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Em uma sala de estar escura, dentre prateleiras de livros e... mais prateleiras de livros, podia-se encontrar um garoto. Seu rosto era iluminado apenas pelo brilho da tela do computador.
Esse garoto era inteligente o suficiente para se graduar da Massachusetts Institute of Technology com apenas 15 anos e estranho o suficiente para se matricular em uma escola de ensino médio japonesa logo após esse feito. Tal era a reputação de Sou Touma para os outros estudantes.
Já algo que quase nenhum de seus colegas sabia, era que ele jogava online. Não, não esse tipo de jogo! Não envolvia nenhuma espécie de aposta! Era apenas shogi, um jogo estratégico de tabuleiro com dois participantes. De fato, isso é o que ele estava fazendo nesse exato momento. Finalizando uma partida de shogi online.
Só mais um movimento e... Vitória!
Competir contra esse oponente em particular era bem desafiador. Seu amigo Katsuyuki-san jogava desde criança contra o avô, parando apenas recente por conta dos estudos de direito. Estudos esses que eram o motivo da recusa a uma nova partida. Bem, eles já haviam jogado bastante hoje.
O envio de uma mensagem de encorajamento coincidiu com a porta da sua casa abrindo.
-- Finalmente terminei! Nunca mais aceito organizar outra... Ei, por que tá tão escuro aqui?
A recém-chegada se moveu naquele breu com a facilidade que só quem já está acostumado com essa situação teria, em direção ao interruptor de luz.
-- Fala sério, quantas vezes eu já te disse que isso faz mal pros olhos!? E usar esses óclinhos de lente azul não é desculpa!
-- O que era aquilo que você tava falando? Já terminou de organizar a festa de halloween? Que rápido.
A mudança de assunto era muito óbvia. Mas Sou sabia que entre dar um sermão que já havia dado algumas vezes e reclamar do trabalho que teve, liberando um pouco do peso que sentia, ela escolheria reclamar.
Afinal de contas, ele conhecia Kana Mizuhara a quase três anos, e os dois passaram por muita coisa juntos durante esse tempo.
Em alguns segundos ela chegou na mesma conclusão.
-- Bom, eu terminei tudo o que dava pra terminar. Agora só falta o dia em si. Se algum espertinho não tiver novas ideias até lá.
-- Oh?
-- Não basta ter que passar dias compilando a lista de quem vem, quem cancela, quem foi convidado depois, ligando e atendendo pra confirmar e desconfirmar... Eu ainda tenho que revisar todo o orçamento porque alguém, e eu não sei nem quem, teve a ideia de fazer uma competição!
-- Competição?
-- Sim! Com prêmios! Nada de muito grande, é claro, exceto o trabalho. É um negócio tipo, quem tem a fantasia mais assustadora, mais fofa e tal.
-- Ah. Você vai participar?
Essa pergunta foi um erro. Na verdade, isso depende da perspectiva. Se a intenção dele era vê-la cuspindo fogo, então foi a pergunta mais correta a se fazer.
-- Participar? Eu? Claro que vou participar. PARTINDO A CARA DE QUEM SUGERIU ESSA COISA! PORQUE CLARO QUE A COMPETIÇÃO É SURPRESA ENTÃO QUEM ORGANIZA NÃO CONTA POR JÁ SABER DELA!
Que bom que ele já havia arrumado a sala antes de se perder no jogo ou ela teria tropeçado em algum livro com o jeito que pisoteava de um lado para o outro.
-- E ME DIZ, POR QUE SEMPRE SOU EU QUE TEM QUE ORGANIZAR ESSAS PORCARIAS DE FESTAS? NATAL, HALLOWEEN, DAQUI A POUCO ME PEDEM PRA FAZER A DE GRADUAÇÃO TAMBÉM!
Ela não estava errada. O motivo de tudo isso era sua reputação. Tal como Sou tinha a dele de inteligente e estranho, ela tinha a sua de forte e confiável. Com o tanto que ajudava as outras pessoas (elas pedindo por essa ajuda ou não), eventualmente se espalhou que sua competência era garantida. A propensão que tinha por intimidações era um bônus.
Ela se jogou no sofá, passando de tigre furioso à donzela angustiada.
-- Agora meus pés tão me matando. Andei o dia inteiro procurando um salão pra alugar.
-- Deve ter sido difícil.
-- Sim. Especialmente porque eu tive que fazer isso sozinha.
Ah. Ele estava em perigo.
-- Por que será, eu me pergunto. Vamos ver... Chamei a Noriko mas ela não podia vir comigo porque tava ocupada com uns estudos. Justo.
O posicionamento dela (deitada, pernas jogadas no braço do sofá, olhando pro lado contrário ao dele) significava que talvez houvesse a possibilidade de um escape. Mas a chance era tão pequena. Valia a pena arriscar?
-- Os outros só disseram que não teria problema deixar tudo comigo porque eu ia fazer um bom trabalho do mesmo jeito.
Bem, isso era verdade. E eles não precisavam se preocupar com Kana sabotando algo por retaliação ao abandono. Ela nunca estragaria a diversão dos convidados que não eram parte disso.
-- Hmm... quem mais... Ah sim. Você.
Sou valorizava a própria vida. 'Quem não arrisca não petisca' foi o que pensou enquanto vagarosamente se levantava.
-- O que você tinha dito? Que tava ocupado com um projeto, certo?
Ele andou nas pontas dos pés até a porta que levava ao resto da casa. E de costas, para que ela continuasse em seu campo de visão.
-- Então eu vou sozinha, resolvo as coisas e chego aqui pra te encontrar na escuridão total. O que não acontece quando você tá trabalhando em algo porque sempre tem algum livro pra verificar as informações.
Se virou para abrir a porta e uma mão imediatamente segurou seu ombro. Era tarde demais.
-- Por que isso, hein Touma-kun?
Ela o pegou.
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Cerca de uma hora e uma mudança de cenário mais tarde, Sou ainda estava pagando pela sua "traição". À vista. Só faltava o pedido ficar pronto.
-- Viu só? Da próxima vez me diz logo! Se você terminar mais cedo tem que vir me encontrar! Mas que frio, deixando os coleguinhas na mão desse jeito. Hmpf.
Honestamente, como ele pôde ser tão ingênuo assim? Claro que Mizuhara não precisava escolher entre dar o sermão ou reclamar. Ela era capaz de fazer os dois ao mesmo tempo.
-- É claro... se realmente não quisesse vir... eu não ia poder te forçar...
...Sem comentários.
-- Mas só de saber já seria bom. Eu ia ter te ligado sem culpa naquela hora em vez de passar tanto tempo perdida! Era um endereço muito estranho. Ou o orçamento! Você podia ter me ajudado com ele!
-- Dois hambúrgueres, duas batatas fritas, uma pipoca, um milkshake, um refrigerante e quatro cookies para Sou Touma. Só para confirmar, nenhum de vocês tem alergia ou restrição alimentar, certo?
-- Não, não temos. Obrigado.
A dupla recebeu a bandeja e foi até uma das mesas disponíveis. Quando se sentaram a conversa acabou tomando outro rumo. Como esperado, a promessa de comida era sumamente apaziguadora.
-- Milkshake de abóbora, hambúrguer com pão preto... Você está mesmo no clima de halloween, Mizuhara-san.
-- São sabores de tempo limitado, a gente tem que experimentar enquanto ainda tem! Onde tá a batata com páprica?
-- Aqui. Me passa a minha, por favor.
-- A com pimenta preta, certo?
-- Sim. Quais dos cookies você quer?
-- O fantasma e o gato preto.
-- Ok, então eu fico com a aranha e o... Esse alienígena não te faz lembrar do Mulder-senpai?
-- Hah, verdade. Ele provavelmente diria que esse pão vermelho do seu lanche foi trazido de outra dimensão pelo alien do cookie. O que será que aqueles três estão fazendo agora?
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-- ATCHIM!
-- Saúde.
-- Valeu.
-- Vê se não adoece e nem borra meu "M", Mulder, Queen vai nos matar se as fantasias não ficarem prontas a tempo.
-- Por que o clube de teatro da facul teve que dizer aquilo...
-- E fazia bastante tempo desde que ela foi ofendida daquele jeito. Pra ser sincero, eu também fiquei com raiva. Você não?
-- É claro que eu fiquei, Holmes! É só que... agora a gente tem tanto trabalho pra fazer... e eu não sei se-
-- Garotos! Voltei com um kimono da minha avó e com as tintas preta e dourada. Agora vamos colocando a mão na massa porque só temos uma semana e meia pra absolutamente massacrar aqueles exibidos e mostrar qual clube realmente é o melhor!
-- Er, Queen. Eu só tava me perguntando... como exatamente eu vou enxergar o caminho com isso na cabeça?
-- Holmes vai te guiar.
-- Oi!?
-- Algum problema, Holmes?
-- Não, nenhum.
-- Ótimo. Agora vamos que esses dentes não vão se colar sozinhos!
-- Sim, Queen.
-- Claro, Queen.
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Por um tempo eles comeram em silêncio. Um pacífico e confortável silêncio. Que, logicamente, não durou para sempre.
-- Certo então, só falta resolver uma coisa.
-- Qual coisa?
-- Decidir nossas fantasias.
A mão que pegaria o refrigerante parou no meio do caminho.
-- ...Nossas fantasias?
-- É claro. Você não tava planejando ir de roupa normal, tava?
Ele pensou duas vezes antes de responder.
-- Não... É claro que não.
-- Ótimo. Olha, é um pouco manjado mas eu acho que você deveria ir de vampiro.
-- Por que um vampiro?
-- A sua sala parece aquelas bibliotecas antigas dos castelos que vampiros moram.
-- Quando você vai parar de julgar minha casa?
-- Eles também dormem muito, sabe. Tipo, por séculos às vezes.
-- De onde você tirou que eu durmo tanto assim?
-- E, eles gostam do escuro.
-- Quando vai me deixar esquecer disso?
-- Nunca ♡.
Sou bebeu um gole com um suspiro e Kana continuou;
-- Mas talvez é óbvio demais. A gente tem que pensar em mais opções.
-- Então... Que tal Frankenstein? Ele é bastante associado com halloween.
--Hm... Pode ser. Mas vamos ter que comprar tinta verde.
-- Tinta verde?
-- Sim?
-- Por quê?
-- Porque o Frankenstein é verde...? Nunca viu os filmes? Ele é grande, quadrado, verde, cheio de costuras...
-- Ah. Você quer dizer o monstro do Frankenstein.
-- E era pra ser o quê?
-- Victor Frankenstein, o "doutor" que fez o monstro. Ele quem se chama Frankenstein.
-- Aaaaah. Não, ninguém vai entender.
Ela pegou uma das batatas dele.
-- Mas talvez funcione se você ficar perto de alguém fantasiado do monstro.
-- É só você ir com essa fantasia.
-- Eu não quero ir de monstro.
-- Então nós trocamos.
-- Pra eu ter que passar a festa inteira explicando a fantasia pra todo mundo?
Mas não era um problema se ele quem tivesse que explicar, huh.
Cada um pensou sobre que outra sugestão dar. Já tinham quase terminado de comer quando Kana teve uma ideia.
-- Touma-kun, lembra daquele anime educativo que a gente assistiu?
-- Sobre o corpo humano?
-- Sim! Você pode ser aquele personagem!
-- Qual?
-- Vermelho e branco, com chifrinhos.
-- . . . A bactéria!?
-- Ah sim, era isso que ela era.
Ele não queria ir de bactéria de todas as coisas, mas como algum dos outros personagens não seria ruim. Melhor que uma das fantasias saturadas.
-- Eu acho que você deveria ir de alguém do sistema imune, Mizuhara-san.
Afinal de contas, ela era boa demais em lutar e em defender os outros. Era alguém que seguia à risca seu próprio código moral. Que não parava até cumprir o objetivo que tinha. Ele precisaria de um bom tempo pensando para decidir qual célula branca mais se encaixava com seu perfil.
A primeira a responder o chamado de perigo? A mais forte que pulverizava inúmeros inimigos com um só golpe? A que treinava incansavelmente e instruía as mais novas? Talvez até a que sabia de tudo sobre todos. Kana certamente tinha uma quantidade inacreditável de amigos.
-- É? Por quê?
-- Porque elas são tão violentas quanto você.
Seu osso parietal nunca mais seria o mesmo. Para sempre estaria carimbado com a marca de um punho. Sou pôs uma mão na cabeça, ciente de que não faria diferença alguma. Era a força do hábito.
-- Sabe que isso só prova meu ponto, certo?
-- Calado, bactéria.
Ela abriu os potinhos de cobertura enquanto a "bactéria" dava a última mordida no próprio hambúrguer.
-- Vou pensar no seu caso enquanto experimento... isso!
-- Os condimentos doces exclusivos de dia das bruxas que vêm com a pipoca?
-- Hihi, por isso que eu quis ela. Pedi a tamanho grande.
-- Não me diga. Sério?
-- Eu tô percebendo esse sarcasmo viu!
-- Não me diga. Sério?
-- Tá bom então, vamos ver se eu te deixo provar esse aqui de... alcaçuz e chiclete, uia!
'Mas fui eu que paguei por tudo...'
Acontece que, de tão focada no lado das gostosuras, ela acabou esquecendo que esse mês também tinha seu lado essencial das travessuras.
Acabou engolindo o punhado de uma vez e tomando o resto do milkshake desesperada.
-- Mizuhara-san???? O que foi?
Só pôde responder depois da tosse passar.
-- Essa coisa tá a pimenta pura!
-- Tá apimentado?
-- Apimentado é pouco! Prova aí pra você ver.
-- Hm, acho que vou passar. Mas a cobertura não era de alcaçuz e chiclete?
-- É pra ser! Será que estragou?
Ele pegou o container e examinou.
-- Lacrado, na data de validade e sem sinal de deterioração... Acho difícil. Além do mais, não acho que o gosto de algo estragado seria apimentado.
-- Bom, então foi erro de fabricação? O de pimenta colocado no lugar do alcaçuz?
Sou derramou a cobertura em um guardanapo e viu o fundo do pote.
'Olha só... Deve ser o Q.E.D. mais rápido da minha vida.'
-- A gente devia avisar aos funcionários daqui, talvez esse não seja o único errado.
-- Espera, já sei o que aconteceu.
-- Mesmo?
-- Prova o outro condimento.
-- Eu não, vai que tá ruim também.
-- Se você provar eu te pago um sorvete. Hoje ainda.
-- Olha, sabor uva e maçã, uma delícia!
'Uva e maçã? Alcaçuz e chiclete eu entendo, são doces entregues às crianças, mas uva e maçã? É por que são frutas da estação?'
Dessa vez para não engasgar Kana tomou o resto do refrigerante. Que era dele.
-- Uff. Gengibre, Touma-kun?
-- Eu gosto. E então, tava picante?
-- Azedo. Com certeza estragou. Eu vou lá no balcão avisar.
-- Antes disso, me deixa ver uma coisa.
Ela observou enquanto ele despejava do mesmo modo que o anterior.
-- Vai jogar fora?
-- Não é isso. Veja, tem algo escrito aqui.
-- ... "T-R-I-C-K"?
-- Travessura. Uma pegadinha feita pela lanchonete.
-- São todas assim?
-- O mais provável é que hajam outras com gosto normal e escrito "gostosura" por dentro.
-- Então quando perguntaram sobre alergia...
-- É porque não tinha como garantir qual versão receberíamos.
-- Ah, não acredito!
-- Foi mesmo muito azar virem as duas de travessura.
-- Você diz azar mas tá se divertindo.
Talvez ele não tenha conseguido segurar o sorriso.
-- Só impressão sua.
-- Aham. Se você diz.
Um suspiro. Resignada, Kana decidiu comer a pipoca sem cobertura mesmo.
-- Mas não é meio cruel, fazer a pessoa acreditar que vai comer uma coisa quando na verdade é outra? Eu queria um doce.
-- Se quer um doce, tem os cookies que você deixou por último e o sorvete que te prometi.
-- Irrelevante, eu queria que a cobertura fosse doce. Será que não tem jeito de consertar?
-- Consertar é...
Impossível. Porém...
-- Não tem como consertar, mas existe algo parecido.
-- Espera, sério??
-- Synsepalum dulcificum. A fruta que deixa tudo doce.
-- Uau, uma fruta incrível dessas existe mesmo?
-- Sim. Exceto que ela não deixa a comida doce. Ela apenas faz você pensar que sim.
-- Não, agora você me perdeu. Como ela faz isso?
-- Uma glicoproteína contida nela se liga aos receptores da língua, alterando a percepção de gosto de quem a consome. O que era azedo fica com gosto doce.
-- Waah.
-- Claro, o alimento em si não realmente muda. Só a nossa percepção dele. Um limão continua um limão, com todos seus atributos.
-- Há! Entendi! Tipo aqueles bolos que decoram como se fosse outra coisa!
-- Hein?
-- Nunca viu os vídeos? Mostram uma TV, aí cortam com uma faca, bam! Era um bolo.
-- Er...
-- Imagina só, você doido pra experimentar um bife assado bem suculento e quando bota na boca! Era bolo. Absurdo, não acha?
-- Hm... Sim?
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Para Sou, o assunto terminou ali. Kana por outro lado, não conseguia parar de pensar na conversa que tiveram.
Enquanto tomava o sorvete.
"Fazer a pessoa acreditar [...] uma coisa [...]"
Enquanto voltava para casa.
"Não realmente muda."
Enquanto escovava os dentes antes de dormir.
"Faz você pensar que sim."
Enquanto acordava.
"Como se fosse outra coisa!"
Enquanto caminhava ao supermercado.
"Só a nossa percepção dele."
Enquanto fazia as compras da semana.
"[...] quando na verdade é outra?"
Enquanto tinha uma ideia.
"T-R-I-C-K"
Pouco depois do anoitecer, ela irrompia na biblioteca antiga de castelo de vampiro.
-- TOUMA-KUN! EU JÁ SEI DO QUE A GENTE VAI SE FANTASIAR! É PERFEITO! Espera, você tá com a luz apagada de novo!?
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31 de outubro, 19:33.
Noriko Arita acabou chegando atrasada, mas chegou. Não apenas o caminho era longo como ela também se distraiu com as fantasias interessantes de todos ao redor. Uma muito marcante era a Rainha de Copas de kimono e coroa de rosas. Ela queria aproveitar a coincidência e pedir uma foto mas tomou um susto daqueles com o alienígena gigante atrás dela.
Considerando que ele tinha um ferrão no fim da estranha cauda, uma cabeça cilíndrica arredondada, a boca cheia de dentes pontudos e uns canos nas costas, Noriko tinha certeza que ninguém a julgaria por se afastar assim que o viu.
O fator medo diminuía um pouco quando se percebia que ele tinha enorme dificuldade em andar reto e era acompanhado por um homem de cartola, monóculo e bengala dourada. Infelizmente, até chegar esse ponto o estrago já estava feito.
Pelo menos ela tinha algo interessante para contar aos amigos quando os encontrasse na festa. Passou as mãos na saia de seu vestido azul e entrou.
Imediatamente se topou com um balcão improvisado.
-- Nome e classe, por favor.
-- ...Madoka?
-- Noriko, é você? Menina, faz tempo que a gente não se vê!
-- Sim, eu andava tão ocupada. Você é a recepcionista? Nem sabia que ia ter recepção.
-- Também não. Kana nos pegou de jeito.
-- "Nos"?
-- Eriko foi no banheiro mas já volta.
-- Entendi.
-- Essa recepção é porque tem uma competição de fantasias e a gente vai distribuir os papéis pros convidados votarem.
-- Mesmo? Ah, eu nem me toquei...
-- Não foi você Noriko, era surpresa mesmo. No horário certo a gente entrega papel e caneta e vocês colocam nas urnas lá no fundo da sala. Tem várias categorias.
-- Aaah. Legal então. Será que eu ganho alguma delas?
-- É bem possível... Alice, né? Ficou uma gracinha.
-- Eriko! Obrigada.
Mesmas orelhas, mesma cauda, mesmo macacão jardineira, diferentes cores... Observando as duas lado a lado, Noriko percebeu uma coisa.
-- Vocês vieram combinando?
-- Algo assim.
-- Tentamos.
-- Não entendi. As duas não são gatos?
-- Eis a questão. Não era pra nós duas sermos gatos.
-- É, a Madoka se confundiu e agora somos de franquias diferentes.
-- Eu? Era você que tinha que se disfarçar de rato!
-- Não era não. Você tem é sorte que já tinha comprado essa peruca cinza se não eu te fazia-!
-- Isso de novo? Escuta aqui, Eri-
-- Certo, hã... Eu vou ali... dizer oi pro pessoal... Feliz halloween, tchau!
-- Feliz halloween Noriko!
-- Feliz halloween! Eriko, eu não vinha daquele passarinho amarelo nem a pau!
'Não deu pra perguntar de onde são esses gatos... um cinza e um preto com branco...'
O questionamento não durou muito. A festa em si tomou toda sua atenção.
Perambulando pelo salão, Noriko se encantou. A iluminação majoritariamente roxa e verde compunha um clima sombrio. As risadas e os sons de conversa se misturavam com a música, deixando bem clara a diversão dos convidados. Nos pontos em que a luz era normal, grupos tiravam fotos. Sem contar a decoração.
'Abóboras, um candelabro... Tem até névoa! Como será que fizeram? Deu pra alugar uma máquina de- GAH!'
Distraída, quase se emaranhou com uma teia de aranha decorativa. Apesar disso, não parou de andar deslumbrada.
Era como se ela realmente fosse Alice descobrindo o país das maravilhas, com o jeito que se sentia em outro mundo. Nem parecia que o concurso era surpresa porque era notável a dedicação que cada um pôs no próprio disfarce.
'Os organizadores se esforçaram muito. Ficou incrível. Ali é a noiva cadáver!?'
Falando sobre, qual seria o da Kana? Ela tinha feito tanto segredo disso... Bom, era só encontrá-la para descobrir. Foi com esse intuito que Noriko se dirigiu até a mesa de comidas.
Conseguiu distinguí-la imediatamente, por mais que estivesse de costas.
-- Kana! Oi! Sabia que ia te encontrar aqui!
Mas havia algo de errado. Não foi fácil demais reconhecê-la? O rabo de cavalo de sempre, calça jeans, blusa de manga longa... aquilo... não parecia uma fantasia.
Se aproximou e pôs a mão em seu ombro.
-- Você não veio fantasiada?
-- Hm? Ah, Arita-san. Só um momento.
Havia algo de muito errado. Aquela não era Kana.
Não-Kana anotou algo em um caderninho.
-- Me desculpe, você estava procurando a Mizuhara-san?
O rosto era feminino. Os aspectos físicos frontais eram femininos. Mas a voz... A voz era do-!
-- T-Touma-!?!?
-- Em carne e osso, por mais que não pareça no momento.
-- Waahh... Eu podia jurar que, de longe!
-- Essa era a intenção.
-- Até os olhos...
-- Lentes de contato.
-- Isso que é dedicação.
-- Quando Mizuhara-san coloca uma ideia na cabeça, não há quem a tire.
Riu em concordância.
-- E onde ela tá?
-- "Touma-kun" está bem ali.
Seguindo o olhar para onde ele apontava, Noriko viu uma sósia do garoto ao seu lado. Usando blusa preta e flanela laranja, ela falava;
-- Devido à glicoproteína em nela contida, a Synsepalum dulcificum engana nossa percepção...
Com uma múmia, um lobisomem e um... provável porco de calça com duas espadas sendo seus ouvintes.
-- Uau, o disfarce dela também é perfeito! O que ela tá fazendo?
-- Contando uma das curiosidades que decorou pra hoje. Parece que assim "fica mais perto do original".
-- Os braços detrás das costas ficou igualzinho. Parece você mesmo.
-- Ela queria que eu a imitasse também.
-- Como?
-- Me ensinando algumas kamae. Mas como pode ver:
Moveu seu braço sinalizando o salão cheio de pessoas.
-- Seria um completo desastre se alguém agitasse uma espada por aqui.
-- Ah. E também, ninguém é capaz de fazer o mesmo que a Kana, né? Eu não conseguiria aprender esse tipo de coisa em tão pouco tempo.
-- Sim, isso também.
-- Que pena. Só ficou faltando você agir como ela.
-- É um pouco mais sutil, mas já estou fazendo isso.
-- Sério?
-- "Sabia que ia te encontrar aqui".
-- ...!
Foi tudo planejado, eles a enganaram! Enganaram mesmo! De jeito!
'Será que os anfitriões aceitam se eu sugerir mais uma categoria pra premiação?'
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Em uma plataforma tão improvisada quanto o balcão, uma garota de outra classe com um rabo de cavalo alto e azul em cada lado da cabeça acabava de anunciar os vencedores da competição.
-- Agora que todos os mais votados já receberam seus merecidos prêmios, vamos chamar ao palco os ganhadores dos temas de última hora! Temas que os próprios convidados sugeriram espontaneamente!
Touma- quer dizer, Mizuhara- quer dizer, Touma, quer dizer... Uma metade da dupla se virou para a outra e cochichou alarmada;
-- Como assim tema de última hora? Eu não preparei nenhum prêmio pra isso! E agora o que a gente faz?! Pare ela Touma-kun!
-- Espera Mizuhara-san, acho que eles já estão preparados. Não fariam uma promessa que não pudessem cumprir.
A anunciadora recebeu uma lista de alguém usando macacão azul de manga longa, óculos, peruca loira curta e uma enorme mochila de acampar branca.
-- Com um voto cada nas categorias:
>Melhor Truque;
>Fantasia Mais Surpreendente;
>Melhor Fantasia de Alguém da Própria Sala;
>Melhor Disfarce Não-Fictício - esse fui eu, tô treinando meu vocabulário;
>Não Sabem Nem Brincar;
>Tão Enganando o Cliente;
>Maior Susto Não Aterrorizante;
Entre outros, os vencedores são: Kana Mizuhara e Sou Touma!
-- QUÊ!?
-- Se fizerem o favor de vir ao palco, entregaremos seu prêmio agora.
-- Vamos.
-- Qu- mas- !?
Os festejantes aplaudiam enquanto ela, imóvel devido ao choque, era puxada pelo braço. Uma imagem corriqueira e ao mesmo tempo inusitada, já que era "Kana" arrastando "Sou".
Dois tickets coloridos foram depositados em suas mãos.
-- Cupons de pipoca grátis! Na compra de qualquer item na lanchonete na frente da estação vocês receberão uma porção de pipoca acompanhada de condimentos doces exclusivos de dia das bruxas! As novidades do mês foram extendidas até semana que vem.
-- Ahah...
-- Obrigado.
-- Os melhores da noite gostariam de dizer algo?
Se olharam por um momento. Touma sorriu. Kana correspondeu. Cruzou o braço com o dele e antes de fazerem uma reverência, ela declarou:
-- Isso finaliza nossa demonstração!