que o seu? Não, nele também cai. Esses óculos que devem ser horríveis.
— Bebida?
— Guaraná. Bem geladinho.
— Me convenceu.
É bom que essa pizza vegetariana não tenha brócolis ou você terá que duplicar meus ganhos nesse acordo, Doied.
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Tinha brócolis.
A grande questão é que a pizza não era tão ruim. Era até gostosa depois da quinta mordida, mas não superaria o quanto aquela pizza portuguesa que Cellbit se deliciava parecia absurda. Vendo sua pizza esverdeada, o pouco sabor gostoso até sumia com o desânimo. Para compensar a tristeza, Roier se encheu de guaraná, o que rendeu-lhe três visitas orgânicas ao banheiro em menos de trinta minutos.
Quando estava com a bexiga cheia o bastante, ele respirou fundo e se preparou para o que definitivamente não queria ter que lidar, mas sabia que precisava.
O telefone estava travado no contato nomeado como o de Mariana. Todos os contatos de Doied eram salvos com o primeiro nome da pessoa e um ponto final característico. Não há apelidos ou emojis. Até mesmo Cellbit é apenas “Cellbit.”, normal e sem graça. Sua mão coçou para mudar os nomes de alguns, mas se conteve.
Eu podia só mandar uma mensagem.
Sim, poderia. Mas conhecendo Doied, ele provavelmente ligaria para agilizar as coisas. Seu irmão é extremamente ansioso quando se trata de lidar com reuniões e eventos e agenda no geral. Nesse ponto, Roier até pode compartilhar da ansiedade, apesar de ainda ser péssimo com datas por facilmente esquecer das coisas se não for lembrado constantemente delas.
Ao final do quarto suspiro, ele clicou no botão da ligação e esperou.
— Sabe, chefe… — Uma voz risonha o cumprimentou do outro lado da linha. — Você poderia ter usado aquele recurso tecnológico novo, uma reinvenção para a humanidade. O nome dele é serviço de mensagens, não sei se você conhece. É só clicar na imagemzinha da carta e digitar e, boom, eu recebo na hora!
Roier imediatamente adorou o cara. Ele pensa como eu!
— Olá, Mariana.
— E meu boa noite?
— Noite.
— Que boa noite seco.
— Beba água.
Uma risada veio abafada junto ao bufo divertido de Mariana. O tom era um pouco mais baixo, a quem Roier atribuiu que deveria ser do tal Slime.
— Qual o problema? Você só liga quando é coisa urgente.
— Cellbit pediu uma reunião com a Taaffaiete.
— Data e horário?
A diversão sumiu da voz de Mariana quase instantaneamente, como se ele tivesse girando a manivela que ativa o Modo Trabalho. Bizarro — e impressionante.
— Quarta a partir das duas e meia. Mas reserve o resto da tarde também. Iremos jantar depois.
— Deixa eu adivinhar, tofu?
Ainda bem que eles estavam apenas em chamada de voz, porque assim Mariana não poderia ver a careta de nojo que surgiu em seu rosto.
— Massa.
— Agora sim eu estou surpreso.
— É bom variar.
— Mas não é comum vindo de você. — Ele comenta despreocupado. Mentalmente, Roier se xinga. Os detalhes, idiota! — Anotado, chefia. De manhã mando sua agenda atualizada.
Roier queria agradecer. Ele se conteve. Os detalhes, ele precisava focar nos detalhes.
— Ótimo.
— Mais alguma coisa?
— Não.
— Boa noite, Doiezito!
— Noite.
A ligação caiu antes que ele pudesse desligar. Foi mais fácil do que pensava. E mais estranho do que imaginava também. Há uma intimidade notável entre Doied e Mariana e, ao mesmo tempo, uma distância natural entre funcionário e chefe. Roier não entende como aquela dinâmica funciona, e apenas dói sua cabeça ao tentar entender.
Ele decide que o melhor, depois dos altos e baixos do dia, é dormir.
Chapter 4
Summary:
Dentro do elevador, Roier respirou fundo e balançou os ombros. Ok, tudo vai ficar bem. Ele pisou na empresa e não surtou assim que viu o primeiro engravatado. Agora ele só precisava se preparar mentalmente para o pior:
Falar com os amigos de Doied. Nem por ligação ou por mensagens. Pessoalmente.
Chapter Text
Mariana.

BOM DIAAAAA O SOL JÁ NASCEU LÁ NA FAZENDINHAAAAA 👋👋 Segue agenda de hoje, chefia!
— TERÇA-FEIRA:
01. Vinda a FEDERATION ORE. Luzu voltou de viagem e trouxe novidades.
02. Leitura dos novos contratos para o mês de Março. Alguns precisam ser revisados. Eu marquei eles com fitinhas verdes.
03. Brunch com investidores.
04. Um de nossos funcionários pediu a conta. Você precisa assinar a carta de demissão. Pedi para que ele viesse ao escritório conversar com você às 18h.
Depois disso, pode ir pra casa relaxar!🚴
Quando Doied disse que Mariana o enviaria sua agenda logo cedo, ele não imaginava que fosse tão cedo assim. Nem eram oito horas! Normalmente, Roier acordava apenas daqui uma hora e meia, ou mais a depender da boa — ou mais — vontade de seu despertador. São quatro alarmes, o inicial, o para lembrar do inicial, o para lembrar do lembrete e, claro, o lembrete final.
E mesmo assim, às vezes não é o suficiente.
Ele se esforçou para absorver o máximo possível da conversa matinal com Mariana. Pelo o que entendeu, Doied deveria encontrar um par de velhos investidores detentores de grande reputação no mercado de ações. Seria logo uma das primeiras coisas que eu teria que fazer. Roier já sentiu o sono e o tédio antecipados.
“Eles são INSUPORTÁVEIS.” Mariana teclava furiosamente em sua conversa. Roier gemeu de frustração. Onde ele foi amarrar seu burro? “Mas tem muito dinheiro, então é nosso tipinho favorito. Luzu cuidou da maior parte dos trâmites, então vai ser só conversa fiada e assinatura de papelada.”
Menos mal.
Roier realmente não gostou de usufruir da boa vontade das pessoas, mas ele agradeceu muito se o tal Luzu conduziu toda a reunião enquanto ele ficava com a parte de representar o alto escalonamento da empresa com um sorriso e um aceno. E pensando melhor, apenas o aceno. Doied não deve sorrir em reuniões, mesmo se isso significar ganhar um milhão de dólares.
O mais o incomodava era o pedido de demissão. Ele esperava mais das habilidades fofoqueiras de Mariana, mas o próprio revelou não saber de muita coisa além do nome e setor do cara. Carré, da Qualidade. Roier não sabe dizer o que as pessoas do Setor da Qualidade fazem e muito menos se perder um deles tiveram crise na empresa ou coisa assim, porém o tom despreocupado de Mariana parecia dizer que se sendo de um setor importante ou não, o cara não deveria ser de igual relevância.
“Já estamos cuidando de substituí-lo, não se preocupe. As entrevistas chegam hoje depois do almoço.” Ele falou aquilo para confortá-lo, provavelmente. Talvez funcionasse para Doied, mas não para Roier, que não sabia o que responder. “Eu cuido de tudo! Tenha um bom dia, chefe!”
— Bizarro… — Encarou a tela desativada com o cenho franzido.
Bizarro como pessoas são facilmente substituíveis. Ele já sabia disso por estar do outro lado da moeda, óbvio, mas acreditava que poderia ser um pouco diferente do lado do empregador. Não esperava notar essa frieza toda, talvez. Como se aquilo fosse normal . E claro, pessoas se demitem todos os dias.
Mas sempre tem motivo, não tem?
Ele balançou a cabeça e suspirou na tentativa de afastar esses pensamentos. Dando uma breve olhada no celular, Roier constatou que tinha uma margem de vinte minutos para se arrumar e sair do apartamento se quisesse chegar na Ore a tempo da primeira reunião.
Normalmente, Roier adorava se arrumar, seja com regatas, calças, jaquetas, tênis e acessórios de todos os tipos. Sua parte favorita do dia de trabalho era chegar no teatro e desfilar na frente de Tina, aguardando ansiosamente por suas críticas como quem se avalia para uma estilista renomada — quem ela seria um dia, ele tem certeza.
Só que tudo isso perde o brilho quando se trata de depender do armário de Doied.
— Como alguém pode ter tantos Rolex ?
Caso você, leitor, não saiba, Rolex é uma marca de relógios. Uma marca muito, muito cara. Não há nada de especial nos relógios, realmente não. É provável que Roier já tenha visto uns dez modelos iguais em qualquer lojinha do centro. No mais, é apenas uma marca de luxo oferecendo um preço absurdo em prol do aumento do valor da marca e toda essa estratégia de marketing .
Acontece que um Rolex custaria, no mínimo, vinte mil reais. Isso não é eufemismo, é uma realidade. Veja no Google! O mais impressionante disso é que Doied não tem um, mas vários.
Uma gaveta cheia deles, mais precisamente.
— Essa é a coisa mais hétero que meu querido irmão poderia ter. — Roier riu sozinho com seus pensamentos. — Será que ele pensa que vai parecer menos gay com isso?
Que relógio horroroso, aliás.
Ele passou uns bons minutos ajustando o horário. Roier descobriu que cada um daqueles relógios havia sido configurado com um fuso horário diferente. Conhecendo-o, é provável que Doied tenha um relógio específico para ser usado em cada viagem de negócios que for. Apenas isso explica o motivo de ter quatro relógios programados com o fuso da Malásia — não, Roier não decorou isso, ele pesquisou no Google como pessoas normais fariam.
Uma pena para o relógio das viagens para a Inglaterra. Ele foi reconfigurado e devidamente abrasileirado.
Oito e meia.
OITO E MEIA? PUTA QUE PARIU.
Roier não estava atrasado.
Ele estava muito atrasado.
Cellbit não estava mais em casa. O único indício de sua presença era a xícara lavada no escorredor. Roier não sabe dizer quando ele vai trabalhar, mas sabe que é muito cedo. Ele não sabe como Cellbit e o próprio Doied conseguem viver nessa rotina. É sempre um esforço enorme levantar-se da cama e mais ainda acordar na hora certa.
Roier não é uma pessoa matinal.
— Cadê a porra do cartão do elevador?
Essa coisa é ridícula e muito estúpida. Os ricos realmente pensam que usar um cartão de plástico é uma boa alternativa de segurança? Alguém poderia facilmente bater sua carteira e tirar essa droga dele. Além de branco e com cheiro velho — sim, Roier cheirou-o —, é fino e meio molenga. Horrível.
Ao menos o elevador é bom, grande e confortável. E tem um espelhão enorme para Roier arrumar o cabelo.
Ele descobriu que ricos gostam de espelhos então, nesse ponto, Roier também gosta dos ricos — mas só nisso.
— Bom dia, Ramón.
— Atrasado, senhor Roier.
Não precisava falar na cara.
— Tenho alguns probleminhas para acordar cedo.
Ramón deu uma risadinha. Ele pôs o rádio nas notícias do dia e ligou o carro. Roier não costumava prestar atenção ao jornal, sendo mais interessado em escutar as músicas nos intervalos, mas focou quando ouviu o nome da Taaffaiete ser dito pelo radialista.
“As ações da Taaffaiete decaíram 2% na última semana. Confira o que nossos economistas têm a dizer e possíveis explicações para o caso!”
Decaíram? 2%? Parece pouco, mas o que isso significa? Roier passou os dedos no cabelo em um leve nervosismo. Doied saberia a resposta.
— Meu irmão é mais matinal — completou em sussurros.
— Não se sinta mal, senhor Roier. O senhor se irá se acostumar. — Don Ramón fala pesado e baixo, resmungando. Há um sotaque mexicano arrastado bem forte no final das vogais. É familiar, Roier gosta. — Eu o buscarei em frente à empresa às seis e meia. Gostaria de almoçar fora hoje?
— Onde meu irmão almoçaria?
— Senhor Doied gosta de comer bem, mas odeia sair. Ele geralmente pede para que eu compre algo em seu restaurante favorito e mande entregar no escritório.
— E qual o restaurante favorito dele?
Don Ramón soltou uma risadinha abafada.
— Um especializado em tofu.
Seriamente?
— Eu nunca comi tofu.
— Comerá um dia se quiser continuar com um disfarce convincente, senhor.
Honesto, direto e com uma pitada saudável de sarcasmo. Roier decidiu que gosta de Ramón.
— Você pode me mandar esse tofu aí então.
— Chegará às doze em ponto, senhor.
Uma coisa que ele aprendeu sendo Doied é que horários são muito apreciados nesse mundo dos negócios. Ele chegou na empresa às nove e cinco. Foram apenas cinco minutos de atraso, mas foi o suficiente para que fosse encarado furiosamente desde a entrada até às portas do elevador.
Nunca viram um atrasado antes, porra?
Bem, talvez não um Doied atrasado. É, ele vai ter que colocar mais um alarme da próxima vez. Um alarme para lembrá-lo de acordar ao som do último. E mais um, caso o sexto não seja o bastante.
Dentro do elevador, Roier respirou fundo e balançou os ombros. Ok, tudo vai ficar bem. Ele pisou na empresa e não surtou assim que viu o primeiro engravatado. Agora ele só precisava se preparar mentalmente para o pior:
Falar com os amigos de Doied. Nem por ligação ou por mensagens. Pessoalmente.
O único que Roier conhece é Mariana e apenas pelas breves conversas de ontem. O resto é conhecido apenas pelo nome e por citação do irmão. É preocupante não saber como deveria se portar ou falar na frente deles. Ele apenas supõe que deve evitar abrir a boca e conseguirá sobreviver nos próximos dias.
Mariana foi o primeiro que ele encontrou.
— FINALMENTE!
Engraçado pensar que um dos amigos de Doied fala berrando. Faz até eu me sentir em casa.
— Bom dia.
— Ei, você finalmente lembrou que tem um guarda-roupa? Parece até que penteou o cabelo hoje. Deve ser por isso que se atrasou tanto. — Riu entredentes. — Agora vamos logo que você está atrasado. Comeu no caminho, não é?
— É claro.
Que não.
— Perfeito!
Me lasquei.
Mariana é tão alto que precisa se curvar ao passar pelas portas. Além disso, é magro e esguio, trajado com um colete vermelho e uma caneta escondida atrás da orelha. Ele gesticula, murmura e xinga muito. E solta muitas piadas. Roier precisa morder as bochechas para não rir. Não que ele queira, mas ele tem certeza de que Doied não riria da piada do pônei.
“Pô, nem eu ”? Essa aí. Estúpido, sim, mas sempre o pega de surpresa.
— É uma pena que Sli não venha hoje, ele adoraria te ver arrumado pela primeira vez.
— E ter que ver vocês flertando pelos cantos? — Estalou a língua. — Não, obrigado.
— Não somos tão grudados assim, ok? — Mariana revirou os olhos. — Mas sabia que fazemos dois anos semana que vem? Eu pensei em fazer alguma festinha. Você preferiria uma cesta de doces ou ir a um churras…
— Não como carne, idiota.
Doied não come. Corrigiu internamente. Mas eu amassaria uma costelinha agora mesmo. Daquelas que desmancha na boca.
— Perdão. — Mariana pareceu legitimamente arrependido. Roier até se sentiu meio mal, mesmo duvidando que Doied sentiria o mesmo. — Enfim, restaurante ou comida em casa?
— Você cozinha?
— Comida pedida para comer em casa — corrigiu.
— Parece ótimo para mim.
— Gosto de comer fora, mas Sli é mais caseiro. — Deu de ombros. — Acho que vou nessa também. Gracias, amico.
Slime poderia não estar na empresa, mas isso ainda não o faria escapar da reunião com o tal Luzu, no entanto.
— Tenho umas coisinhas para agendar, então vou deixar você e Luzu ter seu papo nerd em paz. — Piscou. — E não esqueça de assinar seus papéis!
Esse trabalho parece ser uma bela merda.
O trabalho é, sim, ruim.
Mas Luzu é legal. Tipo, realmente legal.
Ao contrário de Mariana, ele não fala muito. Ele é objetivo e sempre encaminha a conversa ao pé da letra. Felizmente, ele é desligado o suficiente ao ponto de por conta própria explicar todos os conceitos básicos da Economia quando Roier-Doied pareceu perdido demais para entender como duzentos reais virou mil.
— Tenho esperanças de que fecharemos esse contrato com os suíços. Não que eu queira nos envolver com paraísos fiscais, é claro. — Luzu arregalou os olhos. Roier não sabe o que é um paraíso fiscal, mas parece ser ruim pela reação. Então, ele apenas anuiu silenciosamente. — Dei a proposta de uma sociedade conjunta de 15%.
— Parece ótimo, Luzu.
Entendi porra nenhuma do que você falou.
— Você tem reunião hoje, certo?
— Em uma hora, sim.
— Há tempo para uma partida de xadrez?
Roier levantou o olhar em interesse.
— Posso encaixar na minha agenda.
Um fato sobre Roier é que ele não só gosta de xadrez como é realmente bom jogando. No passado, ele e Doied disputavam partidas no tabuleiro velho que compraram ao economizar no lanche da escola. Em anos, Doied nunca o venceu.
Ele descobriu que Doied continua péssimo no xadrez.
— Você me venceu — Luzu suspirou em descrença.
— Pelo visto, sim.
— Você andou treinando?
— Talvez eu sempre estivesse pegando leve e você nunca percebeu.
Luzu cruzou os braços e negou.
— É mais fácil pensar que você foi substituído.
Nem te conto.
Pela tarde, a reunião com os investidores foi uma bela droga. Mariana estava certo em descrevê-los como insuportáveis. Roier geralmente gostava de velhinhos, mas esses eram mais preferíveis enterrados há sete palmos de distância.
— Você nos enviará o dinheiro ou não?
Prefiro te dar um tiro na testa.
— Discutirei com meu economista a respeito.
— Eu pensava que você era formado em Economia, rapaz. O que fez com seu diploma?
— Decisões da empresa precisam ser discutidas em conjunto. — Sorriu forçado. — Se eu contratei outro economista é porque boto confiança na sua opinião ou eu não jogaria dinheiro fora com uma vaga dispensável. É para isso que uso meu diploma, senhor.
O velho ficou calado pelos próximos dez minutos. Foram os dez minutos mais felizes que Roier já viveu em toda sua vida.
Às 18h em ponto, Roier assinou o último papel marcado em verde. Ele não leu nenhum, confiando que Mariana não o faria assinar algo que falisse a empresa. Mesmo se lesse, Roier não entenderia, então era uma tarefa inútil.
O mais difícil foi lembrar-se de escrever Doied em vez de Roier. Isso gerou ao menos dez contratos com um Roied meio rasurado no campo de rubrica. Um mero detalhe. Preste atenção aos detalhes .
Alguém bateu na porta.
— Entre.
O cara parecia péssimo, com a coluna torta e a cara fechada. Para piorar, ele não estava feliz em ver Doied. Se possível, ficou ainda mais irritado e impaciente. Esse deveria ser Carre, então.
— Sente-se.
— Sem papo furado, cara. Só quero minha demissão para nunca mais precisar voltar aqui.
— Algo aconteceu?
Carre franziu o cenho.
— Que?
— Estou perguntando o motivo de sua demissão, Carre.
— Agora você se lembra do meu nome? — Bufou. — Vou mandar a real. Ninguém gosta de te ter como chefe. Tu é mandão, fala para porra, não faz questão de saber nosso nome e nem olha na nossa cara. Semana passada tu quase faltou me humilhar por causa de um trampo que eu nem tinha como prever. — Deu de ombros. — Ninguém aguenta merda calado para sempre. Eu tô fora. E não vou ser o primeiro.
Ah.
Doied, que porra você anda fazendo?
Roier assinou a demissão de Carre com um gosto amargo na boca. Ele pensou em pedir desculpas, mas já não faria sentido. Ele também duvida que o ex-funcionário estivesse disposto a ouvi-lo, também.
Vou cumprimentar todo mundo todos os dias.
Ele não é Doied, de qualquer maneira.
E apenas para constar, Roier odiou tofu.
Chapter 5
Summary:
Talvez não devesse ter afetado Roier. Mas afetou.
Chapter Text
Mariana.
Buenos días 🫡
— QUARTA-FEIRA:
01. Vinda a Taaffaiete para reunião de negócios. O acordo será com uma distribuidora de tecidos de fio de seda chinesa. Não precisa falar muito, só preste atenção quando começarem a falar de números, essa parte toda que só você entende.
02. Saída com Cellbit. Vocês irão comer fora hoje. Vista uma roupa adequada o suficiente para a reunião e o encontro. Paparazzis aparecerão com certeza. Evita fazer aquelas caretas, pelo amor de Deus, você fica péssimo com rugas.
E eu espero que esse tempo todo sem respostas tenha sido você me ignorando e não porque você dormiu!
Roier dormiu demais.
— Merda, merda…
Esse era seu terceiro dia como Doied — talvez quarto se você considerar o primeiro, o qual Roier votava por simplesmente apagar de sua mente — e tudo já havia dado o tanto de errado que era possível.
Sim, ele sabe que tem como ser pior. Sempre tem como. Mas agora Roier não gostaria de imaginar o quão insuportável seu teatro poderia ficar porque, bem, aquilo já estava uma droga completa.
Doied nunca se atrasa para nada.
Na verdade, ele é tão pontual que chega a ser irritante.
Quando crianças, sempre foi Doied quem acordou primeiro, fez o café da manhã e depois levantou Roier para que fossem juntos ao colégio. Ele tinha horários marcados para fazer as lições de casa para cada matéria e somente um dia específico da semana em que poderia sair para gastar um pouco de dinheiro — na época, eram R$ 9,50 contados, nada mais e nem nada menos.
Doied gostava de controlar a rotina própria e a de Roier. Foi difícil para Roier se readaptar quando parou de morar com o irmão, mas ele logo deixou os hábitos controladores — e mais saudáveis, ele confessa — para criar sua própria agenda com horários malucos e que não faziam sentido algum. Agora, Roier pagava o preço de seus pecados.
— Tenho cinco minutos para amarrar essa gravata.
Ele conseguiu em 20 segundos.
Roier era bom com gravatas. Com roupas, no geral. Ele precisou ser por causa da profissão. Ser ator de teatro exigia saber improvisar e mudar de roupa muito, muito rápido. Roier já interpretou quatro papéis diferentes em uma só peça e mudou de roupa todas as vezes.
E ser multitarefas é o talento natural do pobre.
— Em seis minutos… — Roier se admirou no espelho. Ele sorriu para o próprio reflexo. — Meu recorde!
Trajado na roupa social menos feia que encontrou — calças, camisa e colete pretos, mais uma gravata branca para dar o charme —, Roier saiu do quarto. Tudo parecia tranquilo e calmo. Às vezes, o apartamento era tão silencioso que ele duvidava se Doied morava ou não com alguém.
Na sala, Cellbit parecia à beira de um colapso.
— Quem inventou essa merda? — resmungava. — Quanto mais eu arrumo, mais torta fica! O que acha, Jurema? — Cellbit se virou para um dos vasos de planta. Roier é leigo, mas sabe que aquilo era uma samambaia. Samambaias não falam… ou falam? — Cristo, pareço estúpido.
— Creio que Jurema não irá lhe responder.
Cellbit chiou e pigarreou ao vê-lo. Seus olhos arregalaram em inveja resoluta quando viu o nó de gravata perfeitamente alinhado ao pescoço.
— Você sabe dar nó em gravata?
— Por que não saberia?
— Nunca te vi usando uma.
Doied não sabe dar nó em gravatas. Ao menos, não sabia quando era adolescente. Roier teve que fazer os nós dele e do irmão na sua festinha de formatura do ensino médio. Os ternos eram usados e emprestados dos primos, mas foi divertido.
Foi a última festa que comemoraram juntos até que Doied saiu de casa.
Ah, memórias amargas. Roier massageou as têmporas e se forçou a esquecer. Agora não.
— É apenas para ocasiões especiais.
Aquilo fez os olhos de Cellbit brilharem, então Roier julgou que escolheu as palavras corretas. Talvez não fosse tão difícil ser Doied assim. Com exceção das saudades massivas que sentia dos amigos e do teatro, era até suportável.
— Então você pode, ah… — Cellbit coçou a nuca. Suas orelhas estavam meio rosadas. — Amarrar a minha?
Roier revirou os olhos e sorriu fraco.
— Me dê aqui.
A gravata de Cellbit é verde. O restante do smoking era cinza meio grafite. O corte era perfeito para sua altura e musculatura, com abotoaduras e botões chanfrados prateados. Tinha uma correntinha fina saindo de um dos bolsos. Parecia ser caro, elegante e claramente feito sob medida.
Um pequeno pingente prateado sobressalente no canto do terno dizia em maiúsculas: TAAFFAIETE . Claro que Cellbit vestiria as roupas da própria marca.
O terno de Doied também era de alguma marca de luxo cara, mas não era a de Cellbit. Parecia até simplória comparada ao corte da Taaffaiete. Roier tinha um lugar de fala para reclamar — ele é um admirador de roupas bonitas, apenas não um possuidor.
Eu nunca teria dinheiro para comprar uma coisa dessas.
— Tradicional? Borboleta?
— Só algo que não me pareça um idiota completo na frente dos investidores.
Ele optou pela tradicional. Não porque achava que era a forma mais bonita de se prender uma gravata, mas sim pois Cellbit parecia disposto a arrancar aquela coisa do pescoço a qualquer momento e Roier sentiu um pouco de pena dele.
— Você me salvou. — Cellbit repetia incansavelmente no caminho desde o elevador até o carro. — Tipo, sério mesmo.
— Não precisa agradecer. — Ou agradeça, amacia meu ego. Me sinto menos estúpido. — Já estamos atrasados.
Cellbit soltou o suspiro mais triste e sincero que Roier já viu.
— Nem me lembre… Bagi vai me matar.
Ramón não precisou de ordens para saber que precisava correr. Ele dirigiu o mais rápido que podia. Enquanto isso, Cellbit pediu para usar o carregador do carro para o celular. Ele esqueceu de carregá-lo antes de dormir.
— Eu nunca deixo carregando enquanto durmo. — explicou. — Eu fazia antes, mas Bagi reclamava, sabe? Dizia que iria explodir e botar fogo na casa toda e eu seria o primeiro a morrer porque fui um estrupício.
— As chances de um celular atual explodirem não são as maiores.
Cellbit piscou.
— Possibilidades ainda são possibilidades. Você sabe disso, não é, senhor economista?
Roier se sentiu intimidado o suficiente a se convencer a nunca mais colocar o celular carregando por dez horas seguidas em cima do mesmo travesseiro onde ele afunda a cabeça durante as noites.
— Falemos sobre negócios. Há algo que preciso saber sobre quem vamos nos reunir hoje?
Cellbit colocou a máscara “homem de negócios dono de empresa” em segundos impressionantes.
— Peonnie é o nome da empresa. Talvez não sejam milionários o suficiente para você conhecer, mas tem lá seus números de valor. — Deu de ombros. — Eles são produtores de fios de seda. A maioria é do bicho de seda, claro. Mas esse contrato em específico é de outro tipo de seda.
— E existe?
Cellbit revirou os olhos e riu como quem chama alguém de desaculturado. Roier sentiu-se ofendido!
— Não me surpreende que você não saiba.
— Me responda em vez de zombar da minha falta de conhecimentos gerais.
— Sim, sim, claro. — Abanou as mãos. — É a seda extraída da flor de lótus. É um processo demorado, manual e que exige muita atenção. Não pode ser acelerado, sabe? Flores de Lótus não nascem assim de uma hora para outra e não costumam ser plantadas.
— Isso encarece o produto, não é?
— E o que é feito dele, sim.
Roier sabe que Doied estaria se debatendo inteiro em alegria agora. Tudo o que envolve dinheiro e muito lucro deixa-o assim, birutinha.
— Assumo que é um tecido delicado.
— E é muito macio! Tenho um xale feito dessa seda em casa. Se eu lembrar, te mostro. É como amarrar uma nuvem no meu pescoço. — Franziu o cenho. — Bem, não literalmente porque eu nunca toquei numa nuvem e acho que ninguém já tocou antes… mas você entendeu.
— Provavelmente.
Ele queria vestir algo com fio de seda de lótus agora.
— Senhores, chegamos.
Algo que Roier aprendeu sobre ricos é que eles adoram prédios cobertos de vidro. Tipo, com vidros finos que vão da base ao teto. E é uma ideia arquitetônica tão estúpida que o surpreende por ser tão difundida nesses prédios de empresas chiques. O banco de Doied é inteiramente em vidro, e é tão quente quando o sol bate que precisam gastar o dobro com energia elétrica. Ele não deveria ser economista?
E depois Roier que é o idiota.
A Taaffaiete tem uma quantidade reduzida de vidro, ao menos. Eles têm janelões que ocupam o tamanho de uma varanda inteira, mas nada que o faça temer pelo esforço dos ares-condicionados. Têm muitas plantas e esculturas de cerâmica espalhadas pelas salas, e quadros com ensaios fotográficos com as roupas da marca intercaladas por artes abstratas modernas. Roier adorou o tapete de felpudo na sala de espera, também.
Em geral, é bastante confortável para uma marca de luxo. Roier gostou. E o cafezinho da recepção é maravilhoso, quente e vem no copinho de isopor.
— FINALMENTE!
A irmã de Cellbit não foi difícil de identificar. Porra, eles são iguais.
A única coisa diferente neles é o cabelo, e Roier apostaria seu casaco do Homem-Aranha que só era assim porque os dois decidiram pintar para serem diferenciados — ele sabe porque já deu a ideia para Doied no passado e infelizmente foi ignorado. Cellbit tinha uma mecha platinada; Bagi, o cabelo inteiro, menos a mecha da frente. Muito específico.
Eles têm a mesma altura, mas Bagi fica intimidante naquele par de saltos altos enormes. Roier se sentiu minúsculo, principalmente porque ela não tinha um ar amigável em sua direção.
Doied tem um dom natural de ser odiado por todas as pessoas do mundo. É impressionante — e preocupante.
— Não tenho tempo de dar uma bronca em vocês dois. A reunião começa em dois minutos. — Bufou. — Vão logo antes que eu surte!
— Sim, mamãe.
Cellbit fugiu e puxou-o junto no momento em que Bagi ameaçou tirar o sapato.
— Não ligue, ela está de mau humor.
Não me diga.
— E tem dia que não está?
Cellbit gargalhou.
— Porra, não.
Os investidores chineses eram um casal na faixa dos quarenta anos. A mais intimidante era a mulher, definitivamente. Ela tinha cabelos pretos longos e perfeitamente amarrados com nenhum fiozinho para fora do penteado. Seus olhos pareciam enormes com aquela maquiagem vermelha esfumada. Sua roupa era leve e esvoaçante, provavelmente do tal tecido de seda de lótus que Cellbit tentou falar sobre.
Ela parecia rica. Não por ser, mas por parecer ser. Existem ricos que parecem pobres, e ricos que simplesmente aspiram à riqueza. Essa mulher é um deles.
Roier engoliu em seco e mordeu o interior da língua para se acalmar.
Não faça feio. Não faça nada idiota.
— Olá, meus jovens. — disse sorridente. Ela estava falando em mandarim. — Como vão nessa adorável manhã de quarta-feira?
Ao seu lado, Cellbit enrijeceu. Ele não sabia nada de mandarim. Seu sorriso torto entregou. O homem baixinho ao lado da mulher apenas bufou e cruzou os braços.
Fizeram de propósito para desestabilizar ele.
Aquele não era o dia de sorte dos riquinhos.
— Bom dia, madame. — Roier respondeu com o mínimo de sotaque que podia. Ainda um pouco chiado, mas bom o suficiente. — Tudo perfeito, melhor ainda com companhias tão adoráveis.
Os investidores definitivamente não estavam esperando por isso. E Cellbit também não.
Roier não é fluente em mandarim, mas sabe o bastante para conseguir pedir comida, dar bom dia e elogiar alguém para conseguir desconto em lojas. Esse é o guia fundamental de aprendizado para qualquer idioma. Ele aprendeu um pouco quando quis estudar dialetos orientais para uma peça no final do segundo ano do ensino médio.
Ele era melhor em coreano, na verdade. Isso também tem influência por conta das músicas — e de Tina, óbvio.
— Desde quando você fala mandarim? — Cellbit cutucou-o.
— Eu guardo muitos segredos.
Primeiro deles, não sou seu noivo. Segundo, não aguento mais ficar de pé. Terceiro, se me perguntarem mais do que isso eu finjo desmaio e acordo só mês que vem.
Felizmente, seus cinco centavos de mandarim agradaram e muito a investidora. Ela até aceitou aumentar o fornecimento de mercadoria de última hora! Cellbit estava radiante, Roier estava com o ego erguido, os investidores saíram felizes e todos estavam bem!
Faz melhor, Doied!
Ele se gabaria e muito para o irmão quando se falassem da próxima vez.
Com a reunião terminando cedo, Cellbit decidiu mostrar um pouco da próxima coleção a Roier para passar o tempo. As roupas eram surreais de tão lindas! A paleta de cores da temporada era azul petróleo com rosa salmão. Roier teve que se conter para não passar minutos falando sobre como esses tecidos pesados formariam o vestido perfeito para aquela peça autoral que a equipe do Teatro queria marcar para o próximo semestre.
Que saudades do teatro, ai.
Ao final do dia, eles voltaram ao carro para ir jantar. Toda a animação que Roier acumulou durante o dia simplesmente sumiu com a lembrança do evento.
Restaurante caro. Roupas chiques. Noivo bonito — e rico e famoso. Muitas pessoas ricas e famosas estão observando e julgando-o dos pés à cabeça. Fãs e paparazzi, e não dos tipos legais e fofos como as crianças que cumprimentam a equipe de teatro. Doied avisou: suas fotos apareceriam nos portais de fofoca em um piscar de olhos.
Você já beijou alguém mais de vinte vezes só para treinar para uma peça, Roier respirou fundo e se acalmou. E você odiava aquele idiota, fubango, babado e nojento. Cellbit ainda é bonito e legal! Isso vai ser fácil para caralho. Ei, você vai até comer de graça!
— Tudo bem aí? — Cellbit sussurrou.
Roier sorriu com toda a — pouca — confiança que tinha.
— Perfeitamente bem.
━━━━━━━ ⟡ ━━━━━━━
Isso é tortura psicológica.
Para fins de contexto, Roier e Cellbit estavam no restaurante há cerca de vinte minutos. Esse foi o tempo decorrido entre a entrega das entradas — um par de bolinhos de batata gourmet, o que é apenas uma desculpa para aumentar dez vezes o preço original da comida — até a primeira rodada de pratos principais.
Roier estava aprendendo coisas sobre esses tais restaurantes chiques.
Primeiro, existe uma procura imensa de pessoas ricas e despreocupadas que gastariam uma fortuna em meia dúzia de pratos que até mesmo Roier seria capaz de reproduzir e fazer melhor.
Don Ramón não ficou para estacionar o carro, mas Roier procurou ir atrás para ver como era — lê-se: ele é curioso. Basicamente, você entrega as chaves de seu carro para um dos funcionários do restaurante. Todos estão uniformizados em ternos pretos, camisa branca e gravata vermelha. Aquele que cuida do estacionamento, em especial, usa óculos escuros mesmo que já esteja de noite. Ele pega seu carro e o estaciona perfeitamente alinhado em uma das vagas. É tudo tão milimetricamente calculado que Roier duvidou se era mesmo possível, torcendo internamente para que o cara batesse o carro alheio apenas para ver o que aconteceria.
O homem não só estacionou o veículo como o fez vindo de ré. É uma coisa tão complexa que Roier nunca arriscou fazer.
Bem, não teria como ele ter tentado, já que nunca fez o teste para tirar carteira de motorista. Na verdade, nem o exame teórico fez. Roier até cogitou. O teatro ganharia muito com alguém motorizado para ir buscar as encomendas das fantasias. Mas era — e ainda é — caro demais dirigir.
Ao passar do estacionamento, vem a fila.
A fila é o local exato onde você percebe quem é rico de fato e quem apenas economiza dinheiro o suficiente para gastar com mimos assim vez ou outra. O segundo grupo permanece horas na fila enquanto o primeiro entra com passe VIP sem precisar informar nomes. Ao menos, foi o que aconteceu com eles.
Tudo o que bastou foi uma encarada de olhos brilhantes entre ele e Cellbit para a moça da recepção sorrir e deixá-los entrar com o “Boa noite, senhores” mais meloso que Roier já escutou, caminhando ladeados por meia dúzia de flashes de câmeras.
— Boa noite, senhor Cellbit, senhor Doied. — Um garçom cumprimentou-os assim que pisaram para dentro do restaurante. — Mesa para dois, reservada e de baixa iluminação. Confere?
Cellbit sorriu em agradecimento.
— Sim, obrigado.
— Por favor, me sigam.
É tudo tão… rico?
Lugares feitos para ricos frequentarem aspiram à riqueza. Não a riqueza em si, mas a sensação de que aquilo custou muito, muito dinheiro. Algo ser caro não necessariamente impõe isso como rico, muito menos como elegante ou chique. Roier sabe bem que algumas montagens que Tina faz com meia dúzia de alfinetes e dois metros de pano são muito mais elegantes que metade dos vestidos pesados que essas senhoras vestem agora no restaurante.
Mas o que faz algo parecer caro?
Honestamente, você vai saber só de olhar. Aqui, Roier chamará atenção para a montagem da mesa. A escolhida por Cellbit é a mais afastada do restaurante, a única debaixo de um lustre amarelado baixo e complementada com suas velas aromáticas de cravo e canela. Os pratos são brilhantes, de alguma cerâmica importada. Mais do que isso, são três pratos. Todos diferentes e apoiados um acima do outro. Se somar todos os talheres, dará mais de dez por pessoa.
Para que diabos você precisaria de mais de um garfo? A colher Roier entende. Se você comer a sobremesa com a colherzinha, você terá a impressão de que comeu mais e se saciará com pouco.
Mas isso não justifica ter a porra de um garfo só para saladas. Pior ainda é esse ser o talher mais usado por ele, já que Doied, de todas as pessoas do mundo, escolheu ser vegano.
Não, vegano não. Vegetariano.
Na verdade, tem algo a mais. Ovolactovegetariano, algo assim. O tipo de vegetariano que come ovo e derivados de leite. Doied apenas o faz porque morreria sem os nutrientes ou ele realmente só se alimentaria de salada e pão. Não porque gosta de verdade, mas por ser prático e não exigir tanto tempo ou dificuldade no preparo.
Preguiçoso.
E isso é uma tortura para um amante de churrasco como Roier. Ainda mais quando seu querido irmão é quase casado com alguém que aparenta gostar de carne tanto quanto ele.
— Espero que não se importe se eu pedir picanha hoje. — Cellbit se desculpou de antemão. Fofo. — Sei que costuma olhar de cara feia, mas…
— Coma o que quiser.
Era para Roier ter recusado. Isso evitaria seu desconforto agora.
A carne parecia muito, muito suculenta. Estava ao ponto e vinha com um molho bonito e muito cheiroso. E um purê de batatas que parecia divino e carregava mais nutrientes do que isso que Roier pediu.
E ele apenas pediu isso porque Cellbit acabou dando a língua nos dentes que esse era o tal prato favorito de Doied.
É algo entre a entrada e o prato principal, Roier ainda não conseguiu decifrar. Tem molho verde de ervas e um crocante de batata. Apenas isso. E umas flores ou de abobrinha — sem gosto, infelizmente — ou, bem, flores reais. Provavelmente são as comestíveis. Ainda assim, o gosto não é tão bom assim, apenas um pouco menos pior do que a abobrinha.
Roier vai ter que comer algo de madrugada.
Isso o lembra. Esse é outro fato sobre ricos. Não, não o lanche da madrugada. Mas os vários pratos seguidos um atrás do outro.
Entrada, prato principal e sobremesa. Esse é o básico. Às vezes, existe um prato de massa ou um prato de peixe. O menu é assim para dar a sensação de que você comeu um pouco de tudo e, portanto, mais do que desfrutaria se apenas escolhesse um prato comum e um docinho de tira-gosto para a sobremesa.
Seria ótimo se Roier não estivesse comendo flores por causa do irmão.
Cellbit pigarreou.
— Ei…
— Algum problema?
— Não, não exatamente. — Cellbit cutucou sua carne. Roier ficou triste imediatamente. Novamente, parecia ótima. Ou eram suas flores que estavam horríveis. Os dois, talvez. — Eu só queria agradecer por hoje mais cedo. — Sorriu fraco. — Realmente não sabia que falava mandarim.
— Ah, aquilo?
Se Doied souber disso, eu sou um homem morto.
— Sim, foi impressionante. Os investidores gostaram muito de saber que nós temos alguém que é capaz de se comunicar com eles na língua materna. Nos deu importância, sabe? — Deu de ombros. — Acho que vou pedir para contratar um tradutor. — Piscou. — Não posso ficar te chamando sempre.
Eu iria…
Era melhor do que ficar no emprego chato de Doied.
— Não é difícil. Honestamente, falar é um pouco mais fácil do que escrever. Você só precisa ter cuidado com os fonemas.
— Eles têm muitos?
— Algumas palavras são facilmente confundidas por outras. Eu poderia estar chamando alguém de mãe ou de vaca com uma simples mudança de tom. — Ajustou os óculos. Estavam caindo de novo. — Eles adicionam fonemas e engolem outros. Fora isso, é bem fácil.
— Vou procurar aprender. — Cellbit parecia realmente decidido a isso. — Há mais algum que saiba?
— Um pouco de italiano. Eu sei ler o alfabeto cirílico, mas não me peça para pronunciar. Será um ataque pessoal aos seus ouvidos.
— É mesmo…
— Não me olhe com esse sorrisinho esperto, Cellbit.
Cellbit se recolheu com uma risadinha quase inaudível e voltou a comer. Roier bebericou de seu vinho — e esse sim era bom — para reprimir o próprio sorriso. Sabe, conversar com Cellbit é legal. Não é difícil e nem sufocante como foi dialogar com a maioria das pessoas ricas que encontrou nos últimos dias.
Tornou até tudo mais suportável.
— Eu só quero que saiba que me sinto grato de verdade… esse contrato foi muito, muito importante. — Cellbit continuou em sussurros. — Eu não gosto de falar sobre a situação da empresa porque às vezes me sinto estúpido por, ah, falar de coisas que não sei muito com um economista que obviamente sabe muito.
— Eu poderia ajudá-lo. — Poderia porra nenhuma.
— Eu sei. Mas não gosto de pedir ajuda.
— Mas deveria.
— Mas não gosto!
— Se for o melhor para a empresa, deveria. — insistiu. — Principalmente se estiver fora do seu controle.
Cellbit suspirou.
— Está certo. — Desviou o olhar, meio envergonhado. — Eu vou tentar me abrir mais, eu acho. Nós vamos nos casar… isso deveria fazer parte da coisa toda, eu acho.
Roier não sabia bem o que fazer depois disso. Na dúvida, ele resolveu seguir os instintos e capturou uma das mãos de Cellbit na sua. Ele tremia um pouco, apesar de esconder muito bem. Seus dedos são longos e quentinhos e as unhas são muito bem feitas. Ele sentiu um pouco de vergonha das próprias unhas. Doied não se importaria se ele fosse em uma manicure, iria?
— Provavelmente.
Cellbit sorriu e apertou sua mão de volta.
— Não tenha medo de conversar com seu noivo, sim?
Roier não imaginou que estaria ouvindo a palavra noivo saindo de sua própria boca. Mas saiu. Não foi tão difícil, mas foi estranho, ele deve confessar. Pareceu errado, também.
Porque Cellbit não é seu noivo.
É o de Doied. Seu irmão gêmeo.
Isso o fez pensar em algo que não deveria, porém pensou. Será que Cellbit sabe que Doied tem um irmão gêmeo? Será que sabe que ele tem um irmão?
Sim, é uma pergunta estúpida. Mas Roier conhece o irmão que tem.
Será que eu seria tão insignificante para ele assim?
— Eu digo o mesmo a você. — Cellbit chamou sua atenção. Ele sorria. — Não tenha medo de falar comigo.
Roier reprimiu a vontade de sorrir. Doied não sorriria. Ele apenas aumentou o aperto e terminou de comer. A fome morreu, de qualquer maneira.
━━━━━━━ ⟡ ━━━━━━━
Isso é cutucar onça com vara curta.
Era noite, por volta das dez horas. As luzes do corredor estavam desligadas. Cellbit foi dormir há dez minutos. Roier disse que também iria, mas só começaria a sentir sono apenas uma hora depois, no mínimo, principalmente quando sua mente estava tomada por questionamentos e dúvidas infundadas por paranóia.
Alguém sabe que Doied tem um irmão?
A mídia não. Doied nunca o citou. Se tivesse, as coisas para Roier teriam sido bem diferentes. Ele não seria tão duramente cobrado pelo aluguel atrasado, pelo menos.
Mas nem seu próprio noivo?
— Eu preciso saber.
Ou não vou conseguir dormir hoje.
Ao fim do primeiro toque, Doied atendeu. Ele mais resmungou do que disse palavras entendíveis. Ao contrário dele, seu irmão prezava em manter uma rotina de sono. Dormir sempre no mesmo horário e acordar depois, também, ao mesmo tempo, durante todos os dias da semana. Sempre dormindo a mesma quantidade de sono ao dia.
Sempre perfeito, esse Doied.
— Vá dormir.
— Cellbit sabe?
Uma movimentação abafada indicou que Doied se remexia em seus lençóis.
— O que? — ele falou mais alto dessa vez. Deveria ter se sentado. — Sobre?
— Eu, Doied. — Respirou fundo. — Cellbit sabe que você tem um irmão?
A mídia não sabia. Seus funcionários não deveriam saber. Será que seus amigos sabiam? Mariana? Luzu? Quem mais não sabia? Tinha alguém que sabia?
O quanto Doied escondeu do resto de sua vida para chegar onde queria?
— Não.
Talvez não devesse ter afetado Roier. Mas afetou.
Ele não respondeu Doied, e muito menos sabe se o irmão disse alguma coisa para o seu silêncio. Roier apenas murmurou qualquer merda antes de desligar o telefone e jogá-lo no meio da cama. Ele não o pôs para carregar, não se importando se precisava acordar cedo ou tarde amanhã.
A última coisa que ele faz antes de dormir é recuperar o telefone, procurar o contato de Doied e bloqueá-lo.
Chapter 6
Summary:
Ele só conseguiu pensar que tinha dinheiro o suficiente para pagar a academia de toda a equipe do teatro desde até e agora o último dia de suas vidas — e ainda sobraria para mais uma.
Chapter Text
Doied acordou com seu celular vibrando organicamente a cada cinco segundos.
Na primeira vez que checou, ele bufou ao constatar que eram inúmeras mensagens daquele grupo dos amigos de Roier. Os que reconhece são Tina, a melhor amiga estilista; Jaiden, a melhor amiga estudada; e Foolish, que ele realmente não sabe o que faz, mas sabe que está lá. Qualquer boa impressão que pudesse ter de algum dos três sumiu, já que eles não param de falar desde que o Sol raiou no céu.
Ele não se importa de acordar cedo por justamente ser algo enraizado em sua rotina de trabalho, mas o objetivo desse acordo era desvencilhá-lo do trabalho, então ir um pouco contra o que fazia todos os dias seria apreciado, muito obrigado.
Claramente, os amigos de seu irmão não entendem isso e não param de papear. Sua única opção foi silenciar o grupo pela própria paz.
A questão é que a visualização automática estava ativada. Ele a mantinha assim porque não fazia sentido mudá-la quando seus contatos eram, em sua maioria, apenas para os negócios. Os investidores odeiam saber se estão sendo mantidos no vácuo ou não, e Doied realmente odiava ignorá-los.
Quando os tracinhos ficaram azuis, as mensagens começaram a surgir em seu privado. Todas eram de Tina.
gatina
AMIGO VOCÊ ME DEIXOU PLANTADA ESPERANDO VOCÊ ME ODEIA???????
ai desculpa pode ter acontecido algo não quero que se sinta pressionado mas se você puder mesmo vir hoje eu ia agradecer muito
e eu sinto sua falta :(
Esperando?
Relendo as antigas mensagens de Roier com Tina, ele descobriu que os dois haviam combinado de se encontrar ontem no teatro em que trabalham para que ela pudesse tirar suas medidas para novas provas de roupa. Aparentemente, Roier era o modelo ideal e sua principal cobaia para quando Tina tinha novas ideias de roupas, tudo isso por ter o melhor porte e altura do grupo.
“Você é tão alto!” Uma de suas mensagens dizia. “É a altura ideal. Sabe, temos pessoas altas por aqui, mas alguns já são altos demais.” Doied descobriu que aquilo era uma indireta para Foolish, mas definitivamente não acreditou na informação que dizia que ele tinha quase dois metros de altura.
Roier não me avisou que tinha um compromisso.
E agora Tina sabia que ele havia lido suas mensagens! Ele não podia simplesmente ignorá-la, por maior que fosse sua vontade de fechar os olhos e voltar a dormir. Isso comprometeria a relação dela com Roier, e talvez até a deixasse desconfiada. Pelo o que viu, seu irmão não costumava demorar a respondê-la. Ele deveria fazer o mesmo.
— Seu irresponsável…
Foi a vez de Doied bombardear o privado de Roier — ou o seu privado, já que eles estão com números trocados — em busca de respostas, talvez xingando-o no processo. Nenhuma das mensagens parece ter sido enviada.
— Porque a foto dele sumiu…
Ele precisou de um minuto inteiro para raciocinar, porque parecia ser simplesmente uma ideia absurda demais para cogitar. Mas era Roier, nenhuma convenção de senso valia para seu caçula irresponsável e imaturo.
Eu vou esganá-lo.
Roier o bloqueou. Justamente quando eles estão em um acordo arriscado que exige comunicação constante. Como Doied saberia como está sua empresa? Como saberia se a farsa estava em apuros? E se alguém descobrisse? Ele não poderia saber nada! Muito menos comunicar-se em situações desesperadoras como essa com Tina.
Estar no escuro deixou-o ansioso demais para o próprio bem.
Mesmo sabendo que seria inútil, Doied ainda tentou ligar para o irmão. A ligação foi interrompida no primeiro bip. Frustrado, ele reinstalou o Instagram apenas para mandar uma mensagem ao irmão, a única rede social que lembrava de ser em comum entre os dois.
Me esqueceu de bloquear no Instagram, idiota.
— Estou tendo que mandar um áudio por aqui já que você fez questão de me bloquear na droga do Whatsapp . — Iniciou seu áudio em um tom mais mordaz do que gostaria, mas ele estava realmente irritado e ansioso, andando em círculos no meio do quarto do hotel. — Tem uma tal de Tina dizendo que você a deixou plantada esperando. Você pelo menos se lembra que tinha marcado algo com ela ou é só esse seu vício de irresponsabilidade falando mais alto? Eu juro por Deus, Roier, eu não vou pisar naquele seu teatrinho mequetrefe.
Como esperado, Roier apareceu como online dez segundos depois. E após um minuto, ele também enviou um áudio como resposta.
— Já que estamos falando de coisas não ditas, que tal a gente lembrar que você nunca disse que o quarto do final do corredor era do SEU NOIVO em vez do seu?
— Por que ele… — Doied respirou fundo. Ele estava sentindo os sintomas de um princípio de infarto. — Ah, puta merda.
Ele QUEBROU o acordo de convivência?
— Pelo amor de Deus, não me diga que entrou no quarto do Cellbit. — Ele tentou contar o desespero na voz ao enviar a resposta.
— ÓBVIO que entrei. Como eu ia saber? Você reclama pra caralho que eu não sei das coisas, mas você também não me explica, porra. Eu não tenho bola de cristal. Passei uma vergonha do caramba por sua causa, nada mais justo do que você passar o mesmo. — Como Roier conseguia falar tão rápido e tão perfeitamente bem? Que coisa insuportável. — Infelizmente para você, meus amigos sabem que você existe, então trate de fingir minimamente bem.
Meus amigos sabem que você existe.
A mente de Doied estalou.
Ele me bloqueou por causa da conversa de ontem? Roier não tinha como ficar mais imaturo, tinha? Ele realmente não sabia como as coisas funcionavam. Como o mundo dos negócios anda. Como construir e manter sua nova vida foi o verdadeiro Inferno.
— Já parou para pensar que se eu fizer alguma merda, quem vai se ferrar é você?
— O único de nós que tem um império a perder aqui é você.
Isso…
— Isso é uma ameaça?
— Já vai baixando o app da Uber, playboyzinho! — Roier riu. — Nos vemos semana que vem quando minha raiva por você passar e eu voltar a te tratar normalmente como o otário que eu sou. Beijos!
— ESPERA, você… — Doied franziu o cenho, grunhindo. — Este usuário te bloqueou?
SINCERAMENTE.
Ele deveria esquecer essa situação toda e voltar a dormir. Roier se iria se desgraçar com Tina e depois daria seus pulos para tentar curar o incurável. Doied bem disse que não tinha interesse em tornar aquele acordo de fingimento uma via de mão dupla, por mais injusto que soasse.
E irresponsável, também.
— Infeeeeerno.
No minuto seguinte, ele estava pegando um Uber próximo ao hotel. Estava vestido com as roupas mais coloridas que tinha, um moletom laranja queimado e umas calças jeans azuis de sua época adolescente que ele colocou nas malas por completo engano. Se fosse continuar com isso, deveria passar na casa do irmão para pegar algumas roupas. Eles podem estar distantes, mas Doied sabe que Roier nunca iria ao teatro com suéteres de caxemira ou coletes.
Ele normalmente não usaria essas peças para nada , na verdade.
Sobre sua primeira experiência andando de Uber, ele achou péssimo. Claro, Doied andou de ônibus e de táxi no passado, mas nesses veículos ele já entrava esperando o pior. O Uber ainda era uma incógnita ambulante, um estado entre o táxi e o carro popular. O motorista usar o próprio carro para o trabalho tornava aquilo uma espécie de roleta russa em que você ou poderia pegar um carro muito bom ou um muito ruim. Ele queria ter escolhido o Uber Comfort para evitar viver a primeira opção, porém seria arriscado caso alguém do teatro visse Roier, o pobretão, saindo de um carro cuja viagem de vinte minutos custou cinquenta reais.
Fede. A perfume barato, mais especificamente. Doied o reconhece porque o usava antes de subir de vida. Agora, era apenas insuportável e lhe dava memórias azedas. Além disso, o bamboleado constante do carro rebaixado contra as irregularidades da pista não tornava a viagem mais confortável.
E o motorista é vascaíno. Não que isso interfira na sua forma de dirigir. Era apenas Vasco da Gama em todas as partes. No chaveiro da ignição. Nos cobertores do assento. Pendurado no retrovisor. No boneco colado por uma ventosa no vidro. Em todas as partes.
— Boa tarde, senhor.
Mas ele cumprimentou-o na saída, então ao menos algumas coisas ainda possuem salvação.
Que fim de mundo é esse?
A pior parte daquilo tudo era esperar estar no lugar certo. Como Roier o bloqueou antes que Doied pudesse cogitar pedir o endereço do lugar, ele precisou stalkear o Instagram do irmão — como um anônimo qualquer — em busca de qualquer foto que pudesse entregar a localização. Por sorte, Roier é estúpido o bastante para ter se doxxeado inúmeras vezes nos meses passados, então não foi difícil encontrar um ponto de referência que o fornecesse uma localização decente.
Como sempre sendo nem um pouco cuidadoso com a própria vida. Garoto idiota.
Completamente oposto ao gêmeo, Doied não falava nada sobre sua vida pessoal nas redes sociais. Na verdade, praticamente não as usava. Ele tinha um Instagram pura e exclusivamente porque um contrato no passado exigiu. Depois disso, ele simplesmente desinstalou o aplicativo porque jurou nunca mais precisar dele. Contudo, o dia de hoje parece estar recheado de exceções.
Com a exceção de um endereço de e-mail, era apenas isso que Doied tinha. Ah, e um LinkedIn, óbvio. E já era o suficiente. Enquanto isso, ele não duvida que Roier tenha alguma rede só para baixar fotos coloridas para postar no Instagram. É impressionante a quantidade de posts aesthetic — é essa a palavra? Provavelmente é — que seu irmão publicou para tentar conseguir likes.
Patético.
Doied não tem tempo para se dedicar a essas patifarias. Ele gastou muitas horas de seus dias de adolescente estudando para conseguir um emprego minimamente decente. Seu sonho sempre foi sair daquela casa velha que moravam com o avô. Infelizmente, isso acabou afastando-o de sua família a um ponto irreversível.
Não podem culpá-lo por querer ter uma vida melhor, podem? E ele conseguiu.
No entanto, isso também o deixou com um vazio extremo. Doied é rico, tem uma empresa de sucesso, sustenta milhares de funcionários e possui contratos assinados com sócios em mais de dez países fora de seu continente. Essa é a vida que muitos sonharam ter — e seu próprio irmão também, ele aposta.
Mas parafraseando Schopenhauer , “a vida é uma constante oscilação entre a ânsia de ter e o tédio de possuir”. Doied tinha tudo. O que ele poderia fazer agora? Não há mais nada que valha a pena.
Estando à beira de um casamento tão frívolo e vazio quanto sua existência, Doied percebeu que queria se dar um tempo de férias. E detalhe: Doied nunca tirou férias.
Ele ainda não sabia nomear o objetivo exato dessas férias. Por enquanto, estava bem apenas tomando vinho e comendo petiscos de cereais assistindo aquelas novelas turcas que nunca teve tempo de ver quando era menor. É Interessante ser fútil, às vezes.
Fingir ser meu irmão em seu grupinho de teatro não estava nos meus planos de férias.
Mas é justo, ele supõe. Não deixa de ser uma merda, no entanto.
Doied respirou fundo e se forçou a não coçar os olhos. Ao contrário dele, Roier não usava óculos, reprimindo-se a essas lentes de contatos péssimas que tanto o agonizam. Ele descobriu que era alérgico a elas da pior forma possível. Por duvidar que Roier usaria óculos normalmente sem ser pago, ele preferiu arriscar e vir sem nada nos olhos.
Ou seja, ele não estava enxergando bulhufas.
Por favor, que não tenha escadas.
Tinha escadas.
Ele reprimiu o nojo e tocou no corrimão. Como esperado, estava grudento. Doied evitava ao máximo encostar em corrimões e maçanetas de qualquer lugar que não fosse da própria casa, da empresa ou dos restaurantes confiáveis que ia. Ele tinha sérios problemas com limpeza, é um fato. A somar com sua saúde que nunca foi das melhores, ele tinha mais do que motivos válidos para ser um pouco paranóico com germes.
Um degrau de cada vez, Doied.
Um minuto e ele conseguiu descer todos os seus degraus. Foi uma luta válida. A partir do segundo, Doied não sabia dizer mais se aquilo que ele queria pisar era a divisória entre um degrau e outro ou se ele acabaria pulando dois de uma vez.
Ainda bem que eu trouxe álcool em gel.
Isso ele sabe que Roier tem porque o tirou de sua própria casa. Vem pendurado com um chaveiro do Homem-Aranha. Tão típico.
Isso são passos?
— ROIER!
Doied ajeitou a postura e desviou o olhar. Suas mãos ficaram repentinamente suadas com o nervosismo. O pobre moletom sofreria com os ataques ansiosos que ele teria nas próximas horas.
Três horas. Nem mais, nem menos. É o meu máximo.
Honestamente, ele duvidava que aguentaria mais do que três minutos.
— Amigo do céu, quanto tempo que a gente não se vê!
A pesquisa de campo realizada nas redes sociais de Roier o deu algumas informações. Por exemplo, ele sabia que a garota que vinha correndo em sua direção era estudante de moda no final de período e que sua monografia seria baseada em roupas e costuras de baixa renda, algo envolvendo reciclagem de tecidos e coisas assim. Ele tem de admitir, alguns modelos dela parecem extremamente promissores.
Mas não é como se ele entendesse muito. É seu noivo que tem uma empresa de moda, e não Doied. Seu máximo é vestir um terno de três peças e a gravata que ele nunca desfez porque não saberia fazer de volta.
Essa deve ser Tina. Baixinha e esguia, sempre vestida com cores e estampas que estão na moda. E em todas as fotos juntos, Roier a chama por um apelido.
— Ei, gatinha.
Eu quero me matar.
— Começamos a acreditar que você era uma espécie de alucinação coletiva, sabe? Um tipo de fantasma! Não tivemos nenhuma notícia de você, lindo. Você esqueceu a senha do seu Insta ? — Piscou com um bico irritadiço. — NÃO! Não responda! Você é horrível com senhas… é claro que foi isso. Não se preocupe, bebê, eu tenho ela anotada em um post-it.
Roier deu a senha do Instagram dele aos amigos?
E se algum deles fosse um traficante de órgãos internacional? Ah, pelo amor de Deus. Seu irmão não tinha o mínimo de senso de autopreservação.
— E você acertou, como sempre. — Doied tentou sorrir. Ele imagina que falhou completamente. — Para que precisa de mim?
— MUITAS COISAS! Você é o modelo principal da minha monografia, você sabe. — Bateu palmas antes de arrastá-lo pela manga do casaco até o teatro. — Jaiden foi minha modelo feminina para tudo que pude usar e abusar da presença dela. Ela também tem estado muito ocupada, tadinha! E Foosh, você sabe… Rostinho tão bonito, mas tão alto! Mal consigo tocar no ombro dele, como eu tiro as medidas assim?
O teatro é muito mais arrumado do que Doied esperava.
O lugar não é enorme, mas é grande o suficiente para serem colocadas cinquenta cadeiras de madeira uma ao lado da outra. O palco é bem maior, com uma cortina alta de tecido vermelho pesado e volumoso caindo pelo chão encerado. Há um camarim atrás do palco, metade dele cheio por caixas de papelão com artigos de fantasia dos mais variados materiais e cores. A maioria parecia ter sido feita a mão com produtos de baixa renda. Tina quem o fez, ele aposta.
— Foosh esteve aqui mais cedo, mas o fiz sair para comprar lanches! Sabia que a padaria do centro está com promoção no cento de salgados? Baixaram 20 reais no preço! — Riu. — Talvez tenhamos sorte e sobre um pouco para o guaraná. Não é sempre que podemos luxar desse jeito, né?
Luxar com salgado e guaraná. Ao passar do tempo, as definições de luxo de Doied mudaram, mas antigamente, se ele bem se lembra, ele também já luxou com guaraná.
Seu olhar parou na parede com rachaduras que vinham do teto e quase batiam no rodapé. Tentaram cobri-la com pôsteres e quadros. Não deu muito certo.
Nossa casa também tinha rachaduras.
Algo acumulou na base de sua garganta, mas Doied não tentou pensar no que isso significava.
— E o ônibus de Jaiden pregou. Parece que não é nosso dia de sorte… — Tina lhe ofereceu um sorriso cansado. — Mas você está aqui! Isso já me basta.
Doied lambeu os lábios e se sentou em uma cadeira. A parte das costas estava faltando, mas a almofada de veludo era confortável o bastante para compensar.
— E como andam as coisas por aqui?
— Ah, você sabe, o de sempre. — sua voz estava abafada por ter se enfiado no meio de uma arara de roupas. — Tivemos uma apresentação esse final de semana. Vendemos todos os ingressos! Foi a primeira vez em meses… claro, nem todas as cadeiras encheram, mas isso acontece. Muita gente compra só para ajudar a causa e nós agradecemos muito. Estamos tentando economizar para ajeitar o banheiro.
— Qual o problema do banheiro?
Tina franziu o cenho.
— O mesmo de antes. Você não se lembra? Estamos sem pia! — Bufou. — Problema com o encanamento. Alguém vem ver isso amanhã. Acho que se eu pedir com jeitinho, talvez ganhemos um desconto.
Essa informação não tinha no Instagram de Roier.
— Vocês já pensaram em, sei lá, aceitar doações?
Tina surgiu na sua frente — sim, surgiu, tão repentinamente que Doied quase tomou um susto — com meia dúzia de peças de roupas espalhadas nos braços. Ela também tinha uma fita enrolada no pescoço, uma almofadinha com alfinetes presa em um broche no macacão e uma tesoura dentro dos bolsos.
— Como uma vaquinha?
— Sim, uma… vaquinha.
Por que o termo para doação é o diminutivo de vacas? Qual a ligação com as vacas? Por que as vacas precisam de dinheiro? O dialeto popular me trás tantas dúvidas.
— Eu não sei, Ro.
— Claro que não sabem, não tentaram.
Tina o estapeou. Deveria ser carinhoso, mas o tapa dela realmente dói.
— Você parece tão magro.
— Eu saí da academia. — Deu de ombros. — E não desconverse. A vaquinha. Por que não tentam?
— Quem doaria para esse nosso teatro podre?
É mais legal quando sou eu falando isso, e não um de vocês. Assim é depreciativo demais.
— Não chame o teatro de podre.
— Mas é o que é, Roier!
Tina suspirou enquanto cortava umas linhas soltas em algo que parecia ser um colete. Todas as peças eram vermelhas, claramente tendo sido pensadas para Roier.
— A gente continua nisso porque gosta, Ro, não porque espera ganhar alguma coisa. Achei que já tínhamos essa ideia clara… — Sorriu sem humor. — Mas você sempre teve esperanças, né? Sempre o mais otimista de nós. Admito que essa sua confiança toda nos fez falta… Sinto que estamos cada vez mais perto de desistir.
— Desistir?
— É, do teatro. Fechar tudo, distribuir currículos por aí e torcer por alguma coisa. — Deu de ombros. — Jai está mais distante porque conseguiu um emprego de meio período. Ela quer outro para ocupar o resto do turno livre. — murmurou. — Acho que ela vai pedir para sair.
Doied já ouviu falar de Jaiden. É a amiga mais antiga de Roier, até onde sabe. Eles estudavam na mesma turma na época do ensino médio. Era a pessoa mais importante que seu irmão tinha fora da família, provavelmente.
— Jai não pode…
Roier não gostaria disso.
— O teatro não vai nos fazer pôr a comida na mesa, Ro.
Aquele bolo esquisito voltou a garganta de Doied. Ele ficou em silêncio enquanto Tina ajustava suas medidas, ela sempre murmurando em como ele havia emagrecido.
— Por que saiu da academia?
Doied pensou rápido.
— Dinheiro.
Tina suspirou.
— Eu deveria ter imaginado.
Ele só conseguiu pensar que tinha dinheiro o suficiente para pagar a academia de toda a equipe do teatro desde até e agora o último dia de suas vidas — e ainda sobraria para mais uma.
— Abra a vaquinha.
— E se falhar?
Ele deu de ombros. Doied também teve pensamentos assim quando pensou se faria ou não sua faculdade de Economia. No fim, ele arriscou tudo.
— Não saberá se não tentar.
Eu espero que tentem.
Chapter 7
Summary:
Cellbit saiu para trabalhar pensando em que horas voltaria para casa para ir à academia com seu… colega de quarto? Amigo? Algo por aí. Mas ele estava animado e estranhamente ansioso para vê-lo de novo.
Chapter Text
Doied está diferente.
Cellbit compartilhou esse pensamento em seu grupo de amigos, composto por ele, a irmã, Pac, parte principal do setor de comunicações, e Felps, da área de marketing. Um fato curioso é que os últimos dois estão em uma espécie de relacionamento sem rótulos que apenas eles entendem o que significa. Mas no geral, todos se conhecem há muito tempo, desde a escola. Naquela época, Cellbit estava tão grato pelo apoio que prometeu a eles que os empregaria na sua própria empresa se tudo desse certo.
Nota-se que ele leva suas promessas muito a sério. É coisa de Balanar.
Por serem seus melhores amigos, eles sabem de praticamente tudo o que se passa na mente de Cellbit. Eles costumam se apelidar de seus divertidamentes. Pac é a Alegria; Felps, o Medo; e Bagi, a Raiva. Nenhum deles é sua Tristeza, ao menos, então ele julga estar bem de companhia.
Isso também implica dizer que eles sempre estão lá quando ele extravasar suas dúvidas e emoções.
— O que esse filhote de satanás fez?
A voz de Bagi veio ruidosa, tão alta que deveria ser ouvida até de fora de seus fones de ouvido. Ela era a interpretação perfeita da desconfiança e da paranóia, provavelmente seu lado ainda mais racional e calculista. Bagi é extremamente desconfiada e, por tabela, desgosta mais de Doied cada vez que ele respira.
— Nada! — defendeu-se, mais calorosamente que de costume. — Ele só…
— Jogou fora o pote de goiabada porque disse que passou da validade — Pac tentou adivinhar, risonho —, mas ainda faltava um dia para vencer?
— Trocou todas as flores do apartamento por plantas falsas porque não tem paciência para regá-las todos os dias?
— Nossa, Felps, para que tocar na ferida? Eu já tinha superado isso.
Na verdade, não tinha. Foi logo em seu primeiro mês de vida conjunta. Cellbit ainda se sentia extremamente intimidado por Doied, como uma criança com medo de retrucar a escolha dos pais de pintar as paredes do quarto de rosa em vez de verde. Ele sempre teve um pé para a jardinagem e cultivava meia dúzia de plantas desde a adolescência, decidindo trazê-las para decorar o apartamento.
A única que sobreviveu ao feng shui de Doied foi o vaso com amarantos que Cellbit mantém na cabeceira de sua cama. Todas as outras foram lentamente substituídas por plantas de plástico. “Nem sempre teremos tempo para regá-las, não quero que morram.” Ele não sabe dizer se aquela foi uma escolha empática ou se Doied simplesmente não gostava das plantas. De toda forma, Cellbit conseguiu levá-las para serem distribuídas por cômodos da Taaffaiete, então não foi uma perda total.
Mas o magoou um pouco na época, sim.
— O raio não cai duas vezes no mesmo lugar. — Bagi bufou. — Duvido que ele vá repetir o que já fez. Esse aí é incrível em se superar em ser insuportável.
— Ai, amiga, ele nem é tão ruim assim. — Pac tentou defender também, sempre o miss simpatia. — Só é muito…
— Riquinho — completou Felps. — Cheira a rico, age como rico, anda como rico e acho até que tosse, espirra e arrota como rico.
— Ah, não me lembro de já o ter visto arrotar…
— Eu disse!
— Mas eu acho que as coisas até estão melhores desde o acordo de convivência. Né, fi?
O acordo que ele quebrou, no caso.
A proposta do acordo de convivência entre Doied e Cellbit veio justamente após o evento das plantas. É um contrato puramente informal e na base do boca boca, que diz que:
- Ninguém mexe nas coisas do outro sem permissão prévia;
- Tudo o que um for comer deve ser etiquetado e separado por cor, mas o que estiver vencido será descartado independente de quem guardou;
- Compras e vendas de móveis da casa devem ser discutidas com, no mínimo, 24 horas de antecedência e acordadas entre os dois e
- Nunca, sob nenhuma hipótese, entre no quarto do outro.
— Então… — Respirou fundo. — Ele meio que quebrou a última regra.
— Ele fez O QUE?
— Bagi, moça, meus tímpanos!
— Tentou organizar suas roupas por cor? Jogou fora os lençóis da cama? Ajeitou seu tapete que você deixa sempre torto no meio do quarto?
— Não, não e não, Felps.
— Tirou o laptop da tomada que você SEMPRE esquece ligado em cima da cama?
Opa…
— Eu desliguei!
Na verdade, ele estava indo para o quarto desligá-lo agora. Certos vícios nunca mudam, e mesmo à distância sua irmã ainda o ligava constantemente para lembrá-lo de desplugar as coisas da tomada. O impressionante é que ele sempre estava com algo ligado quando ela o fazia. É provável que Bagi tenha poderes psíquicos e nunca tenha dito.
— Enfim, teoricamente ele não mexeu no meu quarto em si. — disse após abrir a porta. Laptop ligado sobre a cama. Culpado! — Ele só entrou no meu banheiro e… Usou meus produtos de skin care…
— Moço Doied sabe o que é um hidratante?
— E usou um dos meus roupões.
— Aí foi demais — Felps fingiu sons de vômito. — Nem eu fazia isso e a gente dividia pijama quando menor.
— Isso mal conta, você nunca deixava eu ficar com as calças.
— E você QUERIA usar as minhas calças?
— Não sei se deveria ficar curioso ou com ciúmes, moços.
— Vocês são uns esquisitos!
A conversa continuou, mas Cellbit estava aéreo o suficiente para não prestar muita atenção nos próximos tópicos. Sua mente ainda estava focada na quebra do acordo e em como tudo feito por Doied nos últimos dias parecia ser destoante com seu Modus Operandi de sempre.
Quando tocava no assunto, sua irmã dizia que ele deveria ficar de olho porque Doied certamente estava tramando alguma coisa. Honestamente, incomodava-o um pouco toda essa paranóia de Bagi sobre Doied, a quem ela nunca teve simpatia e Cellbit duvidava que o sentimento mudasse mesmo com o passar do tempo. “Ele não é confiável”, é o que ela vive dizendo quando ele a questiona, o que acontece pelo menos uma vez todos os meses, no mínimo.
Bagi odeia o acordo de casamento que o irmão assinou. Ela diz que é uma demonstração superficial de pena, e que os dois não precisam da pena de ninguém, muito menos de alguém como Doied. Cellbit concorda em partes. Ao mesmo tempo, eles precisavam muito do apoio financeiro na época, e isso os dois são, mesmo que a contra gosto, muito gratos.
E mesmo ele entendendo o ponto de vista da irmã, algo sobre a mudança repentina de Doied o deixa um pouco alegre. Mais esperançoso, talvez seja uma descrição melhor. Ele sempre quis se aproximar de Doied, sendo alguém que Cellbit admirava e respeitava pelo seu sucesso prematuro e capacidade de gerência. Pode-se até dizer que Cellbit queria surpreendê-lo com suas habilidades administrativas ou algo do tipo — as quais, para sua infelicidade, ainda são muito inferiores.
Contudo, ele sempre sentiu que existia uma barreira invisível imposta pelo próprio Doied sendo erguida entre os dois. Bagi dizia que era prepotência e ego. Agora, Cellbit apenas acreditava que ele deveria ser tímido demais para abrir suas defesas de uma hora para outra com alguém que mal conhecia, e já iria se casar. Ele pode entender.
Isso não significa que Doied foi repentinamente substituído ou abduzido por alienígenas. Essas coisas nem existem!
Mas…
Será possível você ter sido substituído?
Cellbit se estapeou ao se ver ter esse tipo de pensamento. Ele estava parecendo com Bagi agora! Uma característica interessante sobre os tais gêmeos do mistério é que ambos são igualmente pirados e paranóicos, mas de formas diferentes. Cellbit sempre será analista e criará mil ideias absurdas, porém todas conforme a realidade e as provas que possuem. Bagi, por outro lado, é uma entusiasta das teorias da conspiração mais malucas que um ser humano pode cogitar pensar.
Essas coisas não existem, Cell.
Mas e se existirem?
— Cellbit, tudo bem?
Doied nunca pergunta se estou bem.
Cellbit pisca e coça a nuca. Eles estão reunidos na enorme mesa de jantar. Como sempre, Cellbit sentou na ponta próxima à sala, pois Doied gostava de ficar na outra cadeira da ponta que ficava de frente para a luz natural da janela.
Diferente de habitual, no entanto, Doied moveu seu prato e se sentou ao lado dele. Bem, não exatamente ao lado. Havia uma cadeira de distância. Mas ainda é muito perto para os padrões de Doied.
Padrões Doiedianos, sim. E eles estão sendo consecutivamente quebrados. Um atrás do outro.
Ele torce para que Doied quebre mais.
— Apenas pensativo.
Doied ajusta o óculos escorregadio em seu nariz.
— Quer falar sobre?
Sim.
— Não.
Doied assentiu e começou a comer. Sobre comida, parecia ser o que ele normalmente separaria para comer: duas torradas, um ovo de gema meio mole — nem mole ou cozida demais —, algumas frutas e um copo de suco. O último é questionável, já que Doied prefere chá. Cellbit ficou feliz com essa mudança de ares porque ele odeia o cheiro de chá.
Ele desgosta de chá no geral.
Silenciosamente, Doied o passou sua xícara de café favorita. Não o surpreende que ele saiba disso, já que seu noivo sempre fez o tipo observador. Certo, não há nada de errado até aqui.
Não tem nada de errado com ele.
Apenas algo diferente. Sim, isso certamente tem.
— Vai à academia hoje, Doied?
— Pela tarde, sim.
Cellbit balançou os pés debaixo da mesa.
— Pode esperar até depois do almoço? — Ergueu a sobrancelha. — Também quero ir e apreciaria uma boa companhia.
Aquilo pegou Doied de surpresa. Ele pigarreou e voltou a mexer nos óculos, mesmo que eles não estivessem caindo de seu rosto dessa vez.
— Um parceiro de treino pode ser uma ideia agradável.
— Eu sou um ótimo parceiro.
Doied respondeu em um fio de voz, tão baixo que Cellbit quase não ouviu:
— Eu sei que é.
Cellbit saiu para trabalhar pensando em que horas voltaria para casa para ir à academia com seu… colega de quarto? Amigo? Algo por aí. Mas ele estava animado e estranhamente ansioso para vê-lo de novo.
Chapter 8
Summary:
Depois disso, Doied não conseguiu olhar para o rosto do avô principalmente porque, da parte dele, aquilo era uma meia verdade. Até mesmo vê-lo em fotos — e ele não tinha tantas — doía. Ele não sabe explicar qual sentimento ao certo era o pior. Se era mágoa, a distância ou a culpa.
Chapter Text
moça que cuida do paivô
Senhor Roier, bom dia!!! Tudo bem??
Mandando mensagem porque fiquei extremamente preocupada que o senhor não veio visitar seu avô essa semana. Como você sempre é um visitante assíduo, imaginei que algum problema tenha acontecido!!! Por favor, se puder, venha hoje ou algum outro dia!! Ele fica chamando por você todos os dias!
Espero que tudo esteja bem!
A mesma conversa estava aberta há vinte minutos. Mesmo dentro do Uber, Doied ainda não acredita que realmente está indo, voltando para lá, depois de tanto tempo. Ele se sente anestesiado. Se fosse honesto, mal saberia dizer em que momento se levantou da cama e trocou de roupa, muito menos quando pediu o carro e o porquê de ainda estar dentro dele sem pedir para dar meia volta e voltar para seu quarto de hotel.
Ele queria ter negado. Mas não conseguiu, não em tempo hábil. E também, Roier nunca teria dito não.
O problema é que Doied não é Roier.
Eu não consigo fazer isso.
Ao fim da corrida, Doied se vê parado em frente a porta do Asilo. O lugar é bonito, grande e bem cuidado. A grama foi reparada recentemente e as janelas quase brilhavam de tão limpas. O pequeno chafariz com água cristalina foi um dos itens que o incentivou a escolher esse lugar para o avô no passado. Se alguém era capaz de manter o menor acúmulo de água possível livre de dejetos e limpo, então é minimamente confiável.
Seu avô foi admitido no asilo há três anos. Ele tinha uma cuidadora pessoal, senhorita Giulia, quem provavelmente o contatou naquela mensagem. Doied a viu pessoalmente uma só vez, no mesmo dia em que confirmou a hospedagem do avô.
“Olá, senhor Doied! Sou Giulia, a cuidadora do seu vô!” Ele se lembra que ela parecia animada. Jovem, deveria ser uma voluntária. Ou era muito bem paga. “Você irá visitá-lo quando?”
“Eu não virei.” Foi sua resposta. A garota se decepcionou, ao julgar que seu sorriso morreu rápido e seus ombros despencaram ao chão. “Meu irmão irá. O nome dele é Roier. Coloquei o número dele na ficha. Mande a ele os horários, compromissos, agenda, tudo. Várias vezes, se precisar. Ele é irresponsável com horários.”
Mas ela disse que Roier é um visitante assíduo.
Roier vem tantas vezes ao asilo que ele ter falhado uma única vez na semana foi considerado preocupante.
Eu não vim nenhuma vez.
Na verdade, Doied veio. Foi na primeira semana. Seu avô ainda estava passando pelo período de adaptação.
Doied parou na porta do quarto do avô. Ele conseguia ouvi-lo reclamando alto com sua cuidadora. Ela tentava tranquilizá-lo e parecia estar o colocando para descansar na cama.
“ELES ME ABANDONARAM AQUI.” Foi uma das várias coisas que ele disse, e possivelmente a única frase sem nenhum palavrão contido. “ME ODEIAM! ME ACHAM LOUCO! NÃO QUEREM ME VER DEFINHAR E MORRER!”
Depois disso, Doied não conseguiu olhar para o rosto do avô principalmente porque, da parte dele, aquilo era uma meia verdade. Até mesmo vê-lo em fotos — e ele não tinha tantas — doía. Ele não sabe explicar qual sentimento ao certo era o pior. Se era mágoa, a distância ou a culpa.
Mágoa porque o favorito de seu avô sempre foi Roier. Claro, o favorito de todos é Roier. Ele é legal, descolado, sabe falar e se expressar, tem uma dicção de dar inveja, faz as melhores piadas e é, se já não bastasse todos os adjetivos positivos, alguém com coração de ouro. Roier abandonaria a própria vida por alguém que ele ama, e a maior prova disso é sua relação com o avô.
Quando eram pequenos, o avô se esforçava para dar um presente para cada. Ele tinha menos dinheiro que o filho e a mulher — os pais dos gêmeos —, mas ainda tentava ser o pai presente que nenhum deles teve. O tempo passou e seu avô foi demitido por ser velho demais para o mercado de trabalho. Nessa época, os gêmeos estavam completando nove anos.
Foi a primeira vez que apenas um presente apareceu em sua festa de aniversário compartilhada.
E o presente foi para Roier.
“Eu arrumarei algo para você depois, filho, ok? Mas agora eu não consigo.” Ele disse isso. E Doied entendeu.
Mas no aniversário de dez anos, apenas Roier recebeu um presente. E no de onze. E no de doze. No de treze, Doied se presenteou com o dinheiro acumulado ao longo dos anos. Um paninho novo para limpar seus óculos.
No de catorze, nenhum dos gêmeos ganhou um presente. A saúde do velho piorou e ele começou a ter alucinações e perdas de memória. Às vezes, Doied o escutava sussurrando três nomes ininterruptamente. O nome do pai deles. O nome de Roier. E o nome de Doied.
O velho não queria os esquecer.
É provável que só lembre de Roier agora. E é onde entra a distância e, logo bem atrás, a culpa.
Suspirando, Doied ajustou a bandana na testa. Ele ainda não havia se acostumado a usá-las. Roier gostava muito delas, então ele julgou que precisava de uma para estar apresentável. Até onde se lembra, a diabetes e o Alzheimer deixaram seu avô meio cego, mas o velho sempre fez do tipo calado e esperto.
Eu só preciso ser Roier o suficiente para ele.
Sim, Doied poderia ter apenas fechado aquela mensagem e cumprido com sua promessa de nunca mais pisar nesse lugar. Roier não precisaria saber. Se ele não soubesse, não ficaria chateado depois. E dependendo, até ficaria satisfeito que Doied não foi em seu lugar para fazê-lo passar vergonha.
Mas nosso velho já é sozinho demais.
— Seria melhor se fosse o Roier de verdade aqui. — Encarou as próprias mãos com o cenho franzido. Mais um suspiro. — Merda.
Esse acordo era para me livrar das preocupações, e não potencializá-las ao cubo.
Sem mais tempo para lastimar-se ou poder voltar atrás, Doied entrou.
O lugar é ainda maior por dentro do que parece. Todas as plantas são de verdade, verdinhas e sem nenhum inseto ou erva daninha. Há poltronas e sofás espalhados pela recepção. Apesar das paredes brancas, os móveis são coloridos e há quadros espalhados por todas as partes. E é muito, muito iluminado.
Confortável.
— Senhor Roier! — O recepcionista acenou. — Aqui!
Todos os funcionários do Asilo são incrivelmente jovens e sorridentes. É estranho, porque Doied não imagina como tantas pessoas podem gostar de limpar a sujeira de velhos de 70 anos. Novamente, devem ser muito bem pagos. A mensalidade que Doied paga é, ao menos, muito alta.
— Ah. — Doied engoliu em seco. — Boa tarde.
— Boa tarde, senhor! Você não apareceu aqui semana passada. Temos que admitir, ficamos preocupados! Algo aconteceu? — O moço fez cara triste. — É o dinheiro de novo?
— Ah, não, não! Só tive uns imprevistos e não pude avisar com antecedência, perdão.
— Menos mal! Daquela última vez, foi realmente desanimador. Aliás, não precisava me devolver o dinheiro que te emprestei para pagar as passagens, é um presente! Nós sempre gostamos de ter o senhor por aqui.
Ah.
Roier não tinha dinheiro para vir para cá?
Doied reprimiu um suspiro.
É por isso que o aluguel venceu. Ele ficou em silêncio enquanto o recepcionista falava e falava sobre alguns dos outros velhos do Asilo. Aparentemente, todos gostavam de Roier. Novamente, nenhuma novidade. Se não há nem dinheiro para andar de ônibus, óbvio que não há para as contas também.
— Eu posso ir vê-lo?
— É claro! Ele saiu do banho há pouco tempo. Ficou ansioso quando soube que você viria. — O recepcionista sorriu. — Entrada liberada. Pode ir!
Ainda é…
— Quarto 053, não esqueça!
O mesmo.
— Obrigado.
O caminho até o quarto de seu avô foi lento e tortuoso. De certa forma, o ar parecia mais pesado conforme se aproximava do corredor dos quartos. A entrada do Asilo tenta ser reconfortante e feliz, mas as verdadeiras dores se escondem por detrás das portas.
— Senhor Oliveira, você precisa se alimentar… Nem que seja apenas um pouquinho.
— Eu irei morrer. — A resposta veio abafada por uma das portas que Doied passou. — Não precisa se preocupar mais comigo, meu jovem. Ninguém vem mais me visitar ou conversar comigo… Eu quero morrer em paz.
O diálogo sucinto de um senhor idoso desconhecido pôs um peso absurdo sobre seus ombros. De certa forma, foi como reviver as memórias daquele dia há três anos. Poderia ser seu avô atrás daquela porta. Se Doied não soubesse da numeração do quarto, realmente cogitaria. Tanto tempo sem ouvi-lo falar e ele já esqueceu como era sua voz.
Respira, Doied.
Ele deu um último ajuste na bandana antes de respirar fundo e, resoluto, bater na porta do quarto 053.
Nenhuma resposta.
Doied bateu mais uma vez. Ele sempre batia três vezes antes de entrar em qualquer lugar. Isso foi resposta ao trauma, na verdade. Quando pequeno, ele entrou sem bater no quarto do avô e viu coisas que não queria ter visto.
Na terceira batida, Doied entrou.
O quarto de seu avô parece com um hospital pediátrico. Isso porque, sim, é branco. Muito branco. Mas tem um detalhe sutil que o deixou desnorteado.
Desenhos.
Ele se lembra que seu avô sempre teve talento para o desenho tradicional. Quando chegava do trabalho, sempre pela noite, ele vinha para a sala com um caderno pequeno e um punhado de carvão e nanquim. Seu velho dizia que gostava de desenhar paisagens e objetos da casa porque ainda não se julgava capaz de representar bem silhuetas humanas.
Mas todos os desenhos espalhados pelas paredes do quarto eram de pessoas.
A maioria eram de Roier. Ele estava sempre representado sem os olhos, mas tinha um sorriso enorme e meio redondo. Seus desenhos vinham acompanhados de rascunhos de aranhas e máscaras como aquelas típicas do teatro tragicômico.
Os outros eram de uma moça. Giulia, provavelmente. Ela tem cabelos curtos e mãos muito grandes. Não há bocas, mas um par de olhos fechados que parecem estar sempre sorrindo. Seu vestidinho é brega e fofo com babados nas mangas.
Ele parece… bem?
O velho está de costas para a porta. Em seu colo, um pequeno caderno idêntico ao que usava nas memórias de Doied. Suas mãos calejadas e ossudas tracejavam às páginas com fervor. Muitas bolas de papel cutucavam seus pés descalços. Ele desenhava algo, resmungava, amassava, jogava fora e tentava de novo.
— Ei.
A mão parou no papel. Seus ombros subiram e desceram. Mais um resmungo veio, um pouco mais doce. O velho pegou a almofada ao seu lado e jogou-a para o chão, liberando espaço.
Doied riu entredentes.
— Delicado, ein.
— Hn — Tapeou o espaço livre.
Eu não sei o que eu falo. Será que Roier fala alguma coisa? Doied engoliu em seco e se sentou na cama. Ele sempre fala pelos cotovelos.
— Ah…
Não vou perguntar como ele está, parece estúpido. Doied não é bom em conversa fiada, verdade seja dita. Isso é algo decepcionante para grande parte dos seus amigos. Cellbit também está incluso. Doied até tenta se esforçar para não manter o clima estranho, mas é difícil quando suas habilidades comunicativas são tão eficientes quanto a de uma porta.
— O que desenha?
O velho suspirou e o entregou um dos desenhos descartados. Novamente, uma pessoa sem rosto. Não era Roier nem Giulia. Parecia ser alguém mais velho e com ombros cansados e rugas sobressalentes na testa.
— Está se desenhando?
— Tentando.
A voz de seu avô ainda é grossa e rouca. Culpa do tabaco. Os problemas de fala foram herdados dele também, provavelmente. O velho mal consegue pronunciar os enes e emes sem se embolar.
— Qual o problema?
— Falta algo.
Doied ponderou e voltou seu olhar aos desenhos.
Seu avô não é um artista de realismo, tampouco de retratos. É provável que se aproxime do surrealismo com um pouco de caricatura. Ele faz silhuetas, mas não as completa. Ao que aparenta, gosta de pronunciar as características mais notáveis e fortes de alguém. Como o sorriso de Roier ou as mãos gentis de Giulia.
O que ele tem que o torna ele?
— Acho que…
Doied encarou-o bem e sorriu. Bem, tentou.
— Torne suas sobrancelhas mais grossas.
— Grossas?
— E curvadas. Como se estivesse me julgando.
Ele fechou os olhos e anuiu. Suas mãos voltaram ao desenho, mais firmes e confiantes. Um par de sobrancelhas peludas e pontiagudas surgiram no lugar dos olhos. Sua expressão indicava indignação. Vendo isso, Doied poderia imaginá-lo assistindo o jogo de seu time favorito da década de 1970.
— Bom.
— Quer que eu o coloque com os outros?
— Uhum.
Doied pregou o desenho no mural da parede. Todos os papéis eram presos com tachinhas coloridas. Os desenhos de Giulia estavam legendados com canetinha rosa brilhante em letra cursiva, provavelmente da própria moça. Alguns de Roier, ele notou, também tinham escritos, embora com uma letra bem mais feia que a de Giulia.
— Por que desenha? — soltou sem querer.
O velho deu de ombros.
— Para não esquecer.
Aqueles que são importantes para ele.
Roier, seu neto. E Giulia, sua cuidadora.
Apenas eles.
Entendo.
— Teve algumas notícias do pai?
— Eu sou seu pai, filho.
É claro. Doied não pode negar. É provável que Roier ainda seja um pouco apegado às memórias do pai, já que era o gêmeo mais novo e o mais adorado por ele e pela mãe. Mas Doied é rancoroso, algo que o manteve próximo do avô por bastante tempo. Mesmo ao ter se mudado em bons termos, seus pais nunca procuraram notícias nem dele, nem de Roier e muito menos de seu avô.
Seu avô foi avô, mãe e pai deles.
É por isso que eu me esforcei tanto para te colocar em um lugar bom. Doied não se importava com a mensalidade cara do Asilo. Para ter companhia, atenção, comida boa, lazer e roupa lavada, dinheiro era o de menos. Seu velho parecia bem, é o que importa.
Um de nós precisava ser o responsável.
Roier sempre mostrou interesse em seguir na carreira de Teatro. Ele aparecia na sala vestido com as roupas do avô e usava a toalha da mesa como peruca. Todos os dias, interpretava algo novo, como algum personagem de um desenho legal que aparecia na televisão. Seu avô batia palmas. Nos primeiros anos, Doied também batia.
Ele parou depois quando notou que Roier não pararia com aquilo. Quando seu avô foi demitido. Quando seu pai não respondeu a nenhuma das cartas de ajuda que Doied tentou enviar para o México. Quando sua mãe enviou uma resposta mandando-o parar. Quando os presentes de aniversário pararam de chegar ao seu irmão.
Quando Doied deixou de ser o irmão mais velho e se tornou o chefe da família.
— Gosta daqui?
— A comida é boa. — o velho resmungou. — E tenho parceiros de truco e canastra.
Você me ensinou truco. Será que lembra?
— E eles jogam bem?
— Não melhor do que eu.
— Tem as cartas?
Eles jogaram truco por quase duas horas. Giulia ainda apareceu duas vezes com sucos e biscoitos. No restante, era apenas silêncio e o som leve das cartas batendo contra os lençóis da cama. Nos momentos finais de sua visita, o velho voltou a desenhar e não deixou-o ver até que terminasse.
— Tenho que ir.
O velho entregou o desenho.
Era, a princípio, um desenho de Roier. As roupas são as mesmas e o cadarço, ao contrário dos outros esboços, está amarrado. Este não aparenta sorrir. Seu rosto está coberto por uma máscara sorridente de teatro. Ele está jogando cartas, o dedo indicador de pé idêntico a quando Doied sinaliza que venceu a partida.
— É um presente.
— Ele é diferente — Doied sussurrou.
A risada rouca e tossida dele o fez tremer.
— Claro que é.
O que isso significa?
— Obrigado, filho.
— Pelo que?
O velho estendeu os braços. Estavam fracos e trêmulos, mas ainda ficaram firmes ao abraçá-lo. Seu avô é baixinho, tendo que enfiar a cabeça quase careca na curvatura de seu pescoço. Doied paralisou, o coração disparado contra o peito.
Ele não se lembrava como era abraçar alguém.
— Obrigado por me fazer lembrar de ti.
Doied fechou os olhos e respirou fundo. Suas pálpebras tremiam. As lentes arderam pelas lágrimas acumulando abaixo da íris.
— Senti sua falta, filho.
Tremeu. Eu também, velho.
Eu também.
Chapter 9
Summary:
Mas ele se esqueceu que, um dia, veria Roier protagonizando sua vida enquanto Doied seria apenas o espectador que tudo vê, mas nada tem.
Chapter Text
“#LOTUS2024: O Desfile de Outono da Taaffaiete acontecerá hoje (4), no Estúdio Diamond, Seção 044. ‘Nós vamos surfar entre a transitoriedade da existência e o renascimento’, revela Bagi Balanar, COO da Taaffaiete.”
— Parece ser um evento e tanto.
— Sempre é, senhor Roier. — Ramón nunca o olhava quando estava dirigindo. Ainda assim, ele ainda sentia que existiam olhos nele, observando suas roupas, seu cabelo, seu agir, seu tom de voz. É provável que fosse apenas sua paranóia constante, no entanto. — Não importa o que a crítica diga, os desfiles da Taaffaiete são sempre surpreendentes.
Hoje seria o primeiro desfile que Roier assistiria da Taaffaiete. Ele já viu alguns cortes e fotos de modelos porque Tina insistia em o mostrar, mas ele nunca teve interesse o bastante para procurar mais sobre por conta própria. É engraçado pensar nisso porque Roier quase madrugou pesquisando os eventos passados desde que recebeu o convite de Cellbit, há três dias.
Tudo o que ele viu parecia belo e encantador. As críticas nem sempre eram igualmente boas, no entanto. Algo sobre falta de originalidade e “ cópia de baixa qualidade do legado de ouro da Taaffaiete ”. Ele não sabe o que isso significa, mas julgou essas palavras muito duras. Duras demais.
Deve ser por isso que Cellbit parecia ansioso a semana inteira.
“Não vai te atrapalhar vir, vai?” Ele tem bem marcada na memória a expressão abismada de Cellbit quando aceitou o convite. É provável que nunca tenha acontecido antes. Mesmo assim, Cellbit continuava convidando. “É dia de semana…”
“Talvez eu tenha algum compromisso.” Roier deu de ombros, sem vontade alguma de ir para a empresa carimbar milhares de papéis de uma papelada que ele não sabe e não tem interesse de saber sobre o que fala. “Pedirei a Mariana para liberar minha agenda.”
“Eu…”
“Já me decidi, não insista.”
Cellbit não insistiu. Ele estava sorrindo demais para dizer outra coisa.
— Chegamos, senhor Roier.
— Obrigado, Ramón.
Ao pisar para fora do carro, ele foi bombardeado por flashes ofuscantes. Sua reação primária foi franzir o cenho, incomodado pela falta de visão. Os paparazzi entenderam aquilo como sinal para recuarem, interpretando como a careta desgostosa natural de Doied.
Veio a calhar. Reprimiu um sorrisinho enquanto era guiado por um dos guias do evento. Realmente prefiro poder enxergar onde estou botando meus pés.
Há um pequeno grupo especializado em comentar as roupas dos convidados. Os olhares estavam presos nele e em sua vestimenta, um terno verde de três partes com uma pequena corrente prateada sobre o peito. A mídia nunca viu Doied de Luque tão bem vestido, e o fato dele estar assim em um evento protagonizado por Cellbit Balanar, de todas as pessoas, apenas potencializa os burburinhos.
A mídia esperava por migalhas e recebeu um banquete.
O lugar que Cellbit reservou a ele não ficava na primeira fileira de cadeiras. Na verdade, era um pequeno punhado de poltronas situadas na parte mais elevada de frente à passarela. Dali, Roier conseguia ver perfeitamente o momento em que os modelos saíam do camarim no começo do desfile. Ao seu lado, o assento vazio pertencia a Bagi, mas ela parecia tão ansiosa checando os últimos detalhes que é provável que não voltaria tão cedo para cá.
A Taaffaiete reservou um salão de festas enorme para o desfile. Roier não tinha boa noção de espaço, mas imaginou que facilmente haviam mais de trezentas cadeiras ali. A iluminação é fraca. Os holofotes reproduzem uma luz branca dançante acima da passarela. O som ambiente que toca é um violino suave precedido do que parecem ser gotículas d'água, tão calma que o faz pensar que está caminhando sobre um lago ou coisa parecida.
Combina com o tema.
Cellbit não deu maiores detalhes por insistir que uma surpresa o forneceria a experiência completa do desfile. Roier sabe que Flores de Lótus são o tema principal da campanha por causa dos comerciais de anúncio do Desfile de Outono da Taaffaiete — fora que o nome é autoexplicativo. Tirando isso, ele se sente no escuro.
Alguém se senta ao seu lado. Roier corre para ajustar a postura, por mais reto e neutro que já estivesse. Câmeras surgiram em seu rosto desde o momento em que seus pés pisaram no salão. É culpa de Doied por não gostar de sair de casa. Qualquer mínima menção de notícias suas deixa os paparazzis insanos!
— O que faz aqui?
Luzu dá de ombros e tira o celular do bolso do smoking.
— Mariana achou que você estava mentindo quando disse que vinha ao desfile da Taaffaiete. — Luzu ligou a câmera do celular. — Então, estou aqui para salvar sua pele. Obrigado, de nada.
— E seu trabalho?
— Ah, eu ganhei um novo estagiário. Não, não se preocupe, ele é bem competente… ao menos, ele sabe tirar xerox . — Posicionou a câmera na posição de selfie. — Faça uma pose. Vou enviar para Mariana.
Roier estava tão genuinamente embasbacado que não demonstrou reação nenhuma para foto, apenas piscou e franziu o cenho, indignado. Para Luzu, aquela era a foto “mais Doied” o possível. Ele mostrou um joinha para a câmera e tirou a selfie , enviando-a para Mariana logo em seguida.
— Como está o desfile? Perdi algo?
— Bagi disse que começará em cinco minutos.
— Que bom, eu odiaria perder.
— Gosta de desfiles?
— Na verdade, sim. Sou um entusiasta da arte em sua completude. — Guardou o celular e cruzou as pernas. — E moda também é arte.
De todos os amigos de Doied, Luzu tinha a melhor conversa. Ele não falava demais, mas sabia manter um papo interessante por tempo o suficiente para não tornar o clima desconfortável. Mais do que isso, ele sabia de muitas coisas e tinha repertório para praticamente tudo. Na semana passada, eles conversaram sobre o Homem Aranha e como era formada a teia dentro de seu organismo. Foi reconfortante saber que ele poderia falar abertamente sobre seus interesses com alguém por ali.
Isso me faz pensar. Roier suspirou e ajeitou o cabelo. Estava grande demais para os padrões de Doied. Ele teria que descobrir onde seu irmão cortava o cabelo e aparar. Estou nessa furada há quase dois meses e ainda não fui descoberto. Eu deveria ganhar um Oscar pela minha atuação perfeita.
— Fale um pouco sobre então. Tudo o que sei é que pessoas passeiam usando roupas.
— Desfilar não é apenas passear, caro Doied.
Esse é o tipo de frase que Tina falaria. Novamente, aquele era o lugar perfeito para ela.
— Existem regras de desfile. Por exemplo, você deve andar com o pé um na frente do outro, e não ao lado como é nosso costume.
— Por quê?
— Você vai ver, mas isso evidencia o movimento dos quadris. É uma forma de expressão sucinta e elegante do corpo. Modelos devem mostrar personalidade de forma harmônica, sabe, sem desviar a atenção da roupa.
— É por isso que modelos nunca sorriem?
Em um evento raro, Luzu dá uma risadinha.
— Exatamente.
As luzes apagaram. A música mudou, mais eloquente e enérgica, agora apoiada nos graves do piano. Velas artificiais acompanhavam as rebarbas da passarela. Elas tinham formato de flor. Claro, Lótus.
— Observe os detalhes, Doied. Há arte em tudo.
Ele notou que a iluminação da passarela ficou um pouco mais amarelada, embora não muito. O branco ainda permanecia em destaque. O teatro o ensinou que luzes brancas eram boas para gravações. Ajudavam a tornar a imagem na câmera mais nítida. Considerando que todo o desfile era televisionado ao vivo, Roier entendeu a escolha.
Cellbit pensou até nisso, não é?
As modelos entraram descalças. Há um intervalo de exatas vinte notas de piano entre a entrada de uma ou outra. A paleta de cores, no geral, mantém-se entre rosa, verde e os clássicos tons de creme. Eles estavam no outono. Geralmente, você associaria laranja e marrom à estação. Mas a moda vai muito além do clima ou do tempo. A moda cria tendência. Mais do que isso, é uma expressão pura e dinâmica de arte.
Roier entendeu o que Luzu e Tina tanto viam na moda assim que se ateve aos detalhes.
As roupas da Taaffaiete são famosas não só por serem bonitas, mas por contar uma história com começo, meio e fim a quem vê.
As primeiras roupas são mais neutras e tem corte encorpado. Cutucando-o, Luzu mostra a câmera do celular com o zoom ligado no máximo. Isso o fez notar que os tecidos tinham detalhes ondulados em dourado simulando o movimento da água. Quando a luz batia na modelo, o ouro era ainda mais evidente.
Como o reflexo de algo na água. Sabe, tem seu poderio filosófico. Roier se sente encantado.
Cores aparecem aos poucos. Primeiro verde. Não são tons extremamente fortes. Na verdade, parece com a cor do terno que vestia. O corte dos tecidos é mais abstrato, no entanto. Na terceira peça, Roier entendeu que estavam representando as folhas.
A última roupa é rosa. Um rosa forte e contrastante, mas não tanto para parecer destoante com as montagens anteriores. A parte superior foi encaixada como pétalas de uma flor uma sobre a outra. As mangas são longas e transparentes. Lembra a Roier que pétalas de lótus rosadas geralmente são brancas nas pontas.
Se Tina estivesse ali, teria chorado e batido palmas sem se importar de estar no mesmo lugar que o empresário dono de sua conta bancária. Isso o dá vontade de se levantar e aplaudir por ela. Ele não o faz, porque se lembra que quem está ali é Doied, e não Roier. Não o impede de apreciar silenciosamente. É uma das coisas mais bonitas que ele já viu. O carinho nos detalhes é palpável.
A Taaffaiete sabe o que faz.
Atrás de todas as modelos, Cellbit entra com uma única mão levantada em cumprimento. É o chamado aceno de princesa. Coloquial o bastante para conquistar o público, recatado o suficiente para agradar a elite.
Cellbit sabe muito bem o que faz.
Ele está usando apenas branco e preto. Parece simples, mas é chamativo em uma multidão de roupas coloridas. Há correntes no pescoço, no cinto, nos anéis da mão esquerda e em um de seus brincos. Cellbit também retocou o esmalte preto das unhas. Ah, e ele está de delineador. É arrebatador quando você olha para baixo e o vê usando aquelas botas com salto enorme.
Roier está sem fôlego. É mais expressivo do que ele gostaria. Luzu o cutuca com a sobrancelha arqueada.
— Não fale nada — Roier resmunga.
— Não falarei. — Bufa baixinho. — Mas pensarei.
Cellbit passa os olhos por toda a plateia. Ele para no momento em que encontra Roier. Sorrindo, Cellbit acena com a cabeça. É como se ele estivesse o procurando.
Isso afeta Roier mais do que deveria.
— Bom dia! Sou Cellbit, atual CEO da Taaffaiete e o diretor criativo do desfile de hoje. Das vinte e sete peças mostradas, eu desenhei doze. — Ele suspira, orgulhoso. — Nossos designs foram inspirados nas Flores de Lótus, que nascem da terra úmida e se desprendem em belas pétalas únicas e cheias de cor. E quando digo única, é porque nasce apenas uma só flor por vez.
Por isso só uma das modelos está de rosa.
Novamente, Roier quer se levantar e bater palmas. Ele bate os pés incansavelmente no chão em troca.
— Todos aqui estão usando ao menos uma peça feita inteiramente com seda extraído de flores de lótus. Orgânico, elegante e muito, muito delicado.
Sua fala entorpece os críticos de moda mais mesquinhos. As pessoas gostam de saber que os produtos de uma marca respeitam as causas naturais. Não é pela questão de se importar com o meio ambiente ou com a sustentabilidade de fato. É tudo uma questão política, na verdade. Isso faz bem para a marca e para quem se associa com ela.
As roupas são sua arte, mas aquele desfile é, para Cellbit, a melhor forma de vender sua marca. Não mostrando as peças, os tecidos e o design incrível e engenhoso. E sim, dando valor ao produto.
Isso é mercado.
E isso é algo que Doied falaria.
— Com isso, quero agradecer aos nossos principais patrocinadores e apoiadores do Desfile de Outono: à Peonnie, que nos forneceu toda a matéria-prima necessária para a confecção da seda. — Novamente, Cellbit o encara. Sem parar. Penetrante. Anestesiante. Inferno, apaixonante. — E ao Banco Ore, principalmente ao meu noivo, por todo apoio que ele me dá.
Os paparazzis vibram com tantas migalhas. Cellbit e Doied nunca foram vistos interagindo tanto quanto nos últimos dias. Falando de relações públicas, eles estão indo muito bem.
A parte mais curiosa é que estão fazendo isso por conta própria e sem ter seus secretários marcando encontros por eles dessa vez.
Ao fim do desfile, Luzu se levantou para ir embora.
— Vem comigo?
— Para onde?
— Trabalhar?
Roier procura Cellbit. Ele leva um baque ao perceber que ele já estava olhando-o intensamente.
— Não trabalharei hoje.
Luzu arregala os olhos. Ele anui e sai sem dizer mais nada. É por isso que Roier gosta tanto dele: Luzu não o enche de perguntas.
Ajustando a barra da roupa, Roier engole em seco e desce até a passarela. A maioria dos convidados já foram embora, deixando apenas Cellbit, o comitê de organização e os paparazzis à espera de alguma coisa bombástica para levar para casa.
— Ei.
Cellbit o cumprimenta com um sorriso enorme. Ele deveria estar orgulhoso. Bem, Roier estaria.
— Ei! — Ele coça a nuca. — O que achou? Não sei se você é o maior entusiasta da moda que conheço… Sem ofensas!
Roier morde uma risadinha. Ele pensa bem antes de falar. O que Doied diria? Não seriam palavras ruins, claro. Ele pensa que até mesmo alguém como seu irmão teria cabimento de reconhecer a magnitude de um desfile de moda do porte da Taaffaiete.
Ele desiste de pensar no que seu irmão falaria e decide falar o que ele — Roier — achou.
— Foi uma das coisas mais bonitas que já vi.
Cellbit não estava esperando por isso. Um elogio, talvez. Mas não esse. Não desse jeito. Ele quase tosse, abismado.
— Mesmo?
— Tem uma riqueza de detalhes surreal aqui. Você está certo, não sou um grande entusiasta da moda. — Sorri pequeno. — Mas eu tenho um bom olho para o grandioso. Eu sei apreciar arte, ok?
— Você tem quadros de Van Gogh no seu escritório, então…
— Acho que a arte que você me mostrou aqui supera o Gogh. É de fato impressionismo, se me entende.
Cellbit está brilhando. Verdadeiramente brilhante. Ele nunca pareceu tão feliz e agraciado quanto agora. Estaria flutuando se fosse possível.
— Entendo bem.
— Bom.
— Fico feliz que você veio! Tipo, muito. — Cellbit pigarreia. — Eu separei uma peça para você, na verdade.
— Uma peça?
Cellbit desdobrou um tecido fino e semi transparente. É verde com detalhes em dourado do mesmo padrão da roupa das modelos. A etiqueta é um pingente dourado discreto com o nome TAAFFAIETE escrito no metal.
— É uma echarpe. Tipo um cachecol, sabe? Mas mais leve e suave. Pode usar no pescoço ou em cima do ombro ou… — Estala a língua. — Não sei, só guardar no armário. Seria um modelo descartado, mas ele me lembrou tanto de você que eu insisti muito para que o fizessem.
— Isso é daquela seda raríssima?
— Sim!
— Gastou matéria-prima comigo?
— Presentes são inquestionáveis, meu bem.
Roier agradece que são suas pernas tremendo e não suas mãos. Ele pega a echarpe e acaricia o tecido. É extremamente macia, como tocar na areia fofa e senti-la deslizando pelas dobras dos dedos.
Ele já viu Tina usando uma dessas. Na sua memória, ela colocava-a meio enfiada na gola da camisa. Roier imita sua lembrança. Esquenta a garganta. O tecido faz cócegas gentis em sua pele e é muito, muito cheiroso.
— Pareço bem?
Cellbit demora a respondê-lo. Ele o encara fixamente, as pupilas dilatadas com um sorriso doce nos lábios.
— É perfeito. — Sussurra. — Verde é sua cor.
Deu-lhe memórias. Ele lembrou que, quando crianças, Doied usava macacões verdes e Roier, vermelhos.
Um flash forte quase lhe cega. Cellbit revira os olhos e se despede — foge — dos jornalistas, empurrando-o delicadamente pelas costas.
— O que acha de jantar comida mediterrânea hoje?
Roier nunca comeu isso.
— Parece perfeito.
Ele descobre que adora.
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Uma saladinha verde é sempre bom.
Doied não é um bom cozinheiro. Ele é esforçado, mas na maioria das vezes não sai algo bom. É comestível, porém é insosso, duro demais, cozido a mais ou só fica com uma textura estranha na boca. Quando morava com o avô e o irmão, eram abuello e Roier quem cozinhavam e Doied abastecia a despensa. Funcionou bem. Assim que foi embora, ele cuidou de guardar um bom fundo para restaurantes e um cozinheiro pessoal.
Mas ele está se aventurando. Não que misturar a alface e os tomates do hotel seja uma grande iguaria digna de restaurante, mas tudo tem um começo.
A televisão da sala está ligada no jornal local. Como a cozinha é em conceito aberto, Doied pode assistir a tudo da bancada enquanto pica seus tomates.
Sua atenção muda quando o rosto de Cellbit aparece.
— Mais cedo, tivemos o que eu posso considerar como o melhor desfile da carreira de Cellbit e Bagi, os herdeiros da Taaffaiete. — uma crítica convidada de voz fina comentou. — Elegância, conceito, riqueza de detalhes, o conjunto da obra é espetacular. Geralmente eu teço muitas críticas à gestão de Cellbit como empresário e condutor de desfiles, mas hoje só tenho aplausos e elogios. É um momento marcante para ele e para a Taaffaiete como marca, com toda certeza.
— É quase como se estivéssemos vendo os antigos desfiles dos fundadores da Taaffaiete, não acha?
— Com toda certeza. Me sinto até emocionada pensando nisso. É um orgulho para a moda nacional!
Cellbit está crescendo, ein.
Ele sempre foi bom. Doied considera-se alguém com olhar bom para enxergar o potencial profissional de alguém — ele foi quem recomendou Luzu, seu melhor funcionário, afinal de contas. Cellbit sempre demonstrou o talento e a visão de mundo que muitos empresários de hoje não possuem.
Mas ele tinha um problema.
Cellbit não sabia nada de negócios. Nada. Não importa o quão inspirado e o quão belas fossem suas roupas, ele não sabia administrar os negócios. Bagi era boa, mas era apenas uma para uma empresa milionária. O resultado foi que os primeiros desfiles dos gêmeos foram um fracasso, ainda que elogiados pelas roupas e modelos.
Eles fracassaram tanto que quase foram à falência.
É onde Doied entra. Onde seu contrato de casamento com Cellbit entra. Onde Doied como novo investidor da marca de seu noivo entra. Onde toda a assessoria e olhar da mídia que Cellbit e a Taaffaiete ganharam com esse acordo entram. As camadas são várias.
A Taaffaiete começou a subir, embora lento. Cellbit comentava como isso era frustrante e que deveria estar tendo algo de errado para demorar tanto. Doied, como alguém mais experiente no mercado do que ele, assegurou que Cellbit deveria continuar o que estava fazendo que ele alavancaria em breve.
Parece que chegou o momento.
Ele sorri quando vê Cellbit discursar. Doied não é do tipo de demonstrar orgulho publicamente, mas ele sente. Ele sentiu quando Luzu foi promovido continuamente na empresa ao ponto de ter recebido propostas de emprego internacionais — as quais ele recusou apenas porque queria continuar trabalhando para Doied —, ou quando Slime fechou o contrato de sua casa própria e até no dia que Mariana apareceu dizendo que tinha comprado o carro dos sonhos.
Doied só não demonstra. Ele nunca irá dizer. Poucas vezes irá deixar claro que se importa. Seu apoio é silencioso, embora sincero. Isso é frustrante para a maioria das pessoas.
Ele se lembra do avô e seu sorriso some.
De todos os desfiles de Cellbit, Doied assistiu metade deles. Não inteiros. Às vezes, ele via alguns fragmentos da televisão durante seus intervalos de trabalho e identificava os erros de gestão para aconselhar melhor quando ele viesse procurá-lo por ajuda. É provável que Cellbit tenha pensado que Doied sabia de tudo ou tinha traços de vidência, mas, bem, ele só tinha feito a lição de casa.
Ele até quis assistir o desfile de hoje, mas preferiu dedicar o tempo livre para visitar o avô mais uma vez.
Suas visitas ao asilo estavam mais constantes: duas vezes na semana. Enquanto a recepcionista ainda não tinha descoberto sua farsa, seu avô o chamou pelo nome — por Doied, e não por Roier — logo em sua segunda visita. Bem que dizem que é impossível enganar um pai.
“Estou feliz que veio me ver. Eu quase acreditei que estava alucinando da última vez.” Seu avô mostrou-lhe o novo desenho em sua parede. Um de Doied. “Estou aprendendo a desenhar seu cabelo… você usava mais gel na minha memória.”
Ah, seu gel favorito. Ele sente falta. Mas seu cabelo está agradecendo pela possibilidade de voltar a respirar.
“Onde seu irmão está?”
Doied não conseguiu mentir para o avô. Ele sempre foi péssimo com mentiras por não sustentá-las bem. Roier, por outro lado, é um pilantra nato. Deve ser por isso que ele se encaixa tão bem com a atuação e o teatro.
“Fingindo ser eu.”
Foi uma das poucas vezes que ele fez seu avô rir.
“Voltaram a ter sete anos?”
“Nós fizemos um acordo.”
“Um bem idiota, meu filho. Achei que você fosse o meu garoto inteligente.”
Ele gostou de ser elogiado por sua inteligência, ao menos. Infelizmente, isso parece ter chateado o avô, que ficou em silêncio pelo resto do dia. Ele voltou a falar nas próximas visitas, mas a conversa ficou enraizada na mente de Doied.
Ele sabe que é um plano idiota. Mesmo assim, Doied só vêm colhendo frutos. Ele se aproximou do avô e recolheu memórias que nem se lembrava que tinha. E Tina é uma garota legal, ainda que encha de tecidos com alfinetes sempre que o vê. O teatro, no geral, é interessante. Ele está finalmente convencendo-os sobre a coisa da vaquinha. Talvez dê certo.
Mas ainda é solitário. Roier não o desbloqueou. E tirando ele e o avô, não há mais ninguém que saiba de seu acordo. Doied se sente sozinho, mais do que já é. Seus poucos amigos são incomunicáveis. Ele percebe, tardiamente, o quanto sente falta de tê-los por perto.
— O desfile rendeu tanto que até Doied foi visto! Ele e seu braço direito, Luzu, foram flagrados na Zona VIP e com direito a um momento pra lá de adorável entre os noivos.
Ver Luzu e Roier conversando doeu. Doeu de um jeito que Doied não esperava que fosse doer. Sendo sincero, ele não imaginava que seu irmão fosse se aproximar de seus amigos. Não é o mesmo perfil de gente com quem Roier interage. Simplesmente não se encaixa.
Então, por que Luzu parece tão confortável conversando com Roier? Ele está até mesmo mascarando risadas. Doied sabe porque o vê colocando a mão por cima do rosto. Luzu diz que tem sensibilidade nos lábios, mas a verdade é que ele tem vergonha de seu sorriso e odeia mostrá-lo em público.
Por que Luzu não falaria com Roier? Oras, ele pensa que sou eu. Deveria confortá-lo, mas piora. Luzu não consegue ver a diferença? Doied esperaria isso de Slime ou Mariana, que nunca se mostraram tão atentos aos detalhes menos escancarados. E Roier é um ator decente, ele sabe enganar.
Mas até meu melhor funcionário? Aquele em quem eu mais confio?
Luzu não o reconhece?
Doied engole o bolo amargo que se forma em sua garganta. Tudo bem. Isso fazia parte do plano. Roier está indo muito, muito bem. É claro que está. Seu irmão sempre foi talentoso. Ele é bom em tudo, merda.
— Cellbit até mesmo dá um presente ao noivo!
Ele vê o momento exato em que Cellbit apresenta a echarpe mais bonita que Doied já viu. Parece ser fina e suave, o tipo exato de tecido que Doied adora por ser confortável e cair bem no corpo sem grandes esforços. É verde, que também é sua cor favorita. E tem dourado, o qual Doied acha elegante mesmo sem entender bulhufas de teorias das cores.
É a peça de roupa que ele adoraria receber.
Mas é para Roier.
Cellbit pensa que é você lá.
Mas não é Doied.
Não, não é isso que mais o afeta. Doied está acostumado a não receber presentes. Ele nunca recebeu um de Cellbit. Não há porque se magoar por isso. Mas há algo, um mísero detalhe que o pega de um jeito que não deveria fazê-lo sentir algo, mas faz.
Os olhos de Cellbit brilham quando ele vê Roier com sua nova peça de roupa. Você pensa que ele deve estar sentindo orgulho de ver alguém como Doied usando algo que ele criou. De fato, ele imagina Cellbit sentindo isso. Mas Doied sabe que tem algo a mais. Ele reconhece esse olhar. Ele já o viu.
É o mesmo olhar que Cellbit possui quando está tagarelando sobre a paleta de cores da estação ou sobre como suas roupas combinavam perfeitamente com a configuração dos sofás da sala. A exata expressão em que ele aparece nas entrevistas quando comenta sobre o crescimento da marca e que está feliz por estar dando orgulho aos seus pais, seja lá de onde estiverem o olhando. Do mesmo jeito quando Cellbit parece estar feliz ao comer sua comida favorita no restaurante, de tal forma que nem os paparazzis do lado de fora incomodavam sua refeição.
O mais puro e sincero olhar de afeto.
Para Roier.
E isso não estava no plano.
— Cellbit e Doied foram vistos correndo para fora do salão direto para o carro de Doied. Será que os pombinhos foram comemorar o sucesso do desfile? Porque eu iria!
Doied larga a salada inacabada no balcão e caminha involuntário até a frente da televisão. Eles estão reprisando os melhores momentos do desfile. Imagens cortadas de Cellbit e Roier aparecem a cada momento. Piscando na frente dele. Uma atrás da outra. Separadas. Juntas. Se olhando. Se tocando.
Poderia…
Claro, há o marketing . Cellbit e Doied foram instruídos a se venderem como casal pelo bem do contrato. Seu arranjo foi agradável em todas as vezes que saíram. Cada um escolhe o restaurante uma vez ao mês. Eles saem. Comem. Se deixam ser vistos. Dão as mãos para a câmera. Voltam para casa. E dormem em quartos separados sem dizer boa noite.
Em nenhum desses momentos, nenhum deles, Cellbit o olhou assim. Doied teria notado. Ele sempre nota os detalhes. Ele sempre vê. Ele sempre sabe. Doied teria descoberto, ele teria.
Poderia ser…
Pode não ser nada. Pode ser sua paranóia. Talvez Doied não seja tão bom observador assim. Pode ser uma falha estatística. Probabilidades são assim. Ou acontecem ou não. É como investir na bolsa de negócios, da mesma forma que Doied investiu nesse contrato com o irmão.
Mas ele se esqueceu que, um dia, veria Roier protagonizando sua vida enquanto Doied seria apenas o espectador que tudo vê, mas nada tem.
É como voltar a ser criança na festa de aniversário compartilhada com o irmão.
Poderia ser eu…
Doied sente que perdeu um presente.
De repente, ele se sente claustrofóbico. A música do desfile está tocando em looping em seus ouvidos. Aquela marcha lenta que deveria ser calma, mas soa como uma trovoada. Doied procura a televisão na tentativa de desligá-la, mas ele para quando outra foto de Roier aparece.
Poderia ser eu ali.
Doied se lembra do avô decepcionado pela falta das visitas dele.
Poderia.
Do próprio irmão resmungando quando Doied foi embora na primeira vez que eles se reuniram para conversar sobre o acordo. Ele não se lembra das palavras exatas. Ainda assim, a parte “nem deu tchau” está marcada em sua memória.
Poderia.
De Cellbit. Do sorriso enorme dele na televisão. Da roupa nova da coleção que Doied se lembra de ter visto de relance um dos rascunhos antes de trocar com Roier. Dos convites que Doied recusou porque tudo era apenas trabalho, e nada mais. Das conversas que quis iniciar, mas sentiu que não devia. Dos olhares que sentiu em suas costas, e nunca retribuiu por não saber o que fazer.
Poderia.
Da vida que Doied tem, e que sente, aos poucos, que não se encaixa mais.
Sua visão é tomada pela echarpe brilhante no pescoço de Roier. Doied tateia o próprio pescoço. Ele pensa no tecido bonito ali. Merda, deveria ser ele. Era para ser ele. Era a sua vida. O que Doied está fazendo? Por que ele fez isso? De que vale essa jornada estúpida de reconexão se ele está perdendo toda a vida que abdicou anos para construir?
Por outro lado, ele nunca teria percebido isso se não estivesse tão longe. Do outro lado de uma tela. No bairro mais distante da cidade. Sem seus contatos. Seus amigos. Seu irmão. Seu noivo.
Poderia ser eu…?
A echarpe volta. É verde. Muito verde. Está por toda parte. Em seus pijamas, no papel de parede da sala, nas plantas da cozinha, no terno de Cellbit. Respingado nos olhos dele. No seu antigo guarda-roupa. Na sua — antiga — vida. No seu antigo eu. Em toda parte.
Quem eu deveria ser?
O rosto de Cellbit pisca quando Doied finalmente desliga a televisão. Ele não aguenta mais. E desmaia.
Chapter 10
Summary:
A única fagulha emocional que Doied demonstra está no leve vinco na testa. Ele não cai, não bufa, não choraminga, não aperta os punhos, não bate o pé. Doied apenas continua firme enquanto o observa daquele jeito insuportável como se ele fosse superior em Roier em tudo o que se presta a fazer.
Chapter Text
Mariana.

Bom dia!!!!
Hoje é o dia de doações! Eu, Sli e Luzu vamos sair em algumas horas. O desse mês vai ser o orfanato :) as tias disseram que as crianças estão morrendo de saudades
Quer saber se você vai querer ir com a gente?
👍
Doações…
Quando Roier saiu do quarto, Cellbit já havia ido para a Taaffaiete. Ele deixou uma parte do café da manhã pronto, além de meia jarra gelada de suco de frutas na geladeira. Aquilo deixou Roier meio chateado. Ele queria tê-lo ajudado a preparar a comida.
Eles estabeleceram uma espécie de rotina.
Os dois precisavam acordar cedo, mas Cellbit sempre seria o primeiro a sair de casa. Na maioria das vezes, Roier fingia dizer que iria embora em breve, mas era tudo uma desculpa para poder enrolar por mais algumas horas e até conseguir escapar do trabalho se tivesse a chance. Antes, eles apenas compartilhavam a companhia um do outro com um copo de suco ou chá.
Até que Roier se ofereceu para ajudá-lo a preparar o café. Foi uma surpresa para ambos. Para Cellbit, porque Doied nunca demonstrou interesse algum em culinária; e para Roier, porque ele mal notou quando se ofereceu. Ele era o único que cozinhava em casa e era algo que achava até terapêutico. Uma quase forma de demonstrar afeto, talvez. O fato é que o incomodava comer sem ajudar em nada, nem que fosse a cortar o pão e cobrir com manteiga.
Foram-lhe atribuídas as menores tarefas, como cortar o queijo, encher a garrafa de suco e separar a louça. Roier queria fazer mais, mas já estava contente por poder ajudar. Revelar que sabia fazer coisas mais sofisticadas talvez pusesse o plano em risco, então esse deveria ser o melhor dos dois mundos.
Por entre os preparos, eles começaram a conversar. Geralmente, era sobre a Taaffaiete e os amigos de Cellbit. Roier raramente contribuía para a conversa, mais por medo de acabar dizendo alguma inconsistência do que por não ter vontade de conversar. Pelo contrário, ele sempre parecia querer conversar com Cellbit, tanto que soa meio assustador.
Um dia, ao caminhar até a cozinha para ajudá-lo, Roier ouviu parte de uma conversa dele com quem chutou ser Bagi e seus outros amigos. Cellbit contou que eles regularmente faziam chamadas em grupo para compensar as saudades porque, mesmo trabalhando na mesma empresa, quase nunca tinham tempo para se reunir fisicamente.
(Aquilo o trouxe lembranças amargas do teatro, Tina, Jaiden e todos os outros, agora que se lembra. Como será que estavam?)
“Eu sei que é tudo muito repentino, mas, olha, tem algo mudando. Eu sei que tem. E não tem por que temer, tem? Eu… Fico feliz com isso.” Cellbit murmurava enquanto cortava uma bacia quase cheia de morangos. Havia massa de panquecas fumegando na frigideira ao lado. “Eu só quero aproveitar enquanto dá. Se for para ser algo, será.”
“Cuidado com as panquecas.”
“JESUS!” Ele correu para virá-las. Queimou um pouco nas bordas, mas era um crocante gostoso. Palavras de Roier. “NÃO, Eu quase queimei a comida aqui… Eu ESTAVA prestando atenção, você que ficou desviando meu foco e…” Cellbit se virou a Roier com um sorrisinho sem graça. “Ei, dormiu bem?”
“Sim.” Exige sempre muito autocontrole de Roier para não rir. “É Bagi?”
“Quem mais seria? Jesus, ela pensa que sempre vou me matar… DESCULPA, esqueci que o microfone está aberto…”
“Sobre o que conversa?”
“Ah…” Cellbit claramente desconversou. “Ela está ciumenta porque te dei um presente ontem.”
“Diga a ela que espero mais presentes no dia do nosso casamento.” Sendo verdade ou não o que Cellbit disse antes, ele ainda riu de sua fala, com manchas roseadas nas orelhas.
Roier nunca descobriu sobre o quê eles conversavam naquele dia.
Ele comeu com pressa, insistindo mais por conta do trabalho que Cellbit teve em cozinhar tudo aquilo. Roier não sentia fome. Seu estômago remexia agora dentro do carro no caminho até o Banco Ore. Se já não fosse o bastante, sua mente ainda estava aérea e em transe.
A verdade é que Roier não acreditava que Doied pudesse ser capaz de doar algo para alguém independente de quem fosse. Apenas por livre e espontânea vontade. Um ato bem altruísta e empático, adjetivos que ele não associaria com o irmão.
Roier conhece o Doied distante e frio. O Doied que saiu de casa para concluir não uma faculdade, mas duas, enquanto Roier tinha que aguentar as pontas sozinho sem ter chances de subir na vida. O Doied que não o procurou depois de ter ido embora. O Doied que mal fala na sua cara direito. O Doied que é odiado pelos funcionários da empresa. Aquele Doied que Roier mantém bloqueado até o dia de hoje.
O Doied que vive o chamando de estúpido, irresponsável e idiota.
Se Doied é algo além do que está em suas lembranças, então nunca o demonstrou. E Roier ainda não é capaz de ler mentes. Ele é um mero ator — dos bons, mas incapaz de realizar milagres.
Só se interpretar seu irmão gêmeo totalmente oposto a si por meses sem ser descoberto for um milagre, claro.
— Bom dia, Ramón, Doied.
Luzu é sempre cordial quando entra nos lugares. Ele bate na porta, acena com a cabeça e espera até que possa entrar. Uma união de atitudes que transbordam elegância a qual Roier não está nada acostumado. Quando era menor, a porta do seu quarto nem tranca tinha — ele mesmo a quebrou ao tentar arrancar seu dente com um barbante velho, mas é um detalhe.
— Bom dia.
Enquanto Ramón dirigia até o orfanato, Roier preparou o roteiro mental de como conseguiria informações de Luzu.
— Zuzu.
Luzu encarou-o com uma careta sincera de desgosto.
— Luzu. — corrigiu. Luzu bufou uma risada. — Ando meio aéreo ultimamente.
— Eu notei. Algum problema? Não que costumamos falar sobre eles, mas…
— Nada em específico. Estou apenas pensativo. — Roier desviou o olhar para a paisagem urbana do outro lado do vidro. — Há quanto tempo fazemos isso?
— As doações?
— Sim.
Luzu retirou um pote com balinhas de menta e hortelã dos bolsos. Com a convivência, Roier descobriu que ele é viciado nessas coisas. Aparentemente, era um hábito dele dividi-las com Doied, já que sempre o oferecia. Roier aceitava por educação porque odiava essas coisas.
— Há uns dez meses, provavelmente. — disse enquanto enfiava uma balinha na boca. — Você quem deu a ideia e eu ajudei a convencer os outros. Ainda me surpreendo um pouco com sua iniciativa. Não se sinta ofendido, amigo, mas sabemos que você não é o especialista em demonstrar sentimentos.
Surpreso e incapaz de falar algo doiediano o suficiente, Roier apenas bufou e cruzou os braços o que, por si só, é doiediano bastante para Luzu.
— Eu sabia que faria isso.
— Esse não é o ponto.
— Não, mas é associativo. De qualquer forma, também é bom aos negócios, então não foi difícil convencer os outros. Slime é quem gosta mais dessas coisas, você sabe. Mariana é um pouco mais recluso e meio egoísta, mas ele tem um bom coração.
— Totalmente oposto à sua personalidade…
— Chamativa?
— Há palavras melhores, mas essa serve.
Slime e Mariana são um casal singular. Roier teve a oportunidade de estar no mesmo ambiente que os dois um par de vezes. Eles são muito — até demais — adeptos ao toque físico. No geral, Slime é mais caseiro e tátil, por assim dizer. Ele é concreto com suas opiniões e gosta de discutir as coisas cara a cara. Mariana, por outro lado, aceitaria uma reunião virtual sem problemas se isso significasse que ele pudesse ter umas horinhas a mais para dormir em casa.
Roier se identificou um pouco com ele nessa parte.
— Você ainda se lembra da primeira instituição a qual doamos, eu suponho. Foi ideia sua.
Oh, merda.
Luzu está esperando uma resposta. De algum jeito, Roier sente que isso é um teste. Ele precisa dizer algo, e precisa dizê-lo certo. Se ele fosse um Doied estranhamente benevolente, para quem ele escolheria doar? Conhecendo-o, ele deveria estar tentando compensar alguma coisa.
A resposta estalou imediatamente.
— Asilo para idosos — resmungou, mais pela incerteza que por outra coisa.
— Quando penso nisso hoje em dia, vejo que faz bastante sentido. — Luzu acena brevemente. — Ainda assim, é o único lugar que você nunca aceitou visitar presencialmente. Eu entendo, idosos são difíceis de lidar.
— É.
Roier sente que está esquecendo de algo.
— Mas você adora as crianças.
— É?
— Não tente esconder. Você sempre tenta camuflar o quanto adora ser questionado por elas. Deve ser pelo ego de poder responder o que sabe, e você sabe de muita coisa. — Luzu arqueia as sobrancelhas, provocativo. — Você não consegue mentir para elas, nunca.
Nunca?
Roier tenta, mas não consegue imaginar Doied interagindo com crianças. Ele nem parecia ter paciência consigo quando eram menores. Sempre mandando-o fazer suas tarefas e parar de sonhar quando a vida estivesse cobrando na frente de sua porta.
Em partes, ele não estava errado.
— Crianças são algo.
— Como o que?
Ele dá de ombros.
— Elas ainda não viram o mundo. — murmura. — Isso, por si só, é uma justificativa coerente.
Há muitas coisas subentendidas nessa frase. E se Luzu entende — e é provável que tenha entendido —, ele não responde, mas também não o questiona, ficando em silêncio pelo resto da viagem.
Crianças não precisam contar moedas com medo de faltar dinheiro. Suas lembranças voam longe para a época em que Doied lhe emprestou exatos quatro reais para comprar tecido para uma bandana nova. Doied ficou com duas moedas. Nem economizar na comida. O prato de Roier tinha três pedaços de frango. O de Doied, um. O de avô, nenhum. Nem desistir da faculdade pela família… ou da família pela faculdade, como Doied fez.
Ele não sabe porquê voltou a pensar nessas coisas. Ele sente ânsia, e aceita uma das balas de hortelã para disfarçar o gosto ruim que ficou na boca.
— Chegamos.
Luzu sai primeiro. Roier precisa piscar duas vezes para lembrar que ele precisava sair também.
Slime e Mariana já estavam conversando na porta com a dona do orfanato. É uma senhora de quarenta, cinquenta anos, com cabelos pintados de preto para esconder os poucos fios brancos. Ela veste vestidos longos, finos e com estampas de flores e está sempre sorrindo.
— Senhor Doied, é um prazer vê-lo!
Inseguro, Roier se reprime a um aceno de cabeça. Não parece incomodá-la.
— Vocês receberam nossas doações, eu suponho — Mariana está varrendo os olhos inúmeras vezes por uma lista do tamanho de seu braço.
— Sim! Tentamos esconder das crianças para manter a surpresa, mas vocês sabem como elas são. Elas adoram presentes. — Ela ri fraco. — Mas gostam mais ainda porque sabem que vocês virão junto com eles.
— Elas são adoráveis. — Slime parece radiante. — Trouxemos mais alguns brinquedos na mala do carro, o suficiente para cada criança.
— Sou eternamente grata, senhores.
As doações constituem-se basicamente de comida não perecível, colchões, livros didáticos, materiais de papelaria — como gizes de cera e tinta guache —, fraldas e muitos potes de leite. O orfanato possui crianças desde cinco meses até os dezessete anos de idade. Quando completam dezoito, eles precisam ir embora. É um fato triste, mas eles não possuem estrutura para superlotação. Eles mal se mantêm com as doações.
— Chegaram vinte novas crianças desde a última vez que vocês vieram. — ela conta entre suspiros. Logo, ela sorri. — Mas nove foram embora!
— Adotadas? — Roier questiona.
O sorriso dela morre um pouco.
— Apenas sete. Uma atingiu a maioridade. A última notícia que tivemos dela foi que conseguiu abrigo pelo governo, ao menos.
— E a outra?
— Doença respiratória aguda grave.
Merda.
— Vocês também precisam de remédios?
A respiração da senhora falha.
— Talvez.
Roier apenas troca um olhar entre Luzu, Slime e Mariana. Eles entendem imediatamente.
— Tem uma farmácia aqui perto. — Slime oferece. — Eu e Mari podemos conseguir algumas coisas.
— Há remédios básicos que precisam de receita — Roier sabe por experiência própria.
Mariana sorri.
— Eu tenho os contatos perfeitos para isso. Nos dê meia hora.
Ter muito dinheiro é realmente bom, Roier nota. Melhor ainda é saber usá-lo para o bem. Algo pesa nele quando ele se lembra que essa ideia foi de Doied, em primeiro lugar.
E eu pensei que ele não sentia nada.
Roier não sabe sobre o irmão, mas ele adora crianças e precisa se conter muito para não querer brincar com todas. Ele deixa a máscara cair um pouco, no entanto. Ninguém parece se importar. As crianças, principalmente, adoraram vê-lo quase sorrir por alguns minutos.
— TIO DOIED! Tá fazendo exercício?
— Olha, Empy, tio Doied aprendeu a vestir roupa!
— Seu óculos tá sujo, tio!
— Ele nem engoliu as letrinhas hoje! O senhor voltou pra escola? Eu fui ontem! Odiei!
Ah, a sinceridade infantil. Essa parte Roier não gosta muito. E ele imagina que Doied também não.
— Ei, tio!
Um garotinho miúdo chama sua atenção ao puxar a barra de sua calça. Ele tem olhos enormes por trás de lentes de óculos redondas. O garoto já é baixo, mas parece ainda menor em uma camisa listrada claramente dois números maiores que seu tamanho.
Parece frágil.
Roier sente seu coração apertar.
— Olá.
— Desce aqui, tio.
Ele não contém a risadinha. Roier ajoelha até estar na altura da criança. Ele deve ter oito anos, talvez nove. Há um pedaço de emborrachado preso em sua camiseta com os dizeres “ PRÊMIO DE GAROTO MAIS COMPORTADO DO MÊS: PEPITO ” escrito em caneta com glitter.
— Ei, Pepito!
Pepito sorri radiante.
— Lembra de mim, tio?
Roier não irá acabar com a felicidade da criança.
— É claro.
— Oba! — Ele dá um pulinho. — Mas te chamei, tio, porque seu sapato tá todo desamarrado.
Ele olha. É verdade. O cadarço desamarrou. Isso é um fato frustrante, já que Roier nunca aprendeu a amarrá-los direito. Ele estava usando o mesmo sapato há um mês porque foi o único que Doied esqueceu de desamarrar antes de guardá-lo na sapateira.
Merda.
— Ah.
— Não tem problema, tio. Eu ajudo!
Pepito pegou seus cadarços e começou a amarrá-los. Ele demorava um pouco nos nós, mas ainda os fazia direitinho. Roier se sentiu humilhado por uma criança.
— O dragão passa por debaixo da ponte… — Entoava a cada passo. — Entra pelo laço e chega no ‘bastelo!
Essa música.
— Fiz certinho, tio?
Eu lembro.
— Fiz do jeitinho que cê me ensinou!
Doied sempre tentou ensiná-lo a amarrar os sapatos. Infelizmente, Roier realmente nunca conseguiu, sendo mais fácil prender os dedos nos fios do que realmente enlaçá-los. Com o tempo, Doied desistiu de ensinar, mas ainda amarrava seus tênis todos os dias antes de sair de casa — bem, quando moravam juntos.
Ele ainda dava algumas dicas. Por exemplo, quando ia amarrar o tênis, Doied cantava essa música estúpida que os dois aprenderam quando viram os filmes do Shrek pela primeira vez. Eles já estavam no final do ensino fundamental. Na época, Roier se lembrava que era dia de seu aniversário. Não havia presentes naquele dia.
“Eu comprei algo.” Doied apareceu com uns pacotes de plástico fino e barato. Dentro, havia alguns CDs. “Filmes do Shrek. Para assistirmos no nosso aniversário.”
Roier tinha esquecido disso. Desse filme. Dessa música. De como amarrar a porra dos seus cadarços.
— Quase… — responde em um fio de voz. — É castelo, e não bastelo.
— Ah… — Pepito parece desanimado.
— Mas o nó é ótimo.
Ao olhá-lo, os ombros de Roier pesam ao ver que é da forma exata como Doied amarrava seus sapatos quando eles eram crianças, ainda que ele não o amarre mais assim quando vai trabalhar.
Ele conseguiu, desta vez, ter a imagem mental perfeita de Doied ensinando Pepito a amarrar seus sapatos.
Com aquela música.
Como se fosse para Roier.
Algo em Roier estala. Em suas memórias, tinha alguém observando-os. Era seu avô, sempre distante com uma xícara de café morno e um desenho inacabado debaixo do braço.
Seu avô.
Que dia é hoje?
Ele se lembra. É dia de visitas no asilo.
Eu não fui nenhuma vez.
Merda.
Merda.
MERDA.
Seu avô está sozinho. Ele ficou sozinho todo esse tempo. Roier não se lembrou, porra, ele foi incapaz de se lembrar sozinho. O que ele estava fazendo nos dias que deveria ter ido visitá-lo? Em algum restaurante chique com Cellbit? Nas reuniões da Ore? Dormindo naquela cama macia e enorme que ele sempre quis ter?
Ele esteve tanto tempo fingindo ser Doied que esqueceu que era Roier, em primeiro lugar.
Roier também tem responsabilidades, merda.
Eu não deveria ter ido ajudar Tina com as roupas da próxima peça? Todas suas responsabilidades voltam como um balde de água fria em sua cabeça. Quando o aluguel vence? Puta que pariu, eu não paguei o do mês passado. A próxima vez era o despejo. Porra, porra, PORRA.
Estúpido. Idiota. Irresponsável.
Doied não estava errado.
— Eu preciso ir.
Pepito entristece, mas entende. Ele ainda abraça suas pernas parecendo entender seu estado deplorável. Quando Roier está correndo para fora, Slime e Mariana chegam com sacolas e sacolas cheias de remédios para enxaqueca, refluxo e inflamações.
— Onde está indo?
— Tenho um compromisso urgente. — Roier o corta. — Tire todos os eventos da minha agenda para hoje.
— Limpar a sua agenda? — Mariana quase grita. — Você não pode simplesmente fazer isso! Temos uma reunião importante hoje à tarde que pode gerar um baque imenso nas ações da empresa e…
— Eu não estarei lá.
Roier não fica para ouvir as reclamações de nenhum deles. Sua mente está em pane.
Ele precisava ir no asilo. Hoje.
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— Estarei esperando aqui.
Parado no canto mais isolado do estacionamento, Don Ramón e Roier conversavam entre cochichos. Doied estava certo em dizer que seu motorista é confiável. Nessas horas, ele é o único com quem Roier pode confiar — e é deprimente, na verdade.
— O senhor tem certeza? — Roier se olhava no espelhinho do passageiro. — Geralmente minhas visitas demoram mais de uma hora. — Passou a encará-lo com certo pesar. — Não quero te deixar esperando.
— Não se preocupe, eu tenho entretenimento.
Don Ramón abriu o Candy Crush em seu celular. Roier não viu em que nível exato ele estava, mas já passava dos três dígitos. Ele soltou uma risadinha antes de respirar fundo e sair do carro.
Estar no asilo depois de tanto tempo dava-lhe uma sensação reconfortante de pertencimento. Mesmo estando na pele de Doied, Roier sabe que ele não pertence — e talvez nunca vá pertencer — àquele mundo sofisticado e elegante da elite. Sempre parece que algo está errado, e de fato está. Aqui, no entanto, é quase como uma terceira casa — terceira porque sua segunda já é o teatro.
Será que ele conseguiria convencer Ramón para levá-lo ao teatro qualquer dia desses? Não, isso já seria arriscado demais.
Vir aqui já é arriscado demais.
Ele tira os óculos e os guarda dentro dos bolsos. Seus olhos piscam e ardem com a mudança súbita de visão. Usar aquilo por tanto tempo o manteve desacostumado. E se ele bem se lembra, o grau de Doied era maior que o seu.
Se minha miopia tiver aumentado, eu juro….
— Senhor Roier…?
Que saudade!
Roier é muito amigo do recepcionista. E do zelador, e da faxineira, e do jardineiro também. De todos os funcionários, na verdade. Ele já trocou conversa com todos, embora seu favorito ainda seja a cuidadora de seu avô, Giulia. Será que ela está por aqui? Ele sente falta de fofocar com ela. Da última vez que teve notícias, ela tinha acabado de noivar.
Infelizmente, conversar com o recepcionista estando vestido de Doied talvez não fosse a ideia mais inteligente. Roier se mantém com um aceno rápido enquanto anda apressado pelos corredores. Alguém está o chamando, mas ele não escuta. Roier só quer ver o avô e se ajoelhar na frente dele implorando por suas desculpas.
Qual era mesmo?
Ele sempre esquecia o número do quarto. Por conta disso, o recepcionista precisava ficar repetindo. É provável que fosse isso que ele estava tentando dizer.
Eu lembro que era a mais distante de todas, bem no final do corredor…
Suas lembranças vagas o levam para a frente do quarto 053. A porta está entreaberta. Isso significava que Giulia tinha acabado de sair do quarto, provavelmente levando as roupas de seu avô para a lavagem semanal. É uma pena, talvez eles não pudessem conversar hoje.
Ok, respira, Roier.
O que ele falaria? “Oi, meu velho, voltei depois de tanto tempo, como você está?” Não, é provável que seu avô o expulsaria na base do tapa. Mas ele sempre apreciou a honestidade acima de tudo. Sempre que Roier mentia ou escondia algo, sendo grande ou pequeno, seu avô fechava a cara e o ignorava pelo resto do dia até Roier refletir sobre o que fez.
Não preciso me preocupar tanto assim também, não é? É meu velho, ele vai me entender. Ele respirou fundo e se acalmou, sorrindo aliviado. Somos inseparáveis, praticamente pai e filho. Nada vai dar errado.
Com a mão sobre a maçaneta, Roier ouviu vozes.
“Alguma notícia dele?”
Era a voz de seu avô. Parecia mais frágil do que Roier se lembrava. Pela fresta da porta, ele o viu rabiscar algo em uma folha de cartolina. Roier sorriu apenas de vê-lo ali. Seu velho adora desenhar. É mais do que um passatempo a ele, é uma verdadeira terapia.
Qual desenho ele fez dessa vez?
Todas as vezes que voltava para visitá-lo, havia um desenho seu novo na parede. O velho gostava de parar para explicar todos os detalhes que fez. Por exemplo, ele o desenhava com cadarços desamarrados porque Roier nunca aprendeu a amarrá-los. Ele tem vontade de aprender apenas para mostrar ao avô que ele não é mais uma criancinha.
Ele escrevia suas opiniões depois com uma das canetas glitter que Giulia comprou apenas para isso. Na maioria das vezes, suas frases vinham acompanhadas de carinhas e emojis. O velho disse que gostava de recolher os desenhos para reler os recados durante as noites antes de ir dormir.
Que saudade, velho.
“Não.”
Roier soltou a maçaneta como se ela estivesse pegando fogo. Ele arregalou os olhos e, esbaforido, conferiu o resto do corredor. Não havia ninguém. Geralmente, era nesse horário que os idosos iam dormir. Poucos aceitavam visitas. Seu avô era uma das poucas exceções, já que seus horários malucos do teatro o impediam de ter uma rotina fixa.
Mas não é isso que o assustou, definitivamente não.
Doied.
Era a porra da voz dele.
“Tentou ligar para ele?”
“Como se ele me bloqueou?”
A voz de Doied estava carregada em amargura e frustração. Ele apareceu em seu campo de visão segurando uma folha de papel e um pote de tachinhas. Doied estava pregando os desenhos de seu avô na parede.
Algo que Roier sempre fez.
Todos os dias. Em todas as suas visitas. Seu avô lhe dava os desenhos. Roier os prendia na parede. Ele escrevia recados com canetinha. Ele dava opiniões no traço. E depois eles comiam os biscoitos de Giulia. Apenas Roier e o avô.
“Onde está aquela… Aqui.” Doied pegou uma caneta com glitter. Era verde. Ele escreveu algo em um dia desenhos. Roier não estava enxergando porcaria nenhuma para identificar qual desenho era aquele, mas seu avô apenas o desenhava. Ele nunca fez um retrato de Doied, por que faria agora?
Doied nem deveria ser considerado parte de sua família.
Então, por que ele…?
“Que rabisco é esse?”
“Isso? Ora, meu velho, é a assinatura que uso nos meus cheques.”
“Sua letra é horrível, meu filho.”
Filho.
Meu filho.
Meu filho.
— Do jeito que ele me chama… — Roier murmurou entredentes. Suas mãos pressionam em punho atrás das costas e seus olhos apertam com força. — Eu sou o filho dele.
O filho favorito. Aquele que esteve todos os dias, tardes e noites dentro de casa para ajudar o avô a se levantar quando ele vinha escorado pelos corredores por conta de fraqueza nas pernas. Que cozinhou caldo com as sobras que tinha na geladeira porque tinha medo de comprar comida e encontrar o avô desmaiado na volta para casa. Que o limpou com fraldas e pagou todas as contas — nunca com antecedência, porque Roier nunca podia.
Aquele que ligava a televisão para encontrar seu irmão gêmeo dando entrevistas em rede nacional enquanto ele precisou trancar a porra da faculdade.
Que porra Doied faz aqui?
Seu irmão nunca visitou o avô. NUNCA. Nem para dar um “oi”, um “bom dia” e muito menos um “muito obrigado por ter me criado e me dado tudo o que eu precisei para sobreviver”. Simplesmente deixou-os no silêncio e no escuro enquanto ia viver a vida burguesa que ele sempre quis ter.
Sim, Doied pagou pelo asilo. E era o mínimo. Ele quem insistiu para colocar o avô ali. Não importa quanto dinheiro ele tenha dado, nada vai tampar o vazio que Doied deixou na vida do avô.
Nada vai tampar o vazio que ele deixou em Roier.
“Seu telefone está fazendo aquela coisa horrível e escandalosa de novo.”
“Apitando, você diz?” Doied soltou uma risadinha. Seu irmão nunca ri. “Ah, é uma amiga minha pedindo pela minha ajuda. Combinei que iria ajudá-la com algo durante a tarde.”
Amiga? Doied não tem amigas.
Ele mal tem amigos, porra.
“Você deve ir, então.”
“Mas você ainda não terminou seu desenho.”
O velho sorriu tapeando carinhosamente o ombro de Doied. Roier não conseguia ver muito além disso. Mas a visão doeu. Doeu mais do que ele esperava. Doeu mais do que deveria.
Deveria ser eu ali.
“Você poderá vê-lo melhor da próxima vez que me visitar.”
Próxima vez. Haverá outra?
“Está me devendo então, pai.”
Pai. Roier nunca chamou o avô abertamente de pai, mas ele pensou nisso mais de uma vez. No entanto, ele nunca se esqueceu de seu pai biológico. Às vezes, até tinha esperanças de que o encontraria mais uma vez. Mas ele precisa ser honesto consigo próprio: o avô é o único pai de verdade que teve.
Ele deveria ouvir isso de mim.
“Palavra dada é cumprida, filho.”
Pai e filho.
E o filho não é Roier.
Porra.
Roier deu três passos para trás e encostou as costas na coluna ao lado da porta. Ele está respirando fundo, a garganta seca e os olhos trêmulos por nenhum motivo além do nervosismo. Suspirando, ele tenta se conter para assumir a expressão mais neutra o possível. Recolocar os óculos ajuda.
A porta abre e Doied sai por ela com um sorrisinho idiota no rosto. Alguma coisa em Roier ri quando a expressão do irmão morre ao vê-lo.
— O que… — Ele fecha a porta e dá um passo em sua direção. — Que porra você faz aqui?
— Dia de visitas — Roier responde entredentes, imitando a exata voz lenta e lânguida do irmão.
Doied bufa e cruza os braços. Seus olhos percorrem o irmão da cabeça aos pés, possivelmente julgando sua forma de vestir. Ele franze o nariz em desgosto ao ver uma de suas camisas favoritas amarrotada. Os cadarços, estranhamente, estão feitos.
— O horário de visitas acabou. — declara ao buscar novamente por seus olhos. É estranho ver Roier assim, trajado como ele, inexpressivo como ele, quieto como ele. É errado. — Giulia voltará em dez minutos para colocar o velho para dormir.
— Eu ainda tenho tempo…
— Não, Roier, você não tem. — Doied insiste. — Assim como não temos tempo de discutir como duas crianças no meio do corredor. Você não pensou ANTES de aparecer aqui?
— Como eu saberia que VOCÊ estaria aqui?
— Eu não deixaria nosso avô sozinho, estrupício.
— 60 dias não vão compensar 60 meses. — Roier semicerra os olhos. Se isso assusta Doied, ele não demonstra. Ele nunca demonstra. — Não se esforce.
A única fagulha emocional que Doied demonstra está no leve vinco na testa. Ele não cai, não bufa, não choraminga, não aperta os punhos, não bate o pé. Doied apenas continua firme enquanto o observa daquele jeito insuportável como se ele fosse superior em Roier em tudo o que se presta a fazer.
— Eu não precisaria estar aqui se você cumprisse com suas responsabilidades. — a tréplica vem baixa e lenta. Doied nunca grita, mesmo com raiva. — Em 60 dias, são 16 dias de visitas. Em quantos você veio? Nenhum.
— Eu não…
— Não lembrou? Não marcou seu despertador? Esqueceu que tinha avô? — Doied não grita porque ele humilha. — Assuma a porra das suas responsabilidades.
Mas Roier não é mais criança para ouvir calado e não dizer nada.
— Quem é você para falar de responsabilidades quando eu estive esse tempo todo abdicando da MINHA vida porque VOCÊ não tem culhão de assumir os teus BO’?
— “Meus BO”?
— Você entendeu, porra. — grunhiu — Isso não importa.
— É claro, até porque não podemos falar de abdicar a vida quando eu sempre estive abdicando a minha POR VOCÊ.
Como que…
Roier semicerra os olhos e bufa. Audivelmente. Como a droga do livro aberto que ele sempre foi.
Você acha que eu sou idiota, porra?
— Se sua forma de me ajudar era ficando longe de mim e me excluindo da sua vida, parabéns! Ajudou para caralho. Tinha me esquecido o quanto você é insuportável!
— Que infantilidade… — Doied revira os olhos.
— Você sempre me tratou como uma criança, como espera que eu vá reagir agora?
Doied estava se preparando para responder, e Roier mal conseguia manter os pés no chão sem sentir vontade de encher o rosto do irmão de porrada.
— Não me…
Um som abafado vindo do quarto do avô o para. Roier o imita. Eles prendem a respiração e trocam olhares temerosos.
Eles estavam cegos, discutindo como crianças no corredor de um asilo para idosos. Não há nada mais estúpido do que isso, até Roier reconhece. Ele recolhe os punhos cerrados dentro dos ombros e desvia o olhar. Roier se sente com 10 anos depois de fazer alguma merda e levar bronca do irmão até parar de chorar.
Não era a hora. Nem o lugar.
Doied respira fundo. Ele não parece melhor.
— Vamos embora.
— Eles…
— Eles sabem que somos irmãos, idiota.
Ah.
Roier não melhorou ao lembrar que estava atuando quando não precisava. Fez-lhe sentir ainda mais estúpido.
O recepcionista encarou-os com surpresa. Não por ver dois de Roier, mas por nunca mais ter visto Doied.
— Senhor Doied! Agora faz sentido. — Ele coça os olhos, sorridente. — É um prazer revê-lo!
Doied o encara com agulhas no lugar dos olhos. Roier engole em seco e pigarreia.
— Tinha algo a discutir com Roier.
Até mesmo Doied se assusta. Ele sabia que o irmão atuava bem, mas é totalmente diferente ouvir não só seu tom de voz, como a velocidade e forma como ele fala saírem da boca de Roier. Ele imagina seu aceno de cabeça respeitoso e seu andar erguido ao sair pela porta. O pé esquerdo sempre antes do direito, como Doied se acostumou a andar.
— Algum problema, senhor Roier?
Doied pisca.
— Nenhum.
Quando ele sai, é para ver seu carro sumindo na rua.
Chapter 11
Summary:
Cellbit o responde com um sorriso grande e robótico. Alguns achariam lindo. Roier só consegue pensar em como é falso.
— Vendemos mentiras todos os dias. Faz parte do trabalho. — Ele baixa o tom de voz. Cellbit está cansado. — Você me disse isso.
Chapter Text
Patético.
É a forma como Roier se sente, sentado no banco do passageiro do carro caro e elegante do irmão, vestido das roupas chiques e de linho raro dele, ao lado de seu fiel motorista calado, sério e centrado, representando tudo o que Roier não era naquele momento.
Sendo tudo o que Doied é, o que, de alguma forma, Roier tanto almejou ser.
O encontro fracassado com o irmão se repetia como um filme em sua cabeça, as falas dele reverberando por seu cérebro em uma seção de tortura pessoal. É frustrante e avassalador, e o pior de tudo é que, revisitando as palavras de Doied, Roier sente que deve concordar com todas.
Você não lembrou?
Roier não lembrou. Talvez tenha lembrado nos primeiros sete dias, mas depois esqueceu. Simples assim. Apagou de sua memória, que nem os trabalhos importantes na sua época de estudante. Mas trazer desculpas para sua professora do fundamental a respeito de seu boletim horrível é bem diferente do que tentar justificar porque ele abandonou seu avô doente.
Não marcou seu despertador?
Como se ele não se lembrava?
Esqueceu que tinha avô?
Ele engole um bolo grande e pesado de saliva que desce como cimento puro pela garganta. É culpa.
Assuma a porra das suas responsabilidades.
Em silêncio, ele se abraça, agarrando as laterais do corpo com força. Sua vontade maior é de gritar, verdade seja dita. Mas ele não o fará por três óbvios motivos: um, ele não está sozinho, dois, aquele que o acompanha é o chofer de seu irmão e isso é humilhante o suficiente e três, ele está cansado de agir como uma criança birrenta.
Ser o irmão mais novo não deveria justificar atitudes imprudentes e estúpidas, porém Roier sempre esteve cercado delas. Realizando-as uma após a outra, sendo reconhecido na escola, em casa, no teatro e até no asilo por ser descuidado e não ter um pingo de autopreservação nem na pontinha da unha do pé.
Ele sabe que deve ser responsável, e tenta muito. Quando era menor, seu avô o impedia de realizar as tarefas mais complexas da casa como garantir o abastecimento da despensa, pagar as contas, ficar de olho na manutenção do imóvel e tudo o que exigisse o mínimo viés empreendedor que Roier nunca teve. As tarefas domésticas, no entanto, eram suas, por isso ele aprendeu a cozinhar e a passar bem uma roupa. Seus amigos do teatro abusaram muito do último item.
Cuidar do dinheiro, é claro, ficou para Doied. Ele pagava as contas, fazia as compras, cuidava para que não fossem despejados e mexia com a burocracia chata da coisa. Também foi ele quem os matriculou no ensino médio quando convenceu o avô de que a melhor saída para eles é que Doied se emancipasse para também ser reconhecido como responsável legal de Roier. O que é um pouco injusto, porque eles têm a mesma idade. Roier também deveria ser emancipado, por essa lógica. Mas apenas Doied foi.
E aí ele fez o vestibular no segundo ano, passou, entrou na justiça e conseguiu ingressar na faculdade enquanto Roier terminava o ensino médio. Quando Roier foi considerado maior de idade perante a sociedade, Doied achou que ele estava pronto para agir como tal.
E foi embora. Sem prepará-lo e nem nada. Nem uma dica ou outra ele deu. Doied vive insistindo que Roier não sabe fazer as coisas sem instruções claras — o que é verdade —, mas ainda teima em não ser claro com ele. Teria evitado muitos problemas, como aquele mico horrível no banheiro de Cellbit.
Talvez eu nem tivesse essa minha vidinha miserável se Doied tivesse pelo menos me ensinado como devo pagar as contas. Roier aprendeu, mas muito tarde. Na época, ele já estava devendo dois meses de aluguel. O resultado tardio disso leva-o ao papelão do dia atual.
— Ei, garoto.
Don Ramón o chama com sua voz séria, mas doce. Roier crispa os lábios com o chamado. Garoto. Como uma criança.
— Senhor?
— Até um homem adulto pode se permitir cair às vezes. — Ele nem o encara quando diz. Ainda assim, Roier se sente julgado. Das costas, de frente, dos lados. De dentro de sua cabeça. — Não será a primeira vez que alguém chora nesse banco, muito menos a última.
Quem foi antes?
Doied?
Ele funga e balança a cabeça.
Impossível.
Roier para de tentar questionar quando as lágrimas acumulam na borda de seus olhos e a única coisa que ele quer é deixar aquilo vazar em cascatas pelo rosto. Mas ele segura, tanto que seu rosto fica meio rosado pelo esforço. Ele não quer chorar. Não quer cair. Ele não pode desmoronar.
Se Doied consegue, então eu também consigo. Ele respira fundo. Dá mais vontade de chorar ainda. Roier não se deixa levar.
Eu posso ser forte.
Ele agarra o tecido de sua calça com ambas as mãos e aperta, que nem como fazia quando era pequeno após ralar o joelho por ter corrido demais mesmo quando seu irmão tinha o mandado ficar parado e quieto.
A sensação de imponência também é a mesma.
Eu posso ser adulto.
O carro para. Sua luta mental foi tão intensa que ele se esqueceu de observar os arredores. Ele estava em casa — na do irmão, ele se lembra com amargor. Ao lado, Don Ramón encara-o com cenho franzido. Além disso, é completamente inexpressivo. Claro que o funcionário favorito de Doied agiria como ele.
Essa situação toda o deixa claustrofóbico e, pela primeira vez, Roier sai do carro sem se despedir dele.
Eu posso ser melhor.
Ele também não cumprimenta o jardineiro, o segurança ou o zelador. Nenhum deles estranha, acreditando que Doied apenas voltou ao seu Modus Operandi de sempre.
Só há uma pessoa que questiona.
— Você está bem?
E é Cellbit.
O perfume de Cellbit o encurralou do meio do corredor assim que Roier abriu a porta. Ele está trajado todo em preto, com um sobretudo longo, coturnos pesados e luvas sem dedos. A ausência de seus brincos, correntes e anéis costumeiros estala algo em Roier, que ergue a sobrancelha e franze o nariz.
— Você está bem?
Roier devolve na mesma moeda, e Cellbit sente imediatamente. Ele coça a nuca e suspira. A mão jogada atrás do corpo segura um buquê de uma flor só. É um girassol. Por ser uma flor grande e chamativa, é difícil escondê-la. Cellbit desiste de tentar, também.
— Eu ia sair.
— Percebe-se.
Há uma melancolia forte na voz de Cellbit que incomoda Roier profundamente. Ele não demora para pegar as pontas soltas. Vestes pretas. Arrumação simples. Olhar cabisbaixo. Flores.
Ele pigarreia, incerto sobre como agir. O famigerado “o que Doied faria?” vem em pensamento. E a verdade é que Roier não sabe como o irmão reagiria diante de uma morte. É fácil de pensar que ele não se importaria e só seguiria em frente porque a morte é uma certeza humana e ninguém deveria se abalar por algo assim.
Em contrapartida, Roier também não saberia como ele lidaria com uma morte. Ele sente empatia e vontade de fazer alguma coisa, mas todas as palavras que vem à mente soam péssimas.
Roier arrisca.
— Alguém morreu?
E é idiota. Parece meio Doied, porque ele é insensível e não sabe lidar bem com as palavras. Também é meio Roier, claramente desajeitado, baixo e tímido. No fim, não é nenhum dos dois, e Roier sente vontade de fugir e só aparecer na frente de Cellbit na semana seguinte.
Cellbit suspira e desvia o olhar para a flor em suas mãos. Ele brinca com a ponta das pétalas amarelas. É um girassol bonito, colhido há poucas horas, muito brilhante. Contrasta com a morbidez elegante de quem o segura. Trajado na melancolia da cabeça aos pés, Cellbit soa mais distante e inalcançável do que nunca.
— Eu nunca te contei, não é?
É provável que não.
Roier não responde. Com o silêncio agudo e desconfortável, Cellbit estala a língua e bagunça os cabelos. Eles nunca estiveram tão despenteados quanto antes. É a única coisa que é destoante de seu vestir requintado. Alguns dizem que o cabelo acompanha nosso humor. Se isso é verdade, então Cellbit está realmente péssimo .
— Você merece saber. — Ele pisca e o encara em um surto de confiança. — Gostaria de te levar a um lugar.
Ele lê as entrelinhas.
— Não sei se estou trajado adequadamente.
Roier encara as próprias roupas. Suas calças estão um pouco amarrotadas pela quantidade de vezes que ele agarrou ansiosamente o tecido. O colarinho da camisa social está meio molhado pelas lágrimas que ele soltou ao entrar dentro do elevador. Os sapatos são bons. E ele provavelmente esqueceu a gravata verde musgo em algum lugar dentro do carro.
Vendo agora, seus óculos também parecem sujos. Ele tem certeza de que aqueles pontos pretos voando ao redor de Cellbit não são moscas.
Eu pareço horrível.
— Me parece ótimo.
Roier não segura.
— Mentiroso.
Cellbit o responde com um sorriso grande e robótico. Alguns achariam lindo. Roier só consegue pensar em como é falso.
— Vendemos mentiras todos os dias. Faz parte do trabalho. — Ele baixa o tom de voz. Cellbit está cansado. — Você me disse isso.
Eu disse? É, parece algo que Doied diria.
— Para os outros, sim…
Roier não fala isso pensando na vida de Doied. Ele diz pensando na própria vida. Não, não, não no teatro de fingir ser o irmão, apesar de também se encaixar. Em sua antiga vida, ele também fingia e mentia muito , todos os dias. Para o avô, quando ele perguntava se estava bem. Para os amigos do teatro, quando dizia que o teatro ficaria bem porque, porra, ele queria acreditar sim naquilo e tentar ser o “amigo otimista” de sempre, mas por mais que pareça, Roier não é idiota. Também para a síndica quando o perguntava se pagaria o aluguel no final do mês.
Ele sempre esteve mentindo. E é amargo notar isso.
— Mas não precisa mentir para mim.
Cellbit o encara. E desvia o olhar. E o olha mais uma vez. Ele suspira, e suas defesas se vão junto ao ar quente e pesado que sai de sua boca.
— Você também não.
Roier engole em seco. Ah, merda.
— Vem comigo. — Cellbit o puxa para fora.
Eles não falam no caminho até o carro. Roier sabe que Cellbit também tem um motorista, mas eles vão até Don Ramón no lugar. Isso explica porque ele não foi embora mesmo depois de Roier já ter entrado dentro do prédio.
— Espero que não se importe de eu ter alugado seu motorista por algumas horas. — Ele já se desculpa instantaneamente, e Roier nem disse nada. — Mas confio mais nele para… essas coisas.
— É porque ele não faz perguntas.
Era para ser uma pergunta, mas saiu mais como uma afirmação do que outra coisa.
Cellbit suspira.
— É.
Os dois entram nos bancos de trás. Roier se sente um pouco envergonhado de voltar logo após seu surto emocional. Ramon o encara pelo retrovisor interno do carro e acena com a cabeça. Parece um silencioso “não se preocupe, rapaz.” Sendo isso ou não, acalma um pouco os ânimos ansiosos de Roier.
— Então… — Cellbit pigarreia ao som do ligar do motor. — O que sabe sobre meus pais?
Ai, caralho.
— Sei que fundaram a Taaffaiete. — Roier procura até o fundo da mente por mais alguma informação, mas não encontra. — E é isso.
— Eu não julgo. — Ele sorri. — A Taaffaiete veio aos dois por sociedade. Na verdade, quem fundou ela foi minha mãe.
— Meu pai era um caçador de talentos, por assim dizer. Mamãe tinha acabado de lançar a primeira coleção quando eles se encontraram em uma convenção. Eram para ser apenas negócios, mas… — Cellbit encarou-o de canto de olho. — Se tornou algo a mais.
— Ele acreditou na empresa de sua mãe e investiu nela, então?
Isso me lembra algo…
— Sim! Ele sabia lidar com investidores e mamãe era genial. A empresa decolou rápido e acumulou patrimônio e visibilidade invejáveis. Muitos dos meus clientes continuam comigo por fidelidade ao trabalho de meus pais, na verdade. — Seu sorriso morre um pouco junto a animação de sua voz. — Mas muitos se foram junto deles, também.
Roier sente o baque vindo. Ele dá uma olhada em Cellbit pelo canto do olho. Encostado no vidro com o olhar distante, ele suspira com os braços cruzados. Ele não largou o girassol em nenhum momento.
— Mamãe morreu primeiro. — sussurra. — Eu e Bagi tínhamos 16, 17 anos… Algo assim. Foi uma semana antes da nossa formatura do ensino médio. Eu nem pude mostrar a ela a minha nova identida… — ele se cala ao morder o lábio inferior com certas força. — Eu não lembro o que ela tinha, mas estava mal. Ela deveria ter tirado umas férias, sabe? Descansado e se recuperado… mas ela não conseguia ficar sem fazer nada.
Nas lembranças de Cellbit, sua mãe está sempre andando para lá e para cá com o óculos escondido nos cabelos loiros com papéis cheios de desenhos debaixo dos braços. Ela presenteava os gêmeos com roupas costuradas por si — mesmas camisas, calças, vestidos , o conjunto clássico para gêmeos —, algumas que nunca tiveram chance de entrar em coleções. Exemplares únicos, raríssimos, que poderiam ser vendidos por milhões.
E nenhuma dessas roupas cabe em Cellbit mais. Estão abarrotadas no fundo de seu guarda-roupa. É agonizante, porque tudo o que queria era chorar embrulhado no tecido feito com a costura delicada de sua mãe. Ela tinha um olho perfeito para os detalhes. E tão, tão bom gosto! As primeiras coleções da Taaffaiete são um arraso, um marco para o mundo da moda do jeito que ninguém mais viu. Não há nada como as criações de sua mãe, nada.
Quando soube de sua doença, sua primeira reação foi fazer uma nova coleção de roupas. Ela a nomeou como “Meu Último Suspiro”. Parece ser talento do artista criar a partir das tragédias.
— Ela morreu no dia seguinte. Eu a vi no hospital ainda. Eu segurei na mão dela quando as máquinas apitaram e vi o sorriso lindo que tinha no rosto dela de estar ido embora sabendo que marcou o mundo para sempre. — Cellbit riu. Foi doce, embora a história fosse trágica. É saudade, presume-se. — Ela gostava dessas coisas. Criar, falar, apresentar… Era uma verdadeira estrela.
Roier consegue imaginar. Tem uma linha artística nisso que o traz uma admiração imensa. Ele é ator, oras.
— Meu pai teve um infarto fulminante no mês seguinte.
— Puta merda. — Roier tosse. — Perdão.
— Relaxa, costuma causar essas reações nas pessoas mesmo. — Ele bufa ao dar de ombros. — E aí ficamos só eu e Bagi nesse mundo. Já éramos maiores de idade, então a mídia não se importou muito. Seria mais interessante se fôssemos crianças órfãs, mas adultos órfãos não agregam tanto. Ficaram mais preocupados em saber se tocaríamos a Taaffaiete ou não.
As mídias se aproveitaram de seu momento de fraqueza para estampar seu rosto assustado em todos os lugares possíveis. Custou muito para conseguir derrubar ao menos metade de todas as matérias que viu. Na época, Cellbit ainda não entendia como esse mundo funcionava. Seus pais tentavam protegê-los dos holofotes a todo custo por não saberem o que eles queriam fazer da vida. Na tese, nenhum deles os forçaria a seguir com a empresa se não quisessem, tanto que o comando não foi passado a nenhum deles no testamento de sua mãe, e muito menos no de seu pai.
Mas a mídia? Ah, eles queriam. Claro que queriam! A Taaffaiete não poderia morrer. Muitos clientes e fornecedores frustrados entraram em contato em busca de respostas, e o mesmo valeu para as centenas de empregados sustentados pelos pais.
— Eu sempre gostei desse mundo e até mostrei alguns dos meus desenhos à mamãe quando ela era viva e ela dizia que eu tinha potencial. Acho que era só apoio materno, na verdade. Vendo meus primeiros designs, eram horrorosos.
Ele tentou combinar textura de onça com tecido de vinil e, sério, que decisão horrível.
— Mas Bagi não tem olhar artístico… Sério, ela se vestiria com as mesmas cinco camisas brancas se pudesse. Um crime! É por isso que ela precisa tanto de mim.
A relação fraterna de Cellbit e Bagi dá a Roier um pouco de inveja, mas ele afasta esse sentimento o mais rápido que pode. Isso não é sobre ele, não agora.
— Mas ela lida com negociações e burocracia melhor do que eu. Era ela quem pedia para tirar o picles do meu lanche, sabe? — As memórias o fazem rir, e é tão doce que Roier sorri junto. — Eu crio, ela me compra material e eu vendo. Essa última parte eu não era tão bom, mas ando melhorando graças aos seus conselhos — Cellbit pisca.
— Os radialistas andam falando muito bem da Taaffaiete, senhor Cellbit.
— Bom saber, Ramón! Sinto que finalmente me alinhei com os negócios! Cuidar das coisas de mamãe me deixa tenso. — Ele suspira. — Acho que a Taaffaiete agora não é só uma herança ou uma extensão do nome Balanar, mas é algo meu . Parece tão idiota falando da boca para fora…
— Eu entendo o que quer dizer. — Roier acena. — E concordo plenamente.
Cellbit sorri em agradecimento. Eles ficam em silêncio pelo resto da viagem. O cemitério onde a mãe dele está enterrada fica a cerca de uma hora de seu condomínio. É em área nobre e pouco movimentada. A grama é verde, as árvores têm flores cor de rosa e há alguém capinando ao fundo do terreno. É como se o lugar estivesse congelado no tempo.
Roier foi em um cemitério uma única vez para o enterro do primo de um amigo e a cena que viu era totalmente diferente dessa. Não o assusta que o lugar onde se enterra os pobres seja diferente de onde velam os ricos. É apenas uma das várias realidades em que ele está atualmente inserido.
— Seus pais estão aqui?
— Sim, mas só minha mãe foi enterrada. O pai foi cremado e teve as cinzas jogadas ao redor do túmulo dela.
— Ah.
— Foi pedido dele, não se preocupe.
O túmulo de sua mãe é feito de mármore. Está envolto em um jazigo, na verdade. É baixo, um pouco mais baixo que um banco de praça, mas igualmente largo como um. Há uma garrafa com água fresca onde uma margarida repousa, solitária. O girassol logo a faz companhia. Ao lado, um vaso de cerâmica velho está com a tampa aberta, vazio. É provável que as cinzas do pai tivessem sido previamente guardadas ali.
— Mãe, esposa e artista, aquela cujo último suspiro foi reconhecido por todos como uma obra-prima. — Roier murmura a dedicatória em letras prateadas. — 50 anos?
— Teoricamente, ainda faltam algumas horas. Ela nasceu quase de madrugada. — Ele ri. — Nova, não é?
— Sim.
Traz a ele um gosto amargo e uma nova preocupação aos ombros. Seu avô está perto da casa dos oitenta. Lembrar que pessoas jovens podem morrer com facilidade o lembra que a morte é ainda mais próxima daqueles que já estão velhos. Roier mal pode imaginar como é viver sabendo que o avô não poderá estar por perto. Ele não gosta da sensação. Odeia-a, na verdade.
— Narciso Balanar?
— Mãe de Cellbit e Bagi Balanar, sim. — Ele fecha os olhos ao sorrir para o nada. — Ela tinha nome de flor, não é adorável? Ironicamente, ela odiava narcisos.
— Por quê?
— O Mito do Narciso. Tem todo o lance da vaidade e do egoísmo. São flores mentirosas. Ela era vaidosa, mas era doce, honesta e muito, muito generosa. Dizia que não a representava bem. Mas ela queria receber flores quando morresse, desde que não fosse narcisos.
— Por isso o girassol?
— Eu trago girassóis e Bagi, margaridas. Eram as flores favoritas do papai.
É lindo.
Roier gostaria de saber quais eram as flores favoritas de seus pais, mas ele não os vê há muito, muito tempo, tanto que não se consegue ver chamando-os de mamãe e papai como Cellbit faz. E Roier ainda insistiu neles por muito, muito tempo.
Nem mesmo o tempo pode curar certas feridas, aparentemente.
— Qual sua flor favorita?
— Amarantos. É aquela planta na cabeceira da minha cama. — Cellbit suspira. — Tenho uma coleção arquivada inspirada neles.
— Parece graciosa.
— Ainda tenho problemas em conseguir equilibrar a cor com o tipo perfeito de tecido, mas sinto que estou chegando lá. — Ele estala a língua. — E você?
— Eu?
— Sua flor favorita, meu bem.
Roier não sabe. Nem qual é a dele e muito menos qual é a de Doied. Conhecendo o irmão, é provável que sejam cactos ou suculentas. Espinhosas, metódicas e práticas. Típicas plantas de escritório.
Mas ele não tem certeza. Então, sua resposta acaba sendo a primeira coisa que ele vê.
— Narcisos.
— Está dizendo que adora minha mãe? — Cellbit ergue a sobrancelha e faz cara feia, mas ri no segundo seguinte. — Bem, é impossível não adorá-la. Ei, isso me lembrou de algo. Uma vez, um cara chegou na minha mãe e…
Eles foram embora quando o sol começou a se pôr. Nesse meio tempo, eles sentaram em um banco de pedra e conversaram sobre as memórias de infância de Cellbit. Roier até tentou contribuir, mas muitas de suas lembranças entregariam fácil quem ele era, então boa parte de suas maiores falas eram comentando sobre algo que Cellbit disse. Não o incomodou. Pelo contrário, é provável que tudo o que ele queria era um ouvinte.
— Eu não esperava que meu dia fosse melhorar depois de uma ida no cemitério.
Eu também não.
— E eu queria te agradecer por isso. — Cellbit pisca para ele. — De verdade.
— Pelo que?
As estrelas surgem no céu por detrás dos olhos brilhantes de Cellbit, e há algo tão belo nisso que faz algo dentro de Roier apertar.
— Por vir até aqui e me fazer companhia. Coisas de família são muito importantes para mim… — Sai em um fio de voz. — Mas é por me ouvir, principalmente.
Roier quebra.
— Sou um bom ouvinte.
Cellbit sorri. Não com os lábios, mas com os olhos.
— Agora eu sei.
O silêncio que os cerca na volta para casa é agradável. Dentro do carro, é a vez de Roier se encolher e olhar para algo além da janela. A conversa e o ar familiar — não do que é conhecido, mas do relativo à família — pegou-o desprevenido. Há um amargor no fundo de sua garganta que não sai até quando ele se deita na cama fofinha que não o pertence.
Ele encara seu celular. A conversa com o irmão o cega por conta do brilho alto da tela. Roier pisca, pondera, grunhe e se estapeia na testa.
Coisas de família são muito importantes pra mim.
Para Roier também. Mas também é doloroso, como um elo quebrado de corrente que parece não ter mais conserto. Ele já tentou insistir nisso algumas vezes e não ganhou nada além de retaliações, xingamentos e uma bagagem de trauma que o renderia bons meses na terapia.
Seus olhos vão para a echarpe verde bem dobrada na cômoda ao lado da cama. Ele pensa na relação de Cellbit e Bagi, e teima em pensar mais ainda se algum dia teria algo assim com o próprio irmão.
A resposta é imediata.
Não.
Ele pega o celular mais uma vez. Seus lábios se franzem em uma careta feia. E ele pensa. Pondera. Revira os olhos. Suspira.
E desbloqueia Doied. Mas ele não manda uma mensagem ou algo de aviso. Não, se Doied estava reclamando tanto, então ele que tratasse de procurar por conta própria e o chamasse depois.
Irmão idiota.
Chapter 12
Summary:
A impressão que Doied tem é que foi erguido um muro entre ele e Roier. Ele poderia dizer que é tudo sua culpa, mas talvez ele estivesse errado. Apenas parcialmente. Alguns tijolos são dele, mas Roier também ergueu os seus. Agora, é como se estivesse falando para a parede e recebendo gritos de volta.
Chapter Text
Eu tinha esquecido o gosto dessa coisa.
No teatro, há uma pequena mesa no canto do camarim com potes de biscoito, uma garrafa de café que está sempre pela metade e um saco de jujubas baratas sortidas. As jujubas são doces demais e ele odeia café, mas os biscoitos são maravilhosos. Não por serem da melhor marca ou por terem sido feitos com os melhores produtos do mercado, e sim pela nostalgia.
São aqueles biscoitos redondinhos e esfarelentos feitos de amido de milho — popularmente conhecido por Maizena — e leite condensado. Doied não sabe descrever o gosto. É doce, mas não muito. E derrete na língua e escorre pela boca. Ele se lembra de sempre dividir um pote desses com o irmão quando eram menores. Eram os biscoitos mais baratos que vendiam na feira, então seu avô comprava um saco enorme que durava a semana inteira.
Outra coisa que durava eram aquelas balinhas amargas nojentas de mangarataia. É o mesmo gengibre, caso tenha dúvidas. Em alguns lugares, o doce é feito na forma de bala e vendido nos sinais de trânsito. É bom para o estômago, mas o gosto é tão ruim que dá vontade de vomitar. Seu avô, por outro lado, legitimamente gostava da coisa e comprava aos montes. Acabou que virou uma forma de castigo. Se um dos gêmeos fizesse algo errado, deveria chupar uma bala de mangarataia inteira sem fazer careta ou cuspi-la para fora.
Doied nunca aguentava, então andava na linha sempre. Roier, por outro lado, era especialista em lidar com as balinhas. Doied descobriu depois que ele, ao final de uma dezena de chupadas, fingia bocejar para cuspir a bala na mão e jogá-la depois por entre os vasos de planta.
“É gengibre, não? É mato. Deve ser bom para a planta.”
“Gengibre é uma raiz, burro.”
“E raiz vem da onde? Do mato, oras!”
Garoto idiota.
O doce amargou em sua boca. Doied decidiu que já havia comido biscoitos demais. Agora, permanecia apenas a secura intensa pela ingestão exorbitante de maisena. Ele precisava de um pouco de água.
O bebedouro ficava próximo à entrada do teatro e servia tanto para os funcionários quanto para os visitantes. É um daqueles com galão de plástico azul tão pesado que dá medo de derrubá-los no próprio pé. Doied nunca teve força suficiente para carregar um desses sozinho. Era Roier quem cuidava disso em casa.
Por que todos meus pensamentos voltam ao pirralho?
O incidente do asilo ocorreu há três dias. Quando Roier foi embora, Doied se sentiu esquisito e nauseado. Ele se lembra de estar sentado no sofá da recepção e ficar minutos a fio encarando o rejunte fino do porcelanato branco do chão. Os recepcionistas vieram perguntar se ele estava bem, mas Doied estava tão aéreo que não conseguiu respondê-los nenhuma das vezes.
Tudo o que envolve Roier se torna complexo. É como o caos: inevitável. Acima de tudo, é voraz e inconstante e instável para caralho. É como sentir adrenalina correndo pelo sangue a todo momento sem ter um intervalo de tempo para respirar. E acredite: Doied precisa de tempo. Para absorver, para pensar e para tentar entender que merda está acontecendo com sua cabeça.
Aquela conversa o deu vontade de gritar e jogar tudo para o alto e ele não é assim. Seu ato mais imprudente e irracional foi ter realizado essa troca de vidas, e ele ainda jura que está tentando encontrar algo racional em viver a rotina do irmão. Como conviver com seus amigos e fingir que tudo está bem para eles quando lhe perguntam sobre as contas.
Mas não é apenas o antigo encontro com o irmão que está em sua cabeça. Há algo pesando nele também. Não, não é a culpa. Ao menos, não é apenas ela. É um peso que pode parecer insignificante em matéria, mas se torna exaustivo quando Doied se deixa pensar nele e, porra, ele não consegue parar de pensar.
“Deixaram sua correspondência na minha casa. A caixa estava cheia, então acham que você não leu o que entregaram no mês passado. ” Não era assim que Doied imaginava que seria seu reencontro com Jaiden. Eles não conversavam antes, e em suas visitas ao teatro ela sempre estava fora ou fazendo bicos ou distribuindo currículos. “É o aviso de despejo.”
A síndica da quitinete alugada de Roier é uma senhora na margem dos cinquenta anos, baixinha, com cabelos alaranjados sempre enrolados em bobes azuis e trajada em vestidos floridos e sandálias de estampa de oncinha. Ela é barraqueira e odeia atrasos, mas os tolera porque diz que Roier tem um rostinho bonito que a dá pena. Ainda assim, não há paciência no mundo que tolere quatro meses atrasados de aluguel.
— Concessões não serão aceitas. — Doied relê em voz alta a correspondência. O envelope está amassado pela força de seus dedos. — O pagamento deve ser efetuado em até dois dias. Ao fim do prazo, os serviços de água e energia serão cortados. O tempo máximo de mudança é de dez dias. A fechadura da porta poderá ser trocada por medidas de segurança.
Juros foram cobrados a partir do terceiro mês, Doied nota. A dívida quase ultrapassa os cinco dígitos. Não é muito para ele. Na verdade, é o bastante apenas para pagar uma viagem de avião na primeira classe para sua cidade europeia favorita.
Parece tão simplório…
Ele massageia as têmporas com um suspiro cansado. Isso deveria ser responsabilidade de Roier, e ele nem está aqui para ouvir a bronca calorosa que Doied tinha preparada na ponta da língua. Sua maior vontade é de enviar a ele um áudio transbordando reprovação.
Ele me bloqueou.
É um lembrete amargo. Novamente, a conversa no asilo volta a assombrá-lo como um bicho papão. A transição abrupta da expressão furiosa de Roier para a neutra e imprescindível tão característica de Doied marcou-o tanto que sua primeira reação foi virar naquela noite. Quando fechava os olhos, via o irmão. Andando como ele, agindo como ele, falando como ele.
Deveria deixá-lo orgulhoso, não é? Roier finalmente agindo como um adulto. Mas era um teatro. Mais do que isso, parecia que não se encaixava nele. Era desconexo, estranho, tão errado.
“Você sempre me tratou como criança!”
Foi meu erro. Ele aceita, e é ácido. Está lhe queimando por dentro em úlceras. Mas onde eu errei? Será que ele deveria ter tratado Roier como um adulto desde o começo? Mas ele era uma criança. Doied também era e ninguém o impediu na sua vez. Merda.
E lá vou eu fazer aquilo de novo.
Doied encara o boleto com frustração. Ele abre o aplicativo do banco. Escaneia o código de barras. E aceita a transação.
— Pagamento efetuado — lê, murmurando.
Ele não vai descobrir.
Na última vez que pagou os alugueis atrasados de Roier, ele gritou e surtou algo parecido como “não é porque sou um pobre fodido que vou aceitar alguma caridade vinda de você”.
Ele teria que falar comigo para saber. Ah…
A impressão que Doied tem é que foi erguido um muro entre ele e Roier. Ele poderia dizer que é tudo sua culpa, mas talvez ele estivesse errado. Apenas parcialmente. Alguns tijolos são dele, mas Roier também ergueu os seus. Agora, é como se estivesse falando para a parede e recebendo gritos de volta.
“Se sua forma de me ajudar era ficando longe de mim e me excluindo da sua vida, parabéns!”
Roier deveria entender. Porra, por que ele não entende? Até o seu avô entendeu, e ele mal conseguia se lembrar do próprio nome. Há coisas maiores aqui do que a mágoa infantil. Doied engarrafou suas dores. Por que Roier não faz o mesmo? Por que ele precisa agir e pensar e ser tão diferente ?
Doied não consegue entender. E sendo sincero, ele nem sabe mais dizer se valeria a pena tentar correr atrás. É como tentar lembrar dos seus sonhos de criança.
Parece inútil.
O copo de água foi esquecido, e agora ela está morna e incômoda na boca. Ele suspira e a bebe mesmo assim. Há um gosto fraco residual de ferro. O bebedouro precisa ser limpo.
Ele amassa o copo de plástico por impulso. No segundo seguinte, ele se arrepende. Mas ao abrir a mão, o copo está tão amassado que uma fenda abriu próximo ao fundo. Tornou-se inútil.
Como tentar consertar o que já está quebrado.
Ah, como diz aquela cantora que Tina escuta? Sim, o karma é uma vadia. Doied entendeu. Ele se lembra porque odiou essa música, mas nada disse para não chateá-la. É uma das canções de sua playlist de inspiração, aparentemente. O destino é engraçado ao ponto de tocá-la toda vez que Doied vem ao teatro mesmo a playlist de Tina tendo mais de vinte horas de duração.
Doied passa pela porta de entrada fechada. E ouve vozes.
— Como esse muquifo ainda está de pé, papai?
— Nāo continuará depois de hoje, meu filho, eu lhe garanto. Irei cobrar tudo o que me devem e quero ver choramingarem! Estive sendo bonzinho por tempo demais. Você verá, pequeno Nhô, que com certas coisas não se brinca. E uma delas é com o meu dinheiro!
Pode parecer um pouco prepotente — e Doied realmente é —, mas ele sente que sabe muito bem que tipo de pessoa encontrará do outro lado daquela porta.
Eu deveria ir embora. Sim, ele já cometeu atos impulsivos demais nas últimas semanas.
Mas o que era mais um?
Ele sente uma adrenalina adormecida surgindo quando alinha os cabelos com um pouco de água e um pentear calejado de dedos. Doied apanha o óculos reserva que passou a deixar escondido no bolso do moletom por amor a sua visão. Ele o coloca, agradecido pela visibilidade, e deixa o moletom pendurado em uma cadeira de plástico. A camisa por baixo é branca e básica, mas servirá.
Doied pigarreia e prepara a garganta.
A porta é aberta.
— Muito bem, senhores! Chega de ladainha! É hora de pagar o alu…
O homem engravatado encara-o com olhos arregalados e sobrancelhas em formato de vírgula franzidas. Seu bigode é maior que o tamanho da boca, com mais fios do que o pouco de cabelo que cobre a careca pálida. Ele carrega uma pasta de couro marrom debaixo dos braços e fede a tabaco barato. Atrás dele, um garoto com pouco menos da metade da idade de Doied é um espelho perfeito do pai, embora menos surpreso e mais prepotente com o cabelo duro de tanto gel.
— Olá, meu bom senhor. — Doied cumprimenta. Ele não força (tenta) a dialética perfeita como faz com Tina. Ouvi-lo apenas aumenta o medo nos olhos do homem. — E seu adorável herdeiro, eu suponho.
— Quem é esse feioso, papai?
Doied franze o cenho. Ele bufa e cruza os braços, empinando o nariz com um bico desgostoso.
O bigodudo chia.
— ¡NO, NO, MIJO, CALLATE! — ele tenta sussurrar ao pirralho, mas fracassa. Seus braços batem em desespero. Internamente, Doied ri. — Él es muy… tan…
— Tan rico que cada mechón del cabello de tu padre es un millón de reales mío. — Doied completa por ele. Pobre homem, está tão trêmulo que não consegue proferir palavras conexas. — Que pendejo tu chico es, ye, cabrón?
— ¡NO! ÉL ES… — Ele respira fundo. — Ele é um bom menino. Um ótimo garoto! Nós apenas estamos…
— Acomodados em tratar qualquer um que vêem pela frente dessa forma ignorante? — Doied semicerra os olhos. — O que é isso escrito na pasta, hn? Seria esse o nome da sua empresa?
O homem corre para esconder a pasta atrás do corpo. Atrás dele, o garoto se esconde. Se seu pai tem medo, então ele também deveria temer. Seu pai sabe de tudo e de todas as coisas! E tem dinheiro, muito dinheiro! As pessoas que têm dinheiro são poderosas, é o que ele sempre diz.
— Por favor, senhor Doied, entenda meu lado… Eles… Esse povinho nem tem onde cair morto! — Ele ri como se fosse engraçado. Doied não ri de volta. — Eles pagam, é claro! Mas muito, muito atrasado e em várias parcelas que não tem fim! É um caso perdido!
Ouvi-lo dá arrepios em Doied. Negativamente falando. Ele não gosta do tom arrogante que vem dele, como se este fosse superior aos membros do teatro. É, ainda, hipócrita, porque Doied sabe bem que já tratou outras pessoas assim até dentro de sua própria empresa, seus próprios sócios e, por céus, o seu irmão! Faz-lhe pensar da sua falta de consciência de classe. Ele não nasceu rico, afinal de contas.
— … O aluguel está atrasado em uma semana e…
— Qual o período máximo que seu contrato permite?
— Meu senhor…
— Eu te fiz uma pergunta.
Ele engole em seco e desvia o olhar para os próprios pés. Os sapatos do homem estão tão bem engraçados que Doied vê o reflexo neles. Em contrapartida, os tênis de Jaiden estavam tão surrados que a sola ameaçava pular para fora.
— Trinta dias, meu senhor.
— E uma semana tem quantos dias? — Doied ergue uma sobrancelha. — Se é cobrador de aluguéis, suponho que saiba matemática simples.
— Sete! — o menino responde pelo pai. — Um mês tem quatro semanas, papai!
Doied anui com um pequeno sorriso e acena para o garoto. Ele é um pirralho, mas sabe fazer contas.
— Deveria ouvir seu filho, então. Se o contrato permite trinta dias, então espere os trinta dias.
De mãos atadas, o homem concorda e pigarreia. Ele treme ao oferecer sua mão em cumprimento. Doied encara a mão, mas não a aperta, muito menos movimenta o braço em sua direção.
— Voltou à sua educação?
— Me perdoe…
— Eu espero não te ver nunca mais. — Doied o corta, já se preparando para fechar a porta. — Tenha um bom dia, garoto.
— Bom dia, moço!
— Bom dia, senhor Do…
A porta fechou antes que Doied pudesse ouvi-lo. A voz abafada do homem repetia uma sequência de palavrões e lamúrias em espanhol. Ele não sabia dizer se o homem estava com raiva dele ou apenas muito envergonhado. Na dúvida, Doied irá apostar nas duas opções.
Ele, por outro lado, está radiante. Um pouco menos claustrofóbico, também. Faz bem a alma praticar um pouco de empatia. Claro, não com o cobrador de aluguéis, mas Doied tem certeza de que tem outras pessoas precisando mais do que ele.
Falando nisso…
— Ai, amigo, você viu a minha tesoura? — Tina apareceu vestida em centenas de sacos plásticos. Tipo, literais sacolas de supermercado costuradas umas nas outras. — Não gostei desse acabamento e… Nossa, faz tempo que não te vejo de óculos.
Doied é rápido ao tirar as lentes do rosto e bagunçar o cabelo furiosamente. Tina ri e se aproxima, cutucando seu rosto com a ponta das unhas enormes e incrivelmente naturais e firmes. A respiração de Doied falha e ele se afasta um pouco por reflexo. Roier pode adorar toques e abraços, mas ele não.
— Você fica até parecendo seu irmão! — ela pondera com um biquinho. Ah, não, não, tire esse pensamento da sua cabecinha agora mesmo. — Engraçado…
— Eu não pareço nada com aquela praga. — Doied responde em indignação. — Eu sou mais bonito.
Tina o analisa dos pés à cabeça e gargalha.
— É verdade!
Eu deveria me sentir ofendido ou não? Dessa vez, ele decide desconsiderar as duas opções.
— Antes que eu esqueça! Quero te dizer algo… — Tina brinca com as dobras dos dedos. Ela soa esperançosa, embora nervosa. — Eu conversei com o resto do pessoal sobre o teatro e tudo mais e a gente decidiu… — Ela respira fundo. — Vamos fazer a vaquinha.
E isso sim é uma boa notícia.
━━━━━━━ ⟡ ━━━━━━━
— Nossas vendas triplicaram desde o último desfile! Jovem Cellbit, o senhor é um gênio!
Aquele que está falando é um de seus investidores mais antigos. Ele continuou ajudando a Taaffaiete na compra de fios de linho por memória ao legado de seus pais. Em todas as suas reuniões, o homem já velho suspirava, esfregava o calombo de seu pescoço e o tecia de críticas por todos os cantos. Na verdade, essa é possivelmente a primeira vez que ele o elogia.
— Eu agradeço o elogio, senhor.
A Taaffaiete se manteve “firme” no mercado por dois pontos muito importantes, e nenhum deles foi a gestão competente de Cellbit — embora ele esteja melhorando e muito nesse quesito.
O primeiro é o Saudosismo. Suas roupas eram até legais, mas uma empresa de moda não se sustenta por apenas uma dúzia de modelos trajadas por tecido cara da cabeça aos pés. Desfiles são uma forma de vender a marca e conquistar novos clientes, e eles simplesmente não apareciam. Todo esse tempo, a Taaffaiete esteve se mantendo pelos antigos seguidores que ainda tinham esperança de rever todo aquele brilho e glamour que sua mãe conseguia transmitir aos outros.
Talvez o erro de Cellbit tenha sido tentar fazer o mesmo. Suas primeiras criações são a cópia escarrada de modelos antigos e bem sucedidos de sua mãe. Sim, é bonito, o corte é fino e as cores combinam, mas o que há de especial nisso? O que há de novo? Não há risco ou personalidade alguma. Eram apenas roupas bonitas, e apenas isso não conquistava o público.
Muitas marcas de moda são questionadas por suas criações. Os mais céticos pensam que é tudo exagero e que “ninguém andaria com isso na rua”. É claro, porque não é esse o objetivo. Cellbit vê roupas tal qual Picasso transfigura pontos e retas em uma tela branca. É sua forma de expressão artística.
Por isso, tentar ser igual à sua mãe nunca iria surtir efeito. Apenas dava a impressão que ele estava liderando a Taaffaiete para manter viva a memória de sua mãe. Em partes, é uma verdade. Em outras, ele sabe que existem formas melhores de dar orgulho a ela, seja lá onde Narciso esteja.
A Taaffaiete agora vendia suas próprias roupas. As criações de Cellbit, e não as do filho de Narciso Balanar.
Mas seria mentira dizer que apenas suas criações autênticas eram responsáveis por aqueles números exorbitantes naquele gráfico colorido o qual Cellbit sabia ler apenas pela metade — isso é trabalho de Bagi. É onde entra o segundo ponto.
Doied.
— Como vai seu casamento, jovem Cellbit?
As pessoas mais velhas adoram perguntar sobre os relacionamentos dos outros, parece ser um tipo de passatempo. Antes, ele se sentia ansioso ao ter que responder essas perguntas, precisando rondar por suas memórias até encontrar pelos raros momentos em que compartilhava um tempo de qualidade — se é que pode nomeá-lo assim — com seu noivo.
Agora, esse sentimento morreu e foi substituído por outro: a ansiedade de quando será a próxima vez. Para sua felicidade, esses momentos estão sendo cada vez mais próximos e ainda mais longos que os anteriores.
— Estamos bem! — ele sorri, e se alegra ao pensar que realmente acredita no que diz. — Na verdade, estive ontem resolvendo algumas coisas do casamento. Papelada e burocracia, o senhor deve conhecer bem.
O senhor franze o cenho, mas ri. Ele já foi casado outras três vezes. Cellbit nota agora em como isso poderia ser indelicado. Ah, eu tinha que dar uma bola fora em algum momento, puta merda.
— É verdade. — Ele não parece abalado, muito pelo contrário, está quase rindo de sua expressão medrosa. — Quando será mesmo?
— Em menos de três meses! Em agosto, quando nenhum de nós estiver tão ocupado. Os outros meses eram muito movimentados.
E é verdade. Dezembro e Janeiro são impossíveis. Em Fevereiro há o Carnaval, onde as pessoas ou gastam muito dinheiro, ou procuram novas roupas ou gastam muito dinheiro com roupas. Abril e Maio são incógnitas para ele, mas o Banco Ore sempre fatura uns zeros a mais nesse período. Junho e Julho são auto explicativos, e em Outubro é o mês das Crianças e Novembro é o preparo para o Natal. Restou Março, mas parecia ser próximo demais. No fundo, é como se os dois quisessem estar adiando esse momento — o casamento — a qualquer custo.
É estranho a Cellbit concluir que ele não se incomoda mais com a ideia de se casar com Doied.
— Foi uma reunião muito produtiva, meu jovem. Continue assim e teremos novos contratos muito agradáveis.
Bingo!
Sozinho em seu escritório na cobertura, Cellbit riu para a parede enquanto brincava como uma criança alegre com sua cadeira de couro giratória.
Doied, Doied…
Doied foi um milagre para a Taaffaiete. Quando se conheceram, Cellbit estava lidando com uma grande regressão e má vista do público. Sua última coleção tinha sido um completo fracasso e ele recebia críticas fulminantes em todas as entrevistas que ia. Com o tempo, ele simplesmente parou de ir. Não melhorou as coisas, já que ele passou a ser taxado como covarde.
“Está fazendo tudo errado.”
Ele se lembra do cabelo lambido a gel de Doied e de seu olhar afiado por trás das lentes retangulares. Atrás dele, seu sócio, Luzu, desculpava-se silenciosamente pela atitude do outro. Eles estavam em um almoço de caridade, um dos raros tipos de eventos que Cellbit se permitia a ir na época por medo da rejeição do público.
“Eu estive estudando suas ações.” Doied sentou-se na única cadeira disponível ao lado da sua e cruzou os braços. “É a coisa mais horrenda que já tive o desprazer de ver.”
As coisas escalaram ao ponto de, meses depois, eles estarem assinando o contrato de casamento.
Na época, Cellbit não entendia em que isso beneficiaria Doied ou o Banco Ore, acreditando que era algum tipo de obra caridosa ou coisa do tipo. A maturidade nos negócios hoje o ajuda a entender que aquele sempre foi um contrato de via dupla.
Doied o deu mais do que dinheiro, ele também treinou pessoas de sua empresa para entenderem como deveria administrar suas finanças e vender sua marca. Bagi o odeia, mas até ela admite o quanto o tempo de treinamento com Luzu foi importante para a Taaffaiete.
Em contrapartida, Cellbit era uma espécie de rostinho bonito. Doied nunca foi famoso pelo comportamento educado ou gentil, sendo visto como frio e distante dentro e fora da Ore. Alguns investidores podem gostar, mas outros se mostraram preocupados em como sua face estóica poderia ser prejudicial para as vendas por não fornecer estabilidade e confiança aos clientes por sua “carranca caricata e pouco convidativa”, nas próprias palavras dele.
“Eles precisam pensar que eu amoleci.” Foi o argumento primário de Doied. “ Não há melhor modo do que pelo coração. Ao menos, é o que dizem.”
Cellbit se lembra das matérias que surgiram na primeira vez que saiu com Doied. Eles tinham acabado de assinar o contrato, mas ainda não divulgaram o noivado publicamente. O Banco Ore tinha sido convidado para uma convenção e Doied levaria Cellbit como seu acompanhante. Teriam paparazzis, herdeiros, pessoas ricas e influentes e muitas chances de dar tudo errado.
“Apenas siga meus passos.” Eles ainda estavam dentro do carro. Doied o encarava de canto de olho, praticamente sentindo na pele o nervosismo berrante de Cellbit. “Não deixarei que passe vergonha.”
Tirando o fato que ele quase tropeçou nos próprios sapatos na saída, foi realmente perfeito. Repentinamente, todos queriam falar com Cellbit e discutir negócios com ele, ainda que não tivessem fé alguma nele ou na Taaffaiete. Se Doied, o mais novo empresário a entrar na lista de homens mais ricos do país, confiava em seu potencial, por que eles não fariam o mesmo? O mesmo valeu aos clientes da Ore, que passaram a ficar desesperados para reunir novas migalhas do casal.
Taaffaiete e Ore estão em sua era dourada desde então.
— É incrível…
— Suspirando pelos cantos de novo? Ah, pelo amor de Deus…
Cellbit pula na cadeira. A risada esganiçada de Bagi o faz revirar os olhos brutalmente até o interior das pálpebras. Ela adora presenteá-lo com infartos que vão diminuir sua expectativa de vida em 5%.
— Boa tarde a você também, maninha querida.
— Eu posso sentir o cheirinho do veneno daqui. — Ela ainda aspira. A única coisa que ela sente é o perfume fortíssimo do novo cheiro de lavanda que Cellbit comprou para aromatizar o escritório e se arrependeu amargamente de tão intenso que era. — Porra, esse cheiro é horrível.
— Na embalagem diz que só sai depois de três meses — Cellbit respondeu tristemente.
Bagi bufa uma risada antes de sentar-se na poltrona reclinável no canto do escritório. A sala de Cellbit não é a maior do prédio, mas é a com a vista mais bonita. Eles podem ver toda a cidade ao simplesmente virar a cabeça. Ele também tem seu próprio cantinho do café e sua coleção particular de livros de romance policial ao lado de sua cadeira de descanso e um pequeno sofá caso ele esteja exausto demais para voltar para casa.
Faz tempo desde a última vez que ele dormiu nesse sofá. Na maioria das vezes, ele continuava no escritório como desculpa para não passar vergonha perto de Doied.
De alguma forma, parece que todos seus pensamentos voltam a ele. Ah…
— Você está fazendo aquela cara de novo.
— A minha de sempre?
— Não! Bem, ultimamente sim… — Bagi suspira. — Essa carinha de gay apaixonado.
— Se você bem se lembra, Bagi, seu irmãozinho é gay.
— Mas não era apaixonado. — Ela apoia o queixo em uma das mãos e ri. — “Era” no passado, já que no presente…
— Não vou te questionar dessa vez.
Cellbit já aceitou. Com um gosto estranho na boca, mas aceitou. Seus sentimentos são confusos e parecem ser muito novos para alguém que ele conhece há certo tempo. Sentir algo por Doied é e sempre será complicado. É apenas admiração costumeira ou há algo a mais? Ele está confundindo as coisas? Vendo esperança onde não há? Será que Doied está mais próximo e carinhoso porque também gosta dele ou apenas porque o casamento se aproxima e se dar bem é algo conveniente?
No fim, ele nota que real, legítima e genuinamente tem sentimentos muito positivos por Doied. Cellbit só não sabe o que fazer com isso.
— Deveria resolver isso.
— E como?
— Fale para ele.
— É capaz de ele terminar comigo se souber.
— Doied não pode fazer isso.
— Pode sim. — corrigiu-a. — Quem não pode sou eu.
Há uma cláusula em seu contrato de casamento que põe Doied como maior detentor de seus direitos. Como já estava de mãos atadas e a beira da falência, Cellbit não tentou se opuser. Ela era apenas chamada em caso de divórcio. Basicamente, Cellbit poderia perder tudo, ou boa parte do que tem, caso isso acontecesse. Doied até poderia sofrer algum impacto no mercado, mas nada significativo ao ponto de agir como se estivesse pisando em ovos com seu noivo por medo de perder o contrato e assistir sua empresa caindo na lama.
Sim, essa é a descrição de Cellbit.
— Ele não vai fazer isso.
— Como pode ter certeza?
Bagi se levanta e caminha até ele, estapeando o topo de sua cabeça brutalmente. Não foi sem querer, ela sabe muito bem a força que tem. Ela o odeia!
— Já parou para pensar que ele pode gostar de você de volta?
— Óbvio que não! Ele é Doied!
— E você é Cellbit, eu me chamo Bagi e o céu é azul.
— Daltônicos discordam.
— O único daltônico que conheço é Felps e ele não está nessa conversa. Não tente me distrair, peste.
Cellbit cruza os braços e encara o teto com falsa atenção. Ele estala a língua, pensativo.
— Acha que tem chance?
— Sempre há.
Isso é algo que ele diria. Probabilidades, porcentagens e esse papo estranho de economista.
— O que eu faço?
— Chamar ele para sair é um bom passo.
— Nós já saímos várias vezes! E como casal! Claro, era falso e tudo mais, mas ainda como casal. — Ele a encara com os olhos arregalados, quase desesperados. — Qual seria a diferença dessa vez?
Bagi sorria e acaricia seus cabelos. Ele lavou-os hoje de manhã. Cheiram muito melhor do que esse perfume de lavanda insuportável.
— A intenção, é claro.
— Eu ainda não tenho certeza.
— Você só saberá se tentar, maninho.
Por livre e espontânea pressão, Cellbit pega o celular e procura pelo contato de Doied.
Doied 💭
Ei bem
Oi. Aconteceu algo?
Não, não.
Na verdade, eu tava pensando se a gente poderia sair
Não precisa ser hoje, pode ser no domingo quando a gente tiver mais tranquilo. Conheço um lugar calmo e com música e comida boa
Aceito.
Chapter 13
Summary:
— É, a simbologia das cores não concorda muito comigo. Dizem que a cor da verdade é azul.
Azul como os olhos de Cellbit. Sempre honestos, brilhantes e carinhosos. Esses sim são verdadeiros. Não é como o verde fluorescente falso de Roier ou o verde morto e covarde de Doied.
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
“A gente vai se encontrar em um bistrô no canto mais afastado da cidade. Pouco agito, música boa, ambiente agradável e tudo mais.” O áudio mandado por Cellbit há três minutos toca em sua mente. “Ramón vai chegar em alguns minutos para te buscar. Não se preocupe, ele já sabe o endereço! E não ligue muito para roupas, sei que estará fantástico de qualquer jeito.”
É difícil dizer a frase “não ligue muito para roupas” logo para Roier. Ele é ator! O figurino é uma parte crucial para a interpretação, um complemento físico de uma atuação precisa e harmoniosa. Suas roupas foram cuidadosamente selecionadas nos melhores brechós da cidade para que ele tivesse muitas combinações flexíveis e, é claro, glamourosas.
O mesmo não vale para o guarda-roupas de Doied, é óbvio.
“Como devo me vestir?”
“E lá vai você preocupado com as aparências de novo, não é? Ah, um formal despojado soa bem para você?”
— Formal despojado… — Ele põe as mãos na cintura e suspira. — Doied não tem nada despojado nessa merda de armário.
Ele tristemente se rende ao padrão marrom em cima de marrom por cima de mais marrom. Triplamente marrom, com uma mudança meio patética de uma camisa interna creme. A falta das abotoaduras talvez fosse despojado o suficiente para os padrões de Doied. E Roier se recusa a arrumar o cabelo como o irmão. Mais um pouco de gel e suas pontas definidas serão arruinadas.
— Falta algo.
Relógios? Não, ele se recusa. Além de serem inúteis por estarem cobertos pelas manga longa do paletó, Roier não sabe ler seus ponteiros. Ele tem o celular para ver o horário, afinal de contas. Anéis seriam boas opções se Doied tivesse algum. É um grande contraste ao comparar com Cellbit que não sai de casa sem no mínimo quatro anéis nas mãos.
E é lindo.
Cellbit tem um ótimo senso de moda e estilo, dignos do herdeiro da Taaffaiete. Às vezes, Roier tinha vontade de quebrar a farsa e pedir dicas de moda para ele.
Ele tem um bom gosto invejável para roupas e acessórios.
Algo estala nele. Roier cutuca o fundo do armário até encontrá-la ali, limpinha, dobrada e bem passada. A echarpe que Cellbit deu-lhe de presente. O verde seria um contraponto perfeito para essa quantidade sufocante de marrom terroso e sem graça.
— Meio jogado no pescoço… — Ele se olha no espelho e sorri. — Despojado o suficiente!
Mas eu também tenho!
Ao entrar no elevador, Roier está pensativo. Sua roupa é perfeita, a escolha de perfume também e sua atuação sempre foi mais do que certeira. Ainda assim, ele se sente meio baqueado, e não sabe entender o porquê.
Na verdade, ele tem um palpite. Mas não quer pensar nisso. Ele não pode pensar nisso. Não é seu dever, não é para isso que ele está aqui.
Quando você estiver lá, você é Doied. Doied e só ele. Mais ninguém. É nosso terceiro mês. Só faltam mais três. Vamos, Roier. Você foi perfeito antes, vai ser de novo hoje.
Então, por que ele se sente ansioso? Nervoso? Deslocado? Errado?
Seja Doied.
— Boa noite, Ramón.
— Boa noite, senhor Roier.
Ah, isso quebrou minha imersão!
Roier respira, um pouco menos tenso. A companhia de Ramón é calma e quieta. É um bom porto seguro nesses momentos de crise. Às vezes, ele pensa que Ramón adivinha quando ele está estressado. Sendo o motorista de Doied, é provável que essa não seja a primeira vez que ele precisou dirigir para alguém sob estresse.
Ramón deve ser a pessoa em quem Doied mais confia. Mais do que em Luzu. Mais do que em seu avô. Mais do que em mim.
Isso me faz pensar…
— Ramón…
— Diga.
— Tem notícias de Doied?
Ele fica quieto por um tempo. O carro para no sinal vermelho. Há uma família inteira atravessando a faixa de pedestres. Isso vai demorar.
— O que quer saber?
— Então, você sabe algo.
Ramón dá de ombros. O sinal abriu. Ele avança. Quando dirige, ele nunca ultrapassa os setenta quilômetros por hora. É sempre em um ritmo constante e silencioso. Ramón dá a impressão de que está sempre no controle de tudo. Assim como Doied.
— Eu o levei para o hotel onde ele está hospedado, então…
— Você sabe onde ele está.
— Sim, mas nada mais grandioso do que isso.
— Ainda mantém contato? Telefone? O chip dele está comigo.
— Não, nunca mais conversamos. — Ele não demonstra nenhuma expressão. De certo modo, parece ainda mais inexpressivo que Doied. Ainda assim, é menos assustador e intimidador que seu irmão. — Ele disse que confiava não precisar de mim até o fim do acordo de vocês. Que as coisas não ficariam em apuros, algo assim.
— Entendo…
Como pode ter tanta confiança? Roier suspira. É um contraste tão grande comigo que já pensei em desistir tantas vezes.
Se recomponha!
— E o senhor acredita no que ele disse?
— Que não precisará de mim?
— Que não vamos ficar em apuros. Acredita?
Ramón não o respondeu. Não abertamente. Para Roier, isso significou muito.
— É aqui. Tenha uma ótima noite, senhor Roier. — Ramón tirou uma revista de cruzadas de dentro do porta-luvas. — Estarei esperando no estacionamento. Não tenha pressa.
— E se sentir fome?
Ele deu uma típica risada de velho.
— Eu trouxe lanchinhos — E mostrou um pacote de biscoitos recheados. De limão, ainda por cima.
— Esse biscoito é horrível, cara.
— Vá comer sua comida de rico, vá.
Ao sair do carro, Roier esperou alguns segundos ainda na frente da porta de entrada. Cellbit disse que tinha reservado uma mesa no fundo do bistrô. Vendo agora, o lugar parece arretado e confortável. Há poucas pessoas lá dentro sob uma luz amarelada, móveis rústicos, plantas podadas e música em tom ambiente. É o tipo de lugar tranquilo que Doied adoraria vir. Secretamente, Roier também gosta desse tipo de coisa. O agito de sempre é bom, mas a calmaria é bem vinda.
Ele respira fundo e dá batidinhas na base da roupa. Perfeitamente alinhada e passada. Ele até se lembrou de engraxar os sapatos.
Faça ser perfeito.
Quando ele entra, a música aumenta e o pega em cheio.
fly me to the moon
— Ei!
Ele está lindo.
Como prometido, Cellbit está bem escondido no fundo do bistrô. Ele parecia estar olhando para a mesma linha do cardápio há horas antes de Roier chegar. Suas roupas são simples e na mesma paleta de tons amarronzados que os seus, o que dá uma sensação estranha assim que ele pensa “ ei, estamos combinando ”. Cellbit tem um sorriso contido, mas verdadeiro. Ele está usando os anéis de sempre e o estilo de de roupas que usa todos os dias, e ainda assim é como se fosse algo novo e surreal sem se esforçar para parecer incrível.
Ele é lindo.
let me play among the stars
— Boa noite, Cellbit.
— Você está usando.
Os olhos de Cellbit estão presos na echarpe. Se possível, seu sorriso aumentou, deixando de ser um arranjar de dentes caloroso para algo que beira ao orgulho. Ele adora quando as pessoas se vestem com suas criações.
E há algo maior por ser ele ali.
let me see what spring is like
— É uma bela peça.
— Combina perfeitamente com você. — Cellbit suspira e se levanta, puxando a cadeira do lado. Geralmente, é a cadeira da frente. Doied sempre se senta à frente dele, não ao lado. É uma mudança brusca de configuração, os dois sabem disso. — Fiz a escolha correta de tecido e cores, não acha?
Roier treme ao sentar na cadeira. Ao seu lado, Cellbit sorri ainda mais quando toca rapidamente em seu braço como cumprimento.
— Definitivamente. Você tem bom gosto.
Cellbit brilha tanto que parece radiante.
— Eu sei!
on Jupiter and Mars
— A viagem até aqui correu bem?
— Sim, e Ramón não parece preocupado em ter que esperar mais um pouco. — Roier não contém o pequeno sorriso. Sem mostrar os dentes, claro. — Ele parece ser adepto às palavras cruzadas.
— Típico da idade.
Abuelo nunca gostou de cruzadas. Ele sabe porque já tentou presenteá-lo com esses livros que vem mais de 200 páginas de cruzadinhas. O velho odiou. Em vez de preenchê-las, usou-as para desenhar rascunhos nos quadradinhos pequenos. Bem que ele sempre diz que se encaixa no perfil rebelde.
— E no trabalho? — Roier tenta iniciar a conversa. Suavemente. — As estatísticas vão bem?
— Só você para perguntar de números em um encontro.
Roier engole em seco. Sim, é um encontro. Ele já sabia. Noivos têm encontros continuamente, caramba. Deveria ser a normalidade. Por que ele está tão afetado? Ele já saiu em encontros com Cellbit antes e nunca se sentiu assim. Não nessa intensidade.
O que mudou?
— Não posso evitar.
— E não quero que pare. — Cellbit pisca. E Roier treme debaixo da mesa. — Mas vamos bem. O desfile foi tão bem recebido, sabe? A maioria das críticas é positiva e estamos recebendo novas propostas de fornecedores. Já pensei em alguns croquis novos para a próxima coleção. Eu já tenho um desenho pronto, na verdade.
— Fale sobre ele.
E se Cellbit já estava brilhando, agora toda a iluminação da sala parecia estar sendo redirecionada para sua cabeça como um holofote invisível. Ele começa a falar sobre suas novas inspirações e em como o laranja vai ser A Cor da próxima temporada.
— O que você acha de tecidos trançados?
Muito brilhante.
— Eu não entendo nada do que você fala.
Cellbit ri. E parece demais.
— Claro que não.
in other words
— Elas têm petiscos deliciosos aqui. Gosta de bolinhas de queijo? Talvez não seja o tipo de coisa refinada que você está acostumado, mas…
— Eu adoro bolinhas de queijo. — É mentira. Doied não gosta. E quer dizer, Roier adora. Mas ele deveria… — E eu não como só comida gourmet, sabe.
— Confesso estar meio cético…
Roier toca no sino para chamar o garçom. O uniforme deles é em um laranja queimado, praticamente em tom de caramelo. Quando fazem um pedido, anotam em pequenos blocos de papel com capa de couro. Muitos restaurantes já usam tablets e celulares, mas esse parece insistir em manter um pouco de tradicionalismo no tratamento da clientela. Parece um pouco mais caloroso e familiar que os outros restaurantes que ele e Cellbit frequentam. Ele adorou.
— Duas porções de bolinhas de queijo. — Roier pede. — E outra de dadinhos de tapioca.
— E eu quero seu melhor champanhe, por favor.
hold my hand
— Champanhe, é?
Roier nunca tomou champanhe, só gin e vinho barato que seu avô escondia no fundo do armário. Ele nunca gostou muito de beber. Até onde se lembra, Doied também não. Nos eventos de gala em que o irmão aparecia na televisão, sua bebida era sempre uma taça com água, e não vinho como os demais.
— Sei que não gosta de beber, mas…
— Um pouco não faz mal.
Quero saber se é tão horrível quanto parece.
Não é ruim. Tem o gosto residual de álcool, mas não é tão forte quanto no gim. Esse em específico é até meio doce. Ainda assim, ele preferiria tomar um pouco de guaraná gelado do que encher novamente sua taça com isso.
— O que acha?
— Há melhores.
Cellbit, ao contrário, não parece querer terminar só em uma taça.
— Deixe para mim, então.
Roier solta um risinho.
— Bebum.
— Ah, você deu para piadinhas agora?
— Meu senso de humor é pouco reconhecido. — Ele ajeita os óculos. Essa droga não para de cair. — Uma lástima.
— Claro, claro…
in other words
A conversa foi longa, mas passou tão rápido que eles pediram mais uma porção de bolinhas sem nem notar. Roier não queria falar sobre a empresa, já que Mariana e os outros pareciam estar evitando-o desde sua saída abrupta no orfanato. Ele não sabe como as coisas estão e não quer arriscar falando sobre coisas que ele não conhece, então dedicou o tempo para perguntar sobre Cellbit.
— Eu tenho muitas cores favoritas, então é sempre difícil escolher uma. Digo que ela muda conforme o tempo passa que nem as cores são para as temporadas da moda. — Cellbit sempre tem respostas complexas para tudo. — Mas ultimamente, acho que é verde.
— Você parece ser do tipo que gosta de simbologias. Então, por que verde?
— Muitos motivos. Primeiro, é porque acho lindo. Segundo, foi uma das cores da minha última coleção. E terceiro, é algo mais pessoal. Quando você vê verde por aí, o que pensa dele?
Roier tenta pensar nas propagandas que vê usando verde. A primeira coisa que pensa é em organizações ambientais, mas ele sabe bem que não é nessa linha de raciocínio que Cellbit está seguindo.
— Só consigo pensar em ícones verdes em sites.
— Bom início. E o que ícones verdes te lembram?
— Respostas certas e coisas do gênero.
— Exato! E faz parte da simbologia. Verde dá estabilidade e segurança. É uma cor fácil de harmonizar, também. — Cellbit sorri. — E já que você falou em respostas certas, eu acrescentaria ao dizer que, para mim, verde é a cor da verdade.
please, be true
Verdade.
Roier contém o impulso que tem de tocar em sua echarpe. Verde. Sendo usada por um mentiroso.
Ele está sentindo aquilo de novo.
— Para você?
— É, a simbologia das cores não concorda muito comigo. Dizem que a cor da verdade é azul.
Azul como os olhos de Cellbit. Sempre honestos, brilhantes e carinhosos. Esses sim são verdadeiros. Não é como o verde fluorescente falso de Roier ou o verde morto e covarde de Doied.
in other words
E no meio de sua introspecção, a mão de Cellbit surge em seu campo de visão. Roier levanta o olhar. Ele está bem ali em sua frente, de pé, a postura inclinada e aberta, sincero. Há um sorriso lindo em seu rosto, e tudo o que Roier pensa é:
É o sorriso mais bonito que já vi.
A sensação o pega forte e intensamente. Sim, Cellbit é bonito. Roier sempre soube. Mas não é apenas lindo. Sua conversa é fácil e simples. Seu sorriso é doce e genuíno. Sua aura é acolhedora e radiante, do tipo que levanta seu astral só de olhar para você com esse par de olhos coloridos e tão bonitos de azul cor de verdade. Ele é talentoso, inteligente, gentil, carinhoso, prestativo, engraçado e, merda, ele é tão perfeito que não parece real.
Cellbit parece intocável. Não. Ele é intocável.
Porque ele não é meu.
E quando Roier nota isso, ele quebra. É. Roier sentiu.
Está no verde das plantas ornamentais do bistrô, no tom mais acalentado e escondido dos desenhos do cardápio. No verde temperado e bom das ervas nos petiscos compartilhados em conversas longas e fáceis de conduzir. No tom único das roupas de Cellbit que surgiram de seus desenhos inspirados e criativos e complexos tal qual o dono que os criou. No tecido caro e suave da echarpe que rodeia seu pescoço como se tivesse asfixiando-o até a morte, porque sua garganta aperta e seus ombros pesam.
Ele está sentindo aquilo. Mas agora, ele sabe o que é.
Eu gosto de Cellbit.
— Quer dançar comigo…
Ele não é meu.
— … Doied?
Estou mentindo para ele.
— Sim.
É a culpa.
Culpa porque ele não deveria estar gostando tanto de estar dançando com Cellbit agora, as mãos longas e macias conduzindo-o com maestria e segurança pelo salão quase vazio. Culpa porque ainda é o noivo de seu irmão e isso não deveria ser justo com Doied. Culpa porque isso ainda é culpa de Doied, que deveria estar aqui no seu lugar. Mas a culpa também é sua porque Roier também aceitou estar aqui, no lugar que não é dele.
E agora, todos estão mentindo. Uns para os outros. Para si. Para todo mundo.
Ele nunca teve problemas em mentir, seja para o avô ao dizer sobre o horário que chegaria em casa, ao irmão com suas notas da classe, aos amigos do teatro sobre suas contas acumuladas e para todo mundo que conhece. Roier é um bom ator porque é um bom mentiroso. Ele é um imitador nato. Sua capacidade de improvisação nasceu de sua observação apurada e bem sucedida.
Suas primeiras atuações vieram observando os maneirismos de seus colegas. E copiando-os. Inteiros. Por igual. Perfeitamente.
Porque é isso o que Roier é. Um mentiroso.
Mas agora, ele sente culpa. Tanta que está dando tonteiras. Ela se mistura aos seus novos sentimentos e se transforma em uma bagunça conflitante em sua cabeça. A presença de Cellbit já não é firme o bastante para mantê-lo seguro no chão, muito menos olhar para seus olhos e vê-los brilhando por estar dançando com a droga do seu irmão.
Não sou eu.
Não é ele.
Não é eu.
Não sou ele.
Roier tropeça no próprio pé. Ele não cai, porque Cellbit o segura.
— Você está bem?
Ele suspira e desvia o olhar para buscar um ponto inexistente em seus sapatos.
— Bebi demais.
Uma mentira. Mais uma. Quantas foram? Mais de cem? É provável.
— Não sabia que era tão fraco para bebida.
É. Eu sou um covarde. Sua mente traz a imagem mental de Doied. Nós somos covardes.
— Está tarde, também.
— É.
Eles pagam a conta. Metade para cada um. Roier está anormalmente quieto e Cellbit não sabe o que dizer. De alguma forma, o clima bom e descontraído parece ter morrido. Cellbit fez algo de errado? É provável. Mas o que? Dançar foi demais? Será que não deveria ter pedido bebida? Será o queijo? Onde ele errou?
O que ele não sabe é que não errou em nada.
O problema sou eu. É o que Roier pensa ao praticamente fugir do bistrô .
Acho que esse foi meu limite.
Notes:
arte de capítulo LINDÍSSIMA por @sttarish
Chapter 14
Summary:
Quando Roier está prestes a surtar, uma mão vem e o toca no ombro. Ele não se lembra da última vez que Doied o tocou. É provável que eles fossem adolescentes, em algum de seus aniversários. A cada novo ano, eles se afastavam ainda mais. Em certo ponto, os abraços morreram e Doied foi embora.
Mas ele está aqui agora. E é estranho, e não vai curar os ferimentos profundos no coração de Roier. Porém, talvez ajude a curar as cicatrizes.
Chapter Text
irmão.
DOIED
Quando me desbloqueou?
Não importa. Preciso conversar com você. Tipo, urgente. E cara a cara.
Ah
Mande Ramón me buscar amanhã.
Ele me desbloqueou.
Don Ramón havia o buscado há exatos cinco minutos. A conversa durante a viagem foi extremamente breve, Doied estando tão reflexivo e distante que seria impossível para Ramón iniciar um diálogo mesmo se quisesse muito. O celular em suas mãos estava desbloqueado, a tela com o contato de Roier aberta. A foto dele aparecia.
Ele realmente me desbloqueou.
Quando?
Mais importante ainda: por quê?
Ele não estava errado. É meio amargo para Doied admitir: não que ele está errado, mas que Roier está certo. Mas ele não é completamente estúpido, apenas muito teimoso e irremediável. Se estivesse na situação do irmão, é provável que nunca o teria desbloqueado e muito menos sido o primeiro a enviar uma mensagem.
E Roier fez as duas coisas.
Se considerar sua última conversa com o irmão, isso apenas servia como combustível para sua ansiedade crescente. Ele estava com seus óculos reserva no rosto, e caíam tanto que parecia que havia uma cachoeira de suor nervoso escorrendo pelo seu nariz. Há suor em suas mãos também, e ele precisa constantemente limpar as palmas contra as calças de moletom. Doied não sabe dizer porquê se vestiu com moletons se está indo ver o irmão. Talvez tenha sido o costume ou, talvez, ele realmente aprecie o tipo de roupa.
— Se pensar mais um pouco, sua mente irá explodir, senhor.
Doied deixa escapar uma risadinha sem graça.
— É tão óbvio meu nervosismo, Ramón?
— Apenas o conheço bem, meu senhor.
Ramon é sua pessoa de maior confiança. Normalmente, ele diria isso de Luzu, o que também é válido, apesar de ser um tipo diferente de confiança. Luzu é seu braço direito, seu melhor amigo, aquele que o conhece como ninguém, que sabe como ele pensa e que cuida de tudo quando Doied não está presente. Mesmo sem saber do acordo com o irmão — ao menos, não pela boca de Doied —, ele sabe bem que Luzu será capaz de manter tudo em ordem. Ele confia nele.
Mas seu motorista é um caso à parte. Ele é como um tio muito próximo, ou quase um pai, e Doied tem questões sensíveis referentes a figuras paternas. Ramón é seu motorista. Ele sabe qual o lugar favorito de Doied para comer, onde ele quer ir quando está estressado, onde pode passear tranquilo sem ter medo de precisar ser Doied o tempo todo, e até sabe das vezes em que eles passavam de carro pela antiga casa dos gêmeos apenas porque Doied estava nostálgico e sentimental demais.
Ele é, também, o único que já o viu chorar depois de adulto.
— Você tem alguma ideia do que pode vir a ser essa conversa inesperada com meu irmão?
— Na verdade, sim.
— E irá me dizer?
— Não, meu senhor.
Imaginei que fosse dizer isso.
— É o tipo de coisa que devo esperar para ouvir de Roier, então?
— Precisamente.
Merda.
O carro para em seu condomínio, e a saudade de seu antigo apartamento o pega em um baque. Doied ainda se lembra quando pagou a primeira parcela da cobertura. Ele estava namorando apartamentos há eras, visitando-os com Luzu em seu encalço apenas porque ele tinha um bom olho para imóveis.
“Esse parece bom.” Luzu foi o primeiro a entrar no apartamento. Na época, estava completamente vazio e tinha um pouco de cheiro de poeira. Era o apartamento mais caro da torre central do condomínio mais caro da região. Mas dinheiro não era um problema para Doied. Não mais. “Arejado, seguro, reservado e com uma boa vista. Tudo o que você queria.”
É estranho pensar que ele esteve tanto tempo fora de casa. E mesmo voltando, Doied sente que algo não se encaixa.
— Ramón, você tem…
— Pegue.
Ele entrega seu cartão reserva do elevador. Doied agradece com um aceno de cabeça e suspira antes de sair do carro. Ramón permanece parado ao lado, quieto ao preencher animadamente suas cruzadas. Enquanto isso, Doied mal sente que consegue equilibrar o peso entre suas pernas.
Há quanto tempo não me sinto nervoso assim?
E ele nem sabe o porquê.
Ou talvez eu saiba.
Mas é uma possibilidade. Assim como sua faculdade. Sua profissão. Suas ações. Seu contrato com o irmão. Possibilidades, estatísticas. Será que tudo são apenas números que poderiam ser facilmente organizados em gráficos de barra e pizza?
Essa foi uma péssima ideia. Não a reunião com Roier, mas o local. Em seu apartamento. Porra, o apartamento que ele divide com Cellbit. Segundo a agenda do outro, a qual Doied admite ter decorado em algum momento de sua convivência, é provável que Cellbit só apareça em três horas ou mais.
Ainda assim, Doied treme, agora com um novo motivo para estar nervoso.
Ele abre a porta.
A saudade o pega. De novo. Mais forte ainda.
Tudo está como se lembra, e isso o surpreende. A quitinete de Roier era uma bagunça. De certa forma, Doied esperava que isso fosse contagioso e acabasse estragando seu apartamento também. Mas tudo está organizado, limpo e no mesmo lugar que ele deixou quando foi embora. Só há uma única coisa diferente.
A echarpe verde está dobrada sobre a mesinha de centro da sala principal. Parece ter sido limpa, tão brilhante que fazia os olhos de Doied arder. Sua cor favorita. Seu tecido favorito. Merda, ele queria saber como ela ficaria em seu pescoço.
Ele se lembra do que viu na televisão antes e a vontade morre. Mas a formigação ao redor da garganta continua.
— Você veio.
Roier surgiu do corredor. Ele está vestindo suas roupas e, novamente, isso é apenas estranho demais. Não se encaixa em seu irmão. Não é ele. Nem mesmo aqueles olhos de café, agora opacos, escondidos sob a armação tão idêntica a sua, são os mesmos de antes.
— É… — Doied dá de ombros e finge chutar uma pedra imaginária. — Você me chamou, idiota.
Silêncio.
Eles estão se encarando veementemente, os dois parados no meio da sala de estar. Roier tem as mãos escondidas nos bolsos das calças. Doied queria fazer o mesmo, mas nota tarde que os bolsos de seu moletom são pequenos demais para comportar suas mãos. Elas ficam jogadas meio molengas ao lado do corpo, entregando seu nervosismo barato.
Merda.
— Eu…
— Não temos muito tempo. — Doied frisa. — Esse encontro é arriscado. Cellbit pode voltar a qualquer momento.
As feições neutras e distantes de Roier se curvam em uma careta irritada, as maçãs do rosto inchadas e vermelhas. Naquele momento, Doied vê perfeitamente a imagem de seu irmão menor irritado com alguma coisa, como quando Doied se sai melhor que ele nos jogos ou quando o obriga a fazer a lição de casa.
— É essa a primeira coisa que você vai dizer? — Ele ri sem humor. — É claro que sim… Você só se importa com isso.
— Com o que?
— Com ISSO! — Roier aponta para si. E para Doied. E para os dois. — Com esse seu… com o NOSSO teatro barato. Com essa MENTIRA!
É a vez de Doied franzir o cenho. Ele dá um passo para frente. Mas não percebe que o fez.
— Não gosto do seu tom. — murmura. — Parece que está tentando me culpar. Sabe que você também aceitou essa nossa farsa, não sabe? Pior: parecia tão ansioso quanto eu.
— Como eu não poderia estar? — Roier bagunça os próprios cabelos em um surto ansioso. — Era minha chance de fugir! Fugir do aluguel, do meu teatro falido, das obrigações de pai e filho e de, porra, só ter ALGO. Dinheiro, casa própria e… Eu sou tão filho da puta por dizer isso… — Ele sussurra rápido e enrolado, mas Doied ouve. — Um namorado… um noivo legal e gentil e talentoso e a porra do cara mais bonito e doce que eu já conheci. Você tem TUDO! E EU NUNCA TIVE NADA!
Roier também anda para a frente. Três passos. Eles estão perto o suficiente para que Doied possa ouvir a respiração desenfreada do irmão. Ele funga e bufa. Como uma criança mimada.
— É egoísta eu querer um pouco do que é seu? É, pra caralho. — Roier engole uma bola de saliva. — Mas eu quis.
Seu irmão falou tanto que está sem fôlego. Doied ouviu tudo, ele jura que ouviu. Mas sua mente processou mais uma única frase. Ele está irritado com ela.
— Como você ousa dizer que nunca teve nada?
— É sério que foi isso que você…
— Como você ousa dizer essa merda quando eu sempre te dei tudo? — É a vez de Doied rir. Ele não costuma rir. Sai histérico. Negativamente. — Você não se lembra, ein? Das vezes que eu abdiquei da minha comida por você? Das minhas roupas por você? Dos meus brinquedos? Dos meus aniversários? Do AMOR DO MEU PAI ?
— Que…?
— Você acha que é fácil? Fingir que está bem com essa merda toda? Que toda a atenção é para o seu irmão MINUTOS mais novo que você enquanto você é obrigado a brincar de adulto porque a vida é uma merda nojenta e a meritocracia é uma mentira contada para te encher de sonhos falsos e inalcançáveis?
Doied nunca deu seu esforço em troca de sua nova vida, não. Ele trocou sua antiga vida pela nova. Trocou a família. O lazer. O pai. O irmão. As brincadeiras. A infância. Tudo.
— Eu TAMBÉM queria um pouco do que é seu, sabia? Tempo de lazer, momentos em que posso rir e me divertir de coisas piegas e fúteis sem ter centenas de vidas dependendo do meu salário, poder sair sem ter medo de paparazzi ou só, sei lá, poder assistir um episódio daquela novela horrível do horário das nove. — Ele chia como um cachorro depois de quebrar a patinha. — E talvez eu pudesse ter tido tudo isso. Não era sobre tempo, nunca foi… — É sua vez de engolir em seco. A próxima frase sai em um sussurro. — Mas será que eu tinha coragem ?
Coragem de rever o que eu deixei para trás?
Não, ele não tinha. Doied é um covarde. Ele compensou sua ausência com programas de caridade e doações para crianças porque queria se sentir menos egoísta e um pouco mais humano. E foi legal, ele se sentiu bem, e depois continuou porque realmente queria ajudar as pessoas. Mas o vazio ainda permanecia. Ele não poderia fechar buracos de carência destinados a outro senão aquele a quem Doied abandonou.
Isso é uma merda.
— Você acha… — Doied engasga, e é tanto que sai em propulsões altíssimas de sua garganta. Ele grita. — ACHA QUE EU QUIS DAR A MINHA INFÂNCIA EM TROCA DA SUA ?
Em toda sua vida juntos, Doied nunca gritou para o irmão. Na verdade, ele quase nunca gritava para ninguém. Houve uma vez em que surtou e acabou gritando com funcionário. Ele deu um aumento no dia seguinte, e ainda não pareceu o suficiente. Todos ficaram com receio de falar com Doied a partir desse dia, o que afetou a comunicação interna da Ore intensamente.
Ele se pergunta se o funcionário se demitiu ou não. Já faz tempo.
Roier está calado, olhos arregalados e boca escancarada. Ele está suando frio, e seus cílios tremem em uma velocidade sobre humana. Sua garganta mexe. Ele está engolindo saliva. Mais de uma vez. Sequencialmente.
— E eu pedi…?
Doied se sente sem ar.
— Que?
— Eu pedi por isso? — Roier bufa entredentes. — Eu pedi que você sacrificasse a porra da sua vida por mim? NÃO, DOIED! EU NUNCA TE PEDI NADA! — Ele não tem problemas para gritar. Na verdade, sai naturalmente. Roier não tem noção do quão alto está falando, reverberando pelas paredes, pelos corredores, pelos quartos, por eles. — EU SÓ QUERIA TER O MEU IRMÃO PRA MIM!
É, Roier queria sentir um gostinho do que era ser Doied. Mas mais do que isso — e é algo meio tosco de se confessar, talvez —, ele também queria tê-lo de volta. Como na infância. O acordo estúpido deles foi a única forma que ele encontrou para ser reconhecido pelo irmão. Visto como algo além de um garoto mimado e irresponsável.
Roier também queria ser útil.
Para Doied.
— MAS EU NUNCA CONSEGUI SER PRÓXIMO DE VOCÊ! Eu tinha um irmão, um melhor amigo, e de repente PERDI! — Ele está intercalando entre berros chorosos e sussurros inaudíveis. Roier está quebrando. Doied não está dizendo nada. Merda, algum deles está bem? Claro que não. — PAPAI SURTOU SEM VOCÊ! EU SURTEI SEM VOCÊ! EU NÃO QUERIA O SEU DINHEIRO OU A SUA VIDA. EU QUERIA TE TER!
E eu não consegui.
Parece que Roier é um grande azarado. Deve ser a sina dos imitadores.
— Por que você não me disse?
A voz de Doied é baixíssima. Quando Roier o olha, vê seu irmão. Pequeno. Fraco. Covarde. Com medo.
Não parece Doied… ou parece? Talvez, Doied não seja forte e resistente e cabeça dura o tempo todo. Talvez, ele também sinta dores. Talvez, ele também se lamente no banco do carro para seu motorista ouvi-lo chorar como uma criança. Talvez, ele também tenha medo de não orgulhar o pai. Talvez, apenas talvez, Doied também seja como Roier.
Roier dá de ombros. Ele também se sente pequeno.
— Você me ouviria?
Os dois sabem a resposta.
— Não — Doied vocaliza mesmo assim.
Silêncio.
Eles estão se encarando. Se houvesse um terceiro espectador, teria notado a nuance diminuta de seus olhos. Não são iguais, ainda que sejam declarados como gêmeos idênticos. Os olhos de Doied são maduros, de um café forte, expresso e sem açúcar; os de Roier, ao contrário, são doces, com uma mistura leve e não enjoativa de caramelo. Mas no momento, ambos estão brilhantes, rodeados de lágrimas e palavras não ditas.
— Eu…
Roier morde o lábio inferior. Seus ombros tremem, e as mãos apertam dentro dos bolsos. Ele sente vontade de pedir um abraço. É algo que fazia muito quando eram pequenos. Mas nenhum deles é mais criança. Ainda faria sentido?
Mas também faria sentido permanecer no erro?
— Eu não consigo. — sussurra, mas Doied o ouve. — Não consigo continuar com esse teatro.
Não posso mais fazer isso.
Doied suspira. Algo o incomoda. Seus livros estrangeiros descrevem isso como “falar sobre o elefante na sala”. É provável que fosse desconfortável, porém, soa ainda pior deixar aquilo entalado na garganta e virar as costas como se não houvesse nada encucando-o fortemente. Doied é especialista em manter as coisas nas entrelinhas, mas ele nota agora que o mesmo não vale para Roier.
— Por quê?
— É antiético.
— Ética nunca te incomodou antes.
Roier odeia como Doied, mesmo distante, ainda o conhece bem.
— Seu noivo.
— Cellbit? — Doied pisca. — Ele fez algo?
Ele existe.
— Eu gosto dele.
— Bom, Cellbit é uma pessoa facilmente gostável, não me surpreende que…
— Romanticamente.
O que eu deveria sentir?
O silêncio de Doied é ensurdecedor. E inexpressivo, o que é pior. Roier só queria alguma reação. Vamos, grite comigo. Sinta raiva de mim. Estou apaixonado pelo seu noivo. Ele dançou comigo. Ele me olhou com amor. Você deveria me odiar, porra. ME DIZ ALGUMA COISA!
A resposta que vem de Doied não é o que ele imaginava.
— Entendo.
ENTENDE?
— É isso…?
— O que espera que eu diga?
— Eu acabei de dizer que gosto do seu noivo… Você não deveria, não sei, querer me socar ou coisa parecida?
— Eu não gosto de Cellbit. — Doied fala como se fosse super normal não gostar de Cellbit, tipo, é Cellbit. — Não desse jeito, apesar de ver um casamento… amigável acontecer entre nós.
Quando viu os dois na televisão, Doied chegou a questionar se ele tinha sentimentos além do platonicismo. Foi fácil definir que, não, ele não sentia nada romântico por Cellbit. Há cumplicidade e orgulho, no entanto, e ele realmente torce muito pelo sucesso do cara. Se possível, foi notar isso que tornou as coisas um pouco mais amargas, com o contrato e tudo mais.
Mas ele e Cellbit se dão bem, e um casamento entre eles seria puramente platônico. Não é uma ideia ruim, e talvez não fosse difícil mantê-lo aceitável.
Só que as coisas mudam se logo seu irmão estiver apaixonado pelo seu noivo, de todas as pessoas do mundo.
— Ah…
— Como aconteceu?
— Eu não sei. — Roier suspirou, abraçando as laterais do corpo. Ele parece frágil e retraído. — Só… aconteceu? Parece estúpido dizendo, mas eu sou o rei da estupidez, então talvez só tivesse que ser assim… A gente andava conversando bastante, sobre ele, a empresa, a mãe dele…
— Ele te falou sobre a mãe? — Doied arregalou os olhos. — A mãe dele ?
— Narciso Balanar, sim.
Puta merda.
Doied e Cellbit nunca conversaram sobre suas famílias. Nunca houve perguntas, então não havia motivos para iniciar esse tipo de conversa desconfortável. Assim, Doied nunca soube como seu noivo se sente em relação a morte dos pais, e Cellbit nunca descobriu sobre seu gêmeo. O máximo que ele sabia era que Doied tem um avô no asilo porque o pegou pagando boletos uma vez. E se isso não tivesse ocorrido, é provável que nunca teria descoberto.
A conclusão, sabendo disso, foi óbvia.
— Cellbit gosta de você.
Roier riu sem humor.
— Não, ele gosta de você. Ele não me conhece. — É um fato inquestionável. — E não te conhece também.
Eles trocam olhares. Estão recheados de culpa.
Ao pensar na troca, eles tinham pensamentos e ideologias extremamente deturpadas e egoístas em mente. Era apenas para benefício próprio e preenchimento de desejos notórios. Contudo, ninguém parou para pensar nas consequências que isso traria não apenas aos dois, como também para seus relacionados.
— Merda.
— É.
— Destrocaremos?
Roier se encolhe. Destrocar significa voltar para sua antiga vida. Em tese, significa reencontrar Tina, Jaiden e todos os seus amigos do teatro. É também voltar para os aluguéis atrasados, mas isso parece ser uma dor distante agora que algo maior o atinge em cheio:
Destrocar significa deixar Cellbit.
— Não quero continuar o enganando.
— Apenas destrocar e fugir não vai resolver as coisas. — Doied oferece com um sorriso torto. Ele não é bom em sorrir. — Eu meio que aprendi a lição.
Isso foi extremamente pessoal. Não ajuda a lidar com os estremecimentos em seus pés.
— Eu não…
Não quero ver a decepção nos olhos dele.
Quando Roier está prestes a surtar, uma mão vem e o toca no ombro. Ele não se lembra da última vez que Doied o tocou. É provável que eles fossem adolescentes, em algum de seus aniversários. A cada novo ano, eles se afastavam ainda mais. Em certo ponto, os abraços morreram e Doied foi embora.
Mas ele está aqui agora. E é estranho, e não vai curar os ferimentos profundos no coração de Roier. Porém, talvez ajude a curar as cicatrizes.
— Vou estar com você. Eu te enfiei nessa, não é?
Roier suspira.
— Eu concordei.
Teremos que lidar com isso. Juntos.
Chapter 15
Summary:
— Eu nem sei quem você é.
Chapter Text
“Ações do Banco Ore despencam nas últimas 24 horas. É a maior baixa já registrada pela empresa de Doied de Luque desde sua abertura, e um dos maiores desfalques entre as maiores empresas da década desde a queda da Taaffaiete de seu noivo, Cellbit Balanar.”
Cellbit não costuma ouvir as notícias na rádio por vontade própria. Quando ouve, é no carro de Doied ou quando sua irmã insiste em puxá-lo para ouvir as últimas notícias, discursando o quanto é importante estar a par do que acontece no mundo. A grande verdade por trás disso tudo, no entanto, é que Bagi apenas queria saber o que as pessoas estavam pensando deles , da Taaffaiete.
Era por esse exato motivo que Cellbit não queria ouvir, e sua irmã sabia, é claro. Ela sempre faz essas coisas de propósito.
Foi Bagi quem o mandou ligar a rádio. Ele está indo para casa, tendo saído um pouco mais cedo após fechar um contrato milionário com uma marca de bolsas disposta a montar uma coleção colaborativa. Tinha tudo para ser o maior sucesso da Taaffaiete e Cellbit estava um pouco ansioso em compartilhar as novas notícias com Doied.
Agora, ele já não sabe como deveria conduzir a conversa.
“Há alguma especulação do que possa ter gerado essa situação tão singular, Marta?”
Doied sempre foi tão centrado com a visão de sua empresa, então não é estranho que as pessoas queiram entender o que aconteceu com a Ore. Claro, ele nem sempre conseguia manter suas finanças subindo, mas sua curva de ações nunca foi negativa. Estável e constante, talvez. Para baixo? Nunca.
E ele é dono de um banco.
Empresas perderem força no mercado de ações sempre é algo negativo para seu CEO, seus funcionários, seus investidores e, sobretudo, seus clientes. Ninguém se sente confortável em apostar em uma marca que não sustenta, muito menos em uma que não consegue lidar com o próprio dinheiro. A coisa muda — negativamente — de figura quando a empresa em questão é um Banco. Empresas financeiras precisam ser confiáveis e se mostrar confiáveis ao público. Se um Banco não consegue se manter erguido com suas finanças, então porque continuar usando-o?
“Nem ideia, Roberto. Uma de nossas fontes descobriu que um dos investidores mais antigos da Ore, a America Co., quebrou laços com a empresa de Doied após ocorrer, nas palavras do Financeiro, uma prova de ‘desrespeito ao não dar sua presença no que poderia vir a ser a maior aposta da América dos últimos quatro anos’.’
Até onde se sabe, a America Co é um Instituto Financeiro estadunidense. Eles investem em escolas do ensino médio em busca de genialidades ou grandes talentos para a ciência e os esportes. Boa parte do dinheiro investido vinha justamente dos fundos da Ore.
Uma empresa que é tão dependente de dinheiro estável para manter seus negócios ativos não gostaria de manter relações com a Ore neste estado.
Merda, Doied. O que aconteceu?
“Será que estaremos presenciando a Queda do Banco Ore e de Doied de Luque?”
Não.
Sentindo-se sufocado pela rádio, Cellbit decide que precisa fazer alguma ligação. Ele está em um táxi, torcendo para que o trânsito colabore para que ele volte logo para casa. Ligar para Doied parece estar fora de questão, já que Cellbit não sabe o que deveria dizer ou perguntar, muito menos se seria de bom tom tentar se intrometer em algo que ele não faz ideia de como funciona.
Bagi lidaria melhor com isso do que eu.
Seu dedo passeia sobre a lista de contatos até o nome de Mariana. O secretário de Doied já deveria estar sabendo sobre as notícias.
Mariana atende no terceiro toque.
— Mariana…
— DEUS, CELLBIT! — seu grito é estridente, porém abafado. Parece que ele está com o telefone no viva voz. O som de seus passos ressoa apressadamente pelo piso. — POR FAVOR, ME DIGA QUE TEM ALGUMA NOTÍCIA DAQUELE DESGRAÇADO DO SEU MARIDO.
O tom desesperado de Mariana foi tão chocante que Cellbit nem se atentou ao uso da palavra “marido” em vez de “noivo”. Em vez disso, ele se preocupou no fato principal:
— Ele não está por aí?
Estranho. Ainda era horário comercial, e Doied nunca saía da empresa antes do fim de seu expediente. Na verdade, era mais comum que ele trabalhasse além do necessário.
— Porra, NÃO! Convenhamos, docinho, seu marido não aparece por aqui há DIAS! ESTAMOS DESESPERADOS! — Mariana chia, batendo o que parecem ser papéis a julgar pelo som das folhas voando. Ele grunhe. — MERDA… Escuta, realmente não o viu? Tentamos fazer Luzu ligar, mas ele disse que não queria incomodá-lo e mais um monte de baboseira. Oras, como se EU JÁ NÃO ESTIVESSE SENDO INCOMODADO O SUFICIENTE! São tantos e-mails de investidores, clientes, acionistas, eu vou SURTAR!
Doied não só não está trabalhando. Ele simplesmente não esteve na empresa por dias.
Que diabos?
— Ele deve estar em casa, então. Vou falar com ele.
— POR FAVOR! Você é o nosso Messias, Cell! Agora eu realmente preciso desligar, o telefone comercial não para de tocar.
Antes que Cellbit possa se despedir, a ligação é cortada. Ele suspira. A situação o lembrava da época em que a própria Taaffaiete esteve em maus lençóis e nas noites em claro que Bagi passou para tentar recuperar seus investidores.
Cellbit nunca pensou que veria Doied em uma situação parecida. Seu noivo tem a fachada de alguém responsável e que possui tudo sob controle. É meio anticlimático notar que isso não é verdade. Ao mesmo tempo, também é um pouco enervante vê-lo como um humano que falha como todo mundo. Como Cellbit já falhou.
Ele definitivamente vai precisar de apoio.
Quando o trânsito decide colaborar, Cellbit está alguns minutos mais atrasado do que gostaria. Ele dá uma gorjeta extra ao taxista, que parece arregalar os olhos ao finalmente reconhecê-lo, aceitando as notas de cem com as mãos e joelhos meio trêmulos.
— Eu deveria preparar algumas falas…? — fala sozinho com o enorme espelho do elevador social. — Não deve ter necessidade. É só Doied.
Ele não sabe o porquê, mas se sente ansioso.
Ao abrir a porta de seu apartamento, ele é recepcionado pelo silêncio. É algo comum, ele e Doied não sendo pessoas naturalmente barulhentas. Mesmo assim, parece estranho; deslocado, talvez, como se houvesse algo de muito errado no ar.
Doied está no sofá, olhando para o tapete fofo enquanto brinca com os dedos das mãos. Suas roupas são diferentes, coloridas e meio extravagantes, porém aparentemente confortáveis. Ele não levanta o olhar em sua direção, mas Cellbit sabe que ele notou sua presença.
— Estou em casa — diz, redundante.
A resposta de Doied é um suspiro pesado. Ele finalmente levanta o olhar, as orbes castanhas frias e afiadas como punhais de gelo. Automaticamente, Cellbit ajeita a postura. Eles estiveram convivendo por muito tempo em uma harmonia doce, quase conjugal , e em nenhum desses momentos Doied olhou-o assim, do jeito que fazia antes.
Como se Cellbit fosse apenas Cellbit, aquele com quem ele mantém acordos comerciais, e não seu amigo — e noivo.
— Precisamos conversar.
Isso nunca é bom.
— Eu… — Cellbit respira fundo. — Fiz alguma coisa?
— Não, não… — Doied lambe os lábios. Secos. — Você não fez nada. Você não tem culpa de nada.
Culpa?
— O que…
Doied levanta a mão. Instantaneamente, Cellbit se cala. Ajeitando os óculos contra o nariz, ele indica para que o outro se sentasse, e Cell o faz, bem encostado na poltrona fofa da sala. A porta do banheiro está entreaberta, parecendo abrir a cada segundo que se passava.
Que diabos?
— Você deve ter notado, Cellbit, o quão fechado sou sobre minhas questões familiares. — Doied ajeita as mãos contra o colo. Estão tremendo. Quando eu o vi assim antes? Simples: nunca. — Nós dois, na verdade. Mas é provável que eu ainda saiba mais sobre você do que você sobre mim.
— Sim.
Sai involuntariamente, e Cellbit engole em seco no segundo seguinte. Ele não queria parecer tão desesperado, mas a verdade é que sempre o incomodou como as conversas dos dois eram sempre sobre ele, mas nunca sobre Doied. Cellbit não tinha problemas em falar de sua vida, de sua empresa ou até de seus pais. Ele apenas torcia por um pouco de reciprocidade.
Será que…
— Meus pais se mudaram para o México quando eu ainda era jovem. Fui criado por meu avô paterno desde que me entendo como gente. — diz, o olhar nostálgico, meio distante. — Ele trabalhou muito por nós e isso gerou sequelas. Atualmente, eu o mantenho no melhor asilo da cidade com cuidados e mimos 24 horas por dia a 7 dias por semana.
— Ele está doente…?
— Diabetes tipo 1 e Alzheimer no primeiro estágio. Não se preocupe, ele vai ficar bem.
Mas soou muito mais como se Doied estivesse querendo dizer aquilo para si , e não para Cellbit.
— Mas eu não estive cuidando dele para sempre. Eu saí cedo de casa para começar a faculdade e montar minha própria empresa. Depois que pisei para fora de casa, nunca mais voltei. E isso gerou consequências… — Doied suspirou. — Uma bagunça gerada por mim, e que você acabou sendo envolvido mais do que deveria. Na verdade, mais do que era justo.
Cellbit se sente pesado, como se houvesse o mundo inteiro em suas costas. Ele pisca, subitamente não sentindo vontade de abrir os olhos. Doied está o encarando fixamente, ele consegue sentir. E ao fundo, uma porta se abre. Rangendo. Muito, muito devagar.
— Eu não entendo… — e sai tão, tão baixo, que é como se Cellbit mal tivesse aberto a boca.
Ele abre os olhos. E é provável que esse tenha sido o seu maior erro.
Alguém está saindo do banheiro, cabeça baixa e mãos escondidas dentro dos bolsos de uma das calças de linho favoritas de Doied. As roupas são bonitas e caras, mas sua postura não condiz com elas. Não há gel no cabelo ou óculos no rosto. E seus cadarços estão desamarrados.
E quando ele levanta o rosto, Cellbit sente um soco fantasma sendo infligido em suas costas. Era como ver Doied e seu reflexo no espelho. Havia uma diferença mínima, e apenas se você tivesse o olho muito bom para notá-la.
Era no olhar.
Cellbit finalmente está olhando para os olhos gentis caramelados que estava vendo nos últimos dias. Deveria ser reconfortante. Deveria ser carinhoso. Deveria ser tudo.
Mas dói.
— Quem…
— Ele é…
— Eu me chamo Roier. — ele se apresenta. Roier, o verdadeiro, fala rápido, alto, claro e tem uma dicção perfeita. — Eu sou o mais novo por pouco tempo, o suficiente para passar uma xícara de café… Eu faço teatro. — Coça a nuca, envergonhado. — Não entendo nada de finanças ou administração, e odeio comer salada.
Eu faço teatro.
Não entendo nada de finanças ou administração.
E odeio comer salada.
Cellbit absorve. Frase por frase. Palavra por palavra. Letra por letra.
Ah…
— Eu e Roier tínhamos um acordo feito apenas entre nós dois. Nós trocamos de vida, basicamente. — Doied o analisava dos pés à cabeça, desesperado em encontrar alguma reação. Mas Cellbit não demonstrava nada. — Eu estive com meu avô no asilo e convivendo com sua equipe de teatro e ele…
— Com você. — Roier engole em seco. — O banheiro…
Ele quebrou o acordo de convivência ao invadir meu banheiro pela primeira vez em anos.
Ele mudou de cadeira durante o jantar.
Ele desconversava sempre que começávamos a falar sobre a empresa. Não porque queria me conhecer, mas porque não saberia responder.
Ele não me tratava como Doied trataria.
Nunca foi Doied. Era Roier. Quem é Roier?
E isso? Sim, isso doeu para caralho.
oh yes, i'm the great pretender
— Eu queria fugir. — Doied treme enquanto suspira. — Dos acordos, da empresa, das responsabilidades, da minha vida . Eu nunca pude aproveitar e ter tempos de lazer e de reflexão e apenas parecia justo.
— E eu queria não ter uma vida miserável. — Roier ri sem humor. — Nunca tive dinheiro, fama ou reconhecimento por nada do que fiz. Parecia só legal aceitar e tentar, mesmo que fosse uma mentira… Mas eu…
As palavras seguintes morrem na garganta de Roier. Ele parece querer dizer algo, procurando pelo olhar de Cellbit para entender se era seguro. Mas ele nunca foi encarado de volta. Nem ele, e nem Doied.
— Eu… — Ele engole, e as palavras seguintes soam sinceras, mas não parecem ser aquilo que queria dizer em primeiro lugar. — Não consegui mais mentir para você.
— Viver a vida do outro teve seus prós e contras. Fugir de nossas responsabilidades apenas nos deu outras responsabilidades que não eram nossas. Porra, eu deixei a empresa nas mãos de um leigo. — Doied bufa, sentindo-se estúpido. — E te fiz conviver com um desconhecido.
É. Um desconhecido. Um…
Para Cellbit, há dois desconhecidos na frente dele.
just laughing and gay like a clown
Roier não suporta mais a tensão.
— Diz alguma coisa…
Os gêmeos estavam esperando qualquer reação, qualquer uma. Eles duvidavam que Cellbit fosse o tipo gritador, mas até isso estava em seu escopo de possibilidades. Independente da reação, eles aceitariam calados, porque sabiam que eram os culpados.
Mas nada preparou-os para isso: o silêncio.
O olhar de Cellbit era distante, focado em alguma das revistas empilhadas na mesinha de centro. Sua coluna, pés e mãos estavam retos e bem comportados contra o corpo. Ele se portava e parecia como um homem de negócios, analítico, pensativo. Cellbit até poderia estar a poucos metros de distância dos dois, mas sua presença estava muito, muito mais distante.
Roier teve esse pensamento passageiro, mas que soou verossímil: que Cellbit, ali, se pareceu com Doied.
i seem to be what i’m not you see
— O que querem que eu diga? — murmurou, piscando lentamente. — Que estou com raiva? Que dividi minhas dores e pensamentos com alguém que eu mal sei o nome? Que eu estava começando a ficar feliz com esse acordo de casamento porque ainda que eu sempre tivesse sido ignorado e jogado para escanteio pelo meu suposto noivo, eu estava finalmente sendo… — Saliva acumula em sua boca, e ele teria cuspido se não fosse educado. — Visto como um igual… ?
Eles não esperavam por essas palavras. Por nenhuma delas. Roier precisa apoiar as mãos no encosto do sofá, crente de que mais um pouco e perderia as forças em suas pernas. Doied tem os olhos meramente arregalados. Em outros momentos, Cellbit até estaria contente por arrancar uma reação tão genuína dele.
— Mas é claro que eu fui tratado bem… — Ri baixinho. — Já que não era você ali comigo, Doied.
Doied respira fundo. Suas costelas doem. Seus pulmões doem. Seu coração dói. Sua mente dói. E ele merece.
— E você…
O caramelo de Roier encara-o com pesar e tanta culpa que deveria fazê-lo sentir-se mal. Cellbit é mais empático do que isso, ele sabe. Mas, porra, ele não se importa que Roier está sofrendo agora. Ele está sofrendo agora. Tudo está girando e girando e Cellbit sabe que está abrindo a boca e que palavras estão saindo, mas mal consegue ouvi-las. Será mesmo sua voz ou uma alucinação sutil?
— Eu nem sei quem você é.
i’m wearing my heart like a clown
Cellbit queria gritar e surtar e descabelar-se até que sua cabeça latejasse pela queda abrupta dos fios. Ele não faz nada disso porque, sim, ele não é um gritador. E ele ainda gosta de Doied. Ou de Roier. Ou da miragem que tem deles.
Só que dói demais estar no mesmo lugar que os dois.
— Você pode me culpar — Doied é rápido em dizer.
— Culpe os dois. — Roier é ainda mais rápido em contrariá-lo. — Eu sempre tive a escolha de não aceitar e ir embora, mas eu quis estar aqui e continuar nesse teatrinho. O único inocente aqui é você, Cellbit. — Ele suspira. — Doied nunca me disse como eu deveria agir com você, talvez fosse até melhor ter ignorado, mas…
Não diga.
— Eu quis dizer tudo o que disse para você. Todos os dias. E também sair, comer e dançar. — Pare. — Até que a culpa sobressaiu à vontade de ficar perto de você.
Cellbit não quer pensar no que aquelas palavras, tão doces e sinceras e dolorosas , querem dizer. Ele precisa de espaço.
pretending that you’re
Ele se levanta. Sua voz firme distraiu-os de suas pernas trêmulas e seus pés meio dormentes. Cellbit quase caí ao caminhar pelo corredor. É desconcertante. Dói. Não mais que seu coração, mas dói.
— Eu preciso de um tempo. — Sua mão arde contra o metal da maçaneta. — Depois, nós podemos rever o contrato.
É a vez de Doied quase tropeçar ao se levantar do sofá.
— Você quer… cancelar o casamento?
Na próxima vez que Cellbit fala, não é a voz dele, o jovem quebrado e com sentimentos feridos e mente extremamente conflituosa, quem aparece. É a de Cellbit Balanar, CEO da Taaffaiete.
— Nem eu ou minha empresa temos pretensão de continuar com um acordo sujeito ao fracasso.
Cellbit não olha para trás quando fecha a porta.
still around .
Chapter 16
Summary:
— Quem é você?
— Roier de Luque.
— E quem é Roier de Luque?
Chapter Text
Desde a conversa desastrosa com Cellbit, Roier estava morando com Doied. O evento traumático ocorreu há apenas dois dias, e a distância e frieza de seu ex-cunhado tornavam as coisas ainda mais dolorosas do que já eram.
Ele está dormindo no sofá, porque mesmo a cumplicidade das últimas 48 horas não era o bastante para levá-los aos tempos de criança em que os dois estavam bem em dividir uma cama como irmãos que se amam e admiram — e nenhum deles tem coragem de entrar no quarto de Cellbit. As coisas melhoraram, no entanto, e conversar com Doied diariamente é a única coisa que esteve mantendo Roier são naquela situação toda.
Doied saiu do apartamento há quase uma hora, esbaforido, desfocado e ansioso como nunca. Seu irmão estava tão mal que nem encobriu o cabelo com o gel nojento de sempre, a camisa mais amarrotada do que ele se permitiria vestir. Ele está um caos completo, por dentro e por fora. É assustador, como olhar para um ponto fora da curva. Doied nunca foi assim. Ele era alinhado, comprometido, responsável e competente em tudo o que se propunhava a fazer.
E até mesmo ele foi capaz de quebrar.
E isso me assusta.
“Não sei se vou voltar para dormir.” Doied disse a mesma coisa ontem, mas Roier não acreditou na intensidade de suas palavras e tentou esperá-lo. Sua rotina de sono sempre foi péssima, então permanecer acordado não deveria ser difícil. Suas memórias morreram após às uma hora da manhã, quando ele desligou a televisão, olhos cansados rumando para a porta fechada, sem uma mera sombra da chegada do irmão.
Às vezes, Doied ligava o celular no viva-voz e andava até o ponto mais distante da sala. A voz gritante e bruta de Mariana reverberaria por todo o apartamento, tão aguda e irritadiça que seria capaz de trincar os vidros das janelas com mais um pouco de esforço. Não fazia sentido tentar esconder as conversas. Roier sabia que a Ore estava na merda. Cellbit sabia que a Ore estava na merda. O mundo inteiro sabia que a Ore e Doied estavam na mais profunda merda.
“EU JURO POR DEUS, SEU FILHO DA PUTA, SE VOCÊ NÃO FOSSE MEU CHEFE EU METIA A MÃO NA TUA CARA!” O ódio de Mariana, além de justificado, era extremamente sincero. Nem mesmo Slime tentou acalmá-lo. É provável que ele tenha ajudado a xingar Doied. “CUIDE DA PORRA DA SUA EMPRESA OU EU ME DEMITO AGORA MESMO.”
Mariana não se demitiu. Doied externalizou a Roier que não sabia como nenhum de seus amigos não pediram demissão. Nem mesmo nenhum de seus funcionários, na verdade. Ele recebeu alguns e-mails surpreendentemente empáticos, coisa que nunca teria acontecido há alguns meses.
“Acho que meus funcionários gostaram de você.”
Doied sabe que essa simpatia toda não derivou dele, e sim do Pseudo-Doied, vulgo Roier.
“Você vai contar a alguém?”
“Não tem o porquê… Talvez a Luzu, no entanto.” Ele poderia tentar negar, mas os dois sabem que Doied desgosta da ideia de esconder coisas de Luzu. “E você?”
“Para Tina.”
“Ela teve que refazer quase todas as medidas das roupas que tinha feito para você… É, ela merece saber.”
Mesmo assim, Roier ainda não teve coragem de voltar para o Teatro e enfrentar a reação inesperada de Tina. Ele pensou em contar para Jaiden também, embora Doied tenha deixado claro que sua maior convivência foi apenas com a estilista. E talvez para o avô, embora ele já deva saber. Seu velho é um ótimo observador, principalmente quando seus alvos são seus dois netos teimosos e problemáticos.
— Vou lá amanhã… — suspirou para o apartamento vazio. Sua voz soou estranha e alta por não estar sendo usada regularmente. Pareceu estranha, assim como Roier se sentia. — Que merda.
Roier também está na merda. E Doied sabe. E Cellbit? Ele não sabe dizer se o outro se importa o suficiente com quem Roier é para que sinta alguma coisa.
Pensar em Cellbit é tão doloroso que beira o autodestrutivo, então ele reprime seus pensamentos o tanto quanto pode. Ainda assim, as reflexões vêm e vão mais recorrentemente do que ele gostaria. Às vezes, ele encarava a porta fechada do quarto de Cellbit e o imaginava saindo do quarto, trajado em suas roupas e acessórios coloridos enquanto conversava animadamente com a irmã pelo telefone. Eles se cumprimentariam na cozinha com uma xícara de café — e o chá horrendo que Roier se forçava a beber pelo teatro —, dividindo a companhia pelo corredor, pelo elevador e pela recepção do prédio até sumirem nos carros que os levariam até as empresas. Bem, Cellbit ia. Roier também às vezes, embora ficar no carro fazendo cruzadas com Ramón fosse bem mais produtivo e legal.
As memórias antigas e alucinações doíam, mas ainda eram doces. Amargas eram as lembranças mais recentes, aquelas da última conversa entre Cellbit e os gêmeos. Sua postura, olhar e voz eram distantes, frias, tão não Cellbit que dói mais do que levar um soco bem dado no rosto.
É provável que Cellbit tenha socado-os com suas palavras, na verdade.
E eu mereci.
“O que eu faço, hermano?”
Ele se lembra de como Doied encarou-o com orbes arregalados, o chá frio há muito esquecido nas mãos trêmulas. Isso foi ontem. Eles estavam esparramados no sofá, quietos encarando o gesso do teto.
“Sobre?”
“Meus sentimentos por Cellbit.”
Doied era o pior conselheiro. Não só por ser péssimo com conselhos, mas porque era o pior referencial para aquela situação. Cellbit ainda era — formalmente — seu noivo. Roier é e sempre será seu irmão caçula. Eles estão na merda. E os sentimentos de seu irmão pelo seu noivo são, óbvio, uma merda maior ainda.
“Eu diria para você reprimir…”
“Mas?”
“Mas acho que você não quer.”
Porque apesar de tudo, Roier gostava de gostar de Cellbit.
“Sempre certo, Doied de Luque.”
Eu devo ser algum tipo de masoquista.
— Eu deveria fazer uma boquinha…
Roier se levanta do sofá pensando em sanduíches de ovo com presunto, até lembrar que não há presunto na geladeira. Ele se irrita com o ovolactovegetarianismo seletivo do irmão antes de escutar vozes abafadas vindo da porta do apartamento.
A porta se abre, e Roier congela.
Não é Doied.
— Vocês não precisavam ter vindo, é sério.
É Cellbit.
E ele não está sozinho.
Puta que pariu.
Seu único pensamento coerente é correr até o quarto de Doied e se esconder atrás da segurança da porta. Ele prende a respiração por impulso, coração ansioso e ouvidos bem abertos ao som estalado dos saltos contra a madeira da sala.
Ele reconhece Bagi pelo som dos sapatos. Cellbit também usa saltos, mas mais grossos e menos barulhentos, um pouco mais abafados que as botas de salto pontudas da irmã.
— Deveríamos tomar esse lugar inteiro. — Sua voz não escondia o desgosto, tão audível que Roier engoliu em seco. Ela estava com muita, muita raiva.
— Você sabe que eu não posso. — Cellbit bufou, a voz baixa e desanimada, meio cansada. Roier estremeceu. — Doied tem prioridade no contrato em praticamente todas as cláusulas.
— Eu odeio esse merdinha.
— É, é… — O Eu também não foi dito, mas sentido.
Roier sentiu, pelo menos.
— O que precisamos fazer? — A voz mais grave e falsamente desinteressada se mostrou ser de Felps. — Empacotar as coisas?
— Mais as roupas e as coisas do banheiro. Não precisa de muito. — Cellbit suspirou. Ele estava perigosamente próximo da porta agora. Muito perto de mim. — Consigo recuperar a maioria do que é material, mas gosto de usar minhas próprias roupas.
— Por mim, levaríamos até a geladeira.
— Você leva ela então, senhorita.
O que se seguiu depois foi o som arrastado de caixas sendo abertas, preenchidas e retiradas do apartamento. Roier poderia contar seis, mas talvez tenha errado para cinco ou talvez sete. A única certeza é que a voz de Cellbit havia sumido, até mesmo o barulho de seus sapatos estranhamente distante.
Roier achou que Cellbit havia simplesmente ido embora até que a voz dele surgiu, exatos trinta minutos depois.
— É o suficiente.
— Todas as roupas estão nas caixas. — Felps estalou as costas. — E metade dos sapatos. É mais fácil encaixar as blusas do que suas botas.
— Eu sempre posso roubar as de Bagi.
— Roubar o que meu?
— Nossas botas.
— Minhas botas.
— Nossas . Estou fragilizado, seja gentil.
Bagi bufou, daquele jeito que faz quando tem um sorriso de escárnio no rosto.
— Eu seria mais gentil se pudesse socar o babaca do seu ex.
— Se tudo der certo, nem ele e nem você precisarão vê-lo nunca mais. — Felps tentou apaziguar as coisas. Ou fingiu tentar. — Embora você nunca tenha nos contado a história inteira, Cell.
— É verdade…
— Vocês podem ir descendo com as caixas. — Cellbit acabou com qualquer abertura. — Vou ver se encontro mais alguma coisa que quero levar. Encontro vocês lá embaixo.
— Cell…
— Agora não, mana.
Um minuto se passou até que Bagi saiu pisando duro do apartamento. Logo depois, passos abafados vieram seguidos do som da porta batendo contra o rodapé. Roier soltou a respiração, mal notando que ainda a prendia em intervalos mais regulares do que seria normal se ele não estivesse tão ansioso ao ponto de explodir.
Eles foram embora.
— Você já pode sair daí — E como se já não o tivesse matado, Cellbit assina sua sentença com uma só palavra. —, Roier.
Roier.
A primeira vez que Roier ouviu seu nome — o dele, e não de Doied — saindo da boca de Cellbit, a sensação foi tão aterradora que ele se sentiu anestesiado, tanto que mal notou quando suas mãos rumaram para a maçaneta da porta e a abriram lenta e tortuosamente. Cellbit o esperava do outro lado, braços cruzados e blocos de gelo no lugar dos olhos.
Foi uma quebra de expectativa imensa e, novamente, Roier sabia que merecia.
— Como…
— Eu ouvi a porta bater.
Para um ator, Roier estava sendo realmente horrível. Suas capacidades de atuação sempre pareciam cair por terra quando Cellbit estava envolvido.
— Não. — Balançou a cabeça. — Como soube que era eu?
Como soube que não era Doied?
— Ele não teria se escondido atrás da porta. — Cellbit deu de ombros, tentando parecer despreocupado. Ele falhou. — Ele, é…
— Gosta de se aparecer.
— Sim, eu acho que sim.
Acha, porque depois de tudo, Cellbit não tinha mais certeza de nada. Mesmo tendo uma noção de quando começou a ser enganado pelos dois, suas próprias memórias antigas se misturavam com as mais novas. O quanto ele realmente conhecia de Doied? Quanto daquilo era Roier? E quanto, do pouco que sobrou, era nem Doied e nem Roier, mas uma interpretação falha dos dois?
Nenhum dos três sabe.
— Você poderia ter me expulsado.
— Não tenho o porquê.
— Não tem meu nome na lista de moradores do apartamento. — Roier deu de ombros. — Seria motivo o suficiente.
— Além de eu estar com raiva de você?
— Além de você estar com raiva de mim. E magoado. E desconfortável. E pisando em ovos e encolhido e me olhando como se eu fosse um dragão de sete cabeças. — Roier mal consegue respirar ao fim da fala. — É, eu sei.
Cellbit ajeita a postura quase que instantemente, mal notando o quanto seus ombros estavam caídos e curvados como uma criança triste e reprimida. Ele se sentiu estranho por ter sido lido tão rápido. É algo que esperaria de Doied, que parecia tão observador quanto. Mas, novamente, Roier é irmão de Doied, então eles deveriam ter coisas em comum.
Mas quanto?
E Cellbit sabe que não deveria dar nenhuma abertura. Porra, ele deveria dar as costas e ir embora como fez da última vez. Mas ele não conseguiu, cansado demais até para fingir estar irritado quanto tudo o que sentia nem era raiva, mas mais chateação e desesperança.
— Quem é você?
— Roier de Luque.
— E quem é Roier de Luque?
Roier se sentiu sem ar pela enésima vez naquele dia porque, puta merda, que pergunta era aquela?
— Eu sou o irmão mais novo por, tipo, minutos. A diferença é tão mínima que é ridícula, mas eu sempre fazia questão de lembrar quando queria usufruir dos benefícios de irmão caçula. — ditou como uma memória doce. — Eu sou péssimo com matemática. Sempre fui a criança das artes. Eu obrigava papai e Doied a me verem atuar quando menor. Doied me dizia que o teatro não me levaria a lugar nenhum, mas ele sempre cuidou de mim para que eu pudesse continuar com meu sonho, me dando futuro ou não.
É meio patético que ele tenha demorado tanto e estragado tantas coisas para notar isso.
— Me formei em teatro e hoje sou ator em um teatro pequeno perto de casa, ah, a minha casa mesmo, alugada, e não um apartamento em uma cobertura chique. — Coçou a nuca. — Sou amigo de gente incrível e talentosa. Uma amiga minha, Tina, é muito fã sua, aliás.
Cellbit arregala os olhos, mas quase sorri com a menção de uma fã. Ele esquece que é famoso, às vezes.
— Eu gosto do Homem-Aranha e moletons. Não sei administrar minhas próprias finanças e minha síndica não aguenta mais me cobrar o aluguel atrasado. Sou um filhinho mimado e nunca aprendi a amarrar meus cadarços. — Isso está ficando meio autodepreciativo demais. — Ah, e eu sou carnívoro. Tipo, muito. Foi uma tortura fingir que não sinto vontade de enfiar os dentes em um boi.
Dessa vez, Cellbit riu. Durou pouco. Realmente pouco. Quase metade de um segundo, e apenas porque ele se reprimiu assim que notou, chocado demais para reagir. Roier também se surpreendeu, embora com alegria pungente. Porque Roier fez Cellbit rir.
— Você é um desastre ambulante.
Roier riu baixinho.
— Tipo isso.
Cellbit passou a mão no rosto. Por um breve momento, Roier o viu escondendo um sorrisinho entre os dedos.
— Todos somos um pouco de desastre.
— É…
— O quanto você fingiu?
O quanto mentiu para mim?
— Eu odeio chá — Foi a primeira coisa que Roier pensou e a primeira coisa que falou.
Mais uma grande diferença entre os irmãos, Roier não pensa antes de falar. Quer dizer, na maior parte das vezes.
— E quem não odeia?
— Doied — Roier crispou os lábios.
— E Bagi — Cellbit o imitou.
Se eles estivessem em bons termos, teriam rido. E riram, mas apenas internamente, porque externalizar seria estranho demais, mais do que já é.
— Eu atuei como Doied andaria e se comportaria nos lugares. Tipo, postura e coisas do tipo. — Desviou o olhar. — Mas sempre foi difícil atuar perto de você, Cellbit, e eu não digo isso apenas porque estou na sua frente. Sabe, eu realmente não tenho vergonha na cara.
— Eu posso notar.
— Eu até falei mais coisas do que deveria, às vezes. — Encarou-o brevemente. Para Cellbit, foi o suficiente para perder o ar. — Coisas que sei que Doied nunca falaria.
— E como eu posso ter certeza?
— Eu e ele somos vizinhos umbilicais.
Merda, Cellbit riu de novo. Isso não poderia virar recorrente. Ele estava tentando manter uma pose. Deveria tentar, ao menos. Estava cada vez mais difícil. Roier era simplesmente imprevisível.
E isso era…
Legal.
— Eu…
A vibração no bolso de Cellbit o tirou de foco — ou botou-o de novo na linha, talvez. Ele pigarreou e leu a notificação da mensagem de Bagi. Ela e Felps haviam saído há quase dez minutos.
Eu nem vi o tempo passar.
Esse foi um pensamento compartilhado por ambos.
— Eu vou indo.
Roier não tentou impedi-lo ou enchê-lo de conversa fiada. Em vez disso, continuou parado no corredor enquanto observava as costas largas sumirem a cada novo passo dado em direção à porta, levando consigo um rastro do verde brilhante de suas roupas.
Cellbit, em contrapartida, não o expulsou do apartamento, mesmo essa sendo a decisão mais racional e lógica para o momento. Ele apenas segurou-se contra a maçaneta da porta fechada, mais trêmulo do que deveria.
— Inferno.
Se Felps ou Bagi foram capazes de ler algo em seus olhos enevoados, nenhum deles disse nada.
Chapter 17
Summary:
Há pontos importantes que Doied extrai desse diálogo porque, assim como ele, Luzu não deixa pontas soltas.
1. Pararia de tentar mentir. Luzu sabe que Doied esconde alguma coisa. [...]
4. Você é péssimo. Doied não sabe mentir.
Chapter Text
Caos. Substantivo masculino. Quatro letras. Há um hiato na palavra. Pode ser traduzido para “mistura de coisas ou ideias em total desarmonia”. Em apenas uma palavra, confusão.
Nunca, em toda sua vida profissional, Doied descreveria seu ambiente de trabalho como caótico. Ele prezava pela organização e por um lugar calmo e harmônico para se trabalhar. Seus cuidados para isso vieram na escolha neutra da paleta de cores do prédio, no minimalismo dos móveis, na sala de recreação com bancos acolchoados para descanso na hora do almoço, na música ambiente em volumes baixíssimos que tocava para preencher as paredes e os cômodos anormalmente silenciosos e até na máquina de café instantânea para que seus funcionários não caíssem no sono em turnos mais longos.
Era para ser simples. Previsível. Controlável. Algo que fosse digno de confiança — dele, dos funcionários e de seus clientes.
Acontece que nada na Ore está aspirando confiança nos últimos dias.
— Ai, merda — ele resmunga ao tropeçar e bater o pé contra a mesa. — Mas o que é que…
Doied bufa ao reconhecer a pequena almofada que vem usando de travesseiro nos últimos três dias — a quantidade exata de tempo que esteve dormindo no escritório ininterruptamente. Há um divã em sua sala grande o suficiente para que ele se deite e metade de suas pernas fique pendurada para fora, o que ainda é melhor do que a perspectiva de dormir no chão frio e duro de sua sala. Ele poderia voltar ao apartamento para descansar, é claro, porém a quantidade de problemas que surgia era tão extensa e tão desordenada que Doied não podia se dar ao luxo de ficar tanto tempo longe da empresa.
Do jeito que estava, uma mísera viagem de 30 minutos de sua casa até a Ore poderia custar o pouco que ainda resta de seu império precoce.
A grande consequência disso é, além de todo o estresse, uma dor crônica nas costas e o princípio de um leve resfriado. Ele está tentando ignorar os sintomas para evitar acumular mais pensamentos negativos na cabeça. Infelizmente, nem todos estão dispostos a fazer o mesmo.
A porta do escritório abriu, e Doied não precisou se virar para saber quem era.
Não poderia ser Mariana, porque sua relação está, atualmente, sapateando por uma corda bamba trêmula, curta e fina. Eles estão pisando em ovos desde que Doied retornou. No primeiro dia, Mariana ainda se dignou a olhá-lo enquanto gritava enfurecido sobre como a Ore estava desmoronando em sua ausência e 80% disso vinha da irresponsabilidade de seu CEO.
“Você SOME e não avisa PORRA nenhuma.” E Mariana sempre foi temperamental e o mais ousado do grupo, mas nem mesmo ele já havia levantado a voz nesse nível para Doied, quem ainda era seu chefe. “Não é porque sou seu empregado que vou ser a droga do seu capacho. Cuide das suas merdas, porque EU estou cansado e preciso DORMIR.” Agora, é Doied quem esqueceu como é dormir em paz.
(E tudo bem, ele mereceu a surra.)
Por consequência, também não poderia ser Slime. Ele pode parecer ser mais amigável e receptivo, mas guarda tantos rancores quanto o namorado. Compreensivel, já que uma das coisas que Slime mais odeia é quando Mariana trabalha além do necessário. Quando se esbarram pelos corredores, Doied se sente momentaneamente julgado sempre que os olhos amendoados de Slime pairam sobre ele.
Do tipo “você o fez mal, então estou de mal com você também.”
Novamente, justo. E também o dá um pouco de inveja por seu amigo ter alguém a quem apoiá-lo, e o contrário — do apoio — também é válido. O máximo que Doied teria de alguém assim é Roier, talvez, e eles ainda estavam se encontrando depois de tudo o que aconteceu.
Seus outros funcionários até poderiam estar mais amigáveis e preocupados com seu bem-estar — culpa da residência curta de Roier, é claro —, mas ainda não tinham coragem o bastante de entrar em seu escritório. E sem bater.
Apenas uma pessoa faria isso.
— Me contaram que te ouviram fungar por aí. — Luzu franziu o cenho. Ele quase jogou uma sacola de farmácia sobre a mesa, meio perturbado e milimetricamente desconexo de seu normal. Significa que ele está preocupado. — Tome isso.
Há uma caixinha de remédios na sacola, o seu preferido quando Doied tem coriza e dores musculares, seus dois sintomas atuais mais recorrentes. No fundo, ele encontra também um pouco de doce de banana. Novamente, seu favorito.
— Não era necessário.
— Era sim. — Luzu insiste porque, de novo, ele é o único que teria coragem de fazê-lo. — Estarei esperando até que você beba, apenas por precaução.
— Não confia em mim? — Ergue a sobrancelha.
Luzu encara-o no fundo do olho, e soa tão intenso que é como se ele estivesse vendo-o para além disso. Dentro de sua cabeça, se é que é possível. O olhar gélido dele é penetrante, fato que culminou em boa parte dos acordos financeiros bem sucedidos da Ore. Ele é o melhor dos seus melhores por um motivo: Luzu não apenas é competente no que faz, como é bom em observar.
Ele está observando-o muito agora. Analisando-o dos pés à cabeça. De dentro para a fora. Quase tratando-o como uma de suas partidas de xadrez.
Assim como elas, Doied se sente perdedor por algum motivo e desvia o olhar. Algo pesa dentro dele e o faz engolir em seco, a garganta doendo pela doença crescente. É vergonha, talvez. Luzu está encarando demais.
— Medo. — Luzu sussurra. — De que eu pisque e você suma da minha frente.
De novo, aquilo em Doied pesa. Ainda é vergonha, ou agora há algo em sua mistura? Culpa? Tem uma agitação também. É estranho não conseguir descrever e, mais especificamente, faz Doied sentir-se estranho por não saber como descrever. É um sentimento constante e pungente que aparecia única e exclusivamente quando estava perto dele, embora soasse bem menor e mais tranquilo no passado, mas Luzu e Doied — o verdadeiro — não conversam há tanto tempo que também pode ser normal que ele tenha esquecido como era aquela sensação de ter Luzu perto dele.
De ter a atenção dele.
— Não é para tanto…
Doied agarra o remédio com a mão mais trêmula do que gostaria, tanto que ele quase se atrapalha quando rasga a caixinha mais do que precisaria. Luzu nota. É claro que nota.
Sei que sempre pedi para que você ficasse de olho em todos os detalhes. Doied pensa, quase desejando que Luzu fosse capaz de ler seus pensamentos para facilitar as coisas e tirar aquele clima esquisito e pesado entre os dois. Mas será que você poderia parar de me olhar um pouquinho hoje?
Pare de olhar como se estivesse me julgando.
— Você está exagerando — continua, enfiando a pílula na garganta e engolindo-a sem água. Sob o olhar firme de Luzu, no entanto, ele se apressa para beber um pouco.
Luzu bufa e cruza os braços. Ele desvia o olhar. A sensação que Doied sente para. É bom o suficiente para que possa respirar de novo, e ruim o bastante para sentir falta daqueles olhos sobre si.
— Se eu fosse você, pararia de tentar mentir. — Isso não é sobre remédios ou doces de banana. Luzu sabe. Doied sabe. Porra. — O Outro pode até ser bom o suficiente nisso para enganar os outros — E Luzu o encara de novo, e a sensação volta como um baque. É forte o bastante para deixá-lo claustrofóbico. —, mas você é péssimo.
Há pontos importantes que Doied extrai desse diálogo porque, assim como ele, Luzu não deixa pontas soltas.
- Pararia de tentar mentir. Luzu sabe que Doied esconde alguma coisa.
- O Outro. Ele sabe sobre Roier e, consequentemente, deve imaginar que a “coisa” é seu acordo com o irmão.
- Para enganar os outros. Luzu não acreditou no teatro de Roier. Aquilo não deveria deixá-lo tão animado quanto o deixou, mas ele até sorriria se não estivesse emocional e fisicamente constipado.
- Você é péssimo. Doied não sabe mentir.
— Você sabia.
E não é uma pergunta.
— Sim.
E essa é uma afirmação. Nua, direta e crua.
— Quando?
— Eu suponho que foi nos primeiros dias, mas é difícil se considerar que eu estive fora da cidade pelo tempo que eu acredito em que a troca aconteceu. — Certo mais uma vez. Doied se surpreende com o quão satisfatório é pensar isso. Se não estivéssemos à beira da falência, você ganharia um aumento. — Eu e ele conversamos por duas horas, no máximo. O fato de você ter esquecido das teorias básicas da Economia já havia me acendido alertas vermelhos por motivos óbvios…
Ai, Cristo…
— Mas o ponto mesmo foi quando você me venceu no xadrez. — Luzu bufa, sorridente. — Você nunca me vence.
Ah, é mesmo. Mais dois fatos sobre os irmãos De Luque: Doied é ótimo na canastra, e uma negação no xadrez; Roier é ótimo no xadrez, e uma negação na canastra.
Isso é meio humilhante.
— Eu deveria ter imaginado.
— Que era uma ideia idiota? Sim. — Deu de ombros. — Embora eu tenha gostado de ter ganhado um oponente digno por alguns meses.
— Agora isso me ofendeu.
Luzu balança a cabeça. Seus olhos azuis, gélidos e contidos, estão sorrindo do jeito que apenas ficam quando ele está com Doied.
— O que eu disse sobre tentar mentir para mim?
— Odeio pessoas que me conhecem tão bem.
Ele está mentindo mais uma vez, mas Luzu não se importa. Dessa vez.
Essa conversa leva Doied a pensamentos e reflexões que ele não esperava ter. Honestamente, também não gostava de ter, porque exigia uma força mental que ele não estava disposto a empregar com tanta coisa acontecendo ultimamente. Mas é impossível não pensar, agora que sabe. Luzu sabia e, mesmo assim, não disse nada.
E Doied sempre soube o quanto Luzu era confiável, mas não nesse ponto. O acordo levou a Ore a falência. Ele poderia ter impedido tudo se apenas o tivesse denunciado ou algo do tipo.
— Por que você…
— Decisões impulsivas podem ser novas vindo de você. — Ele o interrompe, porque já sabe o que Doied queria dizer. Luzu também sabe que ele provavelmente empacaria no meio da frase. — Mas você nunca faria algo do tipo se realmente não quisesse. A Ore é quase como um filho para você.
É bizarro o quão bem Luzu o entende. Eles não são amigos de infância e nem viveram grandes períodos de tempo colados um no outro como Roier e ele. Na verdade, Luzu apenas surgiu em sua vida durante a faculdade. Eles não eram da mesma turma, mas participaram do mesmo congresso em que Doied foi palestrante de um de seus artigos acadêmicos mais bem sucedidos.
A memória daquele dia ainda lhe é vivida. Ao final de sua apresentação, Luzu veio cutucá-lo para o alertar de um erro em seus slides. Uma amostra erroneamente calculada. Por bem pouco, vale ressaltar. Ainda assim, tornaria toda sua pesquisa inválida se Doied não corrigisse a tempo de enviar o artigo para a banca de seu TCC, que aconteceria um mês depois.
“Acho que ninguém notou, então você ainda deve ter tempo de arrumar.”
“Eu tenho.” E Doied realmente conseguiu ajeitar. Ainda assim, ele se culpou por longos dias. Um detalhe. Um mero número que poderia pôr em risco todos os seus anos de vida acadêmica. Ele não estava no luxo de postergar seu diploma mais do que o necessário. Haviam olheiros — financiadores — em suas costas procurando por oportunidades férteis para investir em uma possível nova empresa bem sucedida e ele não queria por tudo isso a perder por um erro idiota. “Mas eu tenho que agradecer. Você me salvou.”
“Não tem de quer.”
Ainda assim, Doied sentia que precisava fazer alguma coisa.
“Eu estou montando uma start-up, se você tiver interesse em entrar. Esse seu olhar minucioso e honesto é justamente o que estou procurando.”
Anos depois, Luzu o revelou que já havia recebido uma boa proposta de emprego para o exterior para iniciar logo ao final de seu curso. O salário era bom, e a empresa era bem melhor consolidada que a pequena sementinha que Doied estava insistindo em plantar em sua cabeça. E mesmo assim, Luzu acreditou nele.
“Fale mais.”
“O nome é Federation Ore.”
— Eu deixei meu filho morrer de fome, então. O Conselho Tutelar irá me procurar por negligência.
Isso o faz lembrar do orfanato. Eles ligaram ontem para perguntar como Doied e a Ore estavam. Quando a conversa iniciou, ele pensou que o motivo principal era o receio do possível corte das doações que viria caso a Ore caísse na desgraça. Foi algo cogitado na reunião entre os acionistas na semana passada.
E em todas as vezes que o assunto surgiu, Doied negou veementemente.
“A Ore não tem orçamento para suas benfeitorias, senhor Doied. Esqueceu da situação decadente em que estamos?”
Era verdade. Do ponto de vista econômico, o melhor seria fazer corte de gastos. Demitir alguns funcionários. Acabar com as doações. Talvez realocar alguns fundos para tentar melhorar a publicidade da empresa e manter os clientes que ainda os restam.
Do ponto de vista doidiano, aquele que o aproxima estupidamente do modo roierano de ser, ele discorda.
“Então, que seja tirado dos meus fundos pessoais.” Se seus investidores estavam abismados com sua fala, é porque não sabiam o quanto o próprio Doied também estava surpreso. “A Ore pode parar com as benfeitorias, mas eu, Doied de Luque, não.”
Quando a voz preocupada de Pepito surgiu na ligação do orfanato, meio tímido dizendo que havia insistido muito para saber como o tio estava, Doied percebeu que até mesmo suas raras imprudências valeram a pena.
— Ainda temos tempo, Doied.
Temos. Primeira pessoa do plural, tempo presente.
— Você ainda quer me apoiar mesmo quando minhas escolhas quase nos jogaram na lama?
Afinal, era culpa de Doied. E agora, eles estavam assim. Paralisados, as contas congeladas para evitar maiores perdas. A folha de pagamento dos funcionários e as doações do próximo mês sairiam diretamente da conta pessoal de Doied para que tudo o que tivessem fosse reinvestido em fortalecer as bases fragilizadas da empresa. Estava tudo bem, seu fundo de reserva tinha uma quantidade aceitável de zeros que não sofreria grandes baques com algumas centenas de salários pagos.
Doied já estava mal o suficiente por ter ferido a Ore. Prejudicar seus funcionários por algo que eles nem tinham culpa já era injusto demais aos seus padrões.
Ele sabe — ele se lembrou — do que é trabalhar incansavelmente para ter comida na mesa.
Um toque o retirou de seu ciclo reflexivo vicioso e autodestrutivo. Uma mão, firme o bastante para acordar, porém suave o suficiente para não ser desconfortável. Milimetricamente equilibrado, porque todas as coisas em Luzu aspiram harmonia e, no caos que rodeia Doied, aquilo é tudo o que ele precisa.
— Agora é que devo te apoiar ainda mais.
É, ele é o melhor.
— Isso me lembra… — Doied suspira. — Cellbit me citou o contrato.
— E?
— Ele quer rescindi-lo.
Luzu ergue brevemente as sobrancelhas, um breve lampejo do que parece ser satisfação surgindo em seus orbes de gelo. Doied pisca, acreditando ter alucinado.
— Um escândalo para terminar de destruir sua reputação?
— Não. — Doied é rápido em negar. — Cellbit não é esse tipo de gente. Ele… Digamos que eu não fugi apenas da empresa.
O suspiro que sai da boca de Luzu é doloroso.
— Ele está com o coração partido?
Doied franze o cenho, mas balança a cabeça, concordando. Era algo do tipo.
— A confiança dele está abalada, para dizer o mínimo.
— Quando a mídia souber, ficará contra nós e teremos ainda mais problemas. — Luzu não mede palavras para dizer o quão fodidos eles estão. Ainda assim, é tranquilizante que ele ainda fale em “nós teremos problemas” e não “você terá problemas”. — Temos que nos preparar para o controle de danos.
— Apesar dos pesares, não quero ficar contra Cellbit e a Taaffaiete.
— Não precisaremos, mas você sabe como a mídia é… voraz quando se trata de relacionamentos. Um término entre vocês seria escandalizante.
— Principalmente depois do último desfile…
— Você viu?
— Televisão. — Ele não cita que desmaiou logo em seguida. — Foi bonito… Você estava lá também. A câmera focou em você por alguns segundos.
— É mesmo…
Fico feliz em saber que você sabia que não era eu. Doied deixa escancarado em seus olhos. Eles podem ser escuros, nublados e engalvanizados em um eterno tom de carvão, mas Luzu sempre o verá como o par de olhos mais bonito que já viu. Eles serem tão escuros os torna ainda mais brilhantes. Você é quem mais eu confio.
— Digo o mesmo.
E Luzu não sabe ler mentes, mas talvez ele saiba se a mente em questão for a de Doied de Luque.
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Bagi vai me matar quando souber.
Quando, porque sua irmã é especialista em descobrir as coisas que ele esconde. Ele não sabe qual é seu superpoder. Talvez Cellbit apenas seja um livro aberto ou ela que seja observadora demais. De qualquer forma, é assustador, e ela estaria o socando agora se soubesse o que ele está fazendo.
Depois de seu último encontro com Roier, acabou sendo automático ir pesquisar para tentar descobrir mais sobre ele. A maioria de suas pesquisas culminou em frustração. Roier de Luque é um mero desconhecido, ainda que seja irmão de um milionário. Além de seu nome na turma de 2017 dos aprovados para Teatro na faculdade pública local, a única coisa relevante que Cellbit acha é um perfil do Instagram pouco famoso, mas que é inegavelmente dele.
A maior parte das fotos tem seus amigos, Homem-Aranha e cortes do teatro. O lugar parece pequeno e precisando de reformas, mas há algo naquelas pessoas que grita animação e conforto. As roupas, em principal, é o que Cellbit mais adora. Algumas são claramente feitas de roupas velhas e de material reciclável, e é algo tão genial, autêntico e bem construído que revive uma linha artística nele que ele nem se lembrava de ter.
Lembrou-o de uma de suas primeiras criações. Um vestido cyberpunk feito de CDs. Ele deveria usá-lo para a apresentação de artes, mas seu corpo e mente já não estavam tão confortáveis com esse tipo de roupa na época, então Bagi foi sua modelo. Hoje em dia, não há grande problema para um pouco de feminilidade nas roupas, ele próprio se considerando mais andrógeno que outra coisa.
Mas ele ainda estava se descobrindo, e descobrindo com o que se sentia ou não confortável. Sapatilhas, por exemplo, é algo que nunca lhe passou conforto, principalmente porque o lembrava de suas aulas fracassadas de balé. Seu nome morto também não lhe era confortável. E nem algumas de suas roupas.
Essas roupas não foram feitas por um leigo.
Descendo pelo perfil, ele encontrou o autor das roupas. A autora, na verdade.
— Tina, é? — Ele analisa seu perfil. Ela tem ainda menos seguidores que Roier, embora seu perfil seja bem mais organizado. Ela tem até um contato profissional! — Tem talento…
Algo chama sua atenção. É na última postagem de Tina, que contém uma imagem colorida em roxo intenso e chamativo. Há muito texto. E alguns números. Para ele, é pouco. Mas ele sabe que sua realidade é a da minoria.
Vaquinha beneficente. É o que diz o título em garrafais. Pelo visto, o Teatro está em maus bocados e pode fechar por falta de investimento. Isso o entristece. Cellbit é um apreciador nato das artes, e aquele pessoal tem uma estilista talentosa com eles. Claro, eles também tem Roier, quem o enganou por meses fingindo ser quem não é e brincando com seus sentimentos.
Sem intenção? Talvez. Ainda doeu.
Mas a minha mágoa não interfere nisso. Não em sua empatia, muito menos em sua vontade de ajudar quando ele sabe que pode. E até sente que deve.
Ele não vê quantos zeros digita na transferência, mas sabe que deve ser o suficiente para comprar uns metros de tecido de seda de lótus. É provável que Tina não procure por esse tipo de material, no entanto. Mas eu não me importaria de oferecer de um bocado… Desde que pudesse ver um talento desses sendo aflorado como merece, Cellbit sabe que se sentiria satisfeito.
— Ei! Tina, né? — Cellbit encara a imensidão da cidade pelas janelas de seu escritório enquanto grava o áudio. — Eu vi algumas de suas postagens e uma delas me encantou, sabe, uma que você fez uma blusa incrível com cetim e crepom. Você disse na legenda que foi inspirada pelo meu modelo número cinquenta e sete da coleção do ano passado. É aquele vestido de cauda de sereia, eu tenho certeza!
E assim como a doação, talvez não fosse preciso enviar um áudio tão extenso e intimista quanto esse. E de novo, Cellbit apenas quis fazer. Porque ele quer. E porque ele pode.
— Não é sempre que vejo por aí criações tão cheias de personalidade quanto essas suas. Eu tenho certeza que alguém já te disse — Roier, veio em sua mente. —, mas eu quero deixar claro que você tem muito talento. Na verdade, eu até sinto vontade de ver isso pessoalmente.
É, ele não precisava fazer isso.
— Então, sabe me dizer quando é a próxima peça de vocês?
Não, não precisava.
— E também…
Mas queria.
— Mande um oi para Roier, eu acho.
Por que eu queria?
Chapter 18
Summary:
— Oi. — Cellbit estendeu a mão. — É bom finalmente te conhecer de verdade, Roier de Luque.
Notes:
esse capítulo é babado
(se você leu esse capítulo antes da modificação de 22h do dia 24/09, finja que eu não confundi os personagens de Oz com Alice)
Chapter Text
gatina

AMIGO DO CÉU
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Tina estava demorando muito para responder, seu ícone de resposta surgindo e sumindo continuamente a cada cinco segundos. É o comportamento típico de quem tem uma informação muito bombástica e quer contá-la desesperadamente, mas não sabe como dizer.
Dá tempo de passar um café até ela contar.
Guardando o celular no bolso, Roier andou até a cozinha de sua quitinete. Não demorou muito. Exatas oito passadas, para ser mais preciso. Essa é a distância entre seu quarto e a entrada da pequena cozinha, que é uma pequena puxada com eletrodomésticos que fica muito perto da sala de estar para seu gosto — a sala que é, na verdade, um sofá pequeno, uma mesa de madeira e uma televisão de trinta polegadas. O grande problema dessa configuração é que suas almofadas sempre absorviam o cheiro da comida. O lado bom é que ele poderia comer, dar dois passos e se jogar no sofá para uma boa sonequinha.
Roier passou a gostar de observar os lados bons e ruins das coisas desde que voltou para sua antiga vida.
Se dependesse apenas de seu irmão, Roier ainda estaria morando no apartamento dele. Lá era muito maior e mais luxuoso, é fato, mas não era sua casa. E depois do último encontro com Cellbit, Roier tinha medo de estar lá e acabar se esbarrando com ele novamente.
Por maior que fossem as saudades acumuladas no peito e seu coração sangrasse todas as manhãs em que acordava sabendo que não falaria mais com o homem que gostava — amava? —, era doloroso demais encarar aqueles olhos azuis e ver a mágoa dentro deles.
Principalmente porque eu sou a causa dela.
Era uma vontade viciosa, entrar nas redes sociais e procurar por notícias da Taaffaiete e de Cellbit. Eles estavam muito bem, aliás. Roier soube que Bagi e o irmão fizeram uma pequena viagem para o estado vizinho para organizar a abertura de uma nova filial e aumentar as fronteiras de seu novo império. Enquanto a Taaffaiete crescia em honra e glória, a Ore se afundava na desgraça.
Roier não sabia, mas descobriu que era possível monitorar a fortuna de pessoas famosas por meio de alguns cliques espertos na internet. Ele ainda não sabe como fazê-lo, porém as pessoas no Twitter sim. Há uma nova conta feita especificamente para observar os lucros — ou, no caso, gastos — de Doied. Se chama “quanto doied gastou hoje?”.
Ele acharia isso meio engraçado há umas semanas, mas agora não conseguia deixar de sentir aquela bola amarga na garganta sempre que recebia as notificações dos tweets com mais gráficos decadentes e números negativos que ele não entendia, porém sabia que eram ruins.
“Você não vai denunciar a conta?” Roier perguntou ao irmão uma vez. Foi na segunda noite após ter voltado para a antiga quitinete. Ele dedicou a semana inteira para uma faxina intensa no lugar abandonado e empoeirado e estava realmente cansado. Ainda assim, eles insistiam em pequenas ligações durante a noite. As primeiras foram estranhas e muito silenciosas, porém acolhedoras à sua maneira. “Conta como calúnia, talvez.”
“São dados públicos.” Seu irmão não parecia estar tão preocupado com a opinião da mídia quanto Roier acha que deveria. “E eu quero que eles saibam, principalmente que tudo está saindo direto do meu bolso.”
E as pessoas realmente estão sabendo.
Como pessoa de fora — e que está tentando evitar se envolver nisso mais do que já se envolveu —, o que Roier sabe é que boa parte dos ativos da Ore foram congelados para diminuir os danos financeiros causados pela queda das ações. Reuniões são feitas diariamente com todos os financiadores que ainda pretendem investir na empresa, que são, segundo Doied, metade do que tinham antes, mas ainda 30% a mais do que o esperado.
Era uma solução a curto prazo não para aumentar as finanças, mas para equilibrá-las. O problema é que eles estavam no final do mês e a folha de pagamento dos funcionários precisava sair. Então, Doied veio a público informar que todos seus empregados seriam pagos e que tudo sairia do próprio bolso se fosse necessário — e seria.
“Eu não virei aqui com mentiras bonitas e frases fantasiosas. Há funcionários meus e suas famílias me assistindo nesse momento.” Foram algumas de suas palavras na última entrevista. Era Ao Vivo, e alguns comentários que surgiam na transmissão não eram nada bons. Doied os ignorava, no entanto. “É para essas pessoas, além de todas as organizações que são beneficiadas pela Ore, que reitero: todos serão pagos. Eu, Doied de Luque, os pagarei. Um a um, centavo por centavo.”
A mídia se surpreendeu ao receber testemunhos dos funcionários com as provas das transferências e dos pagamentos. Vieram no dia exato e com a quantidade esperada. Até os que pagaram horas extras receberam por elas. Nesse dia, as notificações de Roier explodiram conforme a conta de seu irmão ficava cada vez mais vazia.
E por vazia, ele quer dizer que seu irmão ainda tem dinheiro suficiente para comprar todo o complexo de apartamentos de sua síndica. Talvez três deles. Ou cinco. Sete.
Mas antes ele podia comprar mais de dez, então…
— Ah…
Na cozinha, ele pega um pouco de pó instantâneo e esquenta água na leiteira em uma das únicas duas bocas funcionais do fogão de quatro bocas. Uma coisa que sente falta do apartamento do irmão é do bom pó de café que Cellbit abastecia religiosamente todos os sábados. Tinha um cheiro tão intenso e um gosto tão puro de café de verdade. Agora ele se sente um plebeu tomando de seu café preferido que, vale ressaltar, era um dos mais caros do mercado porque Roier ainda gostava de manter alguns luxos mesmo estando eternamente endividado.
Bem que o velho dizia que não se pode dar asa a cobra.
Sobre seu velho, Roier o visitou anteontem. Depois de tudo, ele havia voltado com suas visitas religiosas. Às vezes, coincide com ele e Doied aparecerem lá ao mesmo tempo. Demorou um pouco para o recepcionista se acostumar a ver os dois juntos.
Seu avô adorou a surpresa, no entanto.
“Então, vocês estão bem?”
Neste dia, eles se encontraram no asilo pela primeira vez. Roier havia chegado primeiro e Doied, vinte minutos depois. Seu irmão parecia exausto, com olheiras profundas na base dos olhos e o cabelo úmido de suor. Era uma visão incomum. Se não o conhecesse, diria que ele estava trabalhando em alguma obra do centro ou coisa parecida.
Roier se lembra bem da visão. O avô sentado no meio da cama, um desenho meio terminado no colo, seus olhos arregalados alternando entre Roier, sentado de cócoras em uma poltroninha, e Doied, ainda parado na frente da porta do quarto. O desenho dos irmãos estavam distantes da parede, em espaços opostos naquele enorme quadro branco.
“Sim.” Foi Roier quem respondeu. Ao fim, Doied suspirou. É provável que ele estivesse esperando pela confirmação do irmão para continuar. Na cabeça dele, Roier ainda o odeia.
Controverso, porque Roier nunca o odiou. Não de verdade.
“Estamos conversando.” Doied complementou, fechando a porta e se sentando no banco do lado do irmão. “Não é como quando éramos crianças, mas…”
“Estamos melhorando.” Roier murmurou. “Em passos de bebê.”
“Estou feliz.” E seu avô sorriu como não sorria há muito, muito tempo.
Desde que os irmãos voltaram a se falar, seu avô vem estado ainda mais inspirado. Giulia, a cuidadora, manda mensagens dizendo que ele teve uma recuperação abrupta nos últimos dias, principalmente com a depressão que surgiu desde o diagnóstico de Alzheimer. Ele está mais animado e atlético. Os desenhos duplicaram, também. Seu avô está desenhando tanto que quase não há mais espaço nas paredes.
“Leve esse para casa.” Ele o entregou um desenho em sua última visita. Era simples e rabiscado de uma forma quase infantil. Um homem baixo de grossas e curvilíneas sobrancelhas estava no meio da folha com as mãos dadas com outros dois homens, altos, um de cadarços descalços e o outro, com uma máscara sorridente cobrindo o rosto. “Um para cada. Coloque na geladeira.”
Deu-lhe lembranças. Quando criança, ele também dava desenhos para seu avô colocar na geladeira. Agora, era o contrário. Seu coração se apertava de um jeito estranho sempre que se lembrava.
O desenho está na geladeira preso por três ímãs: um com o contato do entregador de gás, outro com um bichinho de vaca — que tragicamente perdeu uma das pernas em algum momento — e o último foi um brinde que o grupo de Teatro fez para entregar aos visitantes em sua última peça. Como nem todas as pessoas que compraram os ingressos apareceram, os ímãs que sobraram foram distribuídos para a equipe.
Ah, o teatro.
Roier voltou a frequentá-lo. Ele estava indo mais desde que a culpa o consumiu por conta da distância. Além disso, eles estavam com menos pessoal, então ele se ofereceu para cobrir os papéis que antes seriam retirados por não ter alguém para interpretá-los.
Uma das pessoas que saiu foi Jaiden.
“Você vai embora?” Ele perguntou logo no dia que voltou. Roier se sentia deslocado e diminuto naquele palco. Mesmo com tudo parecendo o mesmo, ainda era completamente diferente da última vez que viu. Ele se perguntou se tinham feito mudanças. Será que consertaram as rachaduras na parede? O encanamento da pia? Ele descobriu depois que ainda não. A coisa mais destoante, no entanto, era Jaiden arrumando suas antigas coisas em duas caixas de papelão.
“Eu demorei a dizer, né?” Jaiden parecia envergonhada. Ela passou muito mais tempo arrumando suas coisas do que precisava. Não eram muito itens, umas maquiagens antigas e adereços marcantes de suas peças favoritas as quais Tina insistiu para que ela as levasse consigo. Uma delas foi uma fantasia de ararinha azul que era simplesmente seu xodó. As penas eram cheias de glitter e feitas de material molinho, então mexiam e dançavam conforme mexia o corpo na apresentação. Bons tempos. “Eu consegui um emprego de tempo integral, então…”
“Sem tempo pro teatro?”
“Sem tempo pro teatro.”
Se isso fosse há um tempo atrás, Roier teria se zangado um pouco — e Jaiden sabe. Ele sempre foi contra a ideia de abandonar seus sonhos pela subsistência, porque a ideia de se render ao sistema o deixa meio doente, no imaginário e no físico. Mas querer não é poder, e Roier não vive mais em uma bolha do caçula mimado e com infância um pouco mais feliz.
Ele sabe que há casos e casos.
E se Jaiden, a pessoa mais forte e determinada que ele conhece, precisou desistir, então é porque ela não teve outra escolha.
“Pensa em voltar no futuro?”
“Quando eu conseguir pagar as contas, talvez.”
“Nossas portas estarão abertas para você.” Em vez de questioná-la ou de tentar convencê-la a ficar, ele apenas a abraçou o mais apertado que pôde. “Sempre.”
Lidar com Jaiden e suas escolhas de vida foi fácil, difícil mesmo foi encarar Tina depois de tudo.
“Ué, amigo, voltou para a academia?”
Nesse ponto, ele até estava torcendo para ter concordado com a ideia do irmão de ele nunca precisar conviver com seus amigos do teatro. Teria tornado as coisas um pouco menos culposas, sabendo que ele não enganou uma de suas melhores amigas. Tina era uma garota muito boa, gentil e companheira. Ela não merecia isso, principalmente sabendo que ela mudou todos os tamanhos de uma coleção inteira para se adequar às medidas de Doied.
“Ei…”
Roier havia ficado muito tempo calado, a expressão eternizada em um franzido constipado e pensativo. Ele planejou um pequeno discurso que diria para Tina, mas estava tão nervoso que acabou esquecendo no meio do caminho. É meio engraçado. Ele decora as falas das apresentações em um dia, e se esquece de dizeres importantes em um minuto.
O bom é que Tina o conhece. Conhece-o muito bem.
“Finalmente acabou, então?”
“O que?”
Ela sorriu, risonha. “Seu teatro com o seu irmão.”
Tina sabia. Sempre soube.
“Mas como que…”
“Vocês vestem diferente, falam diferente, pensam diferente…” Ela começou a listar tantas coisas que o fez se sentir envergonhado. “Ele tentou esconder de mim, mas eu o vi tirar um cartão black uma vez. Como você teria um devendo o aluguel há meses? Ah! E você tem um sinal de nascença bem debaixo da nuca. Ele não tem!” Piscou. “Admita, Roierzito, ninguém te conhece tão bem quanto a pessoa que faz as suas roupas!”
“E você nunca disse nada?”
“Seu irmão nunca pisaria aqui por conta própria, muito menos tentando fingir que era você. Ele se esforçou bastante, até. Ele até comeu comida de marmita!” Tina parece ter se divertido muito às custas deles. “Então, ficou claro para mim que vocês deveriam ter acordado algo. E eu não queria duvidar do seu julgamento, sabe. Se você quis isso, então eu confio em você.”
E ela o fez chorar. Tipo, muito. Há muitas pessoas para julgá-lo, mas poucas para dizer que confiam nele. Considerando todos os fatos e todas as consequências — provavelmente mais ruins do que boas —, Roier hoje considera que os resultados poderiam ter sido muito piores. Ele mal sabe calcular juros compostos, sabe? Esse é um fato que até Doied deve concordar.
“Mas você teve que ajustar todas as roupas…”
“Não se preocupe, bebê, eu marquei as medidas com alfinetes. É só tirar e, voalá, vai servir como uma luva em você!” E, de novo, Tina pensou em tudo.
Eles estão ainda mais próximos, com Roier ficando no Teatro em tempo integral para ensaiar as novas falas. Ele está cobrindo o personagem dele e o que seria de Jaiden. É uma releitura regional de Alice no País das Maravilhas, e ele estará estrelando como a Rainha Branca e o Chapeleiro Maluco. Algumas cenas precisaram ser adaptadas por motivos óbvios, mas tudo parecia correr bem.
Ele pensou que Tina estaria mandando mensagem para chamá-lo para o treino porque, bem, talvez ele esteja um pouco atrasado. Em vez disso, ela estava surtando por algum motivo em seu privado.
— É mesmo…
Roier mexeu o pó dissolvido e bebericou um pouco da bebida quente. Aceitável. O que será que ela disse? Pegou o celular e franziu o cenho. Ela mandou um vídeo.
E quando ele baixou, a única coisa que conseguiu fazer foi se engasgar.
ISSO É O INSTA DO CELLBIT?
Era o mesmo nome de usuário dele. E a mesma foto. Merda, até tinha o verificado. Ele estava mandando áudios e, ao final, um comprovante de pagamento via Pix. Com muito dinheiro envolvido.
— Ei! Tina, né? Eu vi algumas de suas postagens e uma delas me encantou, sabe, uma que você fez uma blusa incrível com cetim e crepom…
Ele é tão…
Um suspiro alto saiu dele, meio tossido no final por conta do engasgo. Roier não percebeu, mas estava sorrindo.
Doce. Gentil. Adorável. Amável. Incrível.
— Não é sempre que vejo por aí criações tão cheias de personalidade quanto essas suas…
Ele se tapeou. Não importa o que Doied diga, Roier continua se sentindo culpado por desejar tanto o ainda noivo de seu irmão.
— Na verdade, eu até sinto vontade de ver isso pessoalmente.
Espera, o que? Ele precisou voltar o áudio alguns segundos. Não, ele não ouviu errado. Cellbit estava dizendo que havia gostado tanto das criações de Tina que queria as ver pessoalmente. Ao vivo e em cores.
— Puta merda.
Isso é INCRÍVEL. Tina deve estar tão feliz. Como ela não desmaiou? Ele teria, se estivesse no lugar dela. Sua amiga sempre foi fã da Taaffaiete e das coleções de Cellbit, mesmo quando a empresa ainda estava se recuperando em seu período de quase falência. Ela acreditava no potencial dos Balanar acima de todas as circunstâncias. E agora estava sendo notada pelo herdeiro deles!
— Então, sabe me dizer quando é a próxima peça de vocês?
Ele estava tão…
— E também… — Tão… — Mande um oi para Roier…
Desmaiado.
Roier não realmente desmaiou, mas perdeu o equilíbrio das pernas por um breve momento e caiu no chão da cozinha, sentado sobre os joelhos. Um pouco de café caiu em seus pés, mas ele mal notou. A voz de Cellbit rodava em sua mente. Mande um oi para Roier. Um Oi. Para Roier. Oi. Para mim. Eu. Eu.
Ele ainda quer falar comigo?
— AMIGO, EU JURO! — Ele passou tanto tempo desnorteado que mal notou quando o áudio enviado por Tina começou a rodar. — SERÁ QUE NAO É FAKE? NÃO TEM COMO SER, É O PERFIL DELE! E O COMPROVANTE É DE VERDADE, TIPO, ELE DOOU PRA GENTE! PRA NOSSA VAQUINHA! ULTRAPASSAMOS O OBJETIVO EM 250%, PUTA MERDA. EU NÃO SEI O QUE SENTIR OU O QUE PENSAR. EU QUERO EXPLODIR DE FELICIDADE.
Eu também. Ele respirou fundo e tocou no ícone de gravação de áudio. Foram quinze segundos em silêncio. Roier enviou.
Sem palavras. Era sua resposta.
— E DESDE QUANDO VOCÊS SE CONHECEM? ROIER DO CÉU, NÃO ME DIZ QUE VOCÊ SE ENVOLVEU COM HOMEM CASADO.
Noivo. Corrigiu mentalmente. E não por muito tempo.
Em vez disso, ele respondeu:
— Amiga… — murmurou — Nem eu sei…
━━━━━━━ ⟡ ━━━━━━━
A peça começou há cerca de meia hora. Nesse meio tempo, Roier trocou de roupa três vezes.
O grande problema de interpretar mais de um personagem era a troca de figurino, principalmente com pessoal reduzido. Os poucos que não participavam da figuração da cena ativa o ajudavam a trocar os sapatos e a tirar as jaquetas. Tina sempre retocava sua maquiagem durante cada troca, de modo que Roier sentiu uma enorme vontade de respirar por volta do minuto vinte e três. Por sorte, ele conteve, mas isso rendeu uma voz fanhosa ao pobre Chapeleiro — o que, honestamente, seria algo que o personagem normalmente faria por conta própria, então ele a manteve pelo resto da peça.
Há duas semanas, Cellbit mandava mensagens para Tina. Durante esses quatorze dias, Roier esteve ocupado demais nos preparativos para a peça que não pensou mais no herdeiro da Taaffaiete e as entrelinhas por trás daqueles áudios.
— Chapeleiro, cena 12!
Um dos ajudantes veio cutucá-lo. Roier aproveitava um dos raros momentos de descanso para beber água e esticar os dedos do pé. O bom é que a sua cena anterior também foi do Chapeleiro, então ele não precisou trocar de figurino.
— Indo!
Tina estava ocupada ajudando Alice, então Roier preferiu retocar sozinho sua maquiagem. Era apenas um pouco de delineador e batom cinza. Seu rosto estava branco o bastante pelo excesso de pó. Ele tinha a impressão que suas meias estavam meio molhadas de suor, mas não havia mais tempo para trocá-las. Teria de esperar a próxima troca de cena.
— Alice, Chapeleiro e Lebre! Cena 12! — O mesmo ajudante tapeou-as nas costas. — Quebrem a perna!
Doze de vinte e sete. Eles estavam chegando na metade. Das próximas quinze cenas, Roier sabe que participaria de quatorze. Mais nove como Chapeleiro, as outras seis como Rainha Branca.
O que era uma pena, porque ele achava o vestido muito mais bonito — não conte para Tina.
Nos intervalos de fala de Alice, Roier aproveitava para dar uma olhada na plateia. A casa estava mais cheia que de costume. Na primeira fileira, Jaiden observava-os com olhos brilhantes — de orgulho ou por lágrimas? É provável que os dois. Foolish estava cuidando da iluminação e dos efeitos hoje, já que torceu o tornozelo na semana retrasada e ninguém achou seguro deixá-lo atuar. Por conta disso, Roier quase virou o Lebre de Março também, mas seria demais até para ele. O bom é que eles já tinham um substituto.
Eles teriam que abrir novas inscrições em breve ou teriam problemas no futuro. Tina espera que o arrecadado pela vaquinha seja o suficiente para as reformas e para um pouco de publicidade.
O que é aquilo?
Em seu processo de varredura da plateia, ele nota algumas coisas.
- Há algumas crianças comendo Doritos. Eles estão derrubando muitas migalhas no chão. Isso vai dar trabalho;
- Acabou a água do bebedouro e um dos figurinistas passa correndo no fundo para buscar o galão d'água reserva;
- Uma senhora ao fundo está chorando. Por nenhum motivo, porque a cena de agora nem é triste. Nem a anterior foi. A posterior será, no entanto. Ela estava sofrendo por antecipação?
- Ao lado da senhora chorona, há um homem com um boné vermelho sobre os cabelos castanhos. Ele está de braços cruzados e cabeça baixa, mas seus olhos são visíveis. Olhos azuis, intensos, profundos.
A respiração de Roier prende no fundo da garganta. Ele precisa se recompor e pigarrear um pouco para retornar ao diálogo com Alice, mas sua cabeça está nas nuvens e ele espera fortemente que não esteja transparecendo isso para o público. Pela expressão concentrada no rosto de Alice, é provável que Roier esteja aguentando bem.
Esses olhos.
— Isso é impossível! — Alice bradou.
Eu reconheceria eles de longe.
— Só se você acreditar que é.
Mas será mesmo que é possível?
Ao longo da peça, o homem se moveu para se inclinar para perto e para bater palmas, mas nunca o suficiente para ver mais de seu rosto. Às vezes, ele digita algo no celular, e logo o guarda para prestigiar a peça. Suas roupas eram simples e cinzentas, mas nada o impediria de se vestir assim para não chamar grande alarde. Ao mesmo tempo, existem muitas pessoas de olhos azuis no mundo. Poucos tão azuis quanto os de Cellbit, contudo.
— OBRIGADO!
Quando a peça terminou, Roier esperou. As pessoas foram embora. Era a última apresentação do dia e a última da temporada. Eles começariam a desmontar o palco amanhã. O plano é que ficassem um pouco mais tarde para comemorar com um pouco de salgadinhos e guaraná. Ele apenas tirou a peruca e limpou a maquiagem quando voltou ao palco.
Há apenas uma cadeira ocupada.
Roier se aproximou. Passos lentos. Contados. Sua garganta está seca. A água do bebedouro acabou novamente. Não há outro galão sobrando.
— Olá.
O homem tira o boné. Uma mecha branca cai sobre suas íris cerúleas. Sim, era — é — possível.
— Como imaginei… — ele murmurou, desviando o olhar. — Você atua muito bem.
As entrelinhas.
— Sim… Obrigado. — Roier pigarreou. — E você decidiu aparecer aqui com uma camiseta e um boné? — Riu baixinho. — Não deve ser suficiente para os paparazzi… — Suspirou. — Você é maluco.
E não é apenas por ele estar ali. Cellbit sabe. Roier sabe. Eles sabem.
— Eu vou te contar um segredo… — Cellbit o encara. Há um pouco de diversão em seus olhos. — As melhores pessoas são.
Seriamente. Seu coração falhou uma batida. Roier está tão ferrado.
— Essa frase é minha.
— Não! É do Chapeleiro. Ele é de domínio público.
— Na verdade…
— Shh… — Abanou a mão. — Não estrague o clima.
Roier riu e mordeu o lábio inferior.
— Tina me mostrou as mensagens. — Sorriu pequeno. — Foi muito legal o que você fez por ela… Pelo teatro, no geral. Se quiser, posso apresentar vocês. Ela está no camarim agora e não deve sair cedo, então…
— Eu adoraria. — O sorriso de Cellbit era sincero, e aquilo o destruiu. — Você ouviu o último também?
— Sim, então… — Engoliu em seco. — Oi.
Por que ele faz eu me sentir tão estúpido?
— Oi. — Cellbit estendeu a mão. — É bom finalmente te conhecer de verdade, Roier de Luque.
Puta merda.
Eles apertam as mãos por mais tempo do que é realmente necessário. Seus olhos não se desgrudam. Ambos abrem a boca para proferir palavras não ditas, mas nada sai. Roier procura por algo no céu dos olhos de Cellbit. Aquela mágoa, aquela raiva, aquele rancor.
Ele se surpreende ao não encontrá-los mais.
O que isso…
— Tina está aqui todos os dias?
— De segundas às quintas — respondeu em um sussurro. — Sexta é dia da faxina.
— E você?
— Eu?
— Quando está aqui?
— Segunda, terça e quinta… Quarta eu vou visitar meu avô no asilo e Sexta o caminhão do lixo passa em casa, então…
— Próxima terça. — Cellbit está olhando. Olhando muito. Muito intenso. Que olhos bonitos, Deus. Ele está falando alguma coisa? Senhor… — Horário de Almoço.
— Geralmente peço marmita.
— O que gosta de comer?
— Eu comeria até pedra. — Suas bochechas coraram um pouco ao ouvir Cellbit rir. — Hambúrguer, eu acho.
— E fritas?
— Parece bom.
Por que isso se parece com alguém chamando o outro para sair? Cellbit apertou sua mão e acariciou sua palma com o dedão. Ele está com vários anéis hoje. De prata. São frios. Não consigo raciocinar.
— Fechado.
Isso é um encontro?!
— Eu…
Seu telefone toca. É a música tema do Homem-Aranha. Durante seu período como Doied, ele havia mudado para o toque padrão. Cellbit nota a mudança e solta uma risadinha, soltando sua mão. Ele não parecia querer fazê-lo, o que dá sensações mistas ao pobre ex-Chapeleiro.
— Você deveria atender.
— Eu posso atender depois.
Não quero parar de falar com você.
— Não, eu… — Cellbit guarda as mãos nos bolsos e suspira. Uma sombra surge em seu olhar. — Acho que é bom você atender.
— Eu…
— O camarim é lá atrás? Vou procurar Tina.
— Sim, segunda porta à esquerda.
— Ok, eu vou lá. — Lambeu os lábios. — Terça?
Terça-feira.
— Sim.
É um encontro. Porra.
Ele mal absorve o aceno ansioso de Cellbit quando pega o celular. O número de Doied surge e Roier franze o cenho. Ele sabia?
Ao desbloquear o celular para atender, uma notificação pula no meio da tela. Vem do Twitter. Há cinco minutos. Da mesma conta que notifica os gastos de Doied.
Roier quase deixa o celular cair.
TAAFFAIETE ANUNCIA QUEBRA DE CONTRATO MILIONÁRIO COM BANCO ORE.
Chapter 19
Summary:
A grande teoria que corre os andares da Federation Ore é que Luzu é completamente devoto a Doied de Luque. Todos sabem, menos este.
Chapter Text
Doied não sabe porque ligou para Roier.
Ele desliga quando o irmão não atende após o segundo toque. No escritório, ele mal vê o que está além de duas palmas de distância do rosto e seus dedos tremem pelo frio. Doied suspeita que perdeu um pouco de peso, também. As mangas de seu terno favorito estão mais longas do que ele se lembra. Ele bufa com os pensamentos, solitário, unicamente acompanhado pelo tiquetaquear do relógio na escrivaninha.
Há contratos e mais contratos espalhados pela mesa. Ele leu apenas metade. Gostaria de culpar a escuridão do local por sua pausa na leitura, mas a grande verdade é que as palavras estavam começando a se embolar enquanto lia. Sua cabeça doía, e ele pensou que seria uma boa pausa para o chá.
Não há chá.
Então, restaram-lhe apenas seus pensamentos. E ligações acumuladas na caixa postal. Metade delas devem ser de Luzu; as outras, de Mariana. Há também notificações em seu e-mail. A primeira, marcada com uma estrela, é a fatídica mensagem de Cellbit. Ele poderia ter enviado por seu secretário; mas não, o Balanar preferiu enviar “pessoalmente”. Com suas próprias palavras. Em seu endereço pessoal de e-mail. Não tratando aquilo como um contrato entre Taaffaiete e Ore, mas entre Cellbit e Doied.
A pessoalidade disso o irrita. A falta de profissionalismo também. Ele pensa se Cellbit sabe na abertura jurídica que seu tratamento sobre a situação o dá. É provável que saiba, porque Cellbit é um cara inteligente.
Isso apenas mostra o quanto Cellbit não está arrependido da decisão de quebra de contrato. O que torna a situação de Doied ainda mais miserável.
Ele não se sente mal sobre o fim do casamento como relação. Ao menos, não necessariamente. Talvez, ser amigo de Cellbit fosse legal, mas Doied sabe que não daria esse tipo de abertura se eles estivessem se unindo nos antigos termos do contrato. Seria puramente político. O que não é um problema, não para os CEOS da Ore e da Taaffaiete.
Então, em tese, Doied de Luque está um pouco mexido, não chateado. O CEO da Ore, no entanto, está furioso e desesperado.
A pior parte de ser figura pública, para Doied, era justamente o ser público. Seus processos eram públicos. Logicamente, sua quebra de contrato com a Taaffaiete também. Perder suas relações econômicas com outras empresas e fornecedores foi ruim, mas perder o apoio público da empresa de seu noivo — ou talvez fosse melhor nomear como ex — era catastrófico.
Novos pedidos de quebra de contrato surgem em seu e-mail a cada virar de hora. Ele parou de contar no quinto. Hoje foi o único dia em que Doied não procurou saber como está seu gráfico de ações. Ele não quer ver as consequências; não hoje.
Esse é o pior cenário possível.
Na faculdade, ele aprendeu a separar o alavancamento das ações em cenários, dos melhores, aos mais possíveis e aos piores. Assim como há a melhor cena — empresa no auge, contrato bem visto, aprovação do público, tudo aquilo que ele viveu —, também há a pior.
Quebras de contratos.
Desaprovação do público.
Perda de confiança.
Desestabilização dos funcionários.
Linchamento.
A mídia.
Houve um tempo em que Doied se viu admirador do capitalismo. É provável que seja o clichê doce de um aspirante a economista. Quando ele se formou, a visão fantasiosa que tinha mudou. Ele tinha um olhar maduro quando entrou para o ramo dos negócios. Ao passar a Ore de startup para uma empresa, Doied já sabia o que o esperava.
Por anos, ele esteve jogando o jogo do capitalismo. Há boatos de que a burguesia não gosta quando pobres chegam ao topo. Doied discorda. A burguesia ama, porque isso significa, para ela, que a meritocracia existe. E se a meritocracia existe, então o pobre que não enriquece, não enriquece porque não quer. E se ele não quer, então não merece.
Pessoas não têm as mesmas vinte e quatro horas. Doied e Roier não tiveram as mesmas vinte e quatro horas. É meio engraçado quando ele pensa assim, porque ele nota o quanto negligenciou das horas infantis para dedicar-se às horas adultas visando crescer. E quando suas sementes estavam plantadas, foi Roier quem não teve, porque ele já era adulto quando precisou aprender a como ser, olha só, um adulto.
E ele só conseguiu ler essas letrinhas miúdas após toda essa bagunça. Seria ótimo, se sua empresa não estivesse desmoronando na frente dele e não houvesse mais nada que pudesse fazer para impedir.
— Fundos de reserva… — É quando ele começa a alucinar. — Não durarão para sempre… Entrevistas? Não, apenas alimentaria as fofocas. Tentar reaver o contrato? Cellbit não vai aceitar… Isso se não for Bagi falando em seu lugar. — Ele vai afundando na cadeira conforme os contras se sobrepõem os prós. O silêncio aumenta. A temperatura diminui. E sua esperança, morre. — Fechar a empresa…
Não.
— Mil pessoas nas ruas, ONGs sem investimento, clientes desamparados com dinheiro congelado… — E uma imagem queimada para sempre. É o último contra, ainda que seja o menos importante deles. — Meu dinheiro acabando…
Não vou conseguir pagar pelo asilo do abuelo.
É, não era uma opção.
— Mas Luzu cuidaria melhor do que eu nesse estado…
Não posso deixar uma empresa em frangalhos na mão dele. Ele arranca o óculos do rosto e pressiona os olhos com força. Eu comecei esse contrato, eu comecei o acordo, eu me enfiei nessa e preciso dar um jeito de sair.
Ele gostaria de culpar Cellbit. Doied sabe o quanto foi mal falado por ele, pela irmã e por seus associados. Sua organização em casa também era péssima, tão leviana que lembrava-o de Roier quando criança. E ele era um péssimo administrador, imaturo e fantasioso, acreditava que precisava apenas criar meia dúzia de peças e estaria rico pelo resto da vida.
Cellbit nunca entenderia.
Cellbit não é como Doied.
Cellbit não dividiu moedas com a irmã para comprar filmes piratas para ver em seus aniversários. Cellbit não compartilhou roupas com a irmã porque seria mais barato. Cellbit não deu seus pedaços de frango à irmã para que ela comesse mais. Cellbit não recusou brincar na escola porque precisava ir ao mercado ou perderia as promoções do dia. Cellbit não pagou contas com onze anos de idade. Cellbit não foi abandonado pelos pais. Cellbit não foi esquecido pelo único que merecia ser chamado de pai. Cellbit não foi odiado pela irmã, por ter feito tudo por ela. Cellbit não era o Peão da Meritocracia.
Cellbit nunca entenderia.
E é por isso que Doied não pode culpá-lo.
Porque Cellbit também foi enganado e coagido a entrar em um contrato político de casamento com alguém que mal conhecia porque seria o melhor para a empresa que herdou dos pais, que tanto o amavam e confiavam nele. Cellbit tinha paparazzi e lentes da mídia de olho em todos seus passos de forma que a internet deveria ter descoberto suas primeiras palavras antes da mãe ou do pai. Cellbit também era um Peão, embora erroneamente acreditem que ele seja uma Rainha.
Talvez as dores não pesem tanto na balança, mas Doied entende que não é justo comparar dois corações partidos.
É por isso que não posso envolver Roier nisso. Ele pensa após recusar a chamada de retorno do irmão. Não mais do que ele já foi.
Seria um problema se a mídia o descobrisse, principalmente no momento de agora.
— Que merda…
Doied sabe porque ligou para Roier.
Ele queria ouvir sua voz, e acreditar que tinha onze anos de novo. Em que tudo era difícil, mas ele tinha um propósito. Tudo seria uma merda, mas ele chegaria em casa. O caçula o chamaria para brincar. Ele recusaria, mas aceitaria no terceiro chamado. Ele dormiria no meio da brincadeira porque estaria cansado, e acordaria no meio da madrugada no sofá, abraçado ao irmão, com uma coberta fina sobre os dois.
Seria difícil.
— Mas eu era feliz.
Nunca notei isso.
Doied nota como desesperadamente quer voltar a ser criança. Apenas por um minuto. Estar sentado na sala de aula. Encher seu caderno de anotações. Receber elogios de professores. Um tapinha de orgulho do avô. Um abraço do irmão. Ver a televisão. Assistir aos Grandes e Poderosos. Sonhar em ser como eles. Querer mudar de vida. Almejar ser diferente.
Querer, querer.
Até chegar ao tédio de possuir. E querer fugir.
E destruir tudo.
A pior parte da derrota não é apenas perder. É saber que um dia você esteve no topo, e agora está tão abaixo que mal há lugar no pódio. Não há medalhas de participação, nem motivo de orgulho. Ninguém o abraça e o parabeniza. Seu nome é sujo. E…
Ele nota, com um levantar abrupto da cadeira, que quer soluçar. Engole em seco. Deixa o soluço sair. Outro vem atrás. Mais outro. Seus olhos ardem. As pálpebras fecham. Da boca, lhe cobrem as mãos. Um grito morre. Seu rosto molha. Ele não enxerga. Ah, não enxerga nada. Meus óculos? Onde estão? Mãos apalpam a mesa. Há papéis. Nenhum óculos. Ele amassa as páginas. Eram importantes?
Um tropeço. Seus joelhos tocam o chão. Sua coluna curva. Seu coração chora. Dói. Respirar dói. Bombear sangue dói. Pensar dói. Andar dói. Tocar dói. Enxergar dói. Sentir, dói.
Doied está chorando. E não há elogios. Nem toques de orgulho. Nem abraços. Nem vozes.
Há o Nada.
E o nada, dói.
━━━━━━━ ⟡ ━━━━━━━
Lento.
Em certos momentos, ele adorava o elevador da empresa. Era espaçoso, geladinho e acompanhado de uma música ambiente que quase sempre tinha solos doces e bem encaixados de guitarra. Há um espelho enorme que o ajuda a arrumar a gravata, também. E um pequeno suporte para pôr o jornal com as notícias do dia.
Hoje, ele está o odiando.
Lento demais.
Ainda é mais rápido do que subir as escadas até a cobertura, então ele espera e pega o celular. Nenhuma de suas ligações foram retornadas. Suas mensagens nem foram visualizadas, o que ele já esperava. As chamadas o preocupam, no entanto. Foi o que o fez pisar no acelerador em seu raro dia de folga.
Quando ele sai do elevador, o sinal volta ao celular. A primeira notificação que vem é do Departamento de Trânsito. Multa por ultrapassar sinal vermelho.
Merda.
São apenas sete pontos na carteira. Ele mal dirige. Só preciso chegar no escritório. É a última porta no final do corredor. Nunca pareceu tão longo. Só preciso abrir aquela porta. Já está aberta, mas ele ainda bate antes de entrar. Só preciso entrar.
Luzu entra.
Só preciso vê-lo.
O escritório parece vazio, mas a chaleira foi movida de lugar. A temperatura é boa, mas está três níveis abaixo do que Doied normalmente gosta. As cortinas estão fechadas em dia de Lua cheia, e Luzu se opõe à vontade de ligar o interruptor para enxergar seus próprios passos. Há folhas amassadas sobre a escrivaninha, o que ele nunca faria.
Tudo seria normal, se não fosse.
Ele tem medo de querer o silêncio. Ainda assim, sussurra:
— Doied?
Sua resposta vem em uma batida forte contra a escrivaninha. Um corpo decrépito se ergue, trêmulo, uma mão amaciando o couro cabeludo e outra correndo firmemente contra o rosto. Há suspiros e fungos, e olhos bonitos de buraco negro que nunca se erguem para o encarar.
Ele está chorando.
— Eu… — a voz é quebrada, baixa, quase infantil. — Não te ouvi entrar.
Ele sempre é tão atento aos detalhes.
— Onde estão seus óculos?
Doied dá de ombros.
— Procurei.
As lentes estão bem de frente a ele, rodeadas pelo amassado nos papéis. Suas mãos não devem ter alcançado. Como ? Só se ele não estivesse vendo. Talvez fosse esse o caso. Luzu não questiona. Ele pega e os aponta para Doied.
— Coloque.
— Por quê? — resmunga. — Não vai adiantar de nada. — Ele ainda dá um passo, que mais se parece com um tropeço do que um andar consciente. — Não vai consertar nada.
— Vai te fazer enxergar.
— Acho que não quero enxergar.
Luzu decide dar um passo. Extremamente curto. A mesa é a única coisa que os distancia. É escuro demais para ver algo além da curva de sua mandíbula. Então, ele se inclina e liga o pequeno abajur no outro extremo da escrivaninha. Os olhos se Doied se pressionam com a luz abrupta, embora estivesse no tom mais amarelado para não incomodá-lo tanto.
— Mas eu quero que você me enxergue.
Isso pega Doied de surpresa. Seus olhos abrem em pires. Aqueles buracos negros o encaram em tremeluzires descrentes. Ele agora está o vendo nu e cru, observando como seus detalhes se parecem contra a escuridão melancólica e mórbida de seu escritório.
— Você parece horrível.
Um pouco. Ele dispensou a gravata e o cinto ao sair de casa. Luzu sabe que a gola da camisa também está torta, e é provável que ele tenha capturado o exemplar mais amassado de seu armário.
— E você está horrível.
— Isso deveria me consolar?
Luzu lambe os lábios e suspira.
— Não vou te alimentar com mentiras.
Os ombros de Doied tremem e ele desvia o olhar. Ele abre a boca para falar a fatídica frase que os dois conhecem. Mas eu te alimentei com mentiras. Luzu agradece que o outro seja incapaz de dizê-la. Ele não quer ouvi-la.
— Sabe que eu não te culpo, não sabe?
— Deveria. — Suspira. — Eu estraguei tudo.
— Você estava sobrecarregado.
— Então, sobrecarreguei vocês.
— Não foi intencional.
— Mas ainda aconteceu. E é minha culpa.
— Não vai resolver as coisas se trancar aqui e sofrer sozinho.
— Ninguém merece me ver definhar como um covarde.
Luzu o agarra pelos ombros. Doied engasga.
— Você não é o único sofrendo. — Ele o encara no fundo dos olhos. A intensidade é tão forte que Doied se vê obrigado a não desviar. — O Banco Ore é mais do que Doied de Luque. Pare de querer botar todo o peso nas suas costas quando tem gente aqui querendo te ajudar. — Ele aumenta o aperto. E diminui a voz. Baixo. — Quando eu quero te ajudar.
A grande teoria que corre os andares da Federation Ore é que Luzu é completamente devoto a Doied de Luque. Todos sabem, menos este.
— E se não tiver como?
— Então, eu vou dar um jeito.
— Você não pode mudar o mundo, Luzu.
Se você for o mundo, talvez eu possa.
— Ninguém pode. — Era a verdade. E dói. — Mas eu posso ajudar. Eu posso vir e tentar e te dar a minha mão e… — Ele o puxa um pouco para perto. Só um pouquinho. Doied vai, e se inclina. — Você segura todo o peso do mundo, Doied, mas eu posso te segurar para você não cair.
Na próxima vez que Doied abre a boca, é para soluçar. E ele não para.
A primeira vez que Doied de Luque chora, é como uma represa rompida pela força de uma chuva torrencial. É água sobre água, lágrima sobre lágrima. Ainda assim, é estranhamente silencioso. Se não fosse o movimentar brusco de seus ombros e o peso do corpo trêmulo contra seu peito, Luzu nunca diria que ele estava chorando.
Ele não diz nada enquanto o agarra nos braços. Luzu não é bom com abraços, nem nunca foi muito sedento ao toque. Ele é do tipo de fala e ouve. O toque é novo aos dois, nesse ponto. Seus dedos tremem com a vontade de tocar os cabelos e acariciá-los entre as falanges. Ao mesmo tempo, parece demais. Então, ele não se move, e apenas segura-o. Embala-o. Conforta-o.
Minutos se passam até que o tremer termine. Doied suspira e funga uma última vez antes de afastar um pouco, a cabeça baixa tímida e o nariz franzido. Seu rosto está enrugado como uma ameixa seca, mas é adorável.
— Que experiência horrível.
— Ser abraçado por mim? — Luzu ergue a sobrancelha.
— Não. — ele responde, mais rápido e desesperado do que gostaria. — Mas chorar na sua frente… É meio…
— Vergonhoso?
— É.
— Não há vergonha em chorar ou sentir dor. Você é humano, Doied.
A carranca dele aumenta. Luzu sempre pensou que Doied gostava de se ver como um superhumano ou algo do tipo. Suas suspeitas apenas se confirmam com o passar do tempo.
— Chorar não vai resolver as coisas.
— Mas vai resolver seu coração. E se o coração não está bem — Cutuca sua testa, afastando uma mecha da frente do rosto. Os buracos negros o observam —, a mente também não estará.
— Você acordou filósofo hoje?
— É minha segunda formação — argumentou.
Ele sempre gostou da filosofia e o estudar do humano. Doied sempre contraria boa parte de seus conhecimentos, no entanto. É uma das coisas que mais o fascina nele. Talvez Luzu não seja devoto, porque a devoção é uma fantasia desgostosa; mas ele é fascinado, admirado e respeita cada uma das células que compõem De Luque. Isso é um fato.
— Era seu dia de folga — ele desconversa.
— Você não me atendeu.
— Desculpa?
— Por isso você não sente culpa.
Doied riu de canto.
— Você me conhece tão bem que me assusta.
Eu só gosto de você. Muito.
— Você já sabe? — ele continua.
— Sim.
— É tão ruim quanto parece?
Luzu nunca mentiria para ele.
— Sim.
— O que eu faço?
— O que faremos — corrige — é pensar nisso apenas quando o Sol nascer.
Doied bufa e revira os olhos. “Como se eu pudesse ficar parado sem fazer nada” é o que ele deve estar pensando. Luzu vê no fundo daqueles olhos. Eles parecem enormes quando ele está sem os óculos, ainda mais brilhantes. Seus cílios são longos. O nariz está franzido. É meio redondo, e dá vontade de apertar.
Ele ergue o olhar quando chega aos lábios. Sabe que devem ser secos. O inferior é mais proeminente. Mas são beijáveis. Ele não pode pensar em beijar Doied agora, pode? Deve se encaixar em algum princípio antiético.
— O que é antiético?
— Pensar em te beijar — ele responde sem pensar.
As sobrancelhas de Doied se erguem ao ponto de subir no emaranhado de seu cabelo. A surpresa é curta. Ele logo bufa e franze os lábios.
— Por quê?
— Você vai se casar.
— Não irei mais.
Ele perde um argumento.
— Luzu.
— Sim?
Os dedos de suas mãos e pés curvam. Ela volta. A vontade de tocar. Está tão perto. Ele não tinha se afastado? Foi pouco, embora na hora parecesse muito.
Doied deve pensar o mesmo, se é o primeiro a se inclinar de volta.
— Me beija.
Ele confirma: são secos. Não o arranha, mas o arrepia. Há uma eletricidade gostosa atacando seus pensamentos mais dormentes. Estar perto de Doied, gostar tanto dele, querê-lo e almejá-lo por tanto tempo sem poder tê-lo sempre foi uma tortura.
Mas Luzu quando o tem, é lento. Seus lábios se enroscam de jeito meio inexperiente. Não importa. Ele acaricia a nuca alheia com a ponta das unhas, engolindo suspiros ansiosos. Seu corpo é puxado por um aperto firme nas costas. Sua camisa já amarrotada, se amassa ainda mais. Ele nunca ficou tão satisfeito por ver uma roupa amassada.
Luzu quase tropeça contra a mesa. Uma risada baixa é sentida entre seus lábios. Ele o engole. Ele está bebendo dele. Segurando ele . Abraçando ele . Sendo dele. Tendo ele.
Ele. Ele. Ele.
De, ele.
Ele o afasta com um mordiscar suave no lábio inferior. É mesmo maior, porque o sentiu contra a própria boca. Sua curva, suas ranhuras, seu gosto.
— Você…
Há o rastro de uma nova lágrima no rosto de Doied. Aquilo o apavora.
— Foi uma boa experiência. — Não foi um choro ruim, é o que ele quer dizer. — Boa… Ótima . — Doied suspira. — Eu…
— Não se sinta obrigado a dizer algo.
Ou a corresponder algo. Ou sentir algo. Ou a nada.
— Mas…
— Eu te esperei por anos. — Luzu o beija na testa. É o último beijo da noite. — Sou paciente.
No virar da próxima hora, Doied está dormindo contra o sofá do escritório. Há um cobertor improvisado sobre seu corpo. A temperatura está três níveis acima. As cortinas estão entreabertas, porque é Lua Cheia. Tem um corpo sentado que mantém sua cabeça apoiada no colo; às vezes acarinhando, às vezes pensando.
Ele não dorme sozinho. Ele não está sozinho.
Notes:
cellbit e roier conversam no próximo
Chapter 20
Summary:
— É só que… — Ele hidrata os lábios e suspira. — Eu só queria saber o quanto do homem que eu me apaixonei existe em você.
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Nas terças, Roier não vai ao Teatro. Geralmente, são os dias que ele aproveita para ir ao mercado. Sua geladeira está vazia e com cheiro de plástico, então ele a limpa um pouco antes de pegar as chaves de casa e sair para comprar alguma coisa para o café.
Ovos. No caminho, ele ia montando a lista. Presunto. Ainda sobraria dinheiro. Roier economizou muitas de suas economias nos últimos meses, principalmente porque não precisou pagar o aluguel. Pão. Além disso, o restante da Vaquinha foi igualmente distribuído entre os membros do Teatro. Ele prontamente separou o necessário para o aluguel desse mês, decidido a gastar apenas uma parte do que sobrou. Pó de café.
Um suspiro longo sai dele quando tudo em sua mente o encaminha novamente a Cellbit Balanar. Na noite final de seu último encontro, ele veio até si para confirmar o local onde se veriam hoje. Eles almoçariam em uma hamburgueria artesanal na Zona Norte. Nem muito cara, nem muito barata. Isso significa que Roier poderia pagar pelo seu próprio consumo, o que o surpreende. Ele pensou que Cellbit fosse escolher alguns de seus restantes elegantes.
Mas isso significaria que seríamos vistos juntos. Por pessoas da classe de Cellbit, que o conheciam, que o noticiavam. Não seria seguro.
É, era o melhor. Por inúmeros motivos.
Doied apenas respondeu às suas ligações na noite de ontem. No geral, seu irmão diz que está tudo bem e que está procurando formas de se reerguer.
“Luzu está encarregado de representar a Ore para o financeiro. Acreditamos que eles irão confiar mais nele do que em mim nesse momento.” Para alguém que parecia miserável, sua voz era cadenciada e bastante descansada. Ele parece ter dormido um pouco melhor nos últimos dias. “Eu dei uma entrevista ontem… Deve ir ao ar amanhã pela manhã.”
Quando acordou, a entrevista ainda não havia sido divulgada. Talvez a mostrem quando ele voltar para casa. O pensamento faz Roier apressar o passo dentro do mercado. Ele está ansioso por notícias.
Antes, o impacto notável era apenas na internet e na televisão. Agora, Roier passou a notar outras coisas. Eram poucos, mas existiam. Na rota entre sua casa e o mercado mais próximo, há um muro que havia sido envelopado com uma publicidade do Banco Ore, há cerca de um ano ou dois. A coisa estava rasgada no meio, cercada por pichações em tinta fresca.
NÃO CONFIEM SEU DINHEIRO A ELES.
Os noticiários afirmam que mais contas associadas ao Banco Ore foram desligadas nos últimos dias desde a notícia da quebra contratual entre Cellbit e Doied. Muitas páginas de fofoca afirmam que isso significou o término oficial do casal, mas nenhum deles confirmou a informação ainda.
Roier nota que é um dos poucos que sabe da resposta.
“Eu não sei como quebras de contratos funcionam.” Roier soltou durante a conversa. Ele se lembra de estar jogado no meio da cama. A janela estava aberta, trazendo um vento friozinho para dentro. Ele nem ligou o ventilador. “Isso te prejudica?”
“Depende da situação.”
“Na sua?”
“Eu me fodi.” Doied riu sem humor. Seu irmão riu da situação. Ou ele tomou algum tipo de remédio calmante ou foi substituído, não há meio termo. “Basicamente, quebras de contratos não acontecem do nada. Uma das partes pode pedir pela quebra quando se sente prejudicada ou por acreditar que a outra parte não cumpriu com os termos pré-estabelecidos no momento de formalização do contrato.”
Essa parte Roier já sabia porque passou uma tarde inteira pesquisando sobre no Google . Ele pensou que se estudasse muito, poderia ajudar o irmão com alguma coisa. Apenas serviu para lhe dar mais dúvidas do que respostas.
“Ouvi dizer que também podem pedir quando alguém está com dificuldades financeiras.”
“Sim, isso também. No meu caso, é um misto de situações, por isso é tão ruim de analisar.” Roier podia imaginá-lo arrumando o óculos enquanto falava. “Como CEO, Cellbit pediu a quebra tanto por se sentir prejudicado, quanto pela atual situação financeira da Ore. Uma das cláusulas do nosso contrato era que a Ore forneceria um suporte financeiro de 27% das despesas da Taaffaiete. É um número muito, muito alto. E a Ore não está em condições de manter essa cláusula do contrato.”
“Então, o contrato se quebraria por si só?”
“Sim, a questão é que Cellbit formalizou a quebra. Isso significa que minha empresa quebrou uma das cláusulas e a Taaffaiete, como parte ferida, pode pedir uma indenização. Isso ainda não aconteceu, e eu torço para que não aconteça ou teremos mais problemas.” Doied suspirou. “A mídia não perdoaria… Luzu está estudando o contrato para procurar por algo que nos ajude em um possível pedido de indenização, mas tenho baixas esperanças. O melhor para nós é que a Taaffaiete não insista. Quero manter o laço mais positivo o possível com a Taaffaiete e com Cellbit, mas nessa situação…”
Foi a vez de Roier suspirar. O vento frio sumiu. O quarto esquentou rápido. Ele não se levantou para ligar o ventilador.
“É difícil.”
“Muito.” Não era uma pergunta, mas ele ainda tratou de afirmar.
O que será que Cellbit pensa sobre isso? Roier estava tentado a perguntar no encontro de hoje. Talvez fosse indelicado, mas ele não se importava. Ele precisava de respostas.
Ao chegar em casa, ele preparou seu sanduíche ao som da livestream do canal de televisão local. Não demorou muito para os jornalistas darem abertura para o que ele tanto queria saber.
— A quebra de contrato entre a marca de moda de luxo Taaffaiete e o banco Federation Ore é o mais novo assunto do mercado empresarial. Neste momento, as ações do Banco Ore estão 39% menores que os valores apurados na semana passada. Em entrevista exclusiva, os donos das ditas empresas, Cellbit Balanar e Doied de Luque, anteriormente unidos em noivado, fornecem mais detalhes sobre a atual situação das empresas. Confira na íntegra.
Duas coisas chamam a atenção de Roier, agora de pé no meio da sala, olhos arregalados e a boca cheia de ovo e pão.
- Cellbit Balanar e Doied de Luque. Seu irmão não disse que Cellbit também daria entrevista.
- Anteriormente unidos em noivado. Eles confirmaram que não estão mais juntos.
Deixando a transmissão em segundo plano, Roier é rápido para abrir suas redes sociais. O nome de seu irmão volta aos Assuntos da Semana. Ah, merda.
— A atual situação do Banco Ore é pública. Desse modo, a posição da Taaffaiete não só é esperada, como é compreensível. — Doied estava atrás de um atril, embora não tivesse papéis visíveis, cercado por microfones com logotipos de inúmeros canais de notícias distintos. — A quebra foi acordada de forma pacífica entre as duas empresas. Cellbit compreende minha situação, e eu a dele.
Alguém ainda fez uma pergunta para Doied, que foi respondida rapidamente. A transmissão foi cortada. Atrás de outro atril, Cellbit apareceu. Ele parecia neutro, mas um leve vinco entre suas sobrancelhas entregava seu nervosismo. Seus olhos azuis rumavam pelos microfones — que pareciam ter duplicado — com hesitação. Ele respirou fundo.
— Inúmeros pontos levam a uma quebra de contrato. Social, econômico, político… Como CEO, preciso pensar em todos os prós e contras antes de tomar uma decisão, além de conversar com minha equipe para que a maioria esteja de acordo com a situação. — Ele está se justificando. Roier franze o cenho, lembrando das últimas palavras de Cellbit naquela fatídica conversa entre ele e os gêmeos. Por quê? — Para a Taaffaiete, manter o acordo não seria benéfico. Conversei com Doied para ver o que poderíamos fazer, e concordamos que a quebra seria o melhor para a Taaffaiete, que mais perderia, e para a Ore, que não teria como manter as cláusulas legalmente na atual situação em que está.
Uma coisa que Roier nota é que há uma marcação com os horários em que as entrevistas foram feitas no canto da tela. Os horários de Doied e Cellbit eram os mesmos, o que significa que eles foram entrevistados ao mesmo tempo, porém em lugares diferentes. Um não sabe o que o outro vai dizer. E eles estavam respondendo a mesma coisa.
Ele volta a olhar as redes sociais. As opiniões estão oscilando. Algumas positivas — para Doied — estão surgindo.
Roier entende o que eles estão fazendo.
Mas o que Cellbit ganha com isso?
— Senhor Balanar, o que o senhor tem a dizer sobre seu noivado com o senhor Doied de Luque?
Roier se vê engasgando com o último pedaço restante de seu pão.
— Nós… — Seu suspiro é audível nos microfones. — Não foi uma decisão fácil. Novamente, envolveu muitas coisas. Relacionamentos devem ser pensados com calma, e tanto Doied quanto eu concordamos que não estamos em uma fase propícia ao casamento. Ando fora expandindo a empresa e ele está atarefado resolvendo os trâmites da Ore. Não estamos compatíveis. Não significa que nos odiamos, porque não é o que acontece. Sou e serei eternamente grato a tudo o que Doied e a Ore fizeram por mim e pelo legado dos meus pais. À Doied, todo meu apoio como pessoa. Só não somos mais parceiros econômicos.
É oficial.
Doied de Luque e Cellbit Balanar não estão mais juntos.
Os posicionamentos na internet voltam a oscilar, cada vez mais confusos. Alguns dizem estar vendo Doied com outros olhos e entendem sua atual situação de vida caótica e desordenada. Outros, fãs de Cellbit, dizem que ele está sendo bonzinho demais e que alguma coisa deve ter acontecido porque “um noivado não é desmanchado de uma hora para outra”. Alguns mais radicais afirmam que houveram traições e que um deles deve ter sido “corno manso”.
Roier desligou o celular após ver esse comentário. Foi intenso e o deixou enjoado. Ele não pode tirar o mérito da desconfiança alheia, no entanto. Em tese, eles estão certos. Mas ninguém pode saber.
Eles estão tentando fazer um controle de danos, aparentemente. O que, para Roier, soa estúpido.
Ele confere o relógio. Faltam três horas para o encontro com Cellbit. É uma boa notícia. Roier tem muitas perguntas em mente.
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A primeira coisa que Roier nota ao chegar na hamburgueria é que há uma mesa reservada com seu nome no lugar mais distante do restaurante, escondida atrás de uma parede de plantas. Segundo, já há alguém sentado a mesa. Um homem que olha distraído pela janela, com um boné escondendo boa parte do cabelo castanho e um par de óculos escuros que cobrem os olhos que Roier sabe que são azuis.
Quando Roier se senta na cadeira livre, o homem sorri.
— Ei.
— Seu boné é seu disfarce?
— Eu li uma pesquisa uma vez que perguntavam qual era a característica mais marcante em mim. — Coçou a nuca. — A maioria votou no meu cabelo.
Roier discorda. São os olhos.
— Você pode tirar os óculos, então.
Cellbit morde os lábios antes de tirar os óculos e apoiá-los sobre a aba reta do boné. Ele pisca.
— Sim. — Ele levanta a mão para chamar o garçom. — O que você quer? O vegetariano daqui é o favorito da minha irmã.
Sua careta de desgosto é evidente.
— Não, valeu. Tô com saudade de comer carne.
— Bem passada?
— Ao ponto.
Ele demonstra satisfação com sua resposta, se é isso que seus olhos brilhantes querem dizer.
Eles fazem os pedidos. Roier ainda pede por umas batatas fritas e um refrigerante de guaraná. Cellbit prefere o de uva.
— Como o teatro está? Acho que não falei o suficiente sobre como realmente gostei da apresentação de vocês. — Ver Cellbit falando sobre ele, sobre a vida de Roier de Luque, é um ponto fora da curva. — Mas confesso que as roupas me chamaram mais a atenção. Eu disse isso para Tina e ela ficou tão branca que achei que fosse desmaiar.
— Eu posso ver isso acontecendo.
Eu imagino a cena inteirinha, na verdade. Primeiro, Tina ficou quieta. Depois, vermelha. E aí, embranqueceu tanto que se confundiria com a tintura nova da parede.
— Passei o contato de Bagi para ela mandar umas fotos para a gente. — Cellbit mordiscou um de seus aperitivos de mandioca. — Quero apresentá-la para o Setor Criativo. Tenho pretensão de contratar Tina.
Roier engasga com seu refrigerante. Sua reação desengonçada fez Cellbit arregalar os olhos e se inclinar até ele, tapeando suas costas.
— Já desengasguei. — diz, precedido de uma tosse. — Isso… — É INCRÍVEL e eu vou surtar muito com Tina mais tarde. — Cellbit… — Mas não é esse o ponto. Roier o encara, cenho e lábios franzidos. — O que você quer?
Cellbit engole em seco. Audivelmente.
— Como assim?
— Você… Primeiro, você ferra o meu irmão quebrando o contrato com a empresa dele. — Contabiliza nos dedos. — E ok, eu tava entendendo o motivo! Mas aí você me vem a público dando uma entrevista dizendo que tá tudo bem, logo depois de dizer que o noivado de vocês já e-r-a. — Sua vontade era de gritar, mas ele não podia. Há pessoas nas mesas mais distantes. Uns tons acima e todos saberiam. — E antes disso, você me chama pra um encontro! Não tem como interpretar isso de outro forma e… Você doa pro meu Teatro, o que eu sou grato, mas eu não entendo e… Você quer contratar minha amiga, e eu tô super feliz por ela porque Tina merece muito, mas…
— Você não entende porque estou fazendo isso?
Roier suspira.
— É.
O garçom aparece com as comidas, e um breve silêncio se instaura entre os dois. Roier come de suas batatas sem realmente sentir o gosto, apesar de senti-las crocantes entre os dentes. Cellbit está desviando o olhar, brincando com as ranhuras do vidro da janela, pensativo.
Cellbit estala a língua.
— Eu sou egoísta.
— Todo ser humano é. — Ele dá de ombros. — É natural. Eu fui egoísta aceitando o acordo. Doied foi egoísta propondo ele. — exemplificou. — Você foi egoísta aceitando se casar com ele. No fim, somos todos humanos.
Ele não estava esperando por esse tipo de resposta. Cellbit abre e fecha a boca, lambendo os lábios meio secos. Ele tira uma manteiga de cacau dos bolsos, uma daquelas de quatro reais. Roier sorri ao notar que tinha uma igual em casa.
— É só que… — Ele hidrata os lábios e suspira. — Eu só queria saber o quanto do homem que eu me apaixonei existe em você.
É a vez de Roier se surpreender com sua resposta.
— Eu…
— Eu sempre admirei Doied. Seu irmão é um cara inteligente. Ele chegou do nada no mercado e, nossa, as estatísticas dele eram tão boas. Ele era tão bom e eu era o filho de ouro que mal sabia transformar um real em dois. — Cellbit sorri pequeno, mais quebrado que outra coisa. — Convivi com ele por anos e essa admiração nunca virou outra coisa.
Há um som alto estalando no interior da mente de Roier. Meu coração. Ele nota, engolindo em seco.
— Mas…?
— Mas mudou quando você apareceu. — Suspirou. — Mas você fingia ser ele, e não sei o quanto daquele que eu amo existe em você ou se só me apaixonei por alguém que não existe… Fiquei dias pensando nisso. Ninguém sabe. Meu melhor amigo não sabe, minha irmã não sabe… Eles não me apoiariam, eu acho, diriam que é loucura, mas…
Cellbit o encara. Aqueles olhos azuis estão observando até o fundo de sua alma, furando suas barreiras e empregando nele como o cheiro de jasmin. Há Cellbit por toda parte. É tanto…
— Eu realmente quero te conhecer. Você parece ser divertido e tem um papo inteligente. — Cruza os braços. — E eu quase esqueci, você fala mandarim!
— Eu mais engano que outra coisa…
Sobre enganar, eu sou especialista.
— Independente, você conseguiu um contrato milionário para mim. Sério, mesmo se eu não te conhecesse antes, teria me apaixonado por você naquele dia, naquela sala, só de te ouvir abrir a boca.
Roier pigarreia. Ele bebe de seu refrigerante, tentando se esconder atrás do copo de vidro. Não tô acostumado com o Cellbit Balanar que flerta e fala o que quer. Seu coração bate descompassado contra o peito. Ele sente vontade de sorrir.
— Você é um artista! E com você eu posso ir em um lugar mais simples e comer de comida barata e boa e… Vai até parecer que eu sempre pertenci a esse lugar.
Com você. Fica subtendido.
— Mas vocês dois me confundem… — a voz de Cellbit desce alguns tons, rouca e distante. — Pelo o que eu entendi, você e Doied vivem em realidades bem diferentes. — Diferente é eufemismo, eles sabem. — Eu acho que posso entender porquê você aceitaria o acordo, mas não entendo porquê Doied o proporia. Toda vez que eu penso, sempre volto à mesma teoria.
— Qual?
— Que ele fugiu de mim.
Ouvir o tom quebrado de Cellbit o dói. É insegurança pura, nua e crua. Roier consegue entendê-lo. De certa forma, o lembra seus próprios sentimentos passados ligados ao irmão.
— Eu e Doied fugimos. — Roier responde no mesmo tom baixo, embora firmemente honesto. — Contas, decepções, fracassos… Eu não queria mais viver tudo isso. Pensei que a vida de Doied fosse mais fácil, com ele tendo tanto dinheiro e fama e tudo o que eu sempre quis conseguir com o Teatro. — Dá de ombros. — Na pele dele, acho que entendi porque ele fugiu.
— Por quê?
— Essa realidade sempre foi a sua vida, Cellbit. — Suspira. — Não a nossa. Doied queria ganhar dinheiro para que eu e o vô nunca tivéssemos que continuar na miséria. Eu nunca tive uma rotina fácil, mas era sustentável, e nosso avô tá vivendo hoje do bom e do melhor no asilo. Ele arriscou e doou muito da própria vida por nós. Sempre foi muita pressão e trabalho e… Ainda teria um casamento. Doied esteve constantemente trabalhando pra agradar toda sua elite burguesa, é óbvio que ele se cansaria.
— Elite burguesa…
Cellbit volta a ficar em silêncio. Roier aproveita para morder seu sanduíche. Suculento e bem temperado. É melhor do que aquela comida florida do primeiro restaurante que ele o levou.
— Mas ele não precisava se casar comigo.
É verdade…
— Acho que Doied tem um vício de doar a própria vida pela dos outros.
Os dois comem, o ambiente em torno deles se preenchendo pelo som de suas mastigadas. Cellbit come como um gato, contido e educado, limpando a boca a cada par de mastigações. Roier se vê meio envergonhado com a quantidade de migalhas que derruba pela mesa, mas Cellbit não parece julgá-lo, já que tem as mãos cheias de sal.
— Quando eu era pequeno… — Cellbit quebrou o silêncio. — Em uma época muito específica da minha vida… Eu tinha cortado o cabelo. Era pequeno, tipo, três vezes menor do que agora. As crianças não gostavam muito de mim na escola. Nesse dia, lembro que quiseram jogar minhas coisas fora, mas pararam quando Bagi apareceu. Ela ameaçou bater neles e quase arrancou o cabelo de um. Todos apareceram carecas no outro dia, e nós dois rimos muito.
Parece ser coisa de irmão mais velho. É o que Cellbit quer dizer. Fazer tudo pelo caçula.
— Doied sempre dava o frango dele pra mim pra eu comer mais e não sentir fome na escola. — Sorriu pequeno. — Acho que é por isso que ele virou vegetariano. Tanto tempo dando a proteína dele pra mim… Acho que parou de sentir falta. Idiota…
O prato de Cellbit está vazio no minuto seguinte. Roier deixou para finalizar suas batatas no final. Ainda estão crocantes, e agora ele se sente leve o suficiente para sentir o sabor salgado na boca. É estranho pensar que falar sobre sua infância e seu irmão mais velho e socialmente constipado fizeram bem à sua alma.
Talvez seja porque essa seja a conversa mais honesta que ele já teve com Cellbit Balanar. Não há mentiras ou omissões aqui. É apenas Roier de Luque. O quebrado, imperfeito, desengonçado e verdadeiro Roier de Luque. E se Cellbit ainda não saiu por aquela porta, é porque ainda há esperanças — não a ele, mas a eles.
— Eu nunca quis destruir Doied ou a Ore. — Quando Cellbit começa a desabafar, ele não para. — Eu estava magoado, muito. Mas quando a raiva passou, eu fiquei mais pensativo do que irritado. Bagi não sabe o que aconteceu, mas sabe que fiquei chateado com Doied e insistiu para revisarmos o contrato. A Ore entrou em decadência, então não foi difícil conseguir a aprovação da equipe e dos nossos outros patrocinadores. Se não fosse eu pedindo, seria Bagi e ela seria bem menos aberta do que eu.
— Ela é bem protetora com você.
— Bagi é mais uma mãe do que uma irmã para mim. — Ele brinca com a ponta das unhas. — Depois que nossos pais morreram, só nos sobrou a companhia do outro. Acho que isso você pode entender.
— Sim.
E muito bem. Seus pais não morreram, não literalmente; mas eles são tão distantes em sua existência que sua vida e morte são igualmente irrelevantes.
— Mandei o pedido pelo contato pessoal de Doied na esperança de diminuir o impacto, mas foi inútil. Quando o processo baixou no cartório, as notícias começaram e… — Cellbit franze o cenho. — Isso é tão…
— Você não precisa se forçar a ser todo princeso e contido comigo, sabe. Não sou um dos riquinhos com quem você faz contrato. Se você precisar dizer que a mídia é uma vagabunda, então diga. — Roier é uma pessoa simples. — Eu vou bater palmas.
Cellbit bufou uma risada.
— Isso tudo é uma merda do caralho, é.
— Olha, Doied não é a pessoa mais amorosa do mundo e ele já me magoou bastante no passado, não vou mentir. — Mesmo que as memórias fossem melancólicas, Roier mais as via como agridoces agora. Ele sorri. — Eu ainda me importo muito com ele. E eu vou defender ele se precisar.
Porque Roier amava Cellbit, mas também amava Doied. E entre alguém que conheceu pelos mais de vinte anos de sua vida e o outro que conheceu há menos de duzentos dias, sua resposta era óbvia.
— Eu imaginei isso. — Foi a vez de Cellbit sorrir. — Fico feliz que eu acertei.
Isso significa que há uma parte de você que eu conheço.
O coração de Roier bate tão forte que dói.
— Aquela entrevista foi ideia minha. — Cellbit lambe os lábios. Voltaram a ficar secos. — Doied me ligou há alguns dias para acordar os últimos trâmites do contrato… Foi quando eu dei a ideia. O objetivo era diminuir um pouco os ânimos. Eu vejo os comentários na internet e tinham tantas pessoas chamando ele de monstro e por mais que me doesse tudo o que aconteceu…
— Você sentiu que era injusto?
— É.
Que dejá-vù.
— Também não sou fã de Lex Talionis .
Cellbit arqueia a sobrancelha.
— Você sabe da Lei de Talião?
Lei de Talião, descendente do Código de Hamurabi, a popular “Olho por Olho, Dente por Dente”. Roier sabia porque…
— Estudei pra uma peça uma vez.
— Que nem o mandarim?
— Exatamente como o mandarim!
Os olhos de Cellbit piscam, seu azul água de piscina se tornando intenso da cor do mar.
— Você é extremamente interessante, Roier de Luque.
Mesmo sem as proteções de seu disfarce, Roier nota o quanto ainda é fácil conversar com Cellbit. Eles passam minutos despejando traumas e pretéritos recheados de divergência de classe para terminar se encarando na profundidade da pupila do outro. Roier sentiu seus dedos do pé curvarem.
A comida acabou, e ele torcia que ainda houvesse fome para que pudesse pedir mais. Não para comer. Mas para ter uma desculpa.
Ele mal nota quando fala:
— Você tem o fim de semana livre?
Cellbit morde o lábio inferior para reprimir um sorriso. Você não pode esconder expressões de um ator. Roier sorri — com os olhos .
— Sábado, sim. — Ele liberta seu sorriso pequeno e fofo. — Quer me levar pra sair?
— Quase. Eu queria te chamar pra minha casa, na verdade. — Os olhos de Cellbit arregalam. — Para comer! Apenas. Eu sei cozinhar. É decente, ok? Não queimo ovos e sei temperar carne, eu prometo.
A risadinha genuína de Cellbit Balanar ainda o assombraria quando Roier deitasse a cabeça no travesseiro naquela noite.
— Tô ansioso pra provar.
Quero te conhecer mais.
— Vou me esforçar.
Te mostrarei tudo o que você quiser saber.
Roier de Luque, o verdadeiro, volta para casa com o número salvo de Cellbit Balanar, aquele que está interessado nele.
Notes:
desde o início, tratar a relação de cellbit e roier (o verdadeiro) seria delicado. eles tiveram um restart, praticamente, em que a confiança precisará ser não feita, mas reconquistada. para isso, cellbit precisava conhecer roier de luque, aquele que é o irmão mais novo de doied, o neto do avô doente no asilo, o ator, o garoto quebrado, ele por inteiro. essas conversas profundas são importantes, porque é quando finalmente cellbit o vê como roier, e não como aquele que ele nem sabia o nome.
cellbit achou que se apaixonou por doied de luque.
cellbit acredita que se apaixonou por um homem que não existe.
cellbit acabará se apaixonando por roier de luque.no próximo, novas verdades serão ditas.
Chapter 21
Summary:
[...] Ele o guia pela cozinha. Ele compartilha de sua receita de família. Ele abre a boca. Ele o faz rir. E Roier se apresenta como um livro aberto, deixado na palma de sua mão.
E Cellbit o lê. Letra a letra. Página a página. Capítulo a capítulo.
Notes:
esse capítulo é especial por inúmeros motivos. primeiro, porque great pretender é uma crítica social ambulante. segundo, porque construção de personagem não deve se restringir às entrelinhas.
há muita informação.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Há muitas coisas sobre o mercado da moda que ninguém te conta.
Por exemplo, contratações com agências são demoradas e extremamente burocráticas. Para desfilar, Cellbit precisa de modelos; e para encontrá-los, ele deve contatar agências. Para seu primeiro desfile, a ligação telefônica com uma agência culminou no recebimento de um catálogo digital com as fotos de todas as modelos disponíveis, separadas por alturas, pesos e cor de cabelo e pele. Cellbit se lembra de ter passado por um longo período de reflexão.
No seu mercado, a aparência é tudo. E se parece pesado para a sua marca, deve ser ainda pior para as modelos. Cellbit notou que modelos com características consideradas destoantes ou fora do padrão eram sempre deixadas para as últimas páginas. Proporcionalmente, seu cachê também era menor. O dinheiro nunca foi problema, ainda que ele estivesse beirando a falência meses depois.
Mas aquilo, na época, puxou alguma engrenagem nele. Quando as coisas melhoraram, Cellbit contratou uma pessoa para cuidar integralmente da contratação de modelos para o desfile. Sua única orientação foi “priorize os de cachê mais baixo ”.
“Modelos bem pagos possuem status, senhor Cellbit.” Ela foi honesta, e isso é algo que ele sempre apreciou nela e em todos seus outros funcionários. “Nós temos orçamento para até a terceira melhor cotada dessa agência. Alavancaria e muito as nossas vendas.”
“Desfiles não são apenas sobre dinheiro e status, embora seja um adicional que eu aprecie.” Principalmente naquela época, com seus gráficos decadentes e tudo mais. “Minha arte também envolve as pessoas que vestem minhas roupas.”
Aquilo fez um grande mousse. Houve um olhar crítico, em principal das marcas mais antigas, na sua escolha de catálogo. Algumas modelos eram tão baixas que exigiam mudanças abruptas do comprimento das roupas minutos antes do começo do desfile; outras, tão altas que vestidos soavam como camisolas. Uma delas tinha o dedão do pé enorme que não cabia em sapato nenhum, ocasionando assim o seu primeiro desfile em que todos desfilaram descalços.
Noutras vezes, suas modelos apareciam já contidas e desconfiadas. Foi assim que Cellbit descobriu o quão baixo era o buraco da moda. Como estilista e designer em tempo quase integral, a única coisa que lhe interessava saber era se os alfinetes seguraram as pregas do vestido até o final da prova de roupas. Como CEO e organizador de eventos, ele foi obrigado a provar certos baques.
— Desculpa ter aparecido assim! — uma das novas modelos, Mouse, parecia desesperada. Cellbit encarou-a de cima a baixo, mas não entendeu.
— Assim como?
Mouse apontou para o próprio cabelo. É cacheado, do tipo que possui cachos tão pequeninos que poderiam ser enrolados no dedo mindinho, pintado em um tom forte de rosa.
— Eu ia pintar ontem, mas tive um problema com o salão e precisei reagendar para amanhã. — Ela suspira, ombros caídos. — Se puder considerar…
— Eu acho que entendo sua preocupação. — Cellbit sorri. — E saiba que não me importo nadinha. Muito pelo contrário, acho que você está perfeita assim.
Conforme Cellbit foi se aproximando do mercado — a parte verdadeiramente humana dele, o que significa que ele estava interagindo com as modelos mais do que com os próprios clientes —, ele entendeu porque os catálogos mais cotados tinham as primeiras páginas tão iguais. A tendência é sempre a mesma. Magra (não muito para não parecer doente), alta (mas não demais) , brancas, cabelos longos, lisos e de tom natural, traços finos e quadris largos (mas não muito).
Modelos dificilmente terão penteados ou cabelos coloridos, já que é preferência do mercado tê-las mais in natura o possível. Boa parte de seus modelos cacheados também optaram pelas tranças. Uma delas o disse uma vez que era mais fácil assim.
“Nem todas as marcas gostam de lidar com cabelo cacheado. Muitas delas só nos aceitam pra pagar de empoderadas. A grande verdade é que boa parte nem sabe como arrumar nosso cabelo. Vê essas pontas duplas? Desfile em Milão. Estragaram meu cabelo!”
— Sério mesmo? — Mouse queria ter certeza, embora já estivesse na ponta dos pés, os olhos brilhando em ansiedade.
Talvez fosse mais fácil se ela estivesse com os cabelos pretos. Suas concorrentes pensariam assim. Ela poderia ser encaixada para mais roupas e, com isso, contratariam menos modelos que não contrastassem bem com as outras peças.
Mas esse é o pensamento arcaico, e Cellbit — e a nova Taaffaiete — prezam pela ideia de que uma roupa deve ser projetada para poder ser usada por qualquer um.
Até porque fazer roupas para um único modelo padrão de corpos e cor seria um trabalho preguiçoso. Cellbit não se importa de precisar se adaptar às modelos, desde que elas estejam ansiosas para trabalhar, animadas e esperançosas como Mouse.
— Seríssimo! — Ele pisca. — Agora, vamos ali com aquele garoto de amarelo. É Richas, nosso melhor maquiador. Se você já é divina, ele vai te transformar em um espetáculo.
Para cumprir com o novo slogan da Taaffaiete, Cellbit precisou adaptar a estrutura da empresa. Uma das coisas envolveu contratar pessoal especializado, além de reestruturar o criativo. Suas mudanças dos últimos meses deixaram ainda mais claro para a mídia o quanto ele quer se desprender da ideia de “herdeiro de Narciso Balanar” para ser “Cellbit Balanar”. Seu estilo. Sua marca. Sua cara.
É onde entra Richarlyson.
— Fala, velho! — Ele é meio corajoso, insultando o próprio chefe assim. Sua sorte é que Cellbit o adora. — Mina, adorei seu cabelo!
— Azul siena e amarelo canário, Richas. O que acha? — Uma das consequências do trabalho foi o aumento de seu repertório de cores. Muitos nomes, muitos tons, muitas variações. — Talvez um laranja…
— Vermillion?
Sabe, é por isso que Richarlyson é seu favorito: eles falam na mesma língua!
— Vermillion!
— Não é muita cor? — Mouse mordeu o lábio inferior. — Geralmente me botam pra posar de branco e preto.
— Fazem isso porque são bregas e preguiçosos, gata. — Richarlyson se levantou, os dreads azuis se misturando ao amarelo neon de seu macacão jeans. Ele voltou com uma paleta de maquiagem que se abria de todas as direções possíveis, carregando todas as cores do mundo em suas gavetinhas. — Essa gente parece ter medo de cor.
— Nossa próxima coleção é muito colorida. — Cellbit frisa. — Queremos trabalhar com diferentes montagens e paletas de cores. Richarlyson vai encontrar a combinação perfeita para você. — Ele tem certeza absoluta disso. — Quando isso acontecer, você abrirá o desfile para mim.
Mouse não tentou reprimir o chiado agudo que saiu de sua boca.
Abrir um desfile é uma responsabilidade grande, e um marco para a carreira de uma modelo. Para Mouse, principalmente. Ela é nova, tanto de idade quanto de mercado. Seu cachê era um dos mais baratos da agência. Ela esperava ser contratada para propagandas pequenas e ensaios estáticos, e não ser chamada para a Taaffaiete, de todas as marcas luxuosas do mundo.
Sempre houve um boato em sua agência, gerado por aquelas chamadas modelos prodígio. Uma prodígio era alguém que começou como ela, do zero, do mais baixo dos graus baixos, e, por algum motivo, foi chamada para uma marca grande e cresceu. De todas, 80% delas eram o que eram por conta de seu primeiro clímax: desfilar para a Taaffaiete.
“A Taaffaiete é o melhor lugar para os novatos.”
Sempre disseram, mas Mouse nunca acreditou que fosse ter a chance.
— Só se você quiser, é claro… — Cellbit foi rápido em tentar apaziguá-la. — Não vou mentir. É uma pressão diferente abrir o desfile. As câmeras vão começar mirando em você, e seu ritmo vai definir todo o andamento do desfile. O andar das modelos vai depender do seu…
— Eu quero tentar. — Mouse também é rápida em aceitar. Suas mãos estão tremendo. Ainda há esmalte azul bebê meio descascado nas laterais das unhas. Ela deve ter tirado no caminho. — É uma oportunidade enorme, eu… — Suspira. — Não posso desperdiçar.
Cellbit sorri. É um pouco nostálgico, ver pessoas jovens como Mouse entrando e saindo de sua empresa. A maior parte delas surge da mesma forma. Ainda há brilho no olhar dos modelos mais novos. Quanto maior é seu tempo de mercado, mais cansada a pessoa se parece. Ele nota o quanto trabalhar pode ser custoso para uns.
Ele espera tornar as coisas um pouco mais fáceis aos seus funcionários e contratados, ao menos.
— Não irei te decepcionar, senhor…
— Cellbit — ele a interrompe. — Só Cellbit basta. — Ele pisca e acena. — E eu confio no seu potencial, Mouse.
Os mais velhos no mercado dizem que Cellbit é o “novo filantropo da contemporaneidade”. Há muitas empresas visando a inovação e a abertura para o novo, mas poucas tão flexíveis quanto a Taaffaiete. O que por muito tempo foi apontado como um dos motivos para seu fracasso, hoje é glorificado como um passo dado rumo a uma “nova geração da moda”.
É engraçado como é. Bastam seus números subir, que os comentários mudam.
Ao se despedir de Mouse, Cellbit não tem pressa enquanto caminha pelo camarim. É extenso, barulhento e repleto de araras com roupas coloridas espalhadas por todos os lados. Há sempre um modelo acompanhado de um maquiador. Às vezes, há alguém para costurar barras ou prender alfinetes. Uma pessoa está cuidando de ajustar os sapatos. Um de seus modelos calça 43. Eles optam por sandálias.
Também há manequins. Nesse momento, boa parte deles está sem roupa. Um, no entanto, ainda está vestido. O tecido estampado, branco e preto, havia sido manchado com pinceladas de amarelo ovo feitas a mão. O pincel tinha cerdas longas e bem espaçadas. Há botões transparentes de tom quase perolado. Por dentro, o azul petróleo dá a ideia de um poço sem fundo.
Perto de todas as roupas das modelos, coloridas e de tecidos bufantes e estampas audaciosas, essa parecia simples. Ao mesmo tempo, era a mais única das peças, porque foi pincelada a mão de jeito que nenhuma máquina poderia imitar.
Era perfeita.
— É essa que vou usar?
Para a apresentação da próxima coleção — denominada CROMATOPHORS —, a inspiração de Cellbit veio, claramente, do círculo cromático e suas cores. Com todos os modelos extremamente coloridos, sua opção para se tornar mais chamativo no meio deles seria carregando a menor quantidade possível de cores. Ainda assim, ele não queria algo totalmente branco e preto, porque seria batido e óbvio demais.
“Pensei em algo abstrato. Algo que não é colorido, mas que tem menção de cor. Como se eu fosse um ponto de partida para todas as possibilidades coloridas que virão a surgir logo após de mim. Acha que consegue?”
Ele nota que, sim, Tina conseguiu.
— Ainda preciso pinçar alguns cantos. — Há vários alfinetes presos na manga de sua camisa, além de uma fita métrica descendo pelo pescoço como um cachecol fino e longo. — Mas, sim… — Ela o encara com um sorriso torto e trêmulo, alternando o olhar entre ele e a roupa. — Você gostou?
Tina apareceu pela primeira vez na Taaffaiete na quarta, e hoje é sábado. Cellbit não esperava alocar trabalho para era tão cedo, principalmente com uma coleção tão perto de ser lançada. Mas ela insistiu muito. Tipo, muito mesmo. Algo sobre querer provar seu valor.
“Eu vi do que você é capaz de fazer, Tina. Não precisa provar nada mais para mim.”
“Mas eu quero!” Cellbit descobriu o quanto Tina poderia ser teimosa e decidida quando queria. “Nunca tive a chance de trabalhar com tantos tecidos e linhas e acessórios como esses e você não tem ideia do QUANTO eu tô animada pra fazer algo. Por favor, me deixa tentar! Só uma roupinha! Uma blusa de sobreposição, que tal?”
E a grande verdade é que Cellbit é um coração mole.
“Faça a minha blusa de sobreposição, então.”
E ela fez. Essa garota é maluca. Criativamente maluca. O tipo de gente que Cellbit adora ter na empresa.
— Essa peça com certeza vai fazer parte do meu guarda-roupa.
Tem uma coisa do trabalho criativo que é uma das partes que mais diverte Cellbit: a do elogio. Nessas horas, o artista sorri tanto que dói a mandíbula, e seus olhos brilham tal qual a luz naqueles botões perolados que Tina costurou um a um. Ela ainda sapateia entre pulinhos, o que é uma graça considerando a diferença de altura entre ela e Cellbit com sua bota de salto de dez centímetros.
— Eu disse que conseguiria!
— E eu confiei! — Ele tira uma foto da roupa que, na verdade, é mais de Tina sorrindo do que da peça em si, casualmente compartilhando-a com a irmã. — Mostre para Bagi depois. Ela vai adorar.
Imediatamente, Tina cora tanto que se parece com um morango maduro. Pessoas ficam vermelhas, mas não tanto quanto Tina e sua pele de cerâmica — principalmente quando Bagi Balanar é citada na conversa.
Algo está acontecendo. Ele sabe. Ele conhece bem a criatura com quem compartilhou o útero por nove meses. Desde que Tina apareceu na Taaffaiete, Bagi tem estado mais avoada, particularmente interessada em folhear o catálogo da nova coleção, tudo isso porque a nova foto de Tina na equipe havia sido adicionada recentemente. Tão previsível.
— Eu não sei…
— Aí você aproveita e a convida para um chá. — Ele ainda dá conselhos porque, veja, Cellbit é um ótimo irmão caçula. — Aquele rosa com gosto horrível…
— De hibisco?
Elas têm até o mesmo gosto horrível para bebida.
Cellbit estremece.
— Sim, essa nojeira. Eu odeio, mas é o favorito dela.
Tina ri, embora ainda esteja tão vermelha quanto a cor de seu vestido.
— Vou manter isso em mente.
A prova de roupa termina oficialmente uma hora depois. Extra oficialmente, boa parte dos modelos continuou por mais trinta minutos para continuar beliscando do catering. Mouse foi uma delas, parecendo radiante com seu vestido laranja rodado e seu cabelo rosa e impecável.
É apenas nessa hora que Cellbit considera estar livre para ir.
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Cellbit já foi a muitos encontros antes.
Embora boa parte destes tenham sido ocasiões políticas com seu ex-noivo, ele ainda teve uma penca de relacionamentos no passado. Todos foram com pessoas do seu nicho, herdeiros de multimilionárias, filhos de bancários e empresários em ascenção. Sua irmã gostava de dizer que ele tinha um tipo: alto, prodígio e rico.
Nota-se que ela está errada.
Primeiro, boa parte de seus relacionamentos foram ficadas ou eram puramente casuais. Na maioria das vezes, ele era o convidado. Sempre para um restaurante chique, talvez um bistrô na Zona Sul ou alguma reserva para o mirante. Bagi já teve encontros no cinema, mas Cellbit nunca foi convidado para um. Seria mais difícil. Ainda que ambos sejam Balanar, ele ainda era o mais exposto dos dois.
Nos seus encontros, ambos ou combinavam de se reunir no local ou algum carro vinha para buscá-lo. É a primeira vez, Cellbit nota, que ele deverá ir para a casa de outra pessoa. Ele gostaria de dizer que está tendo problemas com o GPS pelo puro drama da coisa, mas ele mal sabe para que servem os números na caixa de marcha, então ele deixará esse enigma para seu motorista.
— Não tenho certeza se o endereço está certo, senhor Cellbit.
Eu muito menos.
Mas ele confia que Roier não o entregou o endereço errado. Ele não o faria… Faria?
Uma voz nojenta no fundo de sua mente o lembra: “Ele te enganou por meses”. Cellbit estremece. Eu não posso…
Ao mesmo tempo, seus olhos correm pelo lugar por entre o vidro. Eles estão parados rente a calçada de uma pequena praça. Há crianças brincando perto de uma fonte sem água, chupando picolés de um vendedor ambulante com uma caixa de isopor debaixo do braço. As folhas das árvores parecem secas e quebradiças. Em frente, tem uma padaria pequena de lona amarela, por onde velhinhos entram e saem.
No centro daquela causalidade toda, há um homem. Alto. Trajado de vermelho da cabeça aos pés, acenando para o carro longo, preto e fosco que já conhecia bem.
Cellbit mal nota quando sorri, aliviado.
— Acho que está certo sim. — Ele esconde os cabelos no boné e ajusta as mangas da jaqueta jeans. — Eu vou indo.
— Quando devo buscá-lo?
— Não tenha pressa. Eu o mando uma mensagem depois.
Algo o diz que não será rápido e esquecível como boa parte de seus outros encontros.
Ao sair do carro, Cellbit observa os arredores. Alguns o olharam por um tempo, mas pareciam mais interessados no carro do que nele. Não me reconheceram.
— Não fique se achando. — A voz de Roier vem, risonha. — Boa parte dos velhinhos daqui preferem jogar truco ou ver o Show da Fé do que assistir desfiles de luxo na TV.
Enquanto o conhece, ele vê detalhes em Roier que ainda não tinha visto, mas que os aprecia. O mais notável deles é o quanto ele não dá a mínima para o nome Balanar ou para tentar comprá-lo e bajulá-lo com elogios supérfluos e vazios. Não obstante, os elogios de Roier pareciam mais honestos e genuínos do que todas as outras belas palavras que Cellbit já ouviu de seus assessores. Segundo, mesmo assim, Roier quer o bajular, porém de um jeito diferente, como na roupa bonita e nova — ele esqueceu de tirar a etiqueta — no corpo e no cheiro profundo de seu perfume.
São coisas pequenas, mas que fazem seu corpo bambear. Seu coração, é claro, está tão turvo que o faz engolir em seco, lambendo os lábios. Ele os sente secos sempre que se sente nervoso.
E Roier o deixa nervoso.
(E nem sempre é ruim. Pelo contrário.)
— Eu deveria me sentir ofendido?
— Talvez. — Ele pisca. — Mas se te ajuda, eu adorei a camisa.
A camisa em questão é uma muito antiga, estampada com a logo do Scorpions. Cellbit se lembra de tê-la comprado quando tinha vinte anos. Na época, sua pretensão foi comprar uma camisa dois números maiores para poder usá-la pela vida toda.
Foi um ótimo investimento. O tecido dela é ótimo.
Ele conhece Scorpions?
— The bitch is hungry, she needs to tell…
Roier bufa uma risada.
— So give her inches and feed her well.
Ele conhece.
— Você é um cara de ótimo gosto musical pra quem me guiou pra o meio do nada.
— Em legítima defesa — E Roier realmente parece mal, coçando a nuca e desviando o olhar —, o GPS odeia minha casa. Meu endereço sempre cai nesse fim de mundo e eu nunca sei o porquê. Geralmente dou o endereço da minha vizinha pros correios por causa disso, mas pensei que seria esquisito tentar explicar porque tem um homem loiro bonito de olho azul na frente da porta dela.
Novamente, os elogios de Roier são outro tipo de elogio. Cellbit pigarreia e arruma o boné na cabeça.
— Eu imagino que ela ficaria muito feliz com a minha visita.
— Ah, com certeza. Aquela velha é uma piranha, adora dar em cima dos caras no meio da rua.
E Cellbit ri, porque Roier é tudo o que ele imaginou e não imaginou dele, e isso o deixa tão absorto que o faz se sentir criança de novo. (E é bom.)
— Estamos longe da sua casa?
— Não muito. É logo por trás daquele beco. — Apontou para o corredor estreito bem ao lado da padaria. — Já vou avisando pra você não esperar uma mansão de luxo no meio do centro da cidade. Minha casa mal aguenta três pessoas dentro dela sem abafar.
— O espaço não é problema. — E ele quer dizer isso. — Desde que eu esteja com você, não devo me importar.
Com a tosse desenfreada que assola Roier, falsamente queimado pelo calor, Cellbit se vê sorrindo.
No caminho, Roier o intercepta com histórias de sua infância.
— Aqui já teve um camelódromo uma vez. Era onde Doied e eu comprávamos brinquedos, roupas e filmes pra ver em casa.
— Camelódromo?
— É como um monte de vendinhas juntinhas uma do lado da outra. Os caras vendiam de tudo, desde meias até aparelhos de dente.
Aparelhos de camelô. Cellbit não vê como isso deve ser legal.
— E isso era regularizado?
Roier gargalha ao ponto do rosto doer.
— Ai, vou me divertir tanto com você, mauricinho.
Ora essa.
Ele também apontou os melhores lugares da rua. A padaria amarela é boa, mas muito cara para os pães de queijo duros que vende. A outra, de lona vermelha, na esquina é melhor, embora os sucos sejam ralos demais. O vendedor de picolé faz parte de um grupo organizado de vendedores que se separam em turnos todos os dias. Eles dizem não estar associados, mas estão sim.
— O que vende de tarde vende mais barato do que o que vende de manhã. É proposital, pras crianças pensarem que ele é mais legal. Aí elas ficam brincando até de tarde até a hora dele aparecer. — ele explicava a falcatrua com o olhar arregalado e dramático. — Mas nessa, elas se cansam tanto que não aguentam e compram alguns com o vendedor da manhã. No fim, tudo é lucro pra eles.
— E como você sabe disso?
— Já fui o vendedor da tarde. — Sorri. — Vendi tantos picolés que tiveram de me expulsar. Eu sozinho já ganhava mais que todos eles juntos, os invejosos.
— Deixa eu adivinhar… — Cellbit estala a língua, sobrancelha arqueada e sorrisinho nos lábios. — Flertava com as velhinhas?
— Eu nunca faria uma coisa dessas…
— Se fosse de graça…
— Mas não era! — Ele bufa. — Então, é óbvio que fiz. Olha, algumas delas eram legais. Até você cairia no papo delas.
— Mal gosto de mulheres, imagine das velhas.
— Eu também não! Mas era parte do negócio.
— Tão barato você, De Luque.
Roier o encara com o olhar mais indignado do mundo, mão sobre o peito e respiração falha presa na garganta.
— Cellbit Balanar, você é uma víbora!
— Acho que prefiro ser uma cascavel. — gargalha. — Os chocalhos são legais.
— Isso me faz pensar que seria legal uma coleção inspirada em peles de cobra.
— Eu sempre disse isso pra Bagi, mas ela nunca me escuta! Vê, eu já pensei em tudo! Eu…
Cellbit Balanar é um cara extrovertido, mas que nem sempre teve abertura para falar sobre suas criações. A maioria das pessoas finge que o escuta para manter a educação. Os grandes se importam com o dinheiro, mas não com a ideia por trás da coisa. Sempre foi sobre resultados, nunca sobre seu potencial.
— Eu pensei até em quais cobras usaria! Jibóia, com certeza. Cascavéis e najas também, porque elas são meio que a dinastia das serpentes. — Poucos o fazem querer falar tanto. — Também quero corais, mas ainda não me decidi entre as verdadeiras e as falsas.
— Eu colocaria as duas. — Poucos querem escutar tanto. — Nem precisa ser em duas roupas diferentes. Imagina uma única roupa com duas faces, mas que são tão parecidas que só um verdadeiro conhecedor ou alguém muito curioso encontraria as mudanças.
Só um verdadeiro conhecedor ou alguém muito curioso encontraria as mudanças.
Cellbit o encara de canto de olho enquanto Roier fala animadamente sobre as diferenças biológicas entre cobras corais verdadeiras e corais falsas.
Um conhecedor. Um curioso.
Qual deles eu sou agora?
— Que tipo de peça fez você estudar tanto sobre cobras?
Roier faz bico.
— O Homem e a Cobra. A ideia era fazer mini peças inspiradas em fábulas. — Suspirou. — Eu queria ser a Lebre daquela lá com a Tartaruga, mas perdi no palitinho e fiquei com a Cobra. Passei uma hora assistindo vídeos de cobras pra imitar certinho o jeitinho delas de falar. — Ele chia, alongando o “s” com a língua tremelicando entre os lábios. — Eu arrasei.
— Eu imagino. Nunca me dei bem com peças de teatro. Ainda não sabia como me portar na frente de tanta gente quando era menor. — Ele estremece com as lembranças de seus primeiros seminários. — Só participei de uma releitura de Bela e a Fera uma vez.
— E você atuou?
— Terrivelmente, sim. Acho que só me escolheram porque eu era popular.
— As pessoas adoram um rostinho bonito. — Roier pisca. — Foi o Príncipe?
Cellbit dá de ombros.
— Tipo isso.
Eu fui Bela.
Roier não mentiu quando disse que sua casa era pequena. Era talvez um pouco maior que a sala do apartamento de Doied. A tinta vermelha de fora estava meio descascada, mas o capacho na entrada foi lavado recentemente. A vizinha ao lado, uma senhora com bobes no cabelo, acena aos dois. Cellbit, meio travado, acena de volta.
— É a sua vizinha piranha? — sussurra.
— Sim. — Roier engasga com a risada. — Também é minha síndica. Ela anda feliz desde que parei de dever o aluguel.
O chão de cerâmica da casa brilha, e há um cheirinho bom de tempero caseiro no ar. Há estantes cobrindo uma das paredes da sala, ocupadas por quadrinhos e, o que o surpreende, livros de filósofos. Um saco plástico foi mal escondido no fundo, cheio de fantasias e adereços de teatro. Apoiado em um exemplar de Meditações Metafísicas, um retrato chama sua atenção.
— É você e Doied?
A foto é antiga. Uma parte do filme foi queimada, mas a maioria da imagem se salvou. Nela, dois meninos, ambos vestidos de macacões coloridos de verde e vermelho, compartilham um algodão doce enquanto posam para a foto. Os dois usam óculos. Atrás deles, há um senhorzinho sorridente, as sobrancelhas grossas compensando a falta de fios na cabeça.
— Tínhamos oito anos, eu acho. — Roier encara a foto com carinho notável. — Foi a primeira vez que fomos num parque de diversão. Era nosso aniversário. O pai queria fazer surpresa.
— Esse é seu pai?
— Meu avô… — Seu suspiro é agridoce, igualmente cheio de amor e dor. — Mas é como um pai pra gente.
Ele tem medo de perguntar.
— Seus pais…
— Em algum lugar no México, eu acho. Até um tempo atrás, eu ainda tinha esperança de que eles fossem voltar. Talvez no meu aniversário, no do abuelo, no Natal… Qualquer dia desses, sabe? — Envolto no silêncio, ele respirou fundo. — Esse dia nunca chegou.
— Te machuca? — sussurra. — Pensar neles?
— Machucava. — Sorri pequeno. — Tenho meu avô e meu irmão de volta. Não preciso mais deles.
Há muitas coisas sobre o(s) De Luque que Cellbit nunca havia entendido. Hoje, ele já nota as nuances.
Ele não viveu, mas pode imaginar. Cellbit vê o pequeno Doied cuidando da casa quando ainda era menino, arrumando a bagunça dele, do caçula e do avô velho e já esquecido. Ele vê o pequeno Roier ajudando o avô doente, aprendendo a cozinhar sozinho enquanto queima comida atrás de comida. Ao mesmo tempo, ele se vê com Bagi, os dois sentados na mesa grande da família Balanar, Narciso cantando na ponta da mesa enquanto seu pai a aplaude tão forte quanto todos os outros dias.
Ao mesmo tempo que parece próximo, ele nota que é expressivamente distante.
E percebe que por mais que tente, Cellbit nunca seria capaz de entender a dor daqueles dois.
E inegável e abruptamente, vem a ele a vontade de proteger. Seu olhar paira em Roier, meio pensativo enquanto arruma as panelas, cantarolando músicas de décadas passadas como se não lhe houvesse problemas.
Constatação Um: Cellbit admira Roier de Luque.
Ele caminha até o pequeno balcão que divide a sala da cozinha. Foram poucos passos, menos de meia dúzia.
— Eu também tenho uma foto de família. — Ele mal sente quando abre a boca, a mão já vindo tatear pela carteira em seu bolso. — Sempre a levo comigo.
— E é? — O interesse genuíno nos olhos de Roier o atinge.
Seus lábios estão secos.
A foto é tirada de dentro da carteira. Ela vive dentro do único bolso que possui zíper. É pequena, típica polaroid. Foi tirada da primeira câmera que a irmã ganhou como presente de aniversário de cinco anos. Seu pai foi quem tirou a foto, então ele não aparece. Narciso está lá, ainda jovem e saudável, seu sorriso enorme ocupando boa parte da imagem.
— Posso ver?
Os gêmeos são abraçados pela mãe, ambos com cabelos tão grandes que escorrem pelos ombros.
— É claro.
Ombros cobertos por mangas bufantes e rendadas dos vestidos feitos à mão por Narciso Balanar.
Ele não sabe quem prendeu a respiração primeiro, mas sabe que veio de ambos. Respire, inspire. Cellbit inspira tanto que se afoga do cheiro picante vindo da panela aberta no fogão. Comida mexicana.
— Mamãe sabia desde meus doze. — Seus lábios mal se abrem quando ele fala. Estão tão secos que parecem pesados. — Ela ainda estava bem quando me ouviu me chamar de Cellbit.
Cellbit não se lembra mais do porquê ter escolhido esse nome. O que se lembra é que a noite era fria e perfumada quando ele e Bagi compartilhavam ideias de nomes. Guilherme. Lucas. Roberto. Foi quando o veio esse. Nada tinha a ver com seu nome morto, o que talvez fosse o grande motivo para gostar tanto. Tinha uma pronúncia legal na boca. E combinava com Balanar.
“Cellbit Balanar.” A primeira vez que sua mãe disse seu nome, seu nome de verdade, Cellbit se lembra de estar tão ansioso e quente que poderia ter entrado em combustão instantânea no meio da sala da mansão. “Meu filho lindo.”
— Minha identidade foi retificada aos dezoito.
Narciso Balanar chamava seu filho de Cellbit porque esse era o nome dele, mas nunca teve a chance de ver o mundo chamá-lo desse jeito.
— Comecei o tratamento hormonal cedo e longe dos olhares da mídia, então ninguém nunca soube… Nem sei como não descobriram. — Bufou. — Só meus amigos sabem.
E você. A palavra morre na boca. Mas Roier a escuta.
— Porque eu…
— Eu já queria te contar antes, mas eu ainda tinha minhas dúvidas… Aí aconteceu aquela situação toda e essa vontade morreu. — Brincou com a madeira meio descascada da borda do balcão. — Nos reaproximamos e conversamos e… Eu não sei, mas… — Ele arrisca encará-lo. — Me sinto confortável com você.
E sempre foi assim, desde quando Roier era Doied. Falar com ele era diferente. Ser escutado por ele era diferente. Estar com ele era diferente. Gostar dele era diferente.
Constatação Dois: Cellbit acha que confia em Roier de Luque.
— Eu acho… — Roier solta um longo suspiro, piscando os olhos antes de soltar o sorriso mais lindo que ele já viu. — Que nunca me senti tão honrado em toda minha vida.
Roier o entrega a foto e captura uma de suas mãos, acariciando a dobra de seus dedos, desbravando as coordenadas de seus ossos, aventurando-se na curva de seus tendões. Seus olhos de chocolate o encaram como se o vissem de verdade, observados por botões azuis arregalados de admiração e afeto genuínos. Ele o guia pela cozinha. Ele compartilha de sua receita de família. Ele abre a boca. Ele o faz rir. E Roier se apresenta como um livro aberto, deixado na palma de sua mão.
E Cellbit o lê. Letra a letra. Página a página. Capítulo a capítulo.
Constatação Três: Cellbit sabe que gosta de Roier de Luque.
Notes:
great pretender sempre teve um viés dramático, embora inicialmente pendesse a comédia. gp é uma tragicomédia de atos e fases. uma relação inteira foi construída, destruída e reconstruída. também é uma crítica social ao capitalismo e indústria da arte, aos "crentes da meritocracia" e, principalmente, aos meios de mídia e comunicação. e tal como é no teatro, passamos por cenas e cenas.
estamos chegando ao clímax.
Chapter 22
Summary:
Tudo isso vale a pena, Doied? Não poder mais ir ao teatro porque as pessoas vão atrás de Tina e não podem me ver? Não poder mais andar com minha amiga nas ruas? Ter que ir a encontros disfarçado porque é perigoso para a imagem das pessoas? Não posso nem cumprimentar a nova namorada da minha melhor amiga porque ela pensa que sou outra pessoa!”
Notes:
eu até diria que estou arrependido mas é óbvio que não estou
Chapter Text
Conheça Tina: a nova artista revelação contratada pela Taaffaiete. A atual pupila de Cellbit Balanar protagonizou seu primeiro desfile profissional ao modelar uma das peças de roupas usadas pelo CEO em seu último desfile, CHROMATOPHORS, ontem (01). Veja o que diz a crítica:
— Autenticidade, identidade, emoção e essência. — A cada palavra que Roier dita, é um centímetro que se alarga seu sorriso. — São essas as palavras que descrevem a arte de Tina, graduanda de Moda que sonha em ser uma grande estilista um dia. Se é isso que ela promete ao atingir o estrelato, então, senhoras e senhores, o futuro da Moda P-R-O-M-E-T-E!
Sua melhor amiga é uma estrela!
— Amigo, nunca falaram tão bem de mim! — A dita cuja não parava de fungar, confusa entre estar tendo um ataque de rinite ou de choro. — Eu vou surtar!
O último desfile da Taaffaiete, como de esperado, foi um sucesso. As modelos estavam esplêndidas, coloridas e vestidas de forma a destacar suas características próprias. Um comentário da crítica que Roier concordava muito era o que dizia que “a Taaffaiete se adaptou às modelos, e não as modelos a Taaffaiete, e são poucas marcas que escolhem se portar assim”. Embora não houvesse padrão de altura, peso ou cor, a forma como suas roupas, penteados e acessórios se encaixavam perfeitamente com suas posturas e fenótipos entregou a harmonia autoral que a Taaffaiete tanto buscava para sua nova era.
Ao final do desfile, Cellbit apareceu com uma roupa que tinha jeito de Taaffaiete, mas não de Cellbit Balanar. As pessoas entenderam na hora que aquela peça em específico, uma jaqueta salpicada em amarelo forte e vivo, não era de sua autoria. E é claro, ele se certificou de dar os devidos créditos.
Tina apenas não estava esperando ser chamada para a passarela. Ela deveria ter suspeitado, logo com Cellbit tendo chamado-a antes para sugerir uma roupa bonita para a ocasião. Tina apenas pensou que fazia parte do bom senso de vestir bem para ver o desfile o qual você participou, ainda que com uma só peça de roupa.
— Ai, eu poderia ter feito tão melhor…
— Tina, você foi incrível. — Roier tratou de certificá-la daquilo. Deveria ser a terceira vez que repetia. Não importa, desde que Tina finalmente entenda. — Eu te garanto que o CEO de uma das marcas de moda mais influentes do país não teria usado a sua roupa se ela não fosse espetacular.
— Mas e se for por pena?
— Se fosse por pena, ele não teria te chamado para ser apresentada como sua aprendiz na frente de toda crítica do mercado da moda, de paparazzis, de jornalistas e de toda rede de televisão e, digo mais, em horário de pico!
Apesar de ter feito Tina sorrir com a constatação de que, meu Deus, ela está indo rumo à estrada da fama, também a fez chiar como um gatinho que cai em um balde de água fria.
— Isso significa que TODO MUNDO me viu na TV usando a minha maquiagem craquelada de 30 reais! — Ela ainda arregala os olhos, desesperada, cutucando as pálpebras tingidas de roxo vibrante. — Que vexame!
— Ei, você tá falando da nossa paleta de 30 reais — Roier se sentiu ofendido porque ele ama essa paleta de sombras. — E ela nem craquela.
— Mas destaca todos os meus poros!
— Tina, se você tiver meia dúzia de poros na cara, eu ainda acharia muito.
Sério, Tina tem a pele perfeita, sem poros abertos, manchas ou sombras de acne. Mas ela é extremamente insegura e preocupada em manter a própria aparência, sua rotina de skincare sendo um dos poucos mimos que mantém mesmo em épocas de grana curta.
E se ela já era vaidosa quando não tinha alguém para agradar, imagine agora que ela está na mira de Bagi Balanar.
— Quem é? — Roier ergue a sobrancelha. É a quinta vez que o celular de Tina vibra, meio dançante sobre a penteadeira do camarim. — Sua namorada?
— Bagi não é minha namorada!
Roier levanta as mãos em rendição, sorridente.
— Eu não citei nomes.
Tina bufa, mas seu sorriso ao ver a notificação entrega que, sim, era Bagi.
Elas estão se dando bem — muito bem. Quando todo o trâmite de sua contratação começou, Tina vivia enchendo-o de mensagens sobre essa mulher de rosto misterioso e voz “bonita e macia como algodão”.
“Quem chama a voz de alguém de “macia”, gatina?”
“Amigo, eu JURO! Você diria a mesma coisa se ouvisse ela falar. Ela pronuncia todas as sílabas das letras e fala umas palavras tão chiques e…”
“Deixa eu adivinhar…” Na época, Tina não havia o fornecido nenhuma descrição física ou mais elaborada de quem era a tal mulher de seus sonhos, mas Roier não precisou de muito para conseguir associar àquela figura determinada, confiante e mandona que andava pelos corredores da Taaffaiete. “Bagi Balanar?”
“SIM! AMIGO, AGORA QUE NOTEI. ELA É A IRMÃ DO SEU CRUSH, NÉ?”
“CELLBIT NÃO É… Esquece, sim, eu gosto dele.” Não há mais porquê negar. Tina sabe. Doied sabe. A esse ponto, até o próprio Cellbit deve saber. “E eles são irmãos. Gêmeos, os dois. Herdeiros do legado da Taaffaiete. Até onde sei, ela é solteira. Eu e Bagi não conversamos muito. Acho que ela não se dava bem com meu irmão.”
“Acha que posso investir?”
“Você investiria mesmo se eu dissesse que não.”
“Me conhece tão bem!”
Roier sabia que Tina soltaria alguns flertes aqui e ali, mas nunca pensou que estes seriam tão efetivos que ele chegaria ao ponto de ver Bagi Balanar visitar o teatro para buscar a amiga para um encontro.
“Ah, oi!” Quando Bagi apareceu, Tina já estava contratada há duas semanas. O Desfile seria na próxima quinzena daquele mês. A última vez que Roier tinha visto um Balanar foi na última quarta-feira, quando ele e Cellbit saíram para comer pastéis escondidos em seu intervalo de almoço. Roier estava quase se esquecendo de como era a voz de Bagi. Quase. “Você viu Tina? Nós temos um encontro hoje e ela me disse que nos encontraríamos aqui.”
Sua sorte foi estar de costas para a porta no momento em que Bagi entrou no teatro, admirada e sorridente, observando as paredes recém pintadas e as novas cortinas como se pudesse visitar todas as memórias de Tina. Era adorável. Mas ela não poderia vê-lo ou o reconheceria. Pior, pensaria que era outra pessoa.
Como Roier daria uma desculpa para a presença de Doied em um teatro local? Pior, o mesmo teatro que Tina trabalhava? Tina, a quem Cellbit reconheceu em entrevista passada que havia a encontrado em um pequeno teatro e visto naquela toda uma carreira de brilho e fama? Não, era impossível.
Naquela mesma hora, Tina saiu correndo do camarim. Ela trocou olhares com Roier, que correu sem dar chance de ser visto por Bagi. Ela teria estranhado mais se não tivesse perdido as palavras ao ver a beleza de Tina em seu vestido florido rendado costurado por suas próprias mãos.
Tudo deu certo nesse dia, mas serviu para ativar alertas na mente de Roier. De repente, estar no teatro, antes seu refúgio, não era mais seguro.
O primeiro encontro de Bagi e Tina levou a mais um par de outros. Sempre que elas se encontravam, Roier tinha de estar escondido no camarim até ouvir o barulho da batida da porta. Todas as fotos que o continham foram retiradas e escondidas em uma pequena caixa guardada no armário de vassouras. Ele ainda participava de peças, mas apenas atuava nos papéis que o obrigavam a cobrir o rosto com máscaras ou com tanta maquiagem ao ponto de estar irreconhecível.
“Onde está nossa foto?” Tina o questionou após voltar de seu terceiro encontro. “A que ficava aqui?” Ela apontou para o mural ao lado do bebedouro. Há uma foto de cada ator e atriz que já passou pelo teatro. Ao lado da foto de Jaiden e Foolish, tinha uma de Roier e Tina, abraçados e com bochechas ainda grandes e coradas. Agora, apenas havia uma de Tina.
“Tirei depois que vi Bagi indo beber água.”
“O que tem a ver?”
“Bagi não pode saber que faço parte desse teatro.” E pensar nisso doeu. “Ninguém do mundo de Cellbit, que não seja ele, pode saber que faço parte desse teatro.”
Antes, ser invisível sendo o irmão gêmeo de Doied de Luque era fácil, porque Doied nunca seria reconhecido se estivesse em lugares condizentes que sua condição social. Ninguém reconheceria Doied no mercadinho de sua esquina, ou passeando na porta do teatro, ou andando na praça velha para buscar sua encomenda ou muito menos indo ao asilo ainda com as roupas do teatro para visitar o avô doente.
O problema se tornou outro quando pessoas do mundo de Doied conheceram seu teatro. E se já era perigoso com Bagi, piorou após o primeiro desfile de Tina.
As pessoas estão vindo visitar o teatro à procura de Tina. Boa parte delas são paparazzi ou jornalistas. Muitos vem a paisana e sem os aparatos mais chamativos, acreditando que isso tornaria a garota mais confortável para as entrevistas. Em partes, eles estavam certos, e ela realmente falaria tudo para eles se não estivesse tão preocupada em estragar a vida privada de seu amigo no processo.
“Às vezes, sinto que eles estão me seguindo. É estranho ver tantas notícias com a minha foto na internet. Outro dia, tinha um fotão meu no jornal.” Ao mesmo tempo que Tina parecia maravilhada, ela também soava preocupada. “Não sei até que ponto tudo isso é bom, amigo. E também tenho medo do quanto isso pode acabar afetando vocês e o teatro.”
“Pro teatro, é ótimo. Todos os ingressos venderam porque as pessoas estão loucas para ver seus figurinos nas peças.” E Roier era sincero quando dizia que queria que sua amiga continuasse investindo na nova carreira de estilista porque, porra, isso foi o que Tina sempre amou fazer. Era o sonho dela. “Não pare de fazer o que você ama, mana.”
Roier é hipócrita.
Muito.
Os novos fãs de Tina passaram a investigar todas as redes sociais do teatro em busca de mais informações de Tina. Por segurança, as fotos em que Roier aparecia sem estar fantasiado foram ocultadas, incluindo as repostagens que Tina fazia em sua conta pessoal. Ela a manteve privada por dois dias até Bagi dizer que ela deveria deixá-la pública.
“Ela diz que preciso ter a conta pública porque isso me conecta com o público. E eu entendo o que ela quer dizer, mas também me assusta. Lá tem todas as minhas fotos, as profissionais e as mais estúpidas. Fotos só minhas. Fotos com minha família. Fotos com a galera do teatro. Fotos com você, Roier. O que faço com as nossas fotos, amigo? Não quero excluí-las. Não quero ter que te apagar da minha vida.”
Roier odiou ter que admitir, mas essa frase de Tina doeu. Não quero ter que te apagar da minha vida. Porque, sim, ele sentia que estava sendo apagado. E não era sobre fama. Roier nunca foi famoso. Mas ele tinha um irmão mais velho protetor, um trabalho em um teatro que amava e amigos incríveis com quem podia contar.
E sequencialmente, Roier os perdeu. Um a um. Tudo porque não poderia ser visto perto deles.
Ele chegou a pensar se isso valia mesmo a pena. Roier recusou a participação na próxima peça para evitar maiores suspeitas. Não sentiriam sua falta, já que o teatro, agora reformado e visitado por centenas, estava abrindo novas audições. Logo, novos atores e atrizes incríveis surgiriam e ninguém mais se lembraria do nome pequeno e esquecível de Roier de Luque, aquele mesmo que se formou com a maior nota da turma de Teatro de seu ano.
Normalmente, Roier manteria suas preocupações para si. Jaiden estava longe de sua vida, ocupada no novo emprego integral, e não conhecia bem as pessoas envolvidas para poder saber de seus problemas. Era impossível falar sobre isso com Tina, apenas a deixaria preocupada e se sentindo mal pensando que destruiu sua vida quando estava apenas querendo ser feliz com o que sempre sonhou ser. E Cellbit era uma nova e feliz constante em sua vida e eles estavam se falando muito, e se vendo muito, e era tudo lindo e maravilhoso, mas eles ainda estavam se reencontrando depois de tudo. Ademais, ele não entenderia.
Só uma pessoa poderia lhe entender.
“Ei, como as coisas estão?”
“Surpreendentemente bem.” Doied parecia mais relaxado em sua última ligação, assim como soava em todas as anteriores. Ele não apenas parece, como está diferente. Roier ainda não sabe o motivo. Ele se coça de vontade de perguntar, mas se contém. “Nossas ações aumentaram. Ainda estamos no vermelho, mas é muito melhor do que antes. Luzu prevê que sairemos do déficit no próximo mês. Se continuar assim, a Ore será capaz de pagar todos os funcionários sem que eu precise cobrir o restante.”
“Isso é ótimo!”
“É, não é? As coisas melhoraram desde a entrevista de Cellbit. Parece ser mais fácil para as pessoas confiarem na minha empresa agora que sabem que estou em bons termos com o garoto maravilha.” Ele até começou a fazer piadas. Piadas de verdade. ‘Piada’ nem deve ser uma palavra incluída no vocabulário de Doied. “Acho que as coisas finalmente estão entrando nos eixos, hermanito.”
“Que bom…”
Roier é um grande ator, e tem orgulho disso. Mas com Doied, e apenas com ele, ele finge tão mal que se sente patético.
“O que aconteceu?”
“Nada.”
“Não tente esconder algo do seu irmão gêmeo. Gêmeos têm uma conexão distinta que vai além do biológico. Você sabia disso, certo? A própria Ciência confirma. Já deve ter passado na televisão.”
“Sim, sim, eu sei, seu nerd.” Era estranho voltar a se sentir criança com Doied, do tipo de interagir com seu irmão como se ele realmente fosse seu irmão, e não alguém com quem mantém um contrato. “ É besteira.”
“Se está te fazendo mal, então talvez não seja.”
“Quem é você? Meu psicólogo?”
“Não poderia ser porque somos irmãos. Agora, pare de me distrair e desembucha.”
E quando Doied fez Roier abrir a boca, ele não calou-a mais.
“Tudo isso vale a pena, Doied? Não poder mais ir ao teatro porque as pessoas vão atrás de Tina e não podem me ver? Não poder mais andar com minha amiga nas ruas? Ter que ir a encontros disfarçado porque é perigoso para a imagem das pessoas? Não posso nem cumprimentar a nova namorada da minha melhor amiga porque ela pensa que sou outra pessoa!”
O silêncio do outro lado da linha confortou-o mais do que devia. O barulho alto da respiração de Doied indicava que ele estava pensando. Ao mesmo tempo, Roier sentia que estava fungando, por mais que tentasse esconder suas emoções.
“Você não quer mais se esconder?”
“Não é isso, eu…”
“Você sempre esteve escondendo para atender às vontades dos outros. Sei como você pensa que está fazendo isso pelo bem de quem ama, mas o quanto isso está te reprimindo? Quando foi a última vez que fez algo por vontade própria?”
O encontro com Cellbit. Aquele em sua casa. Falando sobre seu passado. Sobre suas famílias. Sobre suas dores. Compartilhando de sua camisa. Tocando suas mãos. Sorrindo com ele. Sendo honesto com ele.
“Eu…”
“Você quer ser conhecido como Roier de Luque. Aquele que é o meu irmão, que é ator e que é o melhor amigo de Tina.”
Não era uma pergunta, e Roier odeia o quanto seu irmão o conhece tão bem.
“Sim.”
━━━━━━━ ⟡ ━━━━━━━
Doied tem uma entrevista.
Quando ela terminaria, eles iriam se encontrar para ir ao asilo visitar o avô. Enquanto isso, Roier esperava em casa, aproveitando dos restos de sua garrafa de iogurte e comendo meia torrada. A entrevista começou há cinco minutos. Doied foi perguntado sobre a melhora do quadro da Ore e quais seriam os motivos para isso.
— Minha equipe está trabalhando muito para cobrir todos os furos no nosso plano financeiro. Nunca estivemos tão conectados quanto antes.
O público comenta do quão diferentes estão os discursos de Doied. Antes, eram técnicos, cultos e diretos ao ponto, recheados de palavras rebuscadas e que apenas especialistas entenderiam. Sempre foi difícil arrancar perguntas dele porque boa parte dos jornalistas não estava preparada para lidar com esse tipo de discurso. Doied nunca se mostrou como Doied de Luque, apenas como CEO da Ore.
Até agora.
— A Ore está passando por uma nova fase. Uma era complicada e cheia de altos e baixos. Ao fim, o que importa é que estamos nos reerguendo com muita comunicação e profissionalismo. — Veja, Doied até sorriu para a câmera. Vieram tantos flashes de uma só vez que até o deixaram cego. — Tenho tanto a agradecer a tantas pessoas que precisaria de uma hora inteira para agraciá-las.
— Que tal não tenta agradecer a algumas pessoas, senhor? Embora tenhamos apenas um minuto em vez de uma hora.
Doied ri um pouco e desvia o olhar. Ele encara a câmera como se pudesse ver Roier do outro lado da cidade.
— Acho que o mais justo é começar agradecendo pela minha família.
Família. Doied nunca falou sobre família para ninguém. Em nenhuma entrevista. Em nenhuma notícia. Em lugar nenhum. Os jornalistas se alertam com a oportunidade, aproximando-se para escutá-lo. Sem ver, Roier fez o mesmo, quase se engasgando com a última mordida da torrada.
Doied falaria mesmo dele?
Depois de anos o escondendo, Doied falaria que tinha um irmão gêmeo?
Roier poderia ser visto com Cellbit? Com Tina? Andar por aí sem temer pela imagem de outras pessoas? Poder ser honesto por inteiro?
Ele não sabe.
Quando Doied abriu a boca, o som do toque de seu celular reverberou pelo microfone. Ele pede desculpas e o agarra para desligar, mas suas expressões congelam quando ele lê o contato no vistor.
Roier se vê fazendo a mesma expressão, mas não é o toque do celular do irmão que ele escuta, e sim o do próprio telefone vibrando enlouquecidamente no bolso traseiro da calça.
É do asilo.
— Giulia? Algo aconteceu? Teve algum problema com a nossa visita hoje? — Roier observa quando, do outro lado, Doied se desculpa com os câmeras e atende o telefonema.
— Que bom que vocês atenderam! Eu sinto muito, eu…
E a respiração dos gêmeos para. Giulia estava chorando.
— Ele estava implorando por um pouco de água. Dizia que estava morrendo de sede, e eu fui entregar a água, mas ele estava tendo um choque e acabou engasgando com a água e tossiu tanto e… E aí ele caiu e, ai meu Deus, ele tava uma parada cardíaca e…
— ELE TÁ BEM?
— ELE ESTÁ BEM?
Roier olha para a televisão.
Doied olha para a câmera.
— Levaram ele para o hospital…
Roier corre para calçar seus sapatos. Ele tropeça nas meias e cai no chão.
Doied dá dois passos para trás. Ele tropeça no degrau atrás de si e quase cai.
— Ele não estava respondendo aos nossos chamados…
Roier se levanta. Sua perna dói. Ele mal sente a dor. A única coisa que ele vê é a maçaneta da porta. Está claro demais do lado de fora.
Doied é amparado por Luzu. Ele está sussurrando palavras doces em seu ouvido. Mas ele não as escuta. A única coisa que nota são os flashes das câmeras disparando. O brilho vem claro demais de suas costas.
— A única coisa que ele repete…
Roier sai porta afora. Ele mal nota quando gira a chave na fechadura, correndo pelas ruas sem se importar com os celulares que se viram em sua direção.
Doied é carinhosamente puxado por Luzu. Ele mal nota quando se desvencilha da multidão.
— É o nome de vocês.
Da boca dos gêmeos, sai apenas uma palavra. Repetidas vezes. Uma atrás da outra.
Pai.
Chapter 23
Summary:
Doied não liga para o que a mídia falou, fala ou falará dele. Ele só quer chegar naquele maldito hospital, abraçar seu irmão, ver seu pai e acreditar que tudo ficará bem e que eles poderão voltar para casa.
Chapter Text
Pai.
É a única palavra e pessoa que fica na mente de Doied durante o percurso até o carro. Ele tem a impressão de que há muitas pessoas no caminho. Há vozes. Elas se misturam, faladas umas por cima das outras, articuladas e notoriamente planejadas de cabo a rabo, tal qual o discurso de um típico jornalista preparado para qualquer furo de reportagem. No entanto, Doied não vê rostos. Ao menos, não algo que o lembre de um rosto.
Em vez disso, há borrões de tinta de diversas cores. Boa parte deles usam gravatas. E eles falam. Alguns empurram retângulos e cilindros em sua direção. É apenas dentro do carro que ele nota que as tais figuras geométricas eram, respectivamente, celulares e microfones.
No carro, ele se lembra da dor nos pés. Ao desafogar um de seus sapatos, Doied sente o baque contra o tornozelo. Não foi uma torção grave, mas estava inchando um pouco. Ele sabe que doerá muito quando voltar a andar.
— Como estão os pés?
Sorria. Ele tenta. E falha. Ainda sim, há gratidão em seus olhos castanhos quando ele procura pelo olhar franzido de Luzu. Foi Luzu quem o amparou no palanque quando Doied tropeçou em falso durante a entrevista. Foi Luzu quem o guiou pelo mar de jornalistas como, que doce piada para um momento de tensão catastrófica, Moisés abrindo o Mar Vermelho. Foi Luzu quem o carinhosamente pôs sentado no banco do carro, o da extrema esquerda da segunda fileira de assentos porque era o seu favorito. Foi Luzu quem passou as instruções para Ramón que, graças, nada perguntou antes de pisar no acelerador o mais fundo que a lei o permitia.
É também Luzu um dos poucos a quem Doied permite se mostrar do jeito que estava: um desastre.
— Doendo como o inferno.
Luzu suspira. Ele bate os dedos contra o cinto de segurança exatas três vezes até que o solta, indo até Doied em pequenos balançares.
E De Luque está mal, ofegante, desnorteado e perdido, mas ele ainda se importa com as leis de trânsito. Ele o encara com o olhar mais ameaçador que consegue dar. Foi inútil. Luzu o ignora, tapeando o próprio colo.
— Me dê aqui.
Doied estremece quando as massagens em seu tornozelo dolorido começam. Ele encara a paisagem por além do vidro do carro para se distrair. Levianamente, ele torce para que isso faça o tempo passar mais rápido. Talvez Ramón aprendesse misteriosamente a como teleportá-los do meio do trânsito até a porta do hospital. Ao mesmo tempo, Doied sabe que isso é impossível.
Há uma coisa estranha borbulhando em seu sangue. Doied encara os arredores. Ele sente que está sendo observado, mas nem Luzu ou Ramón estão olhando diretamente para si. Há muitos carros atrás do seu. E se seus motoristas fossem jornalistas? Ou ajudantes dos jornalistas? Ou ajudantes dos ajudantes dos jornalistas? Quantas fotos foram tiradas dele? Seu microfone ainda estava ligado quando ele atendeu a ligação de Giulia? Ah, claro que estava, ele estava no meio de um discurso quando aconteceu. A regra padrão seria ter deixado a ligação para mais tarde, talvez aguardar por um correio de voz, mas como ele poderia deixar para depois quando se tratava de um problema de família?
Logo Doied, que mal aproveitou seu tempo perdido com o irmão e o pai. Logo com ele. Ele não poderia.
Que tirem fotos. Que me gravem. Que botem minha cara em todas as redes. Doied descobre que não se importa com que merda a mídia esteja inventando sobre ele. O que podem fazer agora? A fofoca do noivo traidor já não os dá mais dinheiro. O que inventarão quando descobrirem que seu avô está em estado terminal no hospital? Talvez falarão que Doied o envenenou para se apropriar de sua herança milionária — que não existe — ou coisa parecida.
Doied não liga para o que a mídia falou, fala ou falará dele. Ele só quer chegar naquele maldito hospital, abraçar seu irmão, ver seu pai e acreditar que tudo ficará bem e que eles poderão voltar para casa.
Nós poderíamos morar juntos mais uma vez. Seu apartamento anda mesmo solitário. Mas a cobertura pode não ser segura para um homem idoso. Ele pode comprar um outro apartamento no térreo. O que eu faria com a cobertura? Alugar pode ser uma opção. Nós três morando juntos, como antigamente. Eles poderiam comer a comida de Roier, que agora deve ser bem mais gostosa do que a feita quando eles tinham doze anos. Seu pai teria uma varanda no quarto para desenhar com luz natural. Eu poderia instalar uma pequena academia no quarto de hóspedes. Roier gosta dessas coisas.
Roier. Ele mete a mão no bolso do jaleco em busca do celular. Não está aqui. No outro bolso. Também não. No da calça. Não. No outro. Onde está?
É com as mãos enclausuradas nos bolsos de tecido que ele sente a vibração. Doied está tremendo, da cabeça aos pés. Está tão frio. Mas os ventiladores do carro sempre estão no mínimo, na temperatura que Ramón sabe ser a sua ideal. Por que estou com frio? Algo escorre de sua testa. Suor. Em largas quantidades. Estou desidratando?
Um aperto forte e firme em seu pé inchado o faz despertar. Doied pisca repetidas vezes. Ele não havia notado o quão embaçada estava sua visão. Não há trânsito ao redor, e nenhum carro os persegue. Eu estava imaginando ou realmente aconteceu? Ele vê que Ramón pegou o atalho pela ruela atrás da grande avenida que circunda o hospital. Ele deve ter fugido dos paparazzis. Então, foi realmente alucinação?
A ideia de ter alucinado seus últimos quinze minutos por conta do desespero apenas aumenta seu desconforto. Seu pé treme sobre o colo de Luzu, que suspira e volta a apertar seu ponto de pressão. Doied pisca.
— Aí dói.
— Eu sei. — Ele volta a apertar e circundar a pele avermelhada com o dedão. — É bom que doa. Significa que você está prestando atenção.
Doied nota, então, o lado bom da dor física, que o distraí do caos emocional que flui entre seu cérebro e coração. Ele não reclama quando Luzu volta a pressionar seus botões, meio delicado e meio rude, agulhando apenas o necessário para que ele voltasse à realidade sempre que seus pés e mãos voltavam a tremer.
Mas nem mesmo Luzu ou seu pé inchado controlam sua ansiedade quando Doied consegue reconhecer a placa luminosa do hospital.
— Chegamos…
E Doied já tem a porta ao seu lado aberta, ainda que prefira sair pelo lado direito. O primeiro pisão dói, dói muito, mas não mais que o aperto dilacerante em seu peito. Ele pisca e, mesmo com o olhar escondido sob as pálpebras, parece muito claro.
Flash.
Como esses desgraçados sempre me encontram?
— Calma, calma… — Luzu tenta diminuir seu passo ao segurá-lo pela cintura. Seu andar lento diminui a dor de seus pés, mas aumenta sua ansiedade. Eu preciso entrar. Doied tenta empurrá-lo. — Vai acabar caindo de novo assim.
— Eles têm cadeira de rodas.
— Meu bem, seja racional…
Doied o empurra com toda a força que não tem, encarando-o com o que talvez seja o mais próximo do ódio, embora seja melhor traduzido para frustração. Muita. Completa. Acumulada. Engarrafada. Insuportável.
— Mi papá está muriendo en este hospital de mierda. — O sotaque há muito esquecido o arranha a garganta. Ele não fala em sua língua materna há anos, e ainda é como uma extensão de sua língua [o músculo]. — Perdí muchos años de su compañía, pero nada, y ni nadie, ni siquiera tú, me hará perder sus quizás últimos momentos de vida.
Não é Doied que dá o próximo passo. É Luzu, empurrando-o com pressa contra a multidão que pouco a pouco cerca o carro. Ele não o chama de volta para seu assento, nem tenta diminuir o ritmo da caminhada brusca que machuca seus pés inchados ou o convence de que deve tentar ser racional quando se trata de sua família.
E Doied agradece. Não com palavras, porque ele as sente morrendo quando já estão na ponta da língua. Mas ele procura pela mão longa e a aperta; e Luzu aperta de volta.
— Senhores, vocês precisam fazer o check-in… — Os olhos da mulher da recepção se arregalam ao vê-lo. Atrás dela, há uma pequena televisão ligada em um dos canais que transmitia sua entrevista. Ótimo. — Ah, meu Deus, é por isso que…
— Não temos tempo. — Luzu, obrigado, fala por ele. — Precisamos saber em qual quarto está Alfredo de Luque.
— Eu posso falar, mas vocês ainda precisam fazer o check-in. Sinto muito, mas são regras do hospital. — Ela notoriamente engole em seco. — Se eu abrir uma exceção, podem descontar do meu benefício e…
— Você sabe com quem…
Doied o puxa pela manga do casaco. Luzu se cala.
— Deixe.
— Mas… — Ele suspira. — Eu posso fazer o check-in dele e o meu?
— Se souber todas as informações, sim.
— Eu responderia um questionário de 1000 perguntas se fosse preciso. — Luzu fala esse tipo de coisa como se não fosse nada. Deus. Doied surtaria se já não estivesse surtando por outros motivos mais delicados. — Agora, Alfredo de Luque.
— Ele deu entrada no hospital há trinta e sete minutos. Passou pela triagem há trinta e cinco. — Ela não tarda em conferir as informações. — Ele está na Ala Crítica, primeiro portão pela esquerda, quarto de número 13…
Quando ela termina de falar tudo o que Doied precisa saber, ele começa a correr. A partir daí, suas percepções se misturam. Ele se sente dentro do carro novamente. Há pessoas passando por ele, indo e vindo de outros quartos. A maioria delas parece mal, e Doied se pergunta se ele se parece tão mal quanto elas. Elas também estariam com seus pés inchados e com o coração tão apertado quanto os dele? Também esperavam entes queridos por detrás de portas brancas, cercados por paredes brancas, pisos de cerâmicas brancas e com vidas guardadas nas mãos de pessoas de jalecos e calças igualmente brancas?
Quarto 01.
Sai uma mulher de cadeira de rodas. Um boné desbotado lhe cobre a cabeça.
Quarto 03.
Um homem sai com um recém-nascido no colo. Eles — um adulto e um bebê — fazem uma competição para ver quem é o que mais chora.
Quarto 05.
Dois borrões se abraçam na entrada da porta, até que um borrão mais branco que os anteriores puxa um deles para dentro da sala. Quando a porta se fecha, o borrão deixado para trás grita e chora.
Quarto…
Doied se vê incapaz de ler os números das placas dos quartos. Aquele branco no teto era mesmo a luminária ou um flash de câmera. E se ele tivesse caído por conta do pé torcido? Mas Doied ainda se sente andando, tem como andar estando caído? E se…
— Te achei.
Um toque. Em seu ombro. Primeiro o médio, depois anelar e indicador.
Doied reconhece.
Talvez, existam outras pessoas no corredor. E talvez, elas estejam apontando para eles agora, cochichando de sua semelhança. E talvez, há câmeras por todas as partes. E talvez, eles não tenham mais tempo. E talvez, eles não devessem estar juntos, na mesma hora, no mesmo lugar.
E Doied não se importa. Não quando tudo o que ele faz é o abraçar.
— ¿Hermanito?
E Roier também não parece se importar. Não quando ele também o abraça, apertando suas costas como se nelas pudesse se sustentar.
— Soy yo. — Ao ouvir a voz do irmão, sua visão foca. Doied nota um quarto atrás deles. Treze. — Luzu me disse pra ir atrás de você. Porra, ele nem precisava dizer… Olha, Giulia te ligou, né?
— Sim, você…?
— Eu tava assistindo na hora.
— Que merda.
— Sim, mas não importa. — Doied aponta para a porta. — O quarto.
— É o dele? Não prestei atenção em nada que a mulher me falou, só foquei em preencher o check-in…
— Ven.
Suas mãos — uma dele e outra do irmão — correm até a porta, encontrando-se na maçaneta. Eles apertam. E abrem a porta.
━━━━━━━ ⟡ ━━━━━━━
Desde que se deitou naquela cama dura e fria, as vozes vem vindo e indo repetidas vezes. A maioria delas é monótona e metódica, falando de termos científicos os quais ele não entende e não tem vontade de entender. Noutras vezes, um choro feminino vem do que parece ser um celular. Ele sente que reconhece a voz, mas sua memória falha em identificá-la. Mas as palavras, ele as entende.
Me desculpa.
Eu falhei com o senhor.
Sinto muito.
Me perdoa.
Por favor.
É irônico ter as pessoas lhe implorando por seu perdão. Notoriamente, Alfredo pensa que deveria ser ele quem teria de se desculpar.
Sua lembrança mais antiga é de sua mocidade, ele, uma enxada e um lote a ser capinado. Neste dia, uma cobra apareceu no meio da folhagem. Era inofensiva e sem veneno, mas sua patroa não gostou de tê-la ignorado e mandou que a matasse. Ele o fez, apenas porque ganharia um bônus se o fizesse. Desde lá, foi conhecido na rua como o Matador de Cobras. Alfredo gostava das cobras, mas mais ainda do dinheiro que passou a ganhar por matá-las.
Sua fama de Matador o deu boa vista com a filha de um de seus patrões. Seu patrão, empresário, dizia não ter tanto dinheiro assim, e ainda era bem mais do que Alfredo podia acumular com seus poucos trocados. A filha ainda gostou dele, no entanto. O suficiente para uma noite.
O Matador de Cobras se tornou pai nove meses mais tarde. Ele passou a implorar para que as cobras aparecessem nos lotes para poder matá-las, porque, não importando a época, cuidar de uma criança ainda era mais caro que manter um capineiro de pé.
Alfredo se lembra que era pai.
Mas ele nota, sem emoção, que não se lembra do nome do filho.
Do pouco que lembra, o filho não gostava muito dele. Não dele em si — ou talvez é o que Alfredo queria imaginar —, mas da vida miserável que tinha. Pedir mimos de sua mãe rica era mais legal. Estar cercado daquele luxo era ainda melhor. Alfredo insistia que estar perto dele significaria nunca ser picado pelas cobras, mas seu filho argumentou que ele nunca seria pego pelas serpentes se estivesse morando na casa do homem que o contratava para as matar.
Aquilo o calou para sempre.
É provável que seu filho tenha preferido se tornar uma das cobras do que estar vivendo sob o teto de seu Matador.
Seu filho teve outros dois filhos. Nesse interlúdio, Alfredo havia se mudado de país. Lá, ele não matava cobras, mas vendia jornais e emendava paredes. Desde que foi picado por uma serpente em seu último trabalho, ele decidiu que já estava cheio de lidar com cobras. Já não gostava mais tanto delas; e nem elas, dele.
E da picada até sua mudança, seu filho nunca respondeu suas cartas. Exceto pela última.
Quero que conheça sua semente, filhos de seu filho. E seu filho nunca, nunca, havia se referido a si próprio como seu filho. Venha nos ver no aeroporto.
Seu filho veio. Seus netos vieram. Seu filho se foi. Seus netos ficaram.
Em todos os anos que passou a cuidar dos gêmeos, Alfredo se lembra de ter enviado uma boa dezena de cartas e de ter comprado uma boa dezena de selos. Nem todos foram usados por ele. Ele gostava de levar a correspondência para os correios no caminho para o trabalho, e nessas caminhadas ele sempre checava as cartas. As de Doied eram as primeiras que ele via, recheadas de letra cursiva elegante e muito bem legível para uma criança de cinco anos.
Alfredo não precisava lê-las para saber sobre o que se tratava. Mas sabe que, assim como as suas, estas também nunca receberam resposta.
E ele pensa e proseia sobre, e se pergunta se o erro foi seu. Talvez ele devesse ter parado de capinar lotes infestados por cobras e investido no banco, como o pai da mãe de seu filho. Com isso, Alfredo pensou que deveria ser mais presente com os gêmeos, dar amor, carinho, companhia e sentido aos seus sonhos — até mesmo aqueles que ele, quando moço, nunca teve a chance de cultivar.
E ele foi. Com um deles.
“Menina…” ele sempre se esquecia do nome de Giulia, então se permitia chamá-la assim. Ela não reclamava; pelo contrário, sorria. “Por que meu filho não me visita?”
“Mas senhor Roier acabou de ir embora.”
“Dois. Eu tenho dois meninos.”
“Eu não sei, senhor Alfredo… Talvez ele tenha seus motivos.”
Motivos. Parecia idiota. Roier vinha todas as semanas, por que Doied não aparecia? Sua ausência se tornou tão recorrente que era doloroso forçar a mente a não esquecer de seu nome. Mas ele ainda lembrava de seu rosto rechonchudo e carrancudo que herdou desde a infância, um pouco como o próprio Alfredo era quando menor. E de como amava o verde. E de seus pratos cheios apenas de arroz. E de sua cama vazia durante as manhãs. E de seu cofre cheio de moedas. E de seus aniversários. E de seus (não) presentes.
E Alfredo concluiu que ele também não o visitaria se fosse Doied.
“É Doied de Luque o nome do seu outro filho, senhor Alfredo?”
“Sim, Menina.”
“Ele é quem paga suas contas. Eu pensei que o senhor gostaria de saber disso.”
E ainda que ele não tivesse sido o melhor pai do mundo, Doied ainda o amou. E anos depois, o visitou.
As coisas estavam finalmente certas. Alfredo nunca mais esqueceu do nome, do rosto ou da voz de seus filhos. Seus papéis de desenho acabaram pela décima vez, e seu pote de carvão já estava vazio. Seus filhos riam e sorriam e se falavam como em sua infância doce, e Alfredo quase se sentia com cinquenta de novo. Quiçá, um pouco mais novo. Com quarenta. Trinta. Vinte. Andando por aí capinando lotes e matando cobras.
— Ele tá tão pálido… — Um toque veio em sua testa. Dedo médio. Anelar e indicador. Ah… — Irmão, e se…
— Não fale. — A outra voz, ansiosa e desesperada como raramente a ouvia, veio do outro lado de sua maca. — Os batimentos cardíacos…
— O que? Não sei ler essas máquinas.
— Diminuindo…
— Chamamos alguém?
— Eu não acho que…
Há tempo.
Meus filhos. O corpo de Alfredo treme. É pacífico no vazio, mas é doloroso não o ver mais uma vez. Mis hijos. Há luz demais no quarto quando ele abre os olhos. Não é muito, mas um semicerrar. Roier o nota primeiro, correndo para segurar seu rosto no lugar. Alfredo não notou o quão torto estava na cama.
— Pai? O senhor tá me vendo? Me escutando?
— Deixa ele reto. — Doied vem para ajudá-lo, mas parece manco.
Alfredo abre a boca.
— Pé…
— Ainda consegue falar? Ah, graças…
— O que tem o seu pé?
— Torci no caminho, não é importante.
— Você andou até aqui com o pé torcido? Puta merda, Doied, isso vai inchar.
— Eu tenho cara de quem importa?
— E depois sou eu que não tenho senso nenhum de autopreservação.
— Me surpreende que você saiba o que autopreservação significa.
Da maca, Alfredo sorri. Suas costas estão macias contra os travesseiros colocados sobre sua coluna frágil. Sua garganta está seca. Ele tenta mexer os dedos das mãos e pés, mas não se desespera ao não encontrar reações.
Eles estão conversando.
Um chiado apita de sua direita. Os olhos de Doied arregalam. Roier grita.
Eles não me odeiam.
Ou não teriam vindo. Nem hoje, nem nos outros dias.
Eu não falhei com eles.
Não totalmente. Ao menos, seus filhos o amam. Eles o disseram. Mais de uma vez.
Eles cresceram tão bem.
É doloroso manter os olhos abertos, então eles os fecha. Alfredo perdeu anos de sua vida, mas essa memória ele tenta guardar o tanto quanto pode, mesmo quando todas as suas anteriores morrem tão rápido quanto levava para matar uma cobra.
No vazio, há poucas coisas as quais Ele se lembra.
Um dia, Ele teve um nome. Ele não se lembra qual era.
Um dia, Ele matava animais. Ele não se lembra quais eram.
Um dia, Ele teve uma casa. Ele não se lembra como ela era.
Um dia, Ele pintou retratos. Ele não se lembra de como era seu traço.
Um dia, houve uma Menina que cuidava dEle. Ele não se lembra do nome dela.
Um dia, Ele teve um filho.
Não .
Um dia, Ele teve dois filhos. Eles o amavam. Ele os amava.
Um dia, Seus filhos o viram morrer.
No último dia, Seus filhos são a única coisa que Ele morreu sem esquecer.
Notes:
quando planejava esse capítulo, um dos meus maiores empaques foi definir quem narraria a primeira parte. decidi pelo doied porque ele é quem acaba tendo o maior histórico de pensamento ansioso dos dois e de quem (surpreendentemente, talvez) é o mais nervoso perante uma situação de estresse, principalmente quando envolve família. eu queria deixar claro o embate mídia/família na parte dele, e como as prioridades deles estão atualmente muito bem definidas.
isso vai ser importante futuramente porque, vocês sabem, toda ação (comigo) tem consequências.sobre o abueloier, inicialmente ele não era planejado para ter um papel tão importante assim. ele é um dos casos de personagens que crescem além do que estamos esperando, o que o torna tão legal. ele nunca fala sobre o passado, porque é, geralmente, algo que ele esqueceu. ele é um personagem com Alzheimer, e foi interessantíssimo escrever algo sobre pela primeira vez. não era o foco da história principal, mas era o da história dele. esse capítulo tem quase quatro mil palavras, mas são as últimas cem as que mais doeram.
(ainda sobre ele, suas percepções são muito sutis. note como ele acaba por mimar o gêmeo que tinha o sonho mais próximo do seu quando menor [o artista]. é interessante, no entanto, o quanto o modus operandi dele e a forma de pensar e de como a narrativa dele é estruturada lembram muito mais o de doied que o de roier, incluindo a parte da culpa.)
Chapter 24
Summary:
Esses estranhos dizem que se importam; que se importam com ele, com a morte de seu avô, com o luto, com sua situação financeira, com tudo. Mas Roier sabe que estão mentindo. Mentindo que se importam com ele. Mentindo que se importam com seu avô. Mentindo que se importam com seu luto. Mentindo. Sobre. Tudo.
Meu pai está morto.
E tudo o que a mídia quer é arrancar algo de seu sofrimento.
Notes:
esse capítulo foi o mais difícil de escrever até agora. quem me acompanha há um tempo sabe que tenho uma relação a parte com o luto (tenho até um álbum sobre isso), e lutos envolvendo avós me afetam de forma ainda mais específica. em muitos momentos, tive que tomar um tempo para respirar entre os parágrafos. não sei se isso torna as coisas mais estranhas ou ainda mais sensíveis. mas sei que derramei umas lágrimas entre umas palavras e outras.
boa leitura.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Meu pai está morto.
As lojas continuam abertas como sempre estiveram. A mesma velhinha virá todas as quartas e sextas comprar pães doces e sonhos para seu neto. Suas encomendas continuarão a ser entregues no meio da praça, ainda que ele tenha mudado o complemento do endereço mil e uma vezes para que o entregador entenda que ele não mora no meio da rua — nunca adiantou.
Meu pai está morto.
O teatro recebe mais fregueses do que nunca. Os ingressos acabam logo no primeiro dia. Não há mais rachaduras nas paredes, nem rejunte descascado no chão e o bebedouro está consertado e cheio de água gelada e fresca. As cadeiras também foram reformadas. Pela primeira vez, Tina estreia em uma peça como atriz, apesar de ainda preferir estar atrás das câmeras apenas cuidando das roupas e maquiagem.
Meu pai está morto.
Suas redes sociais estão tomadas por mensagens e marcações de estranhos. Alguns se dizem jornalistas, com mensagens imensas que contém seu nome completo, data de nascimento, maternidade onde nasceu e todas as escolas onde estudou. Roier não sabe dizer como essas pessoas sabem disso, porque ele mesmo esqueceu dessas informações com o tempo.
Meu pai está morto.
Esses estranhos dizem que se importam; que se importam com ele, com a morte de seu avô, com o luto, com sua situação financeira, com tudo. Mas Roier sabe que estão mentindo. Mentindo que se importam com ele. Mentindo que se importam com seu avô. Mentindo que se importam com seu luto. Mentindo. Sobre. Tudo.
Meu pai está morto.
E tudo o que a mídia quer é arrancar algo de seu sofrimento.
O velório de Alfredo de Luque é pequeno, simples e o mais privado que a mídia permite. Nenhum horário foi divulgado, e mesmo o nome do velado foi trocado por um pseudônimo para evitar maiores alardes. Ainda assim, eles descobriram em algum momento. Ao menos, é o que a última mensagem de Ramón em seu grupo privado diz. Ele mandou uma foto onde um grupo de paparazzi se esconde atrás de uma árvore próximo ao local do enterro. Eles têm câmeras e microfones de última geração e nenhuma vergonha na cara.
— Esses parasitas… — o sussurro de Doied se perde no caminho de pedregulhos até o túmulo de Alfredo. — Não vão parar até nos ver surtar.
— Recomendo que nenhum de nós fale algo quando chegarmos no túmulo. — o segurança contratado, Etoiles, murmura ao ladear a retaguarda do pequeno grupo. — Eles são especialistas em distorcer o que os outros dizem.
Nem precisava dizer. Roier engole em seco. Ele dará a desculpa que é a gravata que está apertando seu pescoço, mas a grande verdade é que ele tenta conter a vontade de voltar a chorar. Ele já desidratou o bastante na última noite, e ainda não parece o suficiente. Nunca vai ser. Sinto que não consigo falar uma palavra coerente.
Roier dá uma espiada no irmão. Por fora, Doied parece o mesmo de sempre, com a única exceção da vermelhidão meio aparente na base dos olhos. Ele anda com ombros e coluna eretas como um verdadeiro homem de negócios. Sua roupa é nova e bem passada. Algo sobre Doied é que ele raramente usa roupas pretas, geralmente preferindo as marrons. Mas hoje, sua camisa, colete, paletó, gravata e sapatos são pretos.
É nos detalhes que Roier sabe que seu irmão está tão miserável quanto ele.
Enquanto seus sapatos chutam as pedrinhas soltas do chão, Roier estende a mão para Doied. Seu irmão pisca para a movimentação atípica. Ele até parece suspirar. São vinte segundos que Doied precisa para frisar os lábios e segurar sua mão.
Eles caminham lado a lado até o final da colina. O túmulo de seu avô está isolado ao redor de um corredor de arbustos cheios de flores cor de rosa. Há uma placa de ferro presa ao mármore com seu nome completo. Alfredo de Luque, cujas mãos desenham o que olhos não são capazes de ver. Por pedido de Doied, o único auto retrato de Alfredo foi colocado no lugar de sua foto, emoldurado atrás em uma cúpula de vidro para proteger do sol e da chuva.
— Ele se desenhou com sobrancelhas enormes… — Roier bufou uma risada, sussurrando. Sua voz falha nas últimas letras, quase fanha. — Nunca tinha notado o quanto eram grandes.
— E com uma carranca de velho rabugento. — Doied completou com o fantasma de um sorriso. — É a cara dele.
O enterro, assim como o velório, é confraternizado apenas pelos gêmeos, o segurança e Giulia. A garota parece péssima, chorando descabelada a cada cinco minutos. Alfredo foi seu primeiro cliente no asilo. Eles se conheciam há quase meia década e se viam todos os dias úteis da semana.
— Às vezes, era difícil esquecer que eu não era nada dele. Sei que é errado, mas eu me sentia como neta dele também.
— Não acho errado. — Roier a abraça antes que ela desabe mais uma vez. É provável que apenas tenha a incentivado a chorar ainda mais, agora molhando as costas de seu terno barato. — Você cuidou dele como se fosse seu avô, e nós somos muito gratos a você por isso.
— Se você precisar de algo, qualquer coisa, você tem meu número. — Doied, não muito adepto ao toque físico, se limita a um manear de cabeça. — Eu e a Ore estamos de braços abertos.
Giulia, já baqueada, quase se acabou de tanto chorar.
Ela foi a primeira a se retirar do local do enterro. Os gêmeos esperaram mais um pouco, aguardando o poer do sol para ir embora. Enquanto isso, se dividiam entre contar bem me queres e mal me queres com o buquê de flores que trouxeram para espalhar ao redor da cova. As flores eram vermelhas e muito, muito miúdas. Quando eram pequenos, os gêmeos roubavam algumas do jardim em frente a escola para arrancar o caule e chupar o néctar da flor.
— O velho odiava. — Roier ri com a lembrança do ralho que receberam do avô quando ele descobriu. — Tínhamos quantos anos? Nove?
— Oito anos e seis meses. Demos a desculpa que era para um experimento de ciências e que tínhamos de investigar as plantas que mais gostávamos. — Doied é quem fica com a última pétala. Bem me quer. — Ele apareceu na escola no dia seguinte pedindo para conversar com a professora. Ele era maluco.
— Sempre foi.
Às vezes, eles se esqueciam do velho Alfredo enérgico, mandão e cabeça dura. Ainda existiu muito desse homem naquele que os acompanhou nos últimos dez anos, mas muito dele também se perdeu. Houve uma época em que Alfredo começou a esquecer das palavras em espanhol. E era uma espécie de tradição falar na língua materna quando estavam em casa, apenas entre os três.
— Hasta que no me contestó cuando le pregunté cómo le iba en el trabajo ese dia. — Quanto mais se aproximavam do carro, mais o tom de voz de Roier baixava. Ele estava praticamente sussurrando. — Acho que foi assim que a gente percebeu.
— É… Depois disso, foi gradual.
Aos poucos, Alfredo foi se esquecendo do que gostava. Ele parou de ler o jornal e de fazer as cruzadas. Dois anos depois, mal se lembrava do espanhol que o acompanhou até a idade adulta. No terceiro ano, esqueceu dos nomes dos próprios pais. No quarto, esqueceu que já havia trabalhado, dos antigos amigos, dos velhos amores, do filho que o deixou.
As poucas coisas que Alfredo se lembrava vinham dos gêmeos. O que gostavam de comer, o que gostavam de vestir, quais desenhos preferiam assistir, cores favoritas, manias, medos, vícios de linguagem, como Roier deixava o cabelo jogado para a esquerda enquanto Doied o mantinha milimetricamente dividido ao meio.
— Eu não sei, Doied. — Roier funga. Ele se abraça em meio a tremedeira. Está frio. Ao menos, se sente. Por dentro. — Não sei como vou fazer sem o pai.
Um flash branco vem diretamente em seu rosto. Roier pisca, cegado brevemente pela claridade. É tudo tão branco. Branco como hospital. Hospital como a maca fria. Fria como a pele de seu pai morto.
— Respira… — um sussurro vem atrás de suas costas, seguido de um toque suave no ombro. Roier pisca. Ele vê as luzes novamente, mas ainda se sente bambear. Algo bate na sua cintura. É a porta do carro. — Eu vou abrir e você entra.
Roier mal sente quando a porta abre ou quando ele entra e senta no assento fofo. Ele apenas se situa no espaço quando Ramón já está dando a partida, Etoiles já está sentado no banco da frente e Doied ainda está do lado dele, tapeando seu ombro com delicadeza atípica.
— Paparazzi?
— Acamparam perto do carro sabendo que passaríamos por lá em algum momento. — Etoiles bufa, a voz carregada de sotaque francês bruto e enraivecido. — Nenhum encostou em vocês, mas tiraram algumas fotos.
— Vou comprar o silêncio deles. — Doied arranha o couro do cinto de segurança com a mão livre. — São uns parasitas, mas ficam quietinhos com a negociação certa.
Isso é bizarro. Roier respira fundo. Ele ainda se sente meio tonto. A garganta também parece seca. Doied não parece nada afetado. Antes, ele acreditaria que seu irmão tinha superpoderes ou que simplesmente era frio e insensível demais para se importar com qualquer coisa ao seu redor. Agora, vendo-o teclar furiosamente no celular em busca do contato dos paparazzis que o seguiram por todos o enterro e funeral, Roier sabia que Doied simplesmente estava acostumado com essas coisas já enraizadas em sua rotina.
Simplesmente não o afetava mais porque ele já sabia que aconteceria.
Foda é pensar que eu já quis viver isso. Receber atenção e ser famoso, do tipo que atrairia jornalistas e paparazzis a cada andar e respirar seu. Contudo, agora que sentia isso na pele, Roier só conseguia se sentir claustrofóbico e enjoado e com vontade de se esconder no abraço do pai.
E Roier talvez ainda quisesse ter a fama e atenção que almejava quando pequeno, mas não pelo motivo, lugar e hora errados.
━━━━━━━ ⟡ ━━━━━━━
Duas e meia da manhã.
Roier bufa ao ver o horário. Seu celular está totalmente carregado. A cama foi arrumada pela terceira vez no dia. Ele lavou toda a louça. A despensa foi reorganizada. As coisas na estante foram limpas e espanadas. Não há pó no chão ou teias de aranha nas paredes. E mesmo esses tanto de atividades não foi o suficiente para o fazer pegar no sono.
E Roier sente sono. Seus olhos ardem e seus braços parecem tão molengas quanto mousse. Ele tentou dormir um par de vezes, mas se levantou no susto após os primeiros cinco minutos de cochilo.
O pesadelo que o assola é sempre o mesmo.
Branco. Hospital. Branco. Maca. Branco. Panos. Branco. Frio. Branco. Câmeras. Branco. Morto.
Na primeira vez que acordou, Roier chegou a alucinar um pouco. Ele sabia que estava acordando de um pesadelo, mas se esquecia em que momento aquilo começou. Suas memórias se misturaram brevemente. Será que ele ainda estava dormindo? Abuelo morreu mesmo ou foi só um sonho? Sua memória sempre o pregou peças, poderia ter sido mais um evento tragicômico. Ele quase chegou a ligar para Doied para contar sobre seu sonho maluco e como seu inconsciente gostava de tentar vê-lo infartar.
Até passar pelo balcão da cozinha e encontrar a certidão de óbito de Alfredo e ele notar que de todos seus pesadelos naquela noite, o que ele mais odiou foi o único que aconteceu de verdade.
Então, ele não conseguiu mais fechar os olhos em paz. Havia um pouco de Alfredo em todos os cantos da casa, e o velho nem ao menos já havia pisado por lá. Mas ainda há fragmentos dele no casaco que Roier usou para ir às visitas no asilo; no tênis velho já sem cadarço que o abuelo tentou e tentou ensiná-lo a amarrar; nas maçãs da geladeira, a fruta favorita dele; na foto 3x4 do velho presa ao retrato de formatura de Roier, tirada para o processo de cadastro no asilo — o pacote promocional vinha com quatro fotos pelo preço de uma.
Como viver sem meu pai?
Roier não sabe.
Roier não queria saber.
Merda.
Seu telefone toca e ele vai resmungando do quarto até a sala. O aparelho está bem escondido entre as almofadas do sofá. Roier não sente vontade de atender e ter que falar com outras pessoas, mas algo dentro dele ferve ao ver o contato no identificador.
Ele treme ao aceitar a ligação.
— Cell?
— Ai, perdão. — a voz de Cellbit soava enérgica demais para o horário. Roier se pergunta se ele estava se enchendo de café durante a madrugada como sempre fazia durante uma onda de inspiração. — Te acordei?
— Eu nem dormi…
As palavras morrem com um quê de vergonha. Roier morde a ponta da língua. Ele não queria encher Cellbit com seus lamúrios de madrugada. Geralmente, era ele quem era o mais otimista e ombro amigo e suporte incondicional das pessoas, não aquele que precisa de ajuda.
(Ah, é mesmo. A pessoa que Roier mais cuidou durante toda sua vida está morta. O que ele deveria fazer agora? Ele não atua mais, mal sai de casa e agora não possui mais um pai.)
— Eu imagino… Eu vi as notícias.
— Meio que todo mundo deve ter visto, né? — Roier suspira. A ideia de parecer menos miserável não está dando certo. Ele engole em seco. — Digo, tinham paparazzis lá…
— Era pra ser uma coisa privada, íntima, mais especial. Você não merecia passar por isso. — Cellbit soa frustrado, o som de suas botas ecoando pelo chão de madeira de seu escritório. Como pensei, pico de inspiração. — Ninguém merecia passar por isso.
Ah.
Cellbit sabe como é passar por isso. Uma vontade talvez egoísta surge no âmago de Roier. Ele seria capaz de entender. Ele rapidamente a afasta. Não, é injusto relembrar ele dos pais mortos.
— Eu…
— Você quer conversar sobre?
— Isso não te incomoda? Tipo, não te machuca lembrar…? — Pela primeira vez, Roier sente que as palavras escapam. Frágil, ele se senta na ponta do sofá, notando o assento ainda meio úmido do suor remanescente de seu último pesadelo. — Porque eu mal consigo fechar os olhos sem lembrar dele e do hospital e do túmulo e…
— A dor nunca vai embora, Roier.
Do outro lado da ligação, Cellbit deve estar se sentando em sua cadeira de escritório. Ele começará a girar impulsionando seus pés na madeira da escrivaninha, e olhará para as nuances do teto enquanto se lembra de seus tempos de criança.
— O luto é uma cicatriz que te acompanha. — Cellbit sussurra do outro lado. O tema é mórbido, mas sua voz ainda parece acalmar os ânimos ansiosos de Roier. — Quando a mãe se foi, meu pai dizia que a via em todos os cantos da casa. Ele começou a dormir no quarto de hóspedes porque tinha crises de choro dizendo que a via deitada e imóvel na cama.
— Deus…
— Bagi ficou não verbal por uma semana. Ela perdeu uma entrevista de emprego porque não conseguia abrir a boca sem chorar. E você deve conhecer minha irmã o suficiente pra saber o quanto isso a afetou.
Roier lambe os lábios. Ele sente sede.
— E você?
— Eu?
— Como foi pra você? O luto...
— Eu queria parecer ser um cara forte. Meu pai estava enlouquecendo, minha irmã ficou muda e a mídia não largava o meu pé. Eu simplesmente desliguei. — Cellbit estala a língua. — Eu aparecia na mídia com a cara cheia de maquiagem pra melhorar meu rosto patético e me enchia de café pra não dormir. Fiquei semanas insone porque eu fechava os olhos e acordava com a voz da mãe me ralhando por negligenciar a minha saúde.
— E ela tava certa… Bem, a sua memória dela tava, ao menos…
— Ah, ela ainda age igualzinho na minha memória! Ainda ouço ela brigar comigo sempre que faço alguma besteira, tipo quando discuto com Bagi sobre quem vai comer a última bolacha do pote da cozinha.
A casualidade do discurso de Cellbit, que segundos atrás falava do luto como um sábio das montanhas, traz o desenho de um sorriso ao rosto inchado de Roier.
— E quando você superou a coisa toda?
— Acho que ninguém supera de verdade. Foi só um ano depois que o pai morreu que eu comecei a desacelerar a voltar a andar no meu próprio ritmo. A notícia já tinha esfriado pra mídia, então curar minhas cicatrizes sem aqueles urubus me mordendo facilitou as coisas. — Novamente, Roier ri. Cellbit dá uma pequena gargalhada em resposta. — Ah, sei que eles estão sendo pagos pra fazer o trabalho deles, mas, Cristo, que coisa insuportável.
— Nem me fale. Um deles jogou o flash bem no meio do meu olho. Eu fiquei cego!
— Já me ocorreu tantas vezes que passei a esconder óculos escuros em todos os bolsos dos meus ternos. Tenho uma coleção deles.
Cellbit começa um monólogo das suas melhores estratégias para burlar a mídia. Enquanto o escuta, Roier pisca e sente seus olhos pesarem tanto quanto seus pés e mãos dormentes. Ele resmunga algo para uma pergunta de Cellbit sobre a melhor cor de uma calça de flanela, o qual ele espera sinceramente que tenha parecido mais humano do que soou em sua cabeça.
— Tá com sono?
— Há horas. — Ele boceja. — Mas nunca consigo dormir mais de cinco minutos.
— Me ouvir falar ajuda?
Ele nem precisa pensar duas vezes para chegar em uma resposta.
— Sim…
— Bom saber que te dou sono.
— Não é bem assim…
Cellbit gargalha, o desgraçado. Ele está se divertindo às custas de um homem cansado!
— Eu sei, doce. Você sempre pode me ligar quando não conseguir dormir. Sabe que eu não me aquieto cedo.
— Mas deveria…
— Hn, é! Mas é coisa pra depois. Agora, deixa eu ver… AH, eu vou te contar da minha fase rebelde do ensino médio! Eu participava de um grupo gótico no colégio e todos tinham o cabelo colorido. Fui inventar de pintar todo o cabelo de vermelho pra combinar e tive o corte químico mais fodido de todos os tempos! Fiquei careca por meses!
E é ouvindo os relatos da adolescência conturbada de Cellbit que Roier suspira, fecha os olhos e finalmente dorme.
━━━━━━━ ⟡ ━━━━━━━
As conversas na madrugada com Cellbit se tornaram frequentes. A partir da terceira, se tornaram chamadas de vídeo. Em todas, Cellbit estava com uma xícara de café e algum croqui em mãos, e em apenas uma ele não estava trabalhando no escritório (e apenas porque era no domingo!). Com seu papo sobre luto ficando frequente, Roier se viu meio nervoso para descobrir como ele reagiria ao próprio luto.
Ele descobre na próxima segunda, quando Doied o liga para irem juntos ao asilo para buscar as antigas coisas que Alfredo deixou.
— Não sei se consigo entrar no quarto dele. — É a primeira coisa que Roier fala ao entrar no carro. — Será que ainda tem o cheiro do perfume velho dele? Arrumaram a cama amarrotada dele? E os desenhos, hermano? Eu não vou conseguir olhar…
— Eu também não me sinto pronto para encarar a morte dele, hermanito. — O suspiro pesado de Doied parece áspero. Claro, suspiros não têm textura, mas esse de seu irmão sim. Tudo em Doied retrata aspereza e rigidez, desde o piscar de seus olhos até o mínimo movimento dos dedos das mãos. — Mas… você também não tem vontade de lembrar das coisas boas?
— Coisas boas? — As palavras soam amargas. Roier crispou os lábios. — Ele tá morto, Doied. Nunca mais vão existir coisas boas.
As palavras doces de Cellbit são frescas, claro. Mas mais do que elas, as cicatrizes de Roier — por seu corpo, alma e mente — são tão recentes que parecem fervilhar.
Doied não o responde verbalmente, apenas oferece a mão para Roier apertar. Ele aceita, pressionando seus dedos fortemente contra os do irmão sempre que sua mente volta às suas lembranças com o pai, o que ocorreu a cada cinco minutos ou a cada momento em que Roier olha pela janela do carro e percebe que estão chegando mais perto do asilo.
Há seguranças no asilo formando uma barricada que envolve o carro pela frente, pelas laterais e pela parte de atrás. Em vez de deixá-lo tranquilo, Roier se vê ainda mais ansioso. Como se sentir bem sabendo que agora ele precisa de uma escolta de seguranças para visitar as memórias de seu pai morto? Até aqui os paparazzis viriam em busca de um furo? Em um asilo? Claro que viriam. Eles os seguiram no cemitério!
Roier respira fundo.
— Isso tudo é mesmo necessário?
— Só até a mídia nos esquecer. — Doied também não gosta do tratamento. Ele se sente como uma espécie de príncipe que precisa ser protegido ou coisa do tipo. Ele queria ser apenas um banqueiro, não uma figura pública. — Eles estão loucos em busca de umas fotos nossas melhores. As últimas que tiraram ficaram horríveis…
Essa é a desculpa podre que deram depois que você comprou todas as fotos deles por milhares de reais. Roier viu algumas. Estavam tão bem definidas que ele viu os poros abertos de sua pele em conjunto com seus olhos inchados de choro.
O mesmo recepcionista de sempre os cumprimenta com o mesmo sorriso que mostra todos os dentes. Há só uma coisa diferente.
— A chave do quarto já está na fechadura… Não temos horário para fechar. — Ele encara-os com uma expressão de pena que embrulha o estômago de Roier em oito partes. — Fiquem o tempo que precisar.
Ao mesmo tempo que Roier gosta da gentileza, ele odeia sentir que estão pisando em ovos falando com ele. Ele não quer ser tratado com pena. Sim, seu pai morreu, porque pessoas morrem. Não precisam falar com ele como se estivessem lidando com os problemas de uma criança de seis anos.
(Os únicos que parecem entender isso são Doied e Cellbit. Os únicos que podem o entender.)
— Escute, se alguém aparecer aqui e perguntar por nós, qualquer um, diga que não nos viu. — Doied, o paranóico, já deixa seu recado. — Não deixe ninguém estranho entrar por aquela porta.
— Principalmente se eles tiverem câmeras e microfones — Roier completa o relato. — E cardigãs e casacos marrons.
De todos os paparazzis que Roier se lembra de ver, a maioria usava roupa marrom. Deveria ser uma espécie de uniforme combinado entre eles.
É já longe da recepção que Roier se lembra que não sabe qual era o quarto do avô.
— Você lembra…?
— Acho que nunca vou esquecer.
Doied os guia até o quarto. Eles ainda demoram alguns minutos para entrar, apenas observando o branco da porta. Ainda há um aviso de porta pendurado na maçaneta com o dizer “cuidado, rabugento na área!” com um homem enraivecido desenhado num traço que lembra muito o do seu velho. Segurá-lo nas mãos faz Roier tremer.
— No três? — Doied o cutuca.
Roier assente. Supere seus medos.
— Um.
— Dois.
— Três — Eles abrem a porta.
Imediatamente, as memórias tomam conta de Roier. Ele vê Alfredo em todos os lugares: arrumando os desenhos nas paredes, amaciando seu travesseiro que ele sempre reclamava de estar duro demais para suas costas, tirando os pelos soltos de suas pantufas, arrumando os vasos de planta no batente da janela, caminhando pelo quarto para movimentar as pernas, comendo na poltrona enquanto ouvia sobre o dia dele.
Tudo era tão igual. Ao mesmo tempo, era diferente, porque apenas bastou Roier piscar para que todas aquelas cópias de Alfredo sumissem de seu campo de vista e dessem lugar ao quarto abandonado, branco e frio.
— Nunca reparei o quanto aqui era branco.
— Não mexeram em nada. — Doied parecia maravilhado, passando as mãos pelas paredes e móveis. — Até as pantufas estão no mesmo canto que ele deixava…
— Eu que dei pra ele de presente de aniversário. — Roier não consegue impedir a risada. — Comprei o tamanho errado. Era pequena demais, mas ele nunca me deixou trocar.
— O estojo de nanquim que eu dei para ele também está aqui. — Ele brinca com as canetas jogadas na cômoda ao lado da cama. A folha tem tinta seca borrada e sem contorno. Alfredo deveria estar desenhando quando a coisa toda aconteceu. — Quando ele usou a primeira vez, colocou força demais e a tinta explodiu pela folha toda. Ele xingou tanto.
— Eu daria tudo pra ver isso. Adorava ver o velho xingar.
Os irmãos ficam horas desbravando memórias. Cada pequena coisa que encontram é motivo de conversa e choro compartilhado no silêncio do quarto. Eles se unem para tirar os desenhos das paredes e juntam todos em pequenas pilhas. Os de Giulia ficam separados no canto. Eles pediriam para que alguém entregasse-os a ela mais tarde.
— Acho que nunca te contei.
— O que?
— Quando visitei o abuelo e eu vi a quantidade de desenhos que ele tinha feito de você, eu fiquei tão… — Doied morde o lábio inferior, incerto com as palavras. — Enciumado. Não sei explicar. Tinham tantos seus e de Giulia e nenhum meu. Sei que a culpa tinha sido minha por me ausentar por anos, mas ainda quis culpar outra pessoa.
— Eu não posso julgar. Fiz o mesmo quando apareci aqui naquele dia da nossa briga no corredor. — Roier faz careta ao lembrar. — Eu ouvi ele te chamando de filho e, nossa, eu surtei…? Na minha cabeça, eu era o único filho dele. Eu sinto que agi como uma criança birrenta.
— Eu também não fui muito maduro na época.
O silêncio volta enquanto eles guardam os últimos papéis. Roier tem quarenta e cinco desenhos e Doied, quinze. Outros dez continham os dois, e eles combinaram de que cada um ficaria com cinco.
— Por que um de nós tem cadarços desamarrados?
— Esse é você, idiota. Você nunca aprendeu a amarrar os sapatos.
— Então você é aquele segurando cartas?
— Eu e abuelo jogávamos muito nas nossas visitas.
— Eu nunca aprendi as regras desse negócio. Eu só era bom no xadrez.
— Podemos fazer um acordo, então. Você me ensina xadrez e eu te ensino baralho.
— Trato feito.
Eles apertam as mãos que nem os caras fazem nos filmes, o que os fazem rir como idiotas. É na mesma hora que uma brisa vem pelas frestas da janela e acaricia seus rostos inchados pelos choros recentes. Parece estúpido, mas Roier se sente repentinamente abraçado pelo vento.
— Será que existe vida após a morte?
— Eu não sei. — Doied diz sinceramente. — Mas se existe algum lugar para ele estar, espero que seja bom para ele descansar. O velho merece.
— É…
Roier pisca e funga. Ele gostaria de ter sido um filho melhor. De ter sido mais presente, mais carinhoso, talvez trabalhado um pouco mais para dar todo o luxo que o velho merecia desde cedo. Ele deu o que acreditava ser seu melhor, mas ainda parecia insuficiente. Agora, tudo o que Roier sentia era o vazio e a incerteza. E se eu fosse um pouco melhor do que o meu melhor?
— Está pensando demais.
— Quem é você pra me acusar de pensar?
— Uma certa pessoa vem tentando colocar juízo na minha cabeça. — Ele o cutuca na testa. — Pare de pensar no que poderia ter feito e aproveite o que temos agora.
— Mas o que a gente tem?
— Você ainda tem o teatro, sabe, não precisa desistir de tudo o que ama só porque duas dezenas de desocupados andam tirando fotos de você. — Doied começa a ditar como se sua vida fosse uma lista de compras. — Seus amigos. Você tem Cellbit. Eu tenho Luzu e a Ore. E… — Ele suspira. — Você também me tem, sabe.
E se tudo der errado? E se você for embora? E se a gente se odiar de novo? E se, e se?
— Acho que tenho medo.
— Do futuro?
— Acho que sim…
— Eu também tenho.
— Doied sente medo de algo?
— Eu sinto mais coisas do que você imagina.
— O que sente agora?
Doied olha para as próprias mãos, abrindo e fechando os dedos.
— Acho que quero te abraçar.
Quando ele tem os braços ao redor do irmão, Roier sente uma vontade absurda de chorar como se fosse criança. Suas lágrimas inundam o suéter verde musgo novinho de Doied que, em vez de empurrá-lo, apenas o aperta e o segura como se tivesse medo de o vê-lo sumir. Aí, ele também sente que o corpo colado ao dele treme, e Roier sorri pequeno ao pensar que seu próprio moletom verde deve estar encharcado de lágrimas agora.
E Roier não se importa. Doied também não.
Eles se abraçam. E sentem. E curam. E choram.
Notes:
agradecimentos especiais a sttarish que fez essa arte INCRÍVEL dos gêmeos e que me fez chorar um monte quando recebi 😭 tudo nesse capítulo é muito sensível
e não sei se vocês lembram, mas há muito tempo comentei que gp, no acromatoforiaverse, teria múltiplas descobertas de cor. isso porque:
— cellbit é alma gêmea de doied e roier
— roier é alma gêmea de doied
— doied é alma gêmea de roier e cellbitna época, houveram muitas teorias para descobrir quem era soulmate de quem (agora vocês sabem). o fato é que almas gêmeas são pessoas com propósito, e note como cellbit foi a ponte fundamental para a reconciliação dos gêmeos e da família de luque como família propriamente dita. great pretender sempre foi a história de roier e doied, então é justo que o ciclo fosse girando ao redor deles e de todos o drama
isso também significa que esse foi o antepenúltimo capítulo de gp 💚
Chapter 25
Summary:
Eu amo o teatro. É a coisa que ele sempre mais amou fazer, aquilo que ele sempre foi bom em fazer. Eu amo estar aqui. Ele sabe que sim. Então, o que falta?
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
“PARECE UM ESPELHO! Veja o que nossos comentaristas pensam a respeito da semelhança entre os protagonistas da mais nova bomba do mundinho dos famosos, os Gêmeos de Luque!”
É provável que a mídia nunca tenha tido tanto material quanto recebeu nesses últimos dias. A coisa toda começou desde que a entrevista de Doied foi interrompida com sua saída desesperada e o quase tropeço dado ao vivo e em rede nacional. Depois, os jornais tiveram que se virar para acrescentar no script a recém notícia da morte de Alfredo de Luque. E por fim, se não fosse o suficiente, vieram as fotos vazadas de Doied e Roier no hospital.
O assunto família sempre foi visto como um tabu aos jornalistas incumbidos de entrevistar Doied. Ele é, no geral, uma pessoa peculiar de se entrevistar. Doied é extremamente fechado sobre sua vida pessoal, tanto que demorou quase um ano para a mídia descobrir em que dia ele nasceu. A própria ascendência mexicana ficou escondida por eras porque Doied fazia questão de reduzir seu sotaque a todo custo por medo da repressão dos acionistas.
“As pessoas estão dizendo por aí que você tem vergonha das suas raízes mexicanas. O que tem a dizer sobre isso?”
Enquanto ainda estava fingindo ser Doied, Roier ouviu uma frase de Luzu que se encaixava perfeitamente no contexto dessa entrevista antiga. Era algo como “as pessoas pedem pelo que não querem ouvir”.
“Mande-as ver todos os estereótipos mexicanos que propagam pela mídia e pergunte se elas gostariam de ser vistas assim.”
Foi na mesma época que o noivado de Doied e Cellbit foi anunciado que a mídia também descobriu sobre Alfredo de Luque. O fato aconteceu quando paparazzis se juntaram para criar uma matéria chamada “Para onde o dinheiro deles vai?”. O quadro consistia em procurar em sites da receita pelos nomes dos famosos, catalogar os gastos e ver o que eles mais consumiam. Nessa mesma época, muitos casos de lavagem de dinheiro foram silenciados e os paparazzi ganharam muito, muito dinheiro pelo seu silêncio.
Doied não foi uma das pessoas a pedir pelo silêncio, embora tenha sido uma recomendação de seus financiadores. Ele recusou, no entanto, porque sabia não ter nada a esconder.
“Então quer dizer que o grande Doied de Luque, além de prodígio, também é um filantropo?”
“A Ore sempre escolhe uma instituição de caridade para receber uma doação simbólica a cada final de mês. Costumamos fazer rodízio entre seis orfanatos e dois abrigos para sem teto.”
“E ajudam idosos também, eu suponho.”
“Doamos para um asilo uma vez.”
“Suponho que seja esse em seus gastos públicos, então. Por que o escolheu entre tantos outros?”
“Meu avô mora lá.”
O grande problema de falar ter um avô é no que isso implica. Ter um avô significa ter um pai ou uma mãe. Assim, a enxurrada de perguntas vinha sempre que alguém encontrava uma oportunidade. Eles pensaram que Doied ter dado uma abertura uma primeira vez significaria que eles teriam outras chances para arrancar mais dados de sua biografia.
Mas Doied nunca falou sobre os pais. Pelo contrário, sua cara fechava e seus lábios crispavam na mais sincera amargura. Doied nunca foi muito expressivo, a menos se falassem sobre algo que ele detesta.
As pessoas teorizaram por muito tempo. Alguns boatos eram tão famosos que até Roier soube deles. Um dizia que os pais de Doied haviam morrido em algum acidente trágico de carro na madrugada da avenida principal da cidade no dia de seu aniversário (eram dados muito específicos, o criador deveria estar inspirado). Outra, no entanto, apostava que ele não tinha boa relação com os pais e que havia recorrido pela emancipação logo aos catorze anos de idade. Também havia outro par de teorias que afirmavam que Doied era órfão e que não gostava de falar sobre os pais ou se acabaria de tanto chorar.
( A teoria da emancipação foi, até hoje, a mais correta de todas. )
A vida pessoal de Doied, com a exceção do que envolvia Cellbit Balanar, foi arquivada desde então. Até o dia da morte de Alfredo de Luque e as inúmeras fotos de Doied e seu clone viralizarem em toda e qualquer plataforma de mídia.
“É um tipo de sósia? Mas o que um sósia faria com ele no hospital?”
“Doied se clonou? Será algum tipo de estratégia para aguentar a nova fase da Ore?”
“São tão iguais que sinto que tô vendo o reflexo dele num espelho!”
“Doied tem um irmão gêmeo?”
“Por que ele nunca disse nada?”
Nestes últimos dias, Roier observou novamente o mesmo fenômeno que aconteceu com Tina; dessa vez, porém, era ele o alvo.
Suas redes sociais foram invadidas por milhares de pessoas que ele não conhecia e não eram do seu nicho. Muitos comentários surgiram em suas postagens sobre o teatro. A maioria deles era doce e gentil, o que até o surpreendeu. Alguns se auto intitularam seus fãs e perguntavam quando e qual seria sua próxima peça. Eles queriam vê-lo! Pagar ingressos para prestigiá-lo e pedir por autógrafos em seus cadernos e até postar fotos para postar em seus status e stories. E Roier já animou plateias com sua atuação antes, mas nunca alguém chegou nele e falou “ei, eu sou seu fã!”.
Essa pequena parcela de coisa boa no meio de toda a desgraça que aconteceu nos últimos tempos o deixou meio encucado. Roier não pisava no teatro há muito tempo. Claro, ele sentia falta, praticamente morria de saudades de ver seus amigos, de estar trajando um dos belos figurinos de Tina e de se curvar para os aplausos de um público estarrecido. Ao mesmo tempo, ele tinha um pouco de medo. Medo de estar enferrujado. Medo do que se apresentar novamente significaria para ele, para o irmão e até para Cellbit e Tina. Medo do que ser visto na rua e ser reconhecido como o irmão de Doied significava.
Ironicamente, foi o próprio Doied quem arrancou esses medos dele com sua última conversa. E é culpa dele que Roier está se apresentando hoje.
É um papel secundário. Roier está interpretando um jovem que dança em praças em troca de moedas para pagar as contas médicas da mãe. Ele sente algo quando finaliza seu único solo, uma sequência de sapateado no centro do cenário da praça enquanto seu personagem é ovacionado pela plateia interpretada pelo teatro e pela plateia real.
Ele gosta dos aplausos, cada vez mais fortes e potentes; dos assovios; dos gritos; dos elogios. Roier ama a coisa toda. E atuar ainda o diverte muito e, graças, ele ainda é muito bom na coisa toda. Tina ainda parece surpresa lá do backstage vendo-o interpretar a coreografia complexa de passos e giros que Roier decorou em menos de duas semanas para poder se apresentar na peça. E ele definitivamente não se arrepende de ter voltado ao palco.
Mas algo parece diferente.
Parece que falta alguma coisa. É o que passa pela cabeça dele ao final da última sessão do dia. Ele está reverenciado com suas mãos atadas a dois membros do teatro que ele mal conhece, gente nova que entrou após sua saída. Os novatos estão sorrindo tanto que suas bochechas doem em Roier. Ele também sorri, mas não tanto quanto eles. Não tão apaixonadamente quanto eles. E é isso o que o estranha.
Eu amo o teatro. É a coisa que ele sempre mais amou fazer, aquilo que ele sempre foi bom em fazer. Eu amo estar aqui. Ele sabe que sim. Então, o que falta?
— SENHOR ROIER! OI!
Ele pisca e arqueia as sobrancelhas. Ninguém nunca chamou Roier de senhor antes. Ele não tem cara de senhor! Ele ainda nem tem 30 anos, pelo amor de deus.
— Só Roier já tá bom. — de qualquer forma, ele ri. — E você é… Tubbo?
Roier se lembra vagamente dele. Eles estavam na mesma peça. Tubbo também era um secundário, um artista plástico que ganhava a vida vendendo potes de cerâmica e que era péssimo nisso. Suas cenas carregavam um misto de tragédia e comédia que deixou o De Luque — e o público — realmente encantado.
— SIM! — Tubbo dá um pequeno pulo. Ele ainda está totalmente montado, e há barro seco espalhado por seus braços e joelhos. — Olha, eu sou um grande fã seu, tipo, desde sempre! Eu fui um dos primeiros cem seguidores da conta do teatro e eu curti todos os stories que você aparecia. Eu entrei interpretando uma das suas cenas da apresentação de Alice, sabia?
Não, eu não sabia. Imediatamente, Roier sente suas bochechas arderem em um sorriso enorme. Uma coisa nova arde e ferve dentro dele e ele se sente tão bem que dá vontade de bater as mãos e gritar.
— Eu me sinto honrado.
— E a verdade é que eu me inspiro MUITO no seu estilo de atuar. Sua forma de demonstrar sentimentos nas cenas é única, sabe? Quer dizer, é ÓBVIO que você sabe o que faz e sabe muito bem… — Tubbo fala rápido e gesticula muito, mexendo mãos, ombros e sobrancelhas a cada segundo. — E esse seu sapateado de hoje? NOSSA! Eu fiquei encantado e…
— E…?
— E queria saber se você podia me ensinar …?
Roier arregala tanto os olhos que sentiu suas lentes de contato arderem. Ele pisca, mas já está lacrimejando. Tubbo acaba entrando em uma espécie de frenesi. E Roier também, embora por outros motivos porque, Deus, seu coração está realmente palpitando positivamente agora.
— Eu disse alguma coisa errada?
— Não, não! — Roier esfrega os olhos. Péssima ideia. Tá ardendo MAIS. — É só minhas lentes.
— Ah…
— Mas sabe de algo? — Ele o encara com um sorriso em meio a cara inchada e a maquiagem borrada pelas lágrimas com um quê de felicidade. — Começamos amanhã.
— Amanhã o que?
— Nossas aulas de sapateado, ué.
Como se já não bastasse o pedido inesperado de Tubbo deixando-o emocionado, seu pulo e grito animados fazem Roier gargalhar e sorrir como uma criança. Embora ele ainda não saiba o porquê, apenas que está ansioso para amanhã.
━━━━━━━ ⟡ ━━━━━━━
— Você se sente desconectado do teatro, é isso?
A pergunta faz Roier estremecer. Se o perguntarem, ele culpará o sorvete de maracujá que está tomando ou o clima frio na varanda do restaurante. Ele sabe que enganaria qualquer um — menos aquele que está sentado à sua frente.
— Não tenho certeza… Sei lá, é estranho. — Ele decide suspirar em vez de fugir de seus problemas. — Nunca senti isso antes. Não sei o que mudou.
Cellbit anui, pensativo com um biquinho nos lábios e a mão que gira incansavelmente a colher sobre a superfície de seu sorvete de baunilha. A última vez que Roier olhou, ele estava desenhando um chapéu de coco com pedaços de fava.
— Mas você ainda gosta?
— Sim, claro. Olha, quando eu me apresentei e tudo terminou, eu me senti bem. E o pessoal me aplaudiu e se levantou pra me ovacionar e eu quase senti que nada tinha mudado… Aí eu voltei pro camarim e veio esse baque esquisito. Eu ainda amo o que eu faço, mas parece que falta alguma coisa que eu não sei o que é.
Eles estão conversando a cerca de três horas, Roier nota ao checar o horário pela primeira vez. Seu encontro — que, a esse ponto, deve ser o sexto ou sétimo — começou com Cellbit pessoalmente vindo buscá-lo na frente do teatro. Quando Roier o recebeu, seu instinto foi de fechar a porta e correr para ir pegar seus óculos escuros e seu chapéu. Ele parou no meio do movimento, quando notou que não haviam mais motivos para se esconder.
“As pessoas vão falar, você sabe.” Chegar ao restaurante acompanhado de Cellbit Balanar foi um baque não só para o próprio Roier, quanto para os clientes que imediatamente os reconheceram e sacaram distraidamente seus celulares.
“Você se incomoda? Com os boatos?” Cellbit, que andou confiante durante todo o trajeto, estremeceu pela primeira vez. Sempre que ele piscava, suas pálpebras pretas desciam e subiam com seus cílios enormes e milimetricamente alinhados, do jeito que ele apenas se arrumava quando tinha eventos importantes e desfiles. Ele parecia mais do que pronto. Parecia até ansioso.
“Não.” Reaprender o conceito de honestidade com Cellbit trouxe novas emoções a Roier, que achou já ter visto de tudo em sua vida de ator. Ele ainda rigorjeava e corava sempre que tirava essas palavras simples, mas sinceras de seu coração. “Não se eu estiver com você.” Mas valeria a pena, desde que Cellbit mostrasse aquele sorriso lindo para ele de novo mais vezes. “Você se importa?”
“Eu não dou a mínima.”
O contrato silencioso de honestidade também valia para seus mais profundos receios. Há certas preocupações que Roier não ousaria dividir com ninguém, nem com Tina ou com Doied. Uma delas é seu sentimento estranho com o Teatro. Faz um mês, e ele ainda se vê incomodado e sem entender o que aconteceu.
Ele planejou deixar as coisas morrerem e torcer para se acostumar com sua nova visão de mundo, mas as palavras escapuliram em cascata no momento em que ele e Cellbit se sentaram naquela mesa, pediram a refeição e ele o encarou com esses olhos azuis penetrantes e disse “Você parece perturbado”.
Como ele faz essas coisas? Agora que Cellbit sabe que Roier é Roier e que ele está definitivamente apaixonado por esse cara, é como se um novo superpoder tivesse sido desbloqueado. Sua capacidade de ler Roier de Luque não só é impressionante, como é assustadora.
— Talvez você tenha que reencontrar seu propósito na sua arte.
Meu propósito?
— Como assim?
— Eu passei por algo parecido, você sabe, com toda a coisa envolvendo a mamãe e a Taaffaiete. — Cellbit dá uma colherada de seu sorvete mexido, tão líquido que parece milkshake. — Sempre amei desenhar minhas peças, mas mesmo fazendo algo que eu amava, era estranho. Parecia que eu fazia as coisas porque deveria, e não porque queria.
Dever e querer…
— Isso é… — Roier engole em seco. — Bem, não posso dizer que não me afetou.
— Não importa se é algo que a gente ama, se fazemos por sentir que devemos fazer e não por queremos de fato, sempre vai parecer estranho. Talvez você se sinta estagnado ou sei lá, isso é algo que só você pode refletir e dizer. — Ele sorri e o encara fixamente, piscando os cílios longos. Quando faz isso, Roier sempre sente que Cellbit sabe de alguma coisa e não quer o contar. — Talvez até testar novos papéis.
— Mas eu pego qualquer papel! Até uma mesa eu já fui.
Roier gosta de se considerar um artista adaptável e nada previsível. Seus papéis vão desde artistas ferrados a objetos inanimados e donos de empresas muitos ricos — um desses até se tornou realidade, olha só —, justamente porque havia nele o medo de, se escolhesse sempre o mesmo nicho de personagens, se entediar com o que fazia com o passar do tempo. Então, o papel não deveria ser um problema.
— Não falo do papel personagem, meu pedaço de céu. Claro, atores interpretam vários papéis com o tempo, mas existem inúmeros outros papéis no seu teatro e você só esteve ocupando um esse tempo todo.
— Cellbit, isso não faz o menor sentido.
— Você estraga o meu drama. — Cellbit bufa uma risada. — Olha, estou dizendo que você só esteve atuando, interpretando na frente do palco e do público, e nunca tentou fazer outra coisa. Vê, pensa comigo, qual foi sua parte favorita da sua última peça?
— A dan… — Dança. Era a resposta na ponta de sua língua. Ela morre no meio, no entanto, quando outra cena vem a mente de Roier. — Quando Tubbo pediu pra que eu ensinasse ele.
É estranho agora que ele pensa. Não foi a primeira vez que pediram ensinamentos e conselhos para Roier; a própria Jaiden, quando ainda atuava, foi uma delas. Mas nós somos amigos, é seu primeiro argumento. Ensinar amigos é diferente de ensinar pessoas que não o conheceram pelo o que ele é, mas pelo o que ele faz. Exige outro tipo de confiança. As pessoas do teatro que conheciam Roier sabiam que ele era bom, mas pessoas como Tubbo pedem por ajuda porque acreditam que Roier é bom.
E Roier nota que gosta desse crédito. Depois de tanto tempo atuando, praticamente duas décadas se considerar sua infância, ele quase sente que não há mais nada que ele possa fazer. Não que não haja mais aprendizado, porque sempre há; mas porque não há nada mais com que ele possa contribuir ao teatro como ator.
Mas como professor…
— Vejo suas engrenagens se movendo daqui.
— Eu nunca pensei nisso.
— No que?
— Em dar aula.
— E olhe que eu nem disse essas palavras. — Cellbit pisca. Espertinho. — Ensinar alguém exige coisas diferentes de você. Você precisa ser firme para tecer críticas construtivas, mas compreensível o bastante para não induzir os outros a desistência. Fora que mesmo que não pareça, você aprende muito com quem você ensina.
— Tina te mostrou tudo isso?
Ele se lembra do exato momento em que Tina veio correndo para abraçá-los aos prantos, dizendo que estava se preparando para sua primeira coleção autoral com direito a desfile. Cellbit estava a ajudando com tudo, desde a procurar os modelos até encontrar os melhores tecidos.
“Ele vai chamar todos os amigos dele do mundo da moda pro desfile, amigo, vai ter gente com vinte anos de experiência no mercado vendo as minhas roupas. Eu vou surtar TANTO e eu já chorei TANTO e mesmo assim não parece real.”
— Tina é uma artista espetacular. Ela me deu tantas ideias mirabolantes que eu senti que era eu o pupilo dela. Nem todas deram certo, é claro, mas meu papel como mentor é ajudá-la a melhorar. É bom para treinar a confiança dela e para a minha também. O sucesso do seu pupilo também é o seu, assim como as dores e medos dele também. É como uma espécie de contrato. — Cellbit pisca. — Somos especialistas neles.
Idiota. Roier não queria rir, mas como segurar?
— Ainda não acredito que você lida tão bem com isso.
— Ah, eu não poderia guardar rancor pra sempre. — Ele dá de ombros. Seu sorvete já virou líquido a esse ponto. — Eu teria ficado com mais raiva se tivesse conversado com você e não tivesse visto nada daquele cara com quem eu convivi naqueles meses, mas eu vi e senti verdade em você. E depois que você me mostrou a sua realidade, que você se mostrou pra mim… — Cellbit solta o desenho de um sorriso miúdo. — Já tem tanto de você em mim que você nem imagina.
Ele é maluco. O coração de Roier faz aquela coisa engraçada de dar cambalhotas, giros, sapateados e piruetas em sua caixa torácica, batucando como um tambor. Mas eu também sou meio maluco. Acho que estamos quites.
Acho que…
— Acho que vou pensar no que você disse.
— De ter tanto de você em mim?
— Nisso também — ele ri. — Mas era sobre sobre o teatro.
Cellbit sorri. A ponta dos pés dele cutuca seu joelho sempre que ele balança as pernas debaixo da mesa. O clima de conversa entre eles é sempre leve; às vezes, Roier pensa que está vivendo um amor adolescente de novo; noutras, ele está em meio a conversas tão profundas e honestas que seu coração dói, ao mesmo tempo em que ele se vê curado de suas cicatrizes. É um meio a meio confuso, mas bom, e ele acha que nunca sentiu algo assim antes.
— Vou te apoiar no que você escolher.
Ele o segura pelo queixo. Os anéis de prata, grandes e gélidos, trazem tremores a sua pele quando ele o puxa para perto. Cellbit se inclina sobre a mesa. Seus lábios o tocam na ponta da boca em um selar demorado. Roier suspira. O toque do loiro é suave e meio frio e cheira a gloss de cereja. E arrepia.
— Mais pro lado — Roier sussurra.
O riso de Cellbit vem abafado pela sua pele, então Roier mais o sente do que realmente o ouve. Ele engole em seco e lambe os lábios em instinto. O movimento da língua traz a atenção de Cellbit, que grunhe baixo antes de puxar o lábio inferior de Roier com a ponta do dedão, sentindo a textura macia de sua boca contra a pele.
— Eu não tenho pressa.
Nem eu. Roier constata. Ele não está mais atuando durante um contrato limitado em uma vida que não era a dele. Era sua própria vida agora, e Cellbit estava beijando Roier de Luque na varanda de um restaurante chique sabendo de quem ele era, e o amando por quem ele era. Eu tenho todo o tempo do mundo.
━━━━━━━ ⟡ ━━━━━━━
— E se as crianças não gostarem de mim?
Após a quarta pergunta de Roier, seu irmão bufa e revira os olhos — novamente, pela quarta vez. Ao mesmo tempo que existiam diferenças entre os gêmeos de Luque, também existiam semelhanças. Uma delas era sua paranóia crônica.
— Você fala como se fosse sua primeira vez vendo eles.
— Correção: é a primeira vez que vejo eles. Como Roier! — Ele se balança em seu assento, jogando as costas brutalmente contra o banco. O carro quase pula. Doied grunhe. — Eu mal falei com eles porque não sabia como você era com crianças.
Do banco do passageiro, Luzu ri baixinho. É final de mês e, como tradição, a Ore escolheu uma organização para receber suas doações. Novamente, eles estariam indo para o orfanato. Dessa vez, no entanto, Doied convidou Roier para acompanhá-lo. Sua desculpa foi a falta de Mariana e Slime, que agora estavam ocupados resolvendo os trâmites do futuro casamento.
“Como esses dois tontos conseguiram ficar juntos, é um mistério. E casando, então! Ainda bem que não sou vizinho deles.” É o que Doied disse, mas ele quase lacrimejou quando recebeu o convite do padrinho.
— No começo, ele agiu igual você. Todo cheio de medo, murmurando pelos cantos que tinha medo de assustar as crianças com a carranca dele.
— Eu não disse isso. — Doied ergue o indicador, indignado. — Eu disse que não sabia lidar com crianças.
— E você lidou com eles tão bem que até hoje te chamam de tio favorito.
— Doied tem experiência, ele cuidou de mim quando eu era pirralho. — Roier cruza os braços e bate o pé contra o assento de Luzu, que o encara com a sobrancelha erguida pelo retrovisor. — Eu não tive nenhum irmão mais novo pra cuidar!
— Ele tem um ponto, Lu.
Baixinho, Luzu resmunga:
— Deus, se um De Luque já é difícil, imagine dois…
— Eu ouvi isso! — eles respondem tal qual uma entidade ameaçadora.
Cristo.
— Mas Luzu tem razão em outra coisa. Eu fiquei muito nervoso na minha primeira vez aqui. Hoje em dia, é muito mais fácil. As crianças não são seres de sete cabeças. E você é um artista, faça um daqueles seus gingados e elas te amarão pelo resto da vida.
— Ou me acharão um idiota.
— Elas são crianças, hermanito. São idiotas por natureza.
— Doied.
Roier observa o casal discutindo pelo resto da viagem. Eles combinam. Eles são muito parecidos e têm um monte de interesses em comum. Mais do que isso, ele sabe que Luzu é a pessoa ideal para colocar um pouco de juízo na cabeça teimosa de seu irmão. Não sei como ele foi gostar logo de um jumento como Doied, mas bem que dizem que o amor é cego.
— Você tem alguma criança favorita?
— Você já deve ter visto ele. — Doied solta uma risadinha que o surpreende. — O nome dele é Pepito.
Pepito, tal qual nas memórias de Roier, é o mesmo de sempre. Ele cresceu um pouco, mas seu porte naturalmente pequeno o desfavorece perto das crianças que cresceram o dobro de seus centímetros. Seus óculos são novos e de lentes um pouco mais grossas, e seu antigo buraco no meio da arcada dentária está sendo lentamente preenchido por uma lapa miúda de dente.
— Tio Doied! — Ele corre para abraçar as pernas do primeiro gêmeo que o aparece, Roier. Quando ele se solta, suas sobrancelhas arquearam e quase sumiram em seu cabelo encaracolado que está enorme. — Dois tio?
— Pepito, esse é Roier. — Ele o estapeia nas costas. Doeu, idiota. — Meu irmãozinho.
— Mas ele é tão grande! — Pepito abre os braços. — Desse tamanho!
— Isso é porque ele come muitas frutas e vegetais. — Uma das tias do orfanato aparece com uma tigela de frutas meio comida nas mãos. — Certo, senhor Roier?
Prefiro hambúrguer…
— Claro, claro…
— Não confiei muito na sua voz, sinhô Roié.
— Sabe, Pepito, se você comer suas frutas, vai poder ver os filmes que eu trouxe junto com as outras crianças. — Doied acarinha os cabelos do pequeno. — Temos um acordo?
— TEMOS!
Como ele faz parecer tão fácil?
De fato, as crianças adoram Doied. Roier agora teme que sua antiga atuação tenha saído muito diferente do que os pequenos esperavam. Doied conversa, ajeita as roupas das crianças e distribui brinquedos e livros a todos. Ele até concorda com seus papos malucos, o que indigna um pouco Roier porque, quando era ele o pequeno, Doied dizia que ele era maluco da cabeça.
Ou talvez seja sua forma de redimir.
— Que filmes são esses?
— Achei eles no meio das coisas do abuelo. — Doied aponta para a caixa de papelão que Luzu trazia para lá e para cá. — Ele guardou todos os filmes que eu comprei para nós quando éramos pequenos. Decidi doá-los para as crianças, eles vão fazer melhor uso do que nós.
— Mas e se a gente quiser ver filme…
— Então, vamos ao cinema ou compro outro e vemos na minha casa. Criar novas memórias, lembra, hermanito ?
E não se prender ao passado. Roier suspira. É tão mais fácil dizer do que fazer. Vou tentar.
— Todos os filmes do Shrek … — Luzu começa a tirar os filmes. Estão todos em saquinhos finos de plástico, com uma foto meio desbotada da capa junto aos CDs. Que ninguém aqui note que o grande Doied de Luque pirateava filmes quando criança. — Branca de Neve, Cinderela, Pequena Sereia… Barbie e o Castelo de Diamantes?
— Roier adorava esse.
— Mentiroso, esse era o favorito dele. — Roier ri ao fugir do cutucão. — O meu favorito era o das mosqueteiras. Deve estar aí na caixa… Vamos começar por esse? — Ele quase pula em animação. — Por favor?
— Você consegue ser mais criança do que todas as outras aqui, pelo amor.
— Vamos fazer uma votação e as crianças decidem. — Luzu acalma os ânimos, andando pelo meio dos irmãos com a pilha de filmes nas mãos. — Estou curioso para saber o que tem nesse CD sem saco aqui.
Com o cenho franzido, Doied pede o CD. É o único que está sem saco ou imagem identificadora, jogado e bem escondido no meio dos outros filmes. Há algo escrito de pincel meio apagado no canto.
— Quesadilla?
— Não foi onde a gente estudou no fundamental? — Roier força a memória. — Eu lembro que eu sempre escrevia o nome errado nas folhas de prova.
— O que será que é isso?
Sem ter ideia do conteúdo, eles decidem tocar o CD quando as crianças ainda estão no intervalo do lanche. Uma das tias traz o DVD Player aos gêmeos que, curiosos, colocam o CD para tocar.
Na primeira cena, Doied estala os dedos.
— Eu lembro disso!
— Eu não.
— Esse miudinho aqui é você, bem?
Luzu aponta para uma criança no filme. A qualidade é horrível, mas eles conseguem identificar um garoto pequeno com cabelos meio cacheados, óculos redondos e roupa verde.
— Sim, e esse catarrento do meu lado é Roier. Era um festival do colégio. A professora vai nos perguntar o que queríamos ser quando crescer.
— E você se lembra do que respondeu?
— Óbvio que sim — Doied sorri.
— Doied de Luque, querido, o que você quer ser quando crescer?
— Eu quero ser um bom pai.
Naquela imensidão de crianças que respondiam coisas entre “quero ser médico” e “quero ser jogador de futebol”, Doied foi o único que disse que queria ser pai. Não apenas um pai comum, mas um pai bom, alguém diferente daquele covarde que nenhum deles lembrava do nome. Alguém tão bom quanto Alfredo de Luque.
Eu posso ver isso acontecendo. O olhar de Roier ruma ao pequeno Pepito, que agora ri de alguma piada que outra criança lhe contou. Doied também o observa às vezes, atento principalmente aos pezinhos do menino. Hoje, seus cadarços estavam perfeitamente amarrados. Ele finalmente aprendeu.
— Roier de Luque.
— E você, lembra do que disse? — Doied sussurra.
Ser ator, talvez.
— Não.
Foi o que eu sempre quis ser.
— Quero fazer todo mundo sorrir.
Sorrir?
— Sempre pensando alto demais, esse pirralho. — Seu irmão se divertia. — Você não deve se lembrar, mas vivia dizendo a mim e ao abuelo que gostava de ver a gente sorrir quando você se apresentava. Acho que nossas reações te divertiam mais do que todo o resto da coisa. Sempre te achei um mimado por causa disso.
— Eu era uma criança tão besta.
— É, era. — Doied o cutuca na bochecha. — Mas o engraçado é que eu olho para você e só consigo ver esse pirralho estúpido que queria salvar o mundo.
Involuntariamente, sua última conversa com Cellbit vem à mente.
Qual é o meu propósito? Fazer as pessoas sorrirem? Mas isso é tão… infantil.
— Todas as crianças estão aqui, senhores. — A tia suspira. — Menos ele. Ele não gosta muito de sair do quarto.
— Eu vou lá chamar, só me dizer onde é.
Ela parece temerosa, mas o guia até a última porta do corredor. Há uma placa na madeira com os dizeres “16 a 17 anos” e uma quantidade absurda de adesivos espalhados pela porta. Roier se identifica um pouco. Se ele não dividisse o quarto com o irmão quando menor, teria feito a mesma coisa.
Roier entra sem bater.
— Quem é você?
O quarto era mediano, mas parece pequeno com as oito camas de solteiro espalhadas pelo lugar. Todos os lençóis são brancos e bem arrumados, e um único canto específico do quarto tem as paredes cheias de pôsteres de musicais da Broadway. Anastasia. Moulin Rouge. Les Miserables. Mamma Mia.
Eu assisti todos.
— Essa é a capa original do Mágico de Oz?
— Quem é você?
— E esse é o poster de Wicked de 1939…
— Adulto estúpido, deja de ignorarme.
— Lo siento, me emocioné. — Roier o responde ainda sem encará-lo, encantado com a quantidade de posters. — Eu sempre quis ter um, mas eram caros demais…
O garoto finalmente se cala. Olhando-o bem agora, Roier vê um menino alto, talvez tão alto quanto ele. Ele está trajado com um macacão jeans com desenhos de estrelas amarelas desbotadas. Seus olhos são enormes e curiosos de um castanho avermelhado, quase rosa. E há esse bico emburrado no rosto que o lembra um pouco de Doied.
— Veio em uma caixa de doações. — O garoto dá de ombros. — Os pirralhos queriam usar pra fazer colagem… Tomei da mão de todos eles.
— Eu faria o mesmo. Isso aqui é coisa de colecionador. — Roier sorri e estende a mão. — Sou Roier.
Ainda sem tirar o bico do rosto, o garoto aperta sua mão, meio desengonçado e cheio de pressa.
— Bobby.
— O que você sabe sobre musicais, Bobby?
— Assisti todos dos posters. Pirateado, claro, também é caro pra mim. Mas tô economizando pra ir ver o Wicked Brasil ano que vem.
— E você viu o filme? O com a Cynthia?
— Não pude ir.
— Eu também ainda não vi.
Criar novas memórias. Agora, é Doied quem toma conta de seu consciente. Sempre foi impossível salvar o mundo e fazer todas as pessoas nele sorrirem, mas… Ele poderia tentar com uma dúzia ou duas.
— Você já foi num teatro de verdade, Bobby?
— Nunca.
— Digamos que eu seja o ator de um… — Ele reprime o sorriso ao ver Bobby se virar para ele, assustado, encarando-o de cima a baixo e cobrindo a boca para se finalmente estivesse o vendo de verdade. — E te oferecesse a chance de ver e falar com atores de teatro de verdade e até te mostrasse uma de nossas peças. O que você diria?
Bobby respira fundo. Até suas pernas parecem tremer.
— Golpéame ahora o me desmayaré.
— Confesso que esperei de tudo, menos isso… — Roier arregala os olhos. — Mas se insiste…
— ¡NO!
Pela primeira vez, Bobby sai do quarto para confraternizar com as crianças menores. Pepito é o primeiro a se levantar para cumprimentá-lo, prendendo-se em suas pernas e não o largando até o final do filme. Barbie e as Três Mosqueteiras acabou sendo o escolhido.
— Você convenceu o garoto, então. — Doied o cutuca. — Bobby é o mais velho de todos eles. Ele e Pepito são irmãos e se recusam a ser adotados sozinhos. Alguns queriam Pepito, mas ninguém queria adotar um adolescente de 17 anos… — Ele suspira. — Acho que nunca o vi sair do quarto.
— Ele é um garoto legal. Sabia que ele gosta de musicais?
— Olha só, ele me lembra alguém…
— Espertinho.
Quero ver ele sorrir.
Notes:
confesso que tive um pouco de medo desse capítulo conforme escrevia, medo de acabar estragando toda a trajetória do roier como artista. mas era necessário. depois de tudo, roier tem uma relação com a fama e com o "ser pessoa pública" muito diferente daquele roier dos primeiros capítulos e isso acabaria influenciando na forma como ele vê o teatro, de um jeito ou de outro. ele ainda ama o que faz, só vê as coisas de outra maneira. o roier artista agora não quer mais chamar a atenção e receber os aplausos que nunca teve porque ele agora tem a aprovação que tanto queria e de quem queria. seu novo propósito, então, acaba sendo seu original: fazer as pessoas felizes por meio da arte.
e doied, por mais que não parecesse antes, sempre foi o mais familiar dos dois, sempre vi ele querendo ser um pai melhor do que o que ele teve (alguém como o abuelo tentou ser)o próximo capítulo é o último
Chapter 26
Summary:
Talvez certas cicatrizes sejam necessárias para o amadurecimento. Talvez. Roier não tem o poder de viajar no tempo para saber todas as consequências de seu passado em seu futuro. Então, que ele aproveite o presente que ainda tem e o faça ser o melhor de todos.
Chapter Text
Acho que vou infartar.
Roier respira fundo. Ao lado dele, Cellbit chia. Suas mãos estão fortemente atadas em um aperto longo que se iniciou no momento em que os dois entraram na limusine e que certamente apenas terminaria quando a porta se abrisse de novo, já em seu destino. Não era um ato tão comum. Geralmente, Roier estaria vendo vídeos engraçados em seu TikTok ou veria — de novo — as postagens do Instagram do teatro. Claro, tudo isso estaria acontecendo se fosse um dia comum.
— Roier… — Ele lambe os lábios, meio incerto. — Meu doce, meu pedaço de céu…
— Ai, perdão! — Roier solta suas mãos e coloca-as diante da boca, soprando como se estivesse enchendo um balão. Ou, um pouco mais preciso para o contexto, um saco de vômito. — Sinto que meu coração vai explodir e que todos meus restos mortais vão ser jogados pelo carro como se eu fosse uma panela de pressão!
— Meu bem, essa é uma… — Cellbit franze o cenho, meio querendo rir, e meio não. — Descrição bem criativa pra quem só vai ir pra um jantar em família.
— Um jantar com a sua família — ele esclarece. — E com a sua irmã.
— Roier, Bagi não vai te matar. Ela mal machucaria uma mosca… — Ele pensa no que disse por alguns segundos. — Bem, na verdade, machucaria sim, mas…
— Olha aí!
É provável que pessoas normais não ficassem tão nervosas para um jantar de família com a irmã de seu novo namorado. Mas pessoas normais não eram Roier de Luque, irmão gêmeo de Doied de Luque, que apenas conheceu a dita cuja quando estava fingindo ser o seu gêmeo durante um contrato que potencialmente magoou seu adorado e único irmão. Não, ela não sabia disso, e ele e Cellbit concordaram que era melhor nem saber, mas e se ela carregasse um poder oculto de leitura de mentes, olhasse em seus olhos e aparecesse sabendo de todos os seus pecados?
Bagi já odeia Doied. E se ela me odiar por tabela já que sou irmão dele? Ele imediatamente se sente tremer. Roier não queria ser odiado pela cunhada. Não, não posso permitir. Tenho que fazer ela gostar de mim.
— Sabe, Bagi não é tão ruim assim. Você só precisa ser honesto e responder a tudo o que ela perguntar. Bagi é o tipo de gente desconfiada, então ela vai te encher de perguntas, muitas perguntas. — Cellbit suspira. — Mas não se preocupe, vou estar do seu lado a todo momento e Tina também vai estar lá, não?
— Mas e se ela preferir escolher defender a namorada ao melhor amigo de anos dela? — Roier coça o queixo. — Acho melhor eu não pensar nisso ou posso me ofender.
— Concordo, bem, você pensa demais.
— Ei!
Roier respira e inspira. Mais uma vez. Vai ficar tudo bem.
A reunião foi uma ideia da própria Bagi. Assim que soube do namoro de Cellbit — publicamente divulgado há um mês —, ela estivera tentando marcar o encontro com todos. As datas foram adiadas inúmeras vezes porque nem todos tinham os mesmos dias livres, e ela realmente queria que a maior parte das pessoas pudesse estar presente. Eles conseguiram deixar a tarde desse sábado livre e, assim, os dois, ela, Tina, Doied e Luzu se vieram hoje para comer comida chique e conversar.
E sofrer interrogatórios e julgamentos da irmã mais velha do meu namorado! E isso também.
O primeiro beijo entre Roier e Cellbit foi compartilhado há três meses, na sacada daquele calmo restaurante. Depois daquele, mil outros vieram. Roier estava disposto a contá-los um a um, mas se perdeu a partir do vigésimo. Cellbit surpreendentemente era alguém que apreciava o toque tanto quanto adorava enchê-lo de presentes nos momentos mais inusitados. O primeiro deles foi uma echarpe vermelha, de seda de lótus, que se encaixava perfeitamente contra o perímetro de seu pescoço.
“Isso é…”
“Entregue para a pessoa certa e no momento certo dessa vez.” Cellbit ainda piscou. Ele sabia exatamente o que estava fazendo. “Vermelho porque combina com você. Tentei conseguir o pigmento mais vibrante e saturado de todos. Sabia que a psicologia das cores diz que o vermelho é a cor do amor?”
“Quando eu era criança, era de tristeza. Meu boletim tava cheio dessa cor.”
“Tão romântico você é, Roier de Luque…”
“É meu charme.”
Não exatamente. Roier sabia ser charmoso quando queria, era praticamente exigência do trabalho. Mas há algo em Cellbit que o quebra de dentro para fora, que reseta todo seu padrão de ação e reação como um eletrônico que volta ao padrão de fábrica. Roier nunca sabe como se sente ao ser elogiado por Cellbit, e ele faz questão de o agraciar em tudo, até nas pequenas coisas.
Cellbit já o presenteou com brincos coloridos porque notou que ele gostava; com várias tintas de maquiagem artística, porque Roier um dia disse que as suas estavam acabando; ele sempre pede seu prato favorito quando vão ao restaurante porque já sabe exatamente o que Roier gostaria de comer; ele veste a mesma gravata azul em seus encontros formais, porque, para Roier, ela “combina com seus olhos”. Cellbit faz Roier sentir que sua opinião é a coisa mais valiosa do mundo, e isso é tudo.
Acho que me sinto amado. Sim, é uma boa descrição. É, muito amado.
Seu celular vibra no bolso. É uma mensagem de Doied.
— Eles já chegaram. — Roier ri baixinho. — Vê só: “A aura assassina de Bagi está mais forte do que nunca. Sinto ela seguindo meus passos para todo lugar que vou. Luzu diz que estou louco, mas eu sei a verdade.” Viu, não sou o único paranóico!
— Tinha que ser um De Luque…
— Ei!
Eles chegam cinco minutos depois. Todos concordaram em uma reunião privada, então o encontro seria no apartamento de Bagi, herdado após a morte dos pais. Assim como Doied e 90% dos ricos do mundo, ela mora na cobertura. Seu apartamento tem três andares, um deles sendo totalmente ocupado pela enorme varanda que dá vista à pequena área florestal que rodeia o condomínio.
Como será que é morar na mesma casa dos seus pais mortos? Soa insensível, então Roier não externaliza. Mas ele pensa. Pensa porque, para ele, o luto ainda é uma cicatriz aberta e mal curada. Alfredo de Luque se foi há quase cem dias; às vezes, Roier pensa que já foram cem anos; noutras, sente que foi há somente cem segundos. Ao mesmo tempo que é distante, também lhe é recente. A dor é recente.
Roier nunca mais pisou no asilo; e Doied também não. Eles ainda mantinham contato com Giulia, que agora contava com a assistência de seu irmão para financiar um novo apartamento e concluir a faculdade.
“Eu quase pedi para sair do asilo… Fui voluntária por anos. Mais um mês, e eu seria admitida oficialmente. Meu salário aumentaria, meus benefícios trabalhistas também… Mas eu pensava que a situação com Alfredo tinha me traumatizado o suficiente.” Ela os contou uma vez, enquanto eles caminhavam por uma praça sem rumo, hora ou direção exata, apenas andando e compartilhando memórias doces e amargas dele. “Mas também penso que o ajudei a ser feliz enquanto pude. Alfredo sempre dizia o quanto era grato pela minha companhia, e acho que não tem coisa mais triste do que estar sozinho nesse mundo tão grande que é o nosso… Não quero que ninguém se sinta assim. É por isso que, mesmo que me doa, vou continuar no asilo.”
Discursos como o de Giulia o fazem pensar. Do momento da descoberta da morte até o dia de hoje, Roier sabe que alguma coisa mudou nele. Sim, ele ainda faz as mesmas piadas e tem as mesmas trapalhadas de sempre. Seu irmão ainda é seu irmão. Seu namorado — Deus, ele é realmente seu namorado agora — ainda é seu namorado. O teatro ainda é seu refúgio nos dias mais difíceis. Ele ainda é Roier de Luque, anônimo à sua maneira.
Ele ainda é o mesmo.
E também nunca mais será o mesmo.
Roier já se perguntou se, algum dia, voltaria a se sentir o mesmo de antes. Ele concluiu que não, esse sentimento nunca mais voltaria. É algo bom e ruim. Bom porque significa que ele finalmente concluiu um de seus sonhos passados, aquele pensamento que ele queria ser adulto como Doied. E ruim, porque ele descobriu o quão difícil é ser adulto, adulto por fora e adulto por dentro.
Ainda há um pouco de criança nele. Daquela criança que daria de tudo para receber um abraço apertado do pai agora e que ficaria horas apresentando peças inventadas a ele diante do tapete da sala, apenas para ouvi-lo aplaudir, sorrir e pedir por mais. Será que é tão ruim assim ainda me sentir assim? Tão juvenil.
Ao entrar no apartamento de Bagi e ver que todas as nove cadeiras tinham pratos e talheres mesmo que eles fossem apenas seis, Roier nota que, não, não há nada tão ruim em ainda ter suas dores, desejos e memórias de criança. É claro, alguém poderia argumentar que Bagi poderia manter sua mesa posta como quisesse porque era sua casa, mas aquela mesa tinha lugar apenas para oito cadeiras, e uma a mais estava ali. Porque Bagi e Cellbit tinham pais, e Roier e Doied tinham o seu.
Bagi não é tão ruim assim. As palavras de Cellbit voltam.
— Atrasados. — Ela chega com os braços cruzados e as sobrancelhas franzidas. Sua pose dura quase meio minuto, até que ela suspira e sorri fraquinho. — Obrigada por virem.
Cellbit passa primeiro pela vistoria, cumprimentando a irmã com um abraço e um afago na cabeça dela que a faz chiar e reclamar como um gato arisco, mas que não retira o sorriso gentil no rosto quase sempre franzino. Ele o deixa sozinho com ela, o traidor, e Roier precisa se conter para não desmaiar no corredor.
— E você deve ser o famoso Roier de Luque.
— Famoso? — Ele arregala os olhos. A reação é tão espalhafatosa e sincera que o faz rir. — Eu? Não, não…
— Para mim, é. Meu irmãozinho fala muito de você. Acho que devo saber tanto de você que daria uma enciclopédia inteira. Quando aquele ali abre a boca, ele não para nunca mais. — Ela revira os olhos. O ato é tão despretensioso e tão carinhoso que automaticamente o faz lembrar de Doied. — Mas cá entre nós? Você me parece nervoso.
— Não só pareço, eu estou.
Ele decide ser honesto e abrir o jogo. Por três motivos. O primeiro é que ele tem certo trauma de mentir para Balanares. Segundo, porque Cellbit pediu. E terceiro, porque Roier realmente quis ser honesto dessa vez; não só com Bagi, mas com ele.
— É?
— É só que eu não quero decepcionar você, sabe? Cellbit é muito importante pra mim e ele fala de você com tanto amor e carinho e… — Roier suspira, encarando aquele par de olhos quase tão azuis quanto o de seu amado. — Você é a família dele, Bagi. Eu quero ser amado pela família de quem eu amo também.
As expressões de Bagi amolecem quase que em um instante. Seus cílios tremem e ela fecha a boca com pressa, suspirando com os olhos agitados, meio marejados. Ela balança a cabeça e lambe os lábios. Os olhos dela são azuis como os de seu irmão, mas enquanto os dele parecem o céu sem nuvens, os de Bagi são turvos e intensos como o mar bravo durante a noite.
As ondas nos olhos de Bagi caem. O mar é calmo e seguro, e ela sorri, quase como se visse alguém que ela se importa muito. Alguém de sua família.
— Você também é a família dele, Roier. — ela entoa em um fio de voz. Eles não se conhecem pessoalmente, mas ele já ouviu muito sobre ela, de seu irmão, de sua amiga, de seu amado. Todos sempre falam o quanto Bagi é a pessoa mais forte e cabeça dura do mundo, e que quase nunca se permite ser vulnerável para ninguém. Quase. — Meu irmão foi meu tudo por muito tempo. E ele sempre quis ser forte por nós dois, mas ele também é tão ingênuo e coração mole. — Bagi ri baixinho, quase que para si. — Sei que sou protetora e que posso assustar as pessoas, mas você tem um irmão, deve saber como é.
— Sim, é claro. — Ele balança a cabeça quase que em desespero. — Sempre digo que o único que pode falar mal do Doied sou eu.
— Sim, exato! E olha, seu irmão e o meu têm um histórico… E eu fiquei tão receosa porque, veja, Cellbit apareceu em casa do nada com o rosto tão miserável e eu jurei a mim mesma que não deixaria que mais ninguém o fizesse se sentir assim de novo.
Roier engole em seco. Ele ainda se sente culpado. Mesmo que Cellbit tenha o perdoado, ainda há as perguntas de sempre em sua cabeça. E se nunca tivéssemos trocado? Talvez, Doied e Cellbit estivessem casados agora.
E eu e Doied nunca teríamos nos dado bem de novo. Eu não teria conhecido Cellbit. Doied e Luzu não estariam juntos. Tina não teria conhecido Bagi. Tina não seria contratada pela Taaffaiete. Eu nunca teria conhecido Bobby. Eu não estaria aqui.
Talvez certas cicatrizes sejam necessárias para o amadurecimento. Talvez. Roier não tem o poder de viajar no tempo para saber todas as consequências de seu passado em seu futuro. Então, que ele aproveite o presente que ainda tem e o faça ser o melhor de todos.
— Então… Me jure, Roier, me prometa que você nunca vai machucar o meu irmão.
— Eu prefiro morrer do que ver ele chorar — ele fala mais rápido do que deveria, mas é tão honesto o quanto ele queria.
— Bom… — Bagi dá um passo a frente e abre os braços, desengonçada. — Bem-vindo a família, Roier.
Assim que eles se abraçam, Roier solta um suspiro que nem notava que prendia. Ele se sente leve, quase como se pudesse sapatear nas nuvens. Também lhe dá uma vontade fraca de rir, porque os abraços de Cellbit são apertados e se encaixam bem em suas costas, mas os de Bagi são meio tortos e dobradiços, como se eles fossem duas bonecas dobráveis tentando se cumprimentar. Pensando bem, é uma descrição aceitável.
Isso me lembra…
— Saiba que se você fizer alguma coisa a Tina…
— Eu deixo que você me mate. — Bagi gargalha. Seu abraço amolece. — Não se preocupe, eu faria tudo por aquela garota.
Bagi não estava errada ao apontar seu atraso. Em sua defesa, eles perderam um pouco de tempo porque Roier esqueceu onde havia botado suas meias brancas e ele tinha apenas aquele par de meias brancas e elas combinavam perfeitamente com sua roupa. Cellbit não apenas entendeu seu desespero como o ajudou a revistar toda a quitinete em busca do par. Elas estavam no cesto de roupas sujas e, bem, realmente precisavam ser limpas. Mas suas meias cinzas não combinavam com o sapato que ele queria ir, que combinava com a calça, que combinava com a blusa. Então, ele mudou toda a roupa e, nesse ponto, eles já estavam atrasados demais para se ter pressa.
Há apenas uma cadeira na ponta e ela e as duas cadeiras adjacentes são mantidas desocupadas. Bagi se senta ao lado da cadeira vazia da esquerda e Doied, da direita. As cadeiras ao lado deles estão vazias. Roier divertidamente pensa que eles estão se portando como príncipes e duques em uma reunião contratual de casamento durante a idade moderna.
— BOM DIA, BEM! — Tina, sempre um amor. — Guardei um lugar pra você, olha, bem do meu ladinho!
Ao contrário do seu querido, adorado e único irmão.
— Atrasado.
— Bom dia pra você também, Doied.
— Não ligue para ele. — Luzu o cumprimenta com um aceno de cabeça. — Ele ficou estressado depois que sentou em cima dos óculos da sorte dele.
— Não são meus óculos da sorte. Isso me faz parecer uma criança. — Ele revira os olhos porque, sim, ele tinha seus óculos da sorte, que são pretos e de hastes finas assim como todos os outros óculos reservas e não-da-sorte que ele tem. — Eles só encaixavam muito bem no meu rosto.
— Quebrando suas coisas, é? Que desatento da sua parte, irmãozinho.
— Ora, cale a boca.
Bagi praticamente obriga Cellbit a ajudá-la a trazer os pratos para a mesa. Ela comprou-os em um restaurante, porque ela tem muitas qualidades, mas nenhuma é a culinária. Ainda, ela pediu comida de três restaurantes diferentes, sendo um deles o favorito de Doied.
— Isso é tofu? — Os olhos dele praticamente brilham. Que horror.
— Sim. Você gosta? Eu pedi do meu restaurante favorito porque, bem, eu não como carne, então…
— Eu também não.
É quando a amizade menos esperada do ano surge, em que Doied e Bagi monopolizam uma conversa sobre vegetarianismo e suas comidas favoritas. Tina os apoia na causa ao comer os bolinhos de tofu. E os três restantes agradecem pela bacia cheia de carne que veio na outra entrega.
As conversas vêm mais naturais do que o esperado. Eles falam sobre tudo, e sobre nada também. Tina compartilha sua euforia com sua primeira coleção. O desfile aconteceria em torno de duas semanas e ela estava tão animada com a coisa toda que mal dormia ajustando os últimos detalhes.
— Cell, diga a Tina que ela não precisa surtar arrumando as coisas porque ela é incrível e tudo vai dar certo no grande dia — Bagi o cutuca.
— Tina, você não precisa surtar arrumando as coisas porque você é incrível e tudo vai dar certo no seu grande dia.
— Era para você dizer com palavras bonitas, idiota.
— Especificasse, então.
Roier e Doied trocam olhares e sorrisos silenciosos. Me lembra você. É o que pensam. É engraçado ter esses pensamentos sobre o irmão após passar tanto tempo longe dele. Eles se encontram regularmente para ver filmes, comer ou apenas passear por aí. Eles até foram comprar roupas juntos uma vez, e Doied nem reclamou quando Roier comprou uma blusa igual a sua. Eles vestiram a mesma roupa em um encontro duplo com Cellbit e Luzu no mês passado. Foi hilário.
— Aliás, Cellbit, sobre nosso novo contrato, eu estava pensando…
— O que falamos sobre falar de trabalho no meio do almoço, bem?
— Mas, Luzu…
— Depois. Vai, come um tofu.
O Banco Ore finalmente estava se recuperando do caos dos acontecimentos passados. É algo horrível de se dizer, mas a exposição sofrida com a notícia da morte de Alfredo realmente tocou o coração das pessoas. Alguns clientes voltaram, e outros decidiram dar uma chance. Era por pena, em sua maioria. De qualquer forma, o aumento de clientes trouxe maior confiança aos seus acionistas e antigos parceiros econômicos, e lentamente as coisas estavam voltando aos eixos. Eles até saíram do vermelho no início deste mês, após Luzu ser oficialmente apresentado como o sócio com a maior parte das ações da empresa — depois de Doied.
Doied e Cellbit também estavam entrando em negociações para a criação de um novo contrato. Um mais justo dessa vez, em que ambos ganhassem parcelas iguais como uma parceria de verdade, e não uma fachada vazia. No fim de tudo, eles realmente se tornaram amigos.
— Mas sobre aquela coisa eu posso falar, né?
— O que… — Luzu arregalou os olhos e pigarreou, ajustando a postura contra a cadeira. — Definitivamente.
— Pois bem, então…
— Vocês não estão terminando, né? — Roier larga os talheres com pressa no prato. — Pelo amor de Deus, não aceito ser filho de um divórcio.
— Nós não… Filho de um divórcio?
— É uma expressão, amigo. — Tina intervém, ainda mastigando sua salada calmamente. — Significa que ele acha que vocês dois são os pais dele.
— Aí você foi literal demais, amiga. Ele vai pensar que sou parassocial.
— Parassocial? — Cellbit ergue as sobrancelhas. — O que…
— Deixem ele falar! — Bagi só não bate palmas porque suas mãos estão ocupadas desmantelando castanhas. Pobres castanhas. — Agora quem está curiosa sou eu. Desembucha, De Luque.
Debaixo da mesa, Luzu e Doied dão as mãos. Eles se entreolham. Obviamente, Tina estava brincando anteriormente, mas Roier poderia tirar um fundo de verdade daquilo. Ele nunca imaginou ver seu irmão, seu quieto e sério irmão, tão atrelado a alguém, com as expressões são suaves e o olhar tão doce que se Roier encarar mais, ele automaticamente ficará diabético.
Meu Deus, será que…
— VOCÊS VÃO SE CASAR?
— ¡CALLATE! — Doied chuta sua perna. Dói para caralho. — Não! Mas a responsabilidade emocional é quase a mesma… Acredito que nem todos saibam, mas a Ore faz ações filantrópicas ocasionalmente. Uma dessas é para um orfanato em que há duas crianças, Bobby e Pepito. Bobby é o novo pupilo do meu irmão.
— Ah, eu lembro dele! — Tina passou a estar tão interessada na conversa que largou o resto de salada. — Ele vai estar na próxima peça, não é?
— SIM! E vai ser um dos principais logo na primeira vez! O garoto é ótimo, eu soube desde que botei meus olhos nele. Acho que eu deveria virar caça talentos.
No dia em que conheceu Bobby, Roier deixou com ele seu número de telefone e um papel com o endereço do teatro. O garoto simplesmente apareceu lá no dia seguinte, com um único aviso de “Tô aqui fora, tá frio” enviado por SMS, tal qual os antigos maias, incas e astecas. O garoto não tinha internet.
A primeira coisa que ele recebeu foi a senha do Wi-Fi do Teatro. Ele deve ter gostado mais da sua nova banda larga do que das aulas de atuação.
Brincadeiras à parte, Doied mesmo o disse que nunca tinha visto Bobby tão animado quando no dia em que veio fazer uma visita surpresa e o encontrou no meio de um ensaio de atuação dramática. O garoto performou a melhor cena de morte de personagem que Roier já tinha visto um novato atuar. Ele até já sabia chorar sem usar colírio! Roier precisou de uma semana para aprender a como controlar suas glândulas lacrimais.
“Bobby, você é uma estrela!”
— O que tem o meu garoto favorito?
— Agora que minha vida social e financeira entrou nos eixos, tive tempo para pensar em outras coisas. Sabe, outros passos que sempre foram meus planos… — Doied coça a nuca com a mão livre. — Bobby fará dezoito em pouco tempo e será expelido do orfanato. Pepito ficaria muito triste longe do irmão, então…
Tina soltou um gritinho fino. Roier teria feito o mesmo se não estivesse paralisado.
— Queremos adotar eles — completou Luzu. — Os dois.
— VOU SER TIO?
— Sim, bem, eu e Luzu ainda devemos dar entrada na nossa união estável. Os advogados disseram que facilitaria o processo de adoção e…
— VOU SER TIO!
— ¡DEJA DE GRITAR! ROIER, NÃO CORRE…
Ele não o escuta. Não adiantaria, de qualquer forma. Roier já está de pé e rodeando a mesa com pressa, jogando-se sobre o irmão no abraço mais contido que consegue dar no meio de toda aquela euforia. Doied revira os olhos, mas não o afasta. Há os aplausos acalentados dos irmãos Balanar e os pulos animados de Tina ao fundo. Luzu não para de sorrir. O momento não tinha como ser melhor.
— Roier, você está chorando?
— Shhhhhh.
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Bobby de Luque é muito parecido com seu tio em muitos aspectos. Um deles, é claro, no amor pelo teatro. Eles podem cantar músicas de musicais de trás para frente e em mais de um idioma ao mesmo tempo. Os dois sabem língua de sinais. E eles têm muito medo de decepcionar os outros, que é performado como ansiedade ou estresse.
É esse último tópico que é o atual motivo para o surto mental de Bobby. Está quente para caramba, suas costas suam e suas luvas estão descosturando. O som dos aplausos estão abafados pela cortina pesada do teatro. Atrás dele, maquiadores e ajudantes correm apressados para ajudar os atores com a troca de figurino. O seu já estava pronto há minutos, tanto que começava a prender no corpo pelo suor.
Na plateia, Bobby sabe que encontrará seu irmão, seus pais e seus outros tios. Tia Tina não estará lá porque está no camarim para ajustar os figurinos, mas ele já sabe que ela exigiu que tia Bagi gravasse tudo para que ela assistisse na íntegra mais tarde. Ao lado dela, tio Cellbit olhará para tudo com nostalgia, lembrando do dia em que viu Roier atuando pela primeira vez. Também, se conseguir prestar atenção entre as cenas, ele sabe que verá pai Doied tirando os óculos inúmeras vezes com a desculpa de que está solto por não ser seu par favorito, ainda que todos saibam que ele está chorando. O pai Luzu estará completando todas as falas do filho em sussurros porque lhe ajudou a decorá-las uma a uma, noite e dia. E com toda certeza, Pepito será o mais agitado deles, mexendo-se na cadeira para tentar vê-lo por cima da cabeça dos outros.
E há o tio Roier.
— PRONTO?
— ¡NO! — Saiu mais desesperado do que Bobby queria. Ele chia e se contém para não enfiar a mão nos cabelos e bagunçá-los. Seria inútil, também, estão tão duros que parecem pedra. — LO ARRUINARÉ TODO Y SE AVERGONZARÁN DE MÍ Y…
— Ei, ei, garoto estrela, olha pra mim…
Roier se ajoelha na frente dele. Bobby está todo curvado enquanto se senta em um banquinho de madeira, as mãos apoiando o queixo do rosto maquiado. Seu tio o cutuca no nariz, sorrindo bem pequenino.
— Sabia que…
— E lá vai você com suas histórias…
— Na minha primeira apresentação — ele o ignorou —, fiquei tão nervoso que quase morri de desinteria uma hora antes de entrar no palco.
— Impossível. — Bobby bufa uma risada. — Você é o cara mais confiante que eu conheço.
— Sim, isso é porque sou muito bom em fingir. Atuar é fingir tão bem que você acredita que é seu próprio personagem. — Ele bufa uma risada doce. — Olha, sei que é difícil pensar assim quando tudo o que você quer é surtar de nervoso, mas pense que estamos na sala do seu apartamento e que você está só se apresentando para mim e para sua família apenas, sim? Você sempre fez certinho todas as vezes que fez.
— Porque eu não me sinto julgado por vocês… E vocês sempre sorriam toda vez que eu terminava de ensaiar. — Bobby suspirou. — Então, sempre senti que gostavam do que eu fazia e que eu deveria continuar.
É o que eu queria ouvir.
— Quando você subir lá, Bobby, todos vão aplaudir tão alto e sorrir tanto que você vai se sentir tonto. — Ele lhe deu uns tapinhas no ombro. — Eu te garanto, garoto estrela. Eu não te traria pra cá se não soubesse que você não era feito pra brilhar.
Silêncio. Bobby suspira mais uma vez e balança a cabeça, levantando-se em um surto de autoconfiança e ego inflado pelos elogios honestos e calorosos de seu tio favorito. Ele bate a mão no peito, o que é um ato estúpido, infantil e muito fofo, então Roier irá o zoar por isso apenas depois do show.
— De olho em mim então, velho. — Ele sorriu. — É a minha hora de brilhar.
Há certo tempo, Roier acreditou que não haveria uma apresentação em que ele não estaria ali no palco, sob as luzes, ovacionado pelo público, a estrela de todas as estrelas. Ele seria o melhor dos melhores, o mais amado dos amados, o mais famoso de todos os atores mais famosos do mundo. A fama, por muito tempo, lhe era tudo.
Mas esse sorriso de Bobby, sua aura confiante e alegre e pura de quem está ali para fazer o que ama, é o que o dá a certeza final de que há muito mais no teatro do que apenas receber os aplausos e a atenção do público.
É por isso que amo a arte. Os sorrisos. A alegria. A confiança. A minha arte.
— Eu já ajudei bastante por aqui, então vou ir pra plateia junto com os outros.
— Bom… Eu vou dar o meu melhor.
Bobby ficou ainda mais assustado com essa informação, Roier sabe. Mas ele ainda se mantém firme e forte contra o chão, o sorriso de canto bem posto no rosto brilhante. Ele está tentando fingir que não está nervoso, olha! Ele aprende tão rápido.
— Eu sei que vai… E Bobby…
— Hn?
Alguém segurando uma prancheta passa gritando o nome do personagem de Bobby. Ele entraria nos próximos quinze segundos.
— Quebre uma perna.
Quando Roier alcança seu lugar vazio na plateia, as cortinas se abrem para revelar a nova cena. Bobby está no centro, sapateando, dançando e flutuando naquele palco como se fosse nele que tivesse nascido. E ele está sorrindo tanto, só não mais do que a união de sorrisos brilhantes das pessoas na plateia, encantadas, hipnotizadas por ele.
Brilha, garoto estrela. O mundo agora é seu.
Notes:
e chegamos ao fim de great pretender!
MUITO obrigado a todos que acompanham, a maioria vinda do twitter depois do caos que foi a queda do app. obrigado a todos que continuaram lendo mesmo quando o app voltou e eu continuei postando apenas aqui. obrigado por toda a confiança, por todo apoio, e pela presença e companhia e feedback assíduo de vocês independente de tudo.
great pretender é uma das minhas histórias favoritas. tem sua pitada de humor, de drama, de dor. great pretender trata de dois temas sensíveis, a família e a mídia, e como essas coisas se entrelaçam. há muito de arte aqui e a relação que há com o amor pela arte e o amor pela fama. imagino que alguns possam ser identificar com algumas coisas escritas aqui, como já recebi vários comentários lindos e que me puseram em lágrimas.
obrigado por tudo! talvez nos vemos por aí 💚
