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Povo rebelde do céu- A segunda chance

Summary:

Clarke Griffin e Bellamy Blake enfrentaram guerras, traições, IA’s malignas e perderam quase tudo — inclusive a Terra.
Mas quando o mundo parece ter chegado ao fim mais uma vez... uma última chance aparece: voltar ao começo.

Com suas memórias intactas, eles despertam dentro da Dropship momentos antes da queda dos 100 na Terra. Agora, carregando todo o peso de um futuro destruído, eles sabem o que precisam fazer: salvar o maior número de vidas possível e reconstruir o mundo, mesmo que isso custe tudo.
_____________

Clarke olhou para o horizonte, onde o último feixe da anomalia se dissipava. O mundo que tentaram salvar estava ruindo outra vez, e pela primeira vez em muito tempo... ela sentiu que não havia mais tempo. Nem mais salvação. Até ouvir a voz dele.

-Clarke... Bellamy estava ferido, mas firme. - E se essa não for a nossa última chance?
Ela se virou. Ele segurava o diário de Monty.

Um detalhe escondido nas últimas páginas

coordenadas da anomalia temporal. Uma falha. Um caminho de volta.

Clarke franziu a testa.

-Voltar pra onde?

Bellamy encarou o céu morto, e depois a jovem à sua frente, a única constante em todas as suas guerras.

-Pro começo.

Notes:

Basicamente acho que a série ficou arruinada na 7 temporada e acho que de todos, os personagens de the 100 são os que mais tem motivos pra querer recomeçar, fazer tudo de novo mas agr de maneira diferente, eles tem muitos arrependimentos , e com certeza o bellamy e a Clarke nunca terem aceitado os sentimentos que tinha um pelo outro foi um deles... então vamos de time travel fix-it , sempre quis lê uma dessas de boa qualidade e que realmente tivesse uma continuação, mas como não achei decidi fazer uma.

(See the end of the work for more notes.)

Chapter 1: A luz no fim do túnel

Chapter Text

Clarke estava cansada.

Ela sabia que tudo o que havia vivido parecia ter saído direto de um daqueles livros antigos de distopia que achara escondidos nos porões da Arca. Ela tinha tido seu corpo possuído — pelo amor de Deus. Então sim, ela estava cansada. Procese-a.

As estrelas morriam uma a uma no céu de Sanctum.

Clarke olhou para o horizonte, onde o último feixe da anomalia se dissipava. O mundo que tentaram salvar estava ruindo outra vez, e pela primeira vez em muito tempo... ela sentiu que não havia mais tempo. Nem mais salvação.

Até ouvir a voz dele.

— Clarke... — Bellamy estava ferido, mas firme. — E se essa não for a nossa última chance?

Ela se virou. Ele segurava o diário de Monty.
Um detalhe escondido nas últimas páginas.
Coordenadas.
Da anomalia temporal.
Uma falha. Um caminho de volta.

Clarke franziu a testa.
— Voltar pra onde?

Bellamy encarou o céu morto, e depois a jovem à sua frente — a única constante em todas as suas guerras.

— Pro começo.

Parecia loucura. E de fato: era.
Mas o que tinham além disso?

Sinceramente, de todas as coisas que já tinham acontecido com eles — desde serem lançados ao abate em um dropship até ter que lutar contra uma IA maligna — essa nem parecia tão ruim assim.

Na verdade... parecia uma luz no fim do túnel.

Clarke pensou nas coisas que poderiam mudar.
Quantas pessoas poderiam salvar...
Finn. Lexa. Lincoln. O resto dos delinquentes...
Tantos nomes. Tantos rostos que se perderam.

Ela olhou para Bellamy.

E os olhos dele falaram por ele.
Ele já havia decidido. Daquele jeito impulsivo dele, que sempre parecia insano… mas de algum modo, sempre dava certo.

Ele faria isso, com ou sem ela.

Mas o que seria da cabeça sem seu coração, não é mesmo?

— Ok... — ela disse, suspirando. — Vamos lá. Juntos? — perguntou, estendendo a mão.

Bellamy pegou a mão dela na dele. Sem desviar o olhar.

— Juntos.

E então, a anomalia os engoliu.

Não seus corpos, mas suas mentes.
Suas memórias.
Suas culpas.

**

Quando abriram os olhos, estavam sentados dentro de uma cápsula conhecida.
A Dropship.

Clarke levou segundos para entender o que havia acontecido. Bellamy levou apenas um olhar para reconhecer tudo ao redor.

Eles estavam de volta.
Antes de tudo.

No dia em que os cem tocariam a Terra pela primeira vez... o coração e o cérebro já sabiam exatamente o que fazer.

Chapter 2: O cérebro e o coração.

Summary:

WE’RE BACK, BITCHES!!!!!

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

O mundo estava tremendo.

Luzes piscavam, os cintos prendiam seu corpo com força contra o banco e um gosto metálico de medo e metal queimado se espalhava na boca. Mas Clarke não gritava. Não chorava.

Ela sabia onde estava.
Sabia o que viria.

Seus olhos se abriram de súbito — e tudo confirmou o impossível.

Estavam de volta.

Ela ergueu o olhar, o coração disparando. Jovens gritavam, alguns ainda desacordados. O caos era o mesmo. Mas Clarke não era mais a mesma.

Ela virou o rosto. Ao seu lado, uma voz familiar:

— Clarke? — Wells.

Ela engoliu seco. Aquela era a versão mais jovem do garoto que ela já havia perdoado… e perdido. Por um segundo, quis chorar. Mas se conteve.

— A gente está...?

— Na Terra — ele respondeu com firmeza. — Quase lá.

Antes que pudessem dizer mais alguma coisa, um movimento chamou sua atenção.

Finn Collins.

Ele soltou o cinto, sorrindo como se fosse uma aventura. Se levantou com o corpo flutuando um pouco nos últimos segundos de gravidade zero.

— Sempre quis voar — disse, se equilibrando com graça.-olha só o que temos aqui , se não é a realeza da arca?.

Clarke olhou para ele , já irritada.

— E você é o SpaceWalker que desperdiçou meses de oxigênio flutuando no espaço, certo?

Finn soltou uma risada debochada, mas voltou o olhar para ela.

— Estraga-prazeres.

— A menos que você queira que aqueles dois que estão atrás de você morram esmagados quando a nave tocar a atmosfera... — disse ela, séria. — É melhor sentar e colocar o cinto.

Ele olhou para trás, dois garotos sorrindo, tentando imitar a coragem dele.

Finn hesitou. Mas não se moveu.

A nave chocou contra a atmosfera como previsto.

Um estrondo seco. A gravidade os puxou com violência. Os gritos se espalharam.

Os dois garotos... não tiveram tempo de reagir. O impacto foi fatal.

Finn se sentou, respirando fundo, o rosto suado. Clarke passou por ele sem dizer mais nada.

Mas ele sentiu.

Ela sabia.
Ela tentou avisar.
E ele... ignorou.

Depois do impacto, os gritos cessaram aos poucos, substituídos por um silêncio pesado. Clarke se ajoelhou perto dos corpos dos garotos que tinham seguido Finn. Ela tocou o pescoço de um... sem pulso. O outro, igual.

Ela se levantou devagar, os olhos fixos em Finn. Passou por ele como uma tempestade fria.

— Tá vendo? — disse, sem levantar a voz, mas com peso suficiente pra que ele jamais esquecesse. — É isso o que acontece quando não se mede as consequências dos seus atos. Às vezes as consequências recaem em outras pessoas. Pessoas inocentes. E vão embora pra sempre.

Ela não esperou resposta. Sabia que podiater cido um pouco dura com ele ,mas ele precisa aprender isso, o mais rápido possível de preferência.

Desceu pelas escadas internas da Dropship com passos decididos, atravessando os delinquentes que ainda se organizavam entre confusão, gritos e medo. No andar de baixo, ela ouviu uma voz rouca, ansiosa, emocionada:

— Octavia!

Bellamy Blake abraçou a irmã como se ela fosse feita de vidro. Segurou o rosto dela, inspecionando cada detalhe como quem reencontra alguém que acreditava ter perdido pra sempre.

— Você tá aqui... você tá mesmo aqui... — ele murmurava.

Diferente da primeira vez que Clarke viu esse momento, agora Bellamy estava com os olhos marejados. As mãos tremiam nos cabelos da irmã, como se ainda estivesse esperando acordar. E então, depois de sussurrar algumas coisas para ela ,como na primeira vez, ele se virou para a alavanca da porta.

Mas... ele parou.

Hesitou.

Sua mão pairou sobre o mecanismo, como se esperasse um sinal — uma confirmação.

E então ela falou:

— Espere. — Clarke disse com firmeza. — Não sabemos se o ar lá fora pode ser tóxico.

Ele se virou lentamente.

Olhar fixo no dela.

E mesmo antes de qualquer resposta, ela soube.

Era ele.
Era o Bellamy que ela conhecia.

— Bom... — ele respondeu, com um meio sorriso nos lábios rachados. — Se o ar é tóxico, então estamos todos mortos, princesa.

O apelido bateu no peito de Clarke com força. Ela engoliu seco.

— Bellamy... — ela sussurrou, quase tropeçando nos próprios passos.

Ela foi até ele. Esqueceu a pose, esqueceu as mentiras. Apenas... o abraçou.

Forte. Real.

Ele retribuiu o gesto, enterrando o rosto no ombro dela por um instante.

— Você realmente tá aqui. — Clarke sussurrou.

— Onde mais eu estaria? — ele respondeu, com a voz mais baixa que um suspiro.

Atrás deles, os cochichos começaram.

— Eles se conheciam da Arca?
— Será outra irmã?
— Ela chamou ele pelo nome direto, você viu?

Bellamy se afastou apenas o suficiente pra encarar Clarke de novo.

Pegou a mão dela com a dele e colocou ambas sobre a alavanca.

— Juntos?

Ela assentiu, firme.

— Juntos.

Eles puxaram a alavanca.

A porta da Dropship se abriu com o som metálico de um novo começo.

Luz. Terra. Vida.
Pela primeira vez em quase cem anos, humanos pisariam ali de novo.

Bellamy recuou um passo, estendendo a mão para Octavia.

— Vai lá, irmãzinha. Vai fazer história.

Octavia olhou para eles meio confusa e desconfiada mas deu um passo à frente, os cabelos esvoaçando no vento. Um sorriso selvagem cresceu em seu rosto. E então, com o corpo erguido e os braços abertos, ela gritou:

— WE’RE BACK, BITCHES!

 

**

 

O vento tocou meu rosto com uma suavidade quase absurda.

Estávamos mesmo aqui.

A Terra.

O ar era respirável, o céu mais azul do que em qualquer simulação da Arca, e o cheiro... o cheiro era de liberdade.

Octavia se jogou na grama. Os outros logo a seguiram, saindo correndo da Dropship, gritando, celebrando, chutando pedras, pulando como crianças em um recreio proibido.

Mas Bellamy e eu permanecemos por último, ainda na porta, observando.

— Eles não têm ideia... — eu murmurei.

— Talvez seja melhor assim. — ele respondeu.

Ficamos lado a lado por alguns segundos, em silêncio. E então ele soltou minha mão com cuidado e seguiu em direção ao grupo, já assumindo um tom de liderança natural:

— Não se afastem muito, ainda não sabemos o que tem por ai!

Alguns pararam. Outros olharam com dúvida. Mas a voz de Bellamy... tinha peso.

Finn, ainda tocado pela minha bronca anterior, tentou se aproximar:

— Parece que você e a Clarke têm tudo sob controle, hein?

Bellamy riu sem humor.

— Acredita no que quiser, Spacewalker. — e foi embora sem dar mais resposta.

Eu só respirei fundo.

Finn achou que tudo aquilo era estranho.

Bellamy e Clarke se olhavam como quem sabia coisas demais. Agiam com sincronia, como se tomassem decisões em silêncio. E o mais estranho: ninguém parecia questionar.

Murphy veio do lado:

— Esse Bellamy aí... ele era segurança da Arca, né? Porque ninguém chega e manda assim do nada.

— E ela? — cutuquou Finn, apontando pra Clarke.

Murphy assobiou.

— Se eram um casal, tavam escondendo bem. Mas agora... sei não, tem alguma coisa aí.

**

Bellamy se proximou da árvore onde Monty estava tentando ativar um rastreador. Observando com atenção. Havia tanto que poderíamos evitar... tanta coisa prestes a acontecer. Tanta gente que ainda podia morrer.

Ele sentiu a presença dela ao meu lado antes mesmo de olhar.

— Já sei o que você tá pensando. — ela disse.

— Duvido. — rebati, mas sorri. Ela sorriu de volta.

— Você quer saber se vai conseguir impedir tudo. — Clarke completou.

— E você quer tentar consertar cada vida perdida. — eu disse.

Ela assentiu. Depois ficou em silêncio por um momento.

— Sabe o que me assusta mais, Bellamy? — perguntou, baixinho. — A gente ter essa chance… e ainda assim errar.

Olhei pra ela.

— Então vamos acertar. — respondi. — Dessa vez, a gente lidera do começo. Sem Conselho. Sem Arca. Sem ordens de cima.

Ela assentiu.

— Sem prisões.

— Sem sacrifícios inúteis.

— Sem deixar ninguém pra trás.

Olhamos de novo para os delinquentes. Nossa responsabilidade. Nossa pequena resistência.

— Povo rebelde do céu... — ela murmurou.

E nesse momento, sabíamos: o mundo antigo tinha acabado.

Mas o novo… o novo começava com a gente.

 

**

 

Bellamy e Clarke estavam tentando organizar a zona ao redor da Dropship quando Wells apareceu. Mapa em mãos, o olhar determinado. O mesmo olhar que ele usava quando achava que estava ajudando — mesmo quando não estava.

— Clarke, — ele disse, parando ao meu lado. — Aterrissamos no lugar errado. Devíamos ter caído perto de Mount Weather. Temos que reunir o grupo e seguir a pé, se quisermos chegar lá antes do anoitecer.

Mount Weather.

O nome soou como um soco seco.

Eu fechei os olhos por um instante. A imagem daquelas paredes. Daquela prisão disfarçada de salvação. Dos corpos. Dos gritos. Dos tubos. Do sangue. A verdade sobre Mount Weather.

Mas naquela linha do tempo... eu não podia saber disso.

— Wells, — comecei com a voz baixa, mas firme. — Você tem noção do que está pedindo? São cem pessoas. Cem adolescentes,feridos, todos famintos, sem proteção, sem abrigo, sem informação. Levar todos eles floresta adentro é suicídio.

Ele franziu a testa, frustrado:

— Mas precisamos da comida. Do abrigo. Do que tem lá dentro. Meu pai disse que Mount Weather era a nossa única chance.

— O seu pai, — eu disse, com a voz começando a subir — nos mandou aqui pra morrer.

A frase cortou o ar.

Wells congelou. Os delinquentes ao redor pararam de trabalhar, de rir, de conversar. Começaram a se virar. Cochichos, passos se aproximando. A “princesa da Arca” estava falando alto demais.

E pela primeira vez... não parecia estar do lado de quem veio de cima.

— Clarke, por favor... — Wells tentou dizer.

Mas eu já tinha ido longe demais pra voltar.

— Não importa o que você fez pra vir parar aqui com a gente, Wells. — minha voz ecoou forte. — Não importa se você se jogou nessa prisão achando que podia me proteger ou me vigiar. O fato é que o seu pai — o chanceler da Arca — te jogou nesse Dropship junto com o resto de nós. Ele te mandou pro abate.

— Isso não é verdade... — ele sussurrou, mas soou mais pra ele mesmo do que pra mim.

— Você acha que eles sabiam se o ar era respirável? Não sabiam. Você acha que sabiam se o solo era seguro? Também não. Eles nos mandaram porque éramos descartáveis. Porque pra eles, nós não valíamos nada.

Mais cochichos. Os olhos se voltando. Alguém ali sussurrou “ela tá certa”, e outro respondeu “é por isso que eles nunca avisaram que estavam nos enviando pra cá ”. O campo estava começando a ferver.

— Wells, não podemos mais viver segundo o que a Arca acha melhor. A Arca ficou lá em cima. — continuei. — Aqui embaixo, é por nossa conta. E nossa sobrevivência começa com parar de obedecer ordens que vão nos matar.

Ele abaixou os olhos. Desanimado. Talvez derrotado. Talvez finalmente entendendo.

— Então o que vamos fazer...? — perguntou, baixinho.

Antes que eu respondesse, senti um calor nas costas.

Me virei só o suficiente pra ver Bellamy ali.

Não disse nada. Não fez alarde. Apenas ficou atrás de mim, braços cruzados, expressão dura. Era como se dissesse: o que ela decidir, eu estou com ela.

Wells o encarou por um momento. E naquele momento entendeu.

Eu não era mais a Clarke da Arca.
E ele não era mais o único que me conhecia bem.

Bellamy sabia muito mais.
Porque ele estava comigo... até mesmo no fim do mundo.

**

Bellamy se aproximou mais quando ouviu a comoção.

A voz da Clarke ecoava firme pelo acampamento, cada palavra um golpe direto no orgulho da Arca. O grupo em volta formava um círculo, absorvendo tudo, como se ela fosse um trovão iluminando aquela floresta escura.

Wells estava à frente dela. Confuso. Ferido.
Mas não era por causa das palavras dela — era porque ele ainda não tinha percebido.

Aquela não era mais a Clarke dele.

A Clarke dele era a garota da Arca. A filha da médica. A estudante modelo.
A que sorria com doçura.

Essa era a minha Clarke.

A que viu amigos morrerem.
A que decidiu quem vivia e quem morria.
A que enfrentou o apocalipse... e venceu.

Ela era mais forte do que ele jamais entenderia. E eu era o único ali que sabia disso.

Fiquei atrás dela. Silencioso. Mas inteiro. Só minha presença já dizia que estávamos juntos.
Que ela não estava sozinha nessa liderança.

Enquanto os cochichos cresciam, percebi a tensão no ar. A raiva do Wells. A fome nos olhos dos outros. O medo de não saber o que fazer.

E foi aí que eu falei:

— Mount Weather não é o único bunker existente por aqui.

O círculo de vozes se calou.

Wells virou pra mim, visivelmente irritado, a voz cortante:

— E como você saberia disso?

Silêncio.

Na minha cabeça, a resposta era simples: porque eu vi esse mundo se despedaçar. Porque eu já estive aqui. Porque vivi o suficiente pra enterrar os corpos do que “Mount Weather” causou.

Mas não podia dizer nada disso.
Não ainda.

Antes que eu abrisse a boca, Clarke entrou.

Como sempre. Minha graça salvadora.

— Nos mapas antigos da Arca, — ela disse, se virando calmamente — havia mais do que registros de elevação e localização. Alguns marcavam antigos pontos turísticos, edificações antigas, museus, estruturas militares desativadas.

Ela andou até Wells com segurança, como se estivesse explicando algo trivial.

— Entre eles, havia um não muito longe daqui. — apontou o mapa que ele segurava. — Não é como Mount Weather, que foi adaptado pra resistir a ataques nucleares. Mas agora que a radiação já não é mais uma ameaça direta... pode ser suficiente.

Wells ficou em silêncio. A multidão esperava.

— É a nossa melhor chance. — ela concluiu.

Eu cruzei os braços, olhando pro grupo.

— Ou isso, ou arrastamos cem corpos por quilômetros sem garantia de sobrevivência. A escolha é de vocês.

Um a um, os olhos começaram a se voltar de Wells... para nós dois.

Clarke e Bellamy.

O cérebro e o coração.

E pela primeira vez, o povo rebelde do céu deu um passo à frente, juntos...

O silêncio que a Clarke deixou pairando no ar ainda pulsava. Mas dessa vez... era diferente. Não era um silêncio de medo.

Era de reflexão.

Todo mundo ali percebeu, de uma vez por todas, que ninguém viria nos buscar.
A Arca nos jogou aqui. E agora, a gente era o começo de algo novo.

Eu dei um passo à frente, olhando pra todos. Sabia o que tinha que fazer.

— A gente foi descartado. — minha voz saiu grave, clara. — Mandaram cem de nós pra cá sem armas, sem abrigo, sem respostas. Como se fôssemos um erro que precisava ser apagado.

Alguns assentiram, outros baixaram o olhar.

— Mas só porque eles desistiram da gente... não quer dizer que somos simplesmente as cobaias deles.— completei. — Eles acham que jogaram fora o que não prestava. Mas o que eles não sabem é que aqui... — bati a mão no peito — ...tá o começo de um novo povo.

Olhei pra Clarke. Ela já estava me olhando. Acordados. Ali. Juntos.

— Se a gente continuar agindo como se cada um por si fosse suficiente... vamos morrer. Não amanhã. Não hoje. Mas aos poucos. Pela fome. Pela doença. Pela confusão.

Me aproximei do grupo.

— Mas se a gente se organizar... a gente sobrevive. A gente vive. Mostramos que não precisamos de ninguém pra nos dizer o que a gente vale.

Os olhos me acompanhavam agora. O povo que começava a nascer. Meu povo.

— Por isso, eu preciso da ajuda de vocês. Todos têm alguma habilidade, alguma experiência. Mesmo que pequena. Mesmo que ache que não serve de nada. Serve sim.

Levantei o braço.

— Quem na Arca veio de setor de costura ou manutenção de roupas, levanta a mão.
— Agora, quem teve família que serviu como guarda, segurança ou treinamento de defesa.
— E quem cuidava de reciclagem, compostagem, jardinagem, plantas?

As mãos foram se erguendo aos poucos. Alguns tímidos. Outros com orgulho. Eu via cada rosto. Cada um daqueles jovens finalmente... sendo vistos.

— Vamos nos dividir em grupos. Os que souberem organizar comida, começamos por vocês. Os que sabem montar barracas, fiquem comigo. Vamos transformar esse campo em algo nosso.

— Hoje, nasce o nosso povo. Nosso lar. Não porque alguém lá em cima deu permissão... mas porque aqui, agora, a gente escolhe viver.

Clarke deu um passo silencioso até meu lado. E só de estar ali, já selou o acordo.

 

**

 

》Arca, horas após a queda da Dropship.

O silêncio da sala de comando da Arca só era quebrado pelo som dos batimentos cardíacos.

— Pulso estável. Saturação normal. Frequência dentro da margem. — leu Jackson, analisando a tela à sua frente.

Abby se aproximou, cruzando os braços. O olhar preso a um ponto específico.

Clarke.

O pequeno ponto verde na tela, marcado com o código dela, estava firme. E não era só isso.

— Ela está calma. — murmurou Abby.

— calma? — Jackson perguntou.

— Não está tão agitada como os outros. Seus níveis de adrenalina estão estáveis demais, o tempo todo. Como se estivesse calculando, decidindo, como se não tivesse nada ali para estar animada... mas sim tensa. — ela parou. Franziu a testa. — Isso não é...

Ela não completou a frase.

Clarke sempre foi inteligente. Mas impulsiva. Emotiva.

Essa Clarke parecia diferente. Precisa. Fria.

— Eles estão bem, Abby. — Jackson tentou tranquilizar. — Os sinais são positivos. Talvez isso funcione.

Antes que ela pudesse responder, a porta da sala se abriu com força.

Kane entrou, rígido como sempre. Ao lado dele, dois guardas traziam algo — alguém — em uma maca de emergência.

Abby arregalou os olhos.

— Thelonious?!

Ela correu até a maca, examinando o ferimento. Um tiro. O sangue ainda fresco.

— Como isso aconteceu?!

Kane estava sério, mas controlado:

— Foi na plataforma de lançamento. Alguém atirou nele pouco antes do disparo. Ainda estamos investigando.

Abby apertou os lábios. O timing era suspeito. Demais.

— Alguém entrou com uma arma dentro da câmara de decolagem? Isso é impossível sem ajuda interna.

— É por isso que estamos interrogando toda a equipe. — respondeu Kane.

Ele andou até o painel de monitoramento.

— Há pelo menos 95 sinais vitais estáveis no grupo.
— Mais do que esperávamos.

— O que quer dizer com isso? — Kane perguntou.

— Quero dizer que o solo pode ser realmente abitavel e que eles estão se organizando. — Abby cruzou os braços. — Estão sobrevivendo. E o mais estranho: não há caos. Não há pânico, o que é exatamente o oposto do que eu esperava de um grupo de jovens delinquentes. É como se... tivessem sido treinados... — E isso inclui sua filha pelo visto.— Kane respondeu.

Abby sentiu o coração acelerar.

Ela voltou a olhar para o sinal da filha. Clarke, que parecia notavelmente mais controlada que todos os outros, como se soubesse exatamente o que estava fazendo.

Como se estivesse se preparando pra isso há muito tempo.

Ela sussurrou:

— O que você viu aí embaixo, Clarke...?

 

**

 

》Terra- pouco tempo depois da aterrissagem

Clarke ouviu o discurso de Bellamy em silêncio.

As palavras dele ainda ecoavam nos meus ouvidos.

Bellamy sempre teve esse dom.

Mesmo quando dizia que não queria liderar, mesmo quando fingia que tudo era sobre sobreviver por causa da irmã... ele era feito pra isso. Inspirar. Unir. Tocar os corações das pessoas.

E dessa vez, como tantas outras que ainda estavam por vir, ele conseguiu exatamente isso.

As atividades começaram quase de imediato. O campo em volta da dropship ganhou vida.

Grupos se formaram.

Tiramos os assentos da nave e desmontamos o interior. Os estofos viraram colchões improvisados. As placas internas serviriam pra futuras barricadas. Os paraquedas presos nas árvores foram cortados com cuidado e se tornaram tendas.

Era estranho ver tudo isso acontecer tão cedo. Na linha do tempo original, isso só veio muito depois — depois de perdas, brigas, e quase tragédias.

Agora, a gente estava começando certo.

Bellamy também foi claro sobre uma coisa: ninguém toca no exterior da nave.
Ela precisava continuar funcional. Se necessário, poderia ser usada como abrigo.
E eu sabia exatamente o porquê.

Ele estava se preparando para a névoa.
Assim como eu também estava.

Mas não podíamos dizer isso em voz alta.
Ainda não.

Então organizamos tudo sob desculpas técnicas e plausíveis. Trabalhos em grupos. Turnos para coleta de lenha, vigias, construção de abrigo, patrulha e triagem de alimentos. Como se já tivéssemos treinado isso antes.

Na verdade… tínhamos.

Meu papel era claro. Como médica — ou o mais próximo disso que eles tinham — eu era essencial. Passei o dia verificando sinais vitais, observando infecções, limpando pequenos cortes, improvisando ataduras.

Bellamy nunca ficou longe. Mesmo quando dava ordens ou carregava peso, seus olhos sempre procuravam por mim. E quando achava que eu não estava olhando, ele ficava por perto. Silencioso. Como se me proteger fosse a missão dele.

Eu entendia.
Na nossa mente, fazia poucos dias desde que eu quase morri, eu pessoalmente não me lembrava muita coisa desse período de quase morte, era uma confusão na minha mente ainda, mas sei que para bellamy que teve que presenciar tudo do outro lado deveria ser uma memória um tanto quanto traumática e ainda fresca em sua mente...não sei o que teria feito se nossos papéis tivessem trocados.

Então... eu deixava.

Até que, em meio ao ritmo do acampamento, Octavia apareceu.
Me encarou com os braços cruzados, sobrancelha arqueada.

— Então, — ela começou. — De onde você conhece o meu irmão?

Droga.

Respirei fundo e me virei pra ela, tentando parecer natural.

— A gente... se esbarrou bastante lá em cima. Na Arca. — falei com a melhor expressão casual que consegui. — Eu costumava a ajudar minha mãe na enfermaria quando podia, o setor dele era próximo. E como ele vivia se metendo em encrenca... digamos que ficou fácil notar quando ele não estava por perto.

Ela semicerrava os olhos, ainda desconfiada.

— Ele nunca falou de você.

— E eu nunca falei dele. — completei com um sorriso de canto.

Octavia ficou me olhando mais um segundo. Então sorriu também.

— É, faz sentido. Vocês têm esse jeito meio... cúmplice. Tipo como se os dois que soubessem mais do que dizem.

Meu coração quase parou por um instante. Mas mantive a calma.

— Pode ser. — respondi. — A gente se entende bem.

E era verdade. Muito mais do que ela podia sequer imaginar.

**

Octavia seguiu em frente no acampamento e ficou perto da barraca improvisada onde estavam Jasper, Monty e Harper.

— Ok, então vocês viram o jeito como ele ficou do lado dela o tempo todo? Tipo, sombra real?- Octavia ouviu Jasper dizer.

Ela revirou os olhos, mas não conseguia esconder o leve sorrisinho.

— Ele tá sempre ali. Não desgruda.

Jasper mordeu um pedaço de raiz mal lavada que Monty havia coletado.

— Tô te dizendo, isso aí é história antiga. Ele com certeza conhecia ela da Arca.

Monty ergueu uma sobrancelha.

— Bellamy era deslodador. Ele tinha acesso a vários setores... inclusive a Estação Alpha.

— Exato! — Jasper apontou, a boca ainda cheia. — Tô sentindo cheiro de romance proibido. Tipo “Romeu e Julieta da Arca”.

Octavia bufou.

— Vocês são ridículos.- Ela respondeu.

— Pensa só! — continuou Jasper. — Ele, um cara do setor inferior. Ela, a princesa médica da estação mais nobre. As famílias contra. Os corredores escuros. Encontros secretos na sala de reciclagem...

— “Até que a gravidade os separe.” — Monty disse dramaticamente, e os dois caíram na risada.

Harper, sentada próxima, sorriu também, mas seu tom foi mais sério:

— Não sei o que aconteceu lá em cima. Mas aqui embaixo... eles são diferentes. Clarke tem uma presença que eu não esperava. Tipo, achei que ela fosse mais arrogante ou mimada. Mas ela lidera de um jeito que dá vontade de seguir.

Monty assentiu.

— Eles agem como se soubessem o que vai acontecer. Como se estivessem dois passos à frente de todo mundo.

— E mais que isso. — Harper completou. — Eles agem como... adultos. Tipo, de verdade. Como se fossem... sei lá, os pais do acampamento.

Jasper engasgou de leve, rindo:

— “Mamãe Clarke” e “Papai Bellamy”. Tá aí um pôster que eu quero ver!

Todos riram. Inclusive Octavia, que tentava parecer entediada, mas estava claramente se divertindo.

Só quem não riu foi Murphy.

Ele estava a poucos passos de distância, fingindo mexer em uma pilha de estofos retirados da nave. Mas seus olhos estavam fixos no grupo.

Bellamy de novo. Sempre Bellamy.
Agora até Griffin tava na roda dele. Todo mundo só falava dos dois.

Murphy mordeu o canto do lábio.

Tem alguma coisa errada com esses dois.

E se dependesse dele, não ia demorar muito pra descobrir o quê.

Finn também não estava muito londe dali, desde a queda do dropship tudo foi uma loucura só. Mas a sensação de estar vivo depois daquilo… de estar de volta no solo… foi algo que ele nunca achou que sentiria.

Pensou que seria diferente. Que teria tempo. Que teria paz. Que talvez até encontrasse um jeito de reencontrar a Raven.

Mas ao invés disso, encontrou Clarke Griffin.

A “princesa da Arca”.

Não demorou muito pra perceber que ela não era só um rostinho bonito da Estação Alpha. Ela tinha presença. Uma voz que fazia os outros pararem pra escutar. Uma firmeza que não se esperava de alguém como ela. Ela sabia exatamente o que fazer, como agir. Como se... já tivesse feito isso antes.

Ele até pensou em flertar com ela. Tentou, pra falar a verdade. Mas quando olhou melhor... percebeu.

Tinha algo entre ela e Bellamy Blake.

Não era exatamente o que eles diziam ou faziam. Era o jeito como se olhavam. Como se dividissem um segredo que o resto do mundo não merecia conhecer. Um tipo de confiança que não se constrói em dias.

E então escutou Monty e Jasper conversando. “Romeu e Julieta da Arca”, eles diziam. “Mamãe Clarke e Papai Bellamy.”
Parecia uma piada. Mas parte dele acreditava.

E isso o irritava.

Por que alguém como Bellamy — um cara que era só um zelador e passou a ser um guarda da arca de repente, com certeza de maneira muito suspeita — ganhava tanta confiança assim?

Ele se encostou numa árvore, longe do movimento, e respirou fundo.

Wells se aproximou, segurando um pano com um pouco de sangue — provavelmente de algum corte que ajudou a limpar.

— Você tá quieto demais. Até para alguém como você. — ele disse.

— Só observando. — respondeu.

— E o que tá vendo?

Olhou de longe. Bellamy estava instruindo um grupo sobre como reforçar as tendas. Clarke organizava suprimentos médicos. Eles nem estavam lado a lado, mas ainda assim... estavam juntos.

— Vejo um cara que ninguém confiaria na Arca liderando uma revolução aqui embaixo. — falou. — E uma garota da elite agindo como se tivesse treinado pra isso a vida toda.

Wells assentiu, pensativo.

— Clarke mudou. Muito.

— É… — disse suspirando. — E juntos… eles fazem parecer que todo esse caos tem um plano. Como se isso fosse o certo. Como se eles fossem o centro de tudo.

Ficaram em silêncio por um tempo.

— Mas ainda não confio no Bellamy. — completou Finn. — Ele mente. E uma hora... essas mentiras cobram caro.

Wells o olhou com seriedade.

— Talvez. Mas por enquanto… ele tá mantendo todo mundo vivo.

Ele não respondeu. Só ficou ali, observando. Tentando entender.

E esperando o momento certo pra descobrir o que, exatamente, esses dois estavam escondendo.

Notes:

Me contem o que acharam!!

Chapter 3: "A Terra Ensina"

Summary:

O acampamento se prepara para a expedição até o banker da velha base militar desativada.
E novidades: ele não estão sozinhos.

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

》Terra- dia seguinte à aterrissagem do dropship.

O dia começou como uma dança meio desajeitada no acampamento improvisado. O céu ainda mantinha tons acinzentados, mas o vento trazia um cheiro de coisa viva. De liberdade. De promessas.

A Dropship estava quase irreconhecível por dentro. Os assentos tinham sido retirados, transformados em colchões rústicos. Parte dos paraquedas agora viraram tendas improvisadas. Os delinquentes se dividiam em tarefas, uns animados demais, outros ainda confusos sobre como tudo aquilo funcionava sem adultos.

Bellamy mantinha a postura de líder. Caminhava entre os grupos, organizando turnos, checando tudo, e — mais do que qualquer outra coisa — mantendo os olhos em Octavia.

Octavia, por sua vez, tentava apenas... viver. Rir. Ser uma garota de 16 anos que nunca teve permissão pra existir plenamente.

Mas Bellamy não conseguia relaxar. Ele já tinha perdido a irmã uma vez. E agora que a tinha de volta — essa versão doce, viva, quase inocente da Octavia — ele estava determinado a não repetir os erros do passado. Só que acabou voltando aos velhos hábitos e sua vigilância constante começava a sufocar.

A gota d’água veio quando Octavia, ajudando alguns garotos a cortar restos metálicos dos bancos, escorregou e cortou a mão.

— Você podia ter se machucado de verdade! — Bellamy gritou, tomando a mão dela com firmeza.

— É só um corte! — ela rebateu, irritada. — Você não pode me trancar num buraco de novo só porque está com medo!

Bellamy respirou fundo, os olhos marejados por um segundo.

Octavia puxou a mão e foi embora, indo direto até Clarke, que estava terminando de montar um dos kits médicos com plantas recém catalogadas por Monty.

— Pode me ajudar? — ela perguntou, mostrando o corte.

Clarke assentiu e limpou o ferimento com cuidado. O silêncio pairou entre elas por um tempo, até que Clarke falou, baixa:

— Seu irmão está assim porque pensou que nunca mais te veria, Octavia. Ele achou que tinha te perdido pra sempre.

E era verdade, de certa forma ele realmente perdeu aquela otávia doce e infantil que tinha ido embora a muito tempo na nossa linha do tempo, mas como ela não sabia de nada disso provavelmente pensou que ela se referia a ela ser flutuanda e dps ser mandada para o chão sem ele.

Octavia mordeu o lábio, segurando a emoção. Mas o olhar ainda era de frustração.

— Ele me ama... eu sei disso. Mas às vezes parece que ele quer me engaiolar de novo. E eu só quero viver, Clarke. Por um dia que seja.

Clarke suspirou. Ela sabia exatamente como era viver sob expectativas que te esmagam.

— Ele vai entender, com o tempo. Só tenha em mente que você tem alguém que te ama tanto que faria qualquer coisa por você, até infiltrar-se em um dropship em direção a terra. Mas voltando para sua liberdade, tem um jeito de começar a fazer isso...

Octavia ergueu os olhos.

— A expedição pro bunker?

— É uma missão real. E uma boa chance de mostrar que você pode fazer parte de tudo isso. Não só ficar à margem.

Octavia bufou, duvidando:

— Ele nunca vai deixar.

Clarke sorriu, levantando com o kit de primeiros socorros em mãos:

— Deixa isso comigo. Uma coisa que eu aprendi com Bellamy Blake é que ele escuta... quando é importante.

Ela piscou e saiu.

O sol ainda não tinha passado do meio do céu quando Clarke encontrou Bellamy encostado em uma das colunas metálicas da Dropship, observando o acampamento com os braços cruzados e a testa franzida. Ele nem precisou olhar pra saber que era ela se aproximando.

— Ela tá impossível. — soltou, antes mesmo que Clarke dissesse qualquer coisa. — É como se ela estivesse tentando viver tudo… de uma vez só.

Clarke se encostou ao lado dele, os braços cruzados também. Havia compreensão em seus olhos.

— É difícil… ver alguém que você ama tão cheio de energia, mas saber exatamente o que pode acontecer se eles não forem cuidadosos.

Bellamy virou o rosto na direção dela. Os olhos estavam marcados por olheiras que não pareciam ser só de sono.

— Eu tô tentando fazer tudo certo, Clarke. Não só com ela, com todo mundo. Quero consertar tudo… antes que seja tarde outra vez. Mas é como se o peso nunca saísse dos ombros.

Ela assentiu devagar.

— Eu sei como é. — disse, baixinho. — Eu também tenho cicatrizes do que a gente viveu. Cicatrizes que não somem mesmo depois que a gente volta no tempo. Tem coisas que a gente nunca vai conseguir desfazer... mas podemos evirar repetir.

Eles ficaram em silêncio por alguns segundos, e então passos se aproximando atrás deles fizeram com que ambos endireitassem a postura.

— Bellamy... — Clarke mudou o tom, leve, mas intencional. — Você devia deixar a Octavia ir na expedição.

Ele bufou, já sabendo onde aquilo ia dar.

— De jeito nenhum. É perigoso.

— Você vai estar lá com ela, não vai?

— Não, Clarke. Já basta você ter que ficar no acampamento.

— Já conversamos sobre isso. — respondeu firme, sem perder a doçura. — Alguém precisa manter tudo funcionando aqui enquanto vocês estiverem fora. E eu sou a única com conhecimento médico real. Preciso estar aqui no caso de haver alguma emergência. Você sabe disso.

Bellamy passou a mão pelo rosto, como quem já tinha ouvido aquele argumento uma dúzia de vezes nas últimas horas.

— É só que... — ele suspirou. — Eu não quero que ela perca essa versão dela. A versão que ainda sorri. Que corre no mato como se o mundo não tivesse acabado. Ela ainda tem 16 anos, Clarke. É só uma garota.

— E você quer que ela tenha uma infância. Eu entendo. — Clarke disse com gentileza. — Mas ela tá crescendo, Bellamy. E se você tentar protegê-la demais… vai acabar empurrando ela exatamente pro que você mais teme. Ela vai agir pelas suas costas. É o que adolescentes fazem quando você tenta privalos de algo, você já deveria saber disso.

Ele ficou em silêncio. As palavras ecoaram com uma verdade incômoda demais pra ser ignorada.

Ela continuou:

— A Octavia quer fazer parte disso. Quer construir esse mundo também. Deixa ela tentar. Mostra que confia nela.

Bellamy desviou os olhos para a lateral. Clarke se virou discretamente e viu Octavia parada a poucos metros dali, fingindo não estar ouvindo — mas claramente esperando a resposta.

Bellamy suspirou, pesado.

— Tá bom. — disse por fim.

Se virou pra irmã.

— Mas não sai do meu campo de visão, entendeu? Vai poder ir... mas não vai sair da minha vista.

Os olhos de Octavia brilharam, mesmo que ela tentasse esconder o sorriso vitorioso.

Clarke piscou pra ela discretamente e voltou a organizar a caixa de suprimentos.

Octavia então correu de volta animada e encontrou Jasper, Monty, Harper e Miller sentados sob a sombra de uma das tendas improvisadas, mexendo em um equipamento desmontado de comunicação.

— E aí? — Jasper perguntou, erguendo uma sobrancelha. — Conseguiu escapar da cela emocional do seu irmão mais velho?

— Mais ou menos. — Octavia respondeu, jogando-se no chão ao lado deles. — Ele disse que eu posso ir… mas que não posso sair da vista dele.

— Clássico. — murmurou Monty, rindo.

Harper inclinou o corpo com um sorriso debochado:

— Pelo menos agora você pode explorar. Antes disso, ele só deixava você respirar dentro de uma bolha.

Octavia deu de ombros, fingindo desdém, mas com carinho na voz:

— Vocês tinham razão. Eles realmente agem como pais às vezes.

Ela olhou em direção ao irmão e à Clarke, que ainda conversavam com o mapa dobrado entre eles, planejando rotas e estratégias com uma sincronia natural.

— Tipo... os pais dos delinquentes.

Eles riram, mas não como piada. Era meio verdade.

E assim, o dia continuava.

A Terra estava viva.

E os primeiros passos da nova geração... também.

 

**

 

O sol já passava um pouquinho do meio do céu quando Wells encontrou um momento de respiro. Desde que a Dropship pousara, as horas pareciam se diluir entre gritos, decisões e caos. Mas agora o acampamento começava a tomar uma forma — rudimentar, desorganizada, mas viva.

Ele olhou em volta e, por um instante, sentiu-se um estranho em um mundo que deveria conhecer.

Clarke estava ali, perto da Dropship, discutindo a divisão de tarefas com Fox e um garoto que Wells ainda não decorara o nome. Seu tom era firme, sua postura segura. Não era a mesma Clarke que ele conheceu nas aulas da Estação Alpha. Não era a garota que ele tentou proteger, nem aquela por quem havia descido à Terra.

E Bellamy... bem, Bellamy parecia ter se encaixado no papel de liderança com a naturalidade de quem sempre teve que lutar por espaço. Seu jeito ríspido, os gestos calculados, os olhares que todos pareciam seguir mesmo sem questionar — tudo isso deixava Wells com uma inquietação estranha. Não era ciúme. Era algo mais profundo. Era o medo de ser… inútil.

Desde o discurso de Clarke mais cedo, ele não conseguia parar de pensar.

Ela tinha razão.

Mas a forma como ela disse — como se não houvesse mais espaço para ele ao lado dela — foi como levar um golpe em cheio no estômago.

Ele a seguira até ali acreditando que a protegeria. Que sua presença faria alguma diferença. Mas agora… ela parecia não precisar dele. Nem como amigo, nem como conselheiro ou ...algo a mais. E isso doía mais do que ele queria admitir.

Wells pegou o mapa que ainda carregava dobrado no bolso da calça. Os dedos deslizaram por cima dos riscos e coordenadas. Ele havia decorado aquelas rotas quando criança, ouvindo seu pai falar sobre as estruturas da Terra como se fossem lendas de um mundo esquecido.

Mas agora... agora ninguém queria ouvir o que ele sabia.

Ninguém queria seguir o que o chanceler pensava.

Ele se abaixou ao lado da pequena fogueira que Jasper e Monty tinham improvisado e ficou apenas observando. Monty ria de alguma piada idiota que Jasper fazia sobre o cheiro da terra molhada. Harper estava sentada de pernas cruzadas, afiando um galho com uma pedra lascada. Miller, deitado com os braços atrás da cabeça, parecia adormecido. Eram apenas adolescentes tentando fingir que o mundo não tinha acabado. E talvez... talvez estivessem certos.

Talvez fingir fosse a única maneira de viver.

— Você tá quieto, Jaha . — foi Jasper quem quebrou o silêncio.

Wells não respondeu de imediato.

— Só… pensando. — disse, por fim.

Jasper ergueu uma sobrancelha.

— Pensando em como perdeu a liderança pro casalzinho de ouro da revolução? — provocou, mas sem maldade.

Monty empurrou o amigo com o cotovelo, em advertência.

— Não é isso. — Wells falou, mais calmo do que esperava. — Eu só... pensei que faria mais diferença.

Harper levantou os olhos.

— Você faz. Só ainda não percebeu como.

Wells encarou ela com um pouco de surpresa.

Ela continuou:

— Clarke e Bellamy são bons. São... adultos demais pra idade deles. Mas isso também significa que vão precisar de gente como você. Gente que acredita nas regras, nos princípios. Alguém que lembre eles do que se perde quando se esquece o que é certo.

As palavras ficaram no ar por um momento. Wells sentiu algo se aquecer no peito. Não era consolo. Era verdade. E talvez fosse isso o que ele mais precisava agora.

Monty bateu de leve no braço dele.

— Você vai com a gente pro bunker, né?

Wells assentiu, ainda olhando Clarke à distância.

— Vou sim.

Porque se havia algo que ainda podia fazer... era provar seu valor não como filho do chanceler. Mas como parte do povo rebelde do céu.

Wells respirou fundo, como se aquele ar da Terra ainda estivesse tentando encontrar espaço dentro dele. A fogueira crepitava atrás de si, mas ele já não sentia o calor. Seus passos eram firmes, direcionados.

Bellamy estava mais adiante, ao lado de alguns jovens que organizavam mochilas improvisadas e lanças com pontas de metal rudimentar. Ele conferia algo com Clarke, que tinha nas mãos uma lista improvisada em uma folha rasgada. Quando Wells se aproximou, Bellamy ergueu os olhos — e o mundo pareceu parar por um segundo.

Houve uma pausa.

Bellamy o analisou de cima a baixo. Como quem mede o peso de uma decisão antes de assinar um veredito.

Wells sustentou o olhar. Não havia desafio em sua postura, mas também não havia dúvida.

Finalmente, Bellamy falou:

— Vai querer ir pra base militar com a gente?

— Sim. — Wells respondeu sem hesitar. — Eu conheço bem os mapas da Arca. Posso ajudar com a rota e evitar terrenos instáveis. Posso ser útil.

Bellamy manteve os olhos nele por mais um instante... trocou um olhar com a Clarke e então assentiu com um movimento breve.

— Certo. Vai ser útil sim.

Ele se virou para os demais.

— A partir de agora, ninguém aqui tem título, nem privilégio. Não tem mais Estação Alpha ou setor agrícola. Não tem “filho do chanceler” nem “filho da costureira”. Somos todos parte do mesmo povo agora. E se alguém quer fazer parte disso... tem que colaborar também.

As palavras bateram fundo. Não apenas em Wells, mas em quem ouvia de relance ao redor. Aquilo não era só discurso — era uma quebra de barreiras.

Wells sentiu algo se rearrumar por dentro. Pela primeira vez, não sentiu que estava tentando provar que merecia estar ali. Pela primeira vez... ele estava.

Bellamy se virou novamente, olhando para o lado, onde Finn encostava em uma árvore, fingindo que não escutava.

— E você, Spacewalker — chamou. — Vai ficar aí escutando ou vai usar esse seu dom de andar no mato sem fazer barulho pra achar um caminho decente?

Finn arqueou uma sobrancelha, meio surpreso.

— Tá me chamando pra ir junto?

— Você disse que se garante com rastros e observação. Vai ser útil. E eu não carrego peso morto.

Finn sorriu de canto. Aquilo era o mais próximo de um elogio que esperaria de Bellamy.

— Tô dentro.

O grupo começava a se formar. Jasper, que ouviu a conversa toda, apareceu do nada com seu habitual entusiasmo desajeitado.

— Espera aí, vocês vão sair numa expedição de verdade e nem me chamam? Eu sou ótimo com... sei lá... ânimo do grupo! E eu tava entediado de qualquer jeito.

Bellamy olhou pra ele como se fosse responder com sarcasmo, mas apenas virou os olhos e resmungou:

— Só não morre de susto.

Monty veio logo atrás, um pouco menos empolgado, mas curioso.

Harper, embora ficasse para cuidar de parte da vigilância no acampamento, lançou um olhar para Wells que dizia: Vai. Faz por merecer.

Wells ajeitou a mochila nos ombros, sentindo o peso agora como responsabilidade — não como castigo.

Ele olhou uma última vez para Bellamy, que já se virava para checar a formação da equipe.

Na mente de Wells, uma frase se formou sem que ele percebesse de imediato.

Ele lidera como quem carrega o mundo nas costas… mas também como quem já entendeu que não pode fazer isso sozinho.

E talvez fosse esse o segredo da liderança verdadeira.

Eles partiram pouco depois. E, pela primeira vez desde que a Terra havia se revelado, Wells Jaha sentiu que estava exatamente onde deveria estar.

 

**

 

》Arca - 16 horas após o pouso da Dropship

A luz azulada das telas preenchia o rosto tenso da Dra. Abby Griffin enquanto ela analisava as leituras em seu painel. O coração de cada um dos Cem pulsava na tela diante dela, ainda monitorado com precisão pelas pulseiras de rastreamento.

— Ainda estão vivos — murmurou, para ninguém além de si mesma. Era uma afirmação, mas também uma oração.

A porta se abriu com o som metálico típico da Arca. O chanceler Jaha entrou acompanhado de Marcus Kane. Tinha cido uma correria nas últimas horas , Abby fez de tudo para manter Thelonious com vida , até mesmo quebrando leis, mas no final funcionou tudo perfeitamente e o chanceler jaha acordou, bem a tempo de evitar que ela fosse flutuanda.Ambos se aproximaram com passos firmes.

— Alguma novidade? — perguntou Jaha, mantendo o tom calmo, mas os olhos traíam ansiedade.

Abby apontou para a tela.

— Os sinais continuam estáveis. Ritmos cardíacos, níveis de oxigênio, tudo normal. Estão vivos. Com exceção de dois garotos, que a hora do óbito é a mesma de quando a nave chocou contra a atmosfera e nossas comunicações falharam, nos levando a conclusão de que foi um efeito colateral dos contratempos da aterrissagem.

Kane cruzou os braços, cético.

— Isso só prova que eles ainda têm oxigênio. E não significa que conseguirão sobreviver por muito tempo.

— Eles estão há dois dias na superfície, Marcus — rebateu Abby, a voz mais dura agora. — Se a radiação fosse fatal como você sempre afirmou, estariam mortos. Mas não estão. Estão sobrevivendo.

Kane hesitou. Aquilo contrariava diretamente os cálculos que havia defendido com tanta certeza diante do Conselho.

— E se apenas ainda não morreram? Isso não significa que não irão.

— Você está torcendo pra estar certo ou quer que eles vivam? — Abby encarou-o com frieza.

Jaha, entre os dois, ergueu a mão.

— Basta. Não é hora de discutir isso.

Mas Abby não recuou.

— Com os sinais estáveis, temos mais do que apenas especulação. Temos uma chance. E se existe uma chance de sobrevivência na Terra, temos que considerá-la. Temos que trabalhar com isso.

— Você quer jogar a vida de todos os outros nessa estação por uma chance? — Kane contra-atacou. — Sei que os dados mostram resultados melhores do que esperávamos mas ainda é tudo o que temos ,só isso, nada mais que uma simples chance e temos menos de quatro meses de oxigênio, Abby. Quatro. Meses. Se não tomarmos decisões duras agora, todos nós morreremos.

Ela respondeu num tom frio e firme:

— Jake dizia a mesma coisa.

Houve um silêncio pesado. Jaha desviou o olhar. O nome de Jake Griffin sempre trazia com ele o peso de uma execução que ainda sangrava em suas consciências.

— O pai da Clarke... era um idealista — disse Kane, seco. — E morreu por causa disso.

Abby respirou fundo. Jackson apareceu na porta, hesitante.

— Doutora? Consegui restaurar parte das imagens de monitoramento dos satélites da superfície.

Ela foi imediatamente até ele. Os olhos de Abby brilharam.

— Você conseguiu? Está funcionando?

— Sim. Os satélites ainda transmitem imagens parciais. Mas... são boas.

Ela correu para a estação de visualização. As imagens tremiam, mas estavam ali. Uma floresta verde. Céu azul. A superfície da Terra viva. E bela.

— Isso é da Terra... — sussurrou ela.

Jaha se aproximou devagar. Até mesmo Kane, por um momento, ficou em silêncio.

— Está viva — Abby afirmou. — E se está viva... podemos voltar.

— Isso não é prova de que a vida humana pode resistir lá embaixo — disse Kane, com esforço.

— Mas é prova de que não temos o direito de sacrificar a única esperança que temos.

Jaha suspirou.

— Abby... Se estiver errada, não só perdemos tempo. Perdemos vidas. Recursos. Autoridade. Você entende isso?

Ela olhou para ele com a mesma firmeza com que havia olhado o marido, no dia em que ele gravou sua mensagem final.

— Se eu estiver certa... ninguém mais precisará morrer aqui em cima.

Eles se calaram.

Jackson voltou com uma prancheta. Um leve alarme de prontidão piscava em vermelho no visor do canto.

— As preparações da cápsula de manutenção do setor 17 foram concluídas. O módulo de reentrada ainda está funcional... com ajustes, pode levar uma pessoa à Terra.

Abby estreitou os olhos.

— Comece as simulações. Discretamente.

 

**

》Terra — Acampamento Rebelde do Céu

O barulho dos passos ia diminuindo aos poucos, engolido pelas folhas e pela neblina matinal da floresta. Clarke observava de longe o grupo partir.

Bellamy seguia na frente, o corpo tenso, mas confiante, com Octavia a poucos passos atrás — sob seu olhar atento. Wells caminhava com o mapa em mãos, concentrado, e Finn brincava com um galho, como se tudo fosse apenas mais um passeio. Jasper, Monty, Atom, Murphy, Miller, Monroe e mais alguns seguiam o ritmo, armados com facões improvisados, lanças e até pedaços de metal arrancados da Dropship.

Cerca de quinze jovens. A primeira grande expedição oficial do povo rebelde do céu.

Clarke permaneceu ali por alguns segundos, em silêncio, os olhos apertados, o rosto firme. Mas por dentro… havia um peso. Ela queria ir. Queria estar ao lado deles, como antes.

Mas essa era uma nova linha do tempo. E nessa, Clarke sabia que liderar não significava estar na frente — mas garantir que haveria um lar para onde todos voltassem.

Suspirou, se virou, e desceu a rampa da nave, com os cabelos presos em um nó apressado e as mãos já vasculhando a prancheta improvisada com anotações sobre água e suprimentos.

Harper a encontrou primeiro, já suando, com terra nas mãos.

— O reservatório vai aguentar, mas a gente precisa de mais recipientes. As bandejas do andar de cima da nave funcionam se a gente cortar as bordas.

Clarke assentiu.

— Pode trabalhar com a Roma nisso. Usem o calor do fogo pra moldar. Se tudo der certo, vai chover hoje à noite.

Monty havia previsto isso pela umidade e pelas mudanças na pressão. E eles estavam finalmente se preparando.

Ao redor, vozes jovens misturavam-se aos sons de marteladas e risos. Alguns aprendiam a montar barracas. Outros tentavam fazer fogo do jeito que Bellamy tinha ensinado. Era bagunçado, mas era o começo de algo novo.

Clarke olhou em volta, avaliando, instruindo, anotando. Até que... algo chamou sua atenção.

Um movimento pequeno. Hesitante.

Entre duas barracas, quase invisível na multidão, havia uma figura minúscula. Os cabelos loiros grudados na testa suada, as mãos fechadas como se quisesse desaparecer nelas.

Charlotte.

Sozinha. Perdida. Sem ninguém por perto.

Clarke piscou, o coração apertando por um motivo que ela ainda não queria aceitar.

A menina parecia... menor do que ela lembrava.

E muito mais assustada.

— Charlotte? — chamou, com voz suave.

A garota a encarou, como um animalzinho acuado. Não respondeu. Apenas deu um passo pra trás, como se não soubesse se podia confiar.

Clarke se aproximou devagar, ajoelhando à altura dela.

— Ei, tudo bem. Você tá segura, tá bem?

Charlotte mordeu o lábio com força, mas finalmente sussurrou:

— Eles foram embora...

Clarke assentiu.

— Foram numa expedição. Mas logo vão voltar.

— E... e se eles não voltarem?

A pergunta cortou fundo.

Clarke engoliu seco, lembrando-se de uma Charlotte diferente. Uma que perderia o controle. Uma que mataria. Uma que seria arrastada até o limite.

Mas ali, diante dela, ainda havia uma criança.

Ela respirou fundo e estendeu a mão.

— Eles vão voltar, porque estão lutando por todos nós. Por você também. E enquanto isso... quero te dar uma missão importante. Pode ser?

Charlotte hesitou.

— Uma missão?

Clarke sorriu, gentil.

— Isso mesmo. Eu preciso de alguém corajosa, como você, pra me ajudar a montar os recipientes de água. A Harper e a Roma estão precisando de mãos rápidas. É trabalho de gente forte.

A garotinha pensou por um segundo. E então, como se aquilo fosse a primeira fagulha de pertencimento, assentiu devagar.

— Eu posso ajudar.

Clarke sorriu e pegou a mão dela com delicadeza.

— Sabia que podia contar com você.

E, naquele instante, viu algo brilhar nos olhos da menina. Um vislumbre de esperança. Um lampejo de quem ainda podia ser salva — antes que o mundo a transformasse em outra coisa.

 

**

 

》Terra- na expedição

O mato ainda molhado pela neblina da manhã roçava contra os tornozelos enquanto o grupo avançava entre as árvores. Não marchavam como soldados, tampouco como crianças — caminhavam como quem queria acreditar que estava no controle. Bellamy Blake ia à frente, postura firme, os olhos sempre atentos às margens do caminho, mas sem jamais parecer desconfiado. De vez em quando, consultava discretamente os arredores antes de olhar para o mapa nas mãos de Wells.

— Segundo esse trecho, a gente precisa virar a noroeste daqui a pouco. — Wells indicou com confiança, apontando uma clareira que se abria entre as raízes retorcidas.

Bellamy olhou o mapa, depois olhou à frente, como se estivesse pensando, e assentiu devagar.

— Certo. Noroeste. Conduz a gente.

Wells abriu um meio sorriso. Pela primeira vez desde a chegada, parecia que alguém o levava a sério. Aquilo bastava por enquanto.

O grupo era composto por cerca de quinze jovens. Atrás de Bellamy e Wells, vinha Finn, saltando troncos com facilidade, olhos explorando tudo ao redor. Ele parecia à vontade na floresta, tocando cascas de árvores, observando trilhas de formigas, escutando o canto abafado de aves. Mesmo tentando manter a pose, era visível: ele se sentia útil, e aquilo acalmava o remorso ainda fresco.

Otávia caminhava alguns passos mais atrás, próxima de Atom e Murphy. Os dois riam baixo entre si, mas pararam de falar de repente, os olhos fixos em algo à frente.

— Pera... vocês ouviram isso? — Atom murmurou.

O grupo parou.

Só se ouvia o som do vento balançando as folhas.

— Ali. — Murphy apontou com a cabeça, semicerrando os olhos.

Todos ficaram em silêncio.

Um som suave entre as árvores. Galhos se movendo. Passos leves, quase imperceptíveis.

Finn se adiantou, abaixando-se.

— Não é gente... — sussurrou, apontando.

E então viram.

O cervo surgiu entre os arbustos com majestade silenciosa. Os galhos abriram espaço como se o respeitassem. Um instante de beleza rara. Os olhos do animal brilharam dourados por um segundo, refletindo a luz fragmentada pelo dossel. Seu corpo era esguio, mas algo parecia... incorreto. Foi quando ele se virou.Todos levaram um leve susto, alguns suspiraram. O cervo tinha duas cabeças.Uma mutação. Ele lembrou de Clarke contando esse encontro, mas presenciar parecia diferente.

— Olha só... — Monty murmurou, parando ao lado de Jasper.

— Isso é vida. — Jasper respondeu, emocionado.

E por um momento, todos esqueceram onde estavam.

Não eram prisioneiros. Não eram peças da Arca. Eram exploradores num mundo que renascia.

Monty se abaixou para colher uma folha larga que nunca tinha visto antes. Observou as veias, a textura.

— Isso não tá nos registros da Arca... nada disso. — disse, pensativo. — Talvez eles nunca soubessem como as coisas ficaram aqui embaixo.

Bellamy observou em silêncio. Seus olhos estavam fixos no chão agora, nos arredores da trilha que tinham percorrido há pouco tempo atrás.

Rastros.

Pegadas.

Não eram deles.

Algumas marcas estavam envelhecidas, mas uma ou duas pareciam recentes. Muito recentes.

Ele franziu a testa. O grupo continuava distraído, cercando o cervo a distância, rindo baixo, maravilhados com a visão. Ninguém olhava para o chão.

Nem mesmo Finn. Ou talvez sim, mas por achar que éramos os " primeiros humanos na terra em cem anos", achou que eram de alguém do grupo.

E Bellamy não disse nada.

Nem uma palavra.

Continuou andando.

A tensão em seu maxilar era quase invisível. Mas ela estava ali.

Horas depois, o grupo finalmente chegou à entrada da antiga estrutura. Uma construção quase engolida pela vegetação, coberta por raízes, musgo e ferrugem.

— É aqui? — Wells perguntou, segurando o mapa com mais força do que o necessário.

Bellamy assentiu, se aproximando da porta metálica parcialmente enterrada.

— É aqui.

Os outros começaram a se juntar ao redor, limpando a entrada com cuidado, abrindo espaço para passar. O clima era de euforia contida. Finalmente algo concreto. Um abrigo real. Um plano que dava certo.

Mas os olhos de Bellamy não estavam no bunker.

Estavam no barro pisado à esquerda da porta.

Mais pegadas.

Mais fundo.

Mais recente.

Humanas.

E não eram deles.

Ele ficou em silêncio, tenso, mas esperou que fosse apenas uma missão de reconhecimento e que eles não tivessem feito nada que fizesse os grounders atacarem ainda.

Então ele simplesmente entrou com os outros, sem olhar para trás.

 

**

》Acampamento Dropship

O acampamento já não era só caos e improviso. Estavam longe de qualquer estrutura real, mas aos poucos, havia ordem entre os escombros. Jovens montavam barricadas com os restos da nave. Outros costuravam roupas com o que conseguiam. Um grupo tentava montar um sistema rudimentar de sinalização. E ao redor, surgiam sorrisos tímidos, piadas trocadas, olhares longos — tentativas infantis de romance em meio à poeira.

Clarke observava tudo aquilo com um misto de estranheza e compreensão. Na primeira vez que vivera aquilo, tudo lhe parecera absurdo — como podiam pensar em flertar, rir, brincar, quando estavam cercados de incerteza e morte? Agora ela via diferente.

Eram só adolescentes. Crianças, mesmo. Tentando agarrar qualquer fagulha de normalidade, de alegria. De humanidade.

Ela suspirou e limpou as mãos sujas de barro na barra da camisa enquanto se afastava dos reservatórios improvisados. As últimas tarefas tinham sido concluídas com sucesso. O sistema rudimentar de coleta de água estava funcionando, e, se chovesse como o céu prometia, estariam preparados. Monty e Harper ajudaram bastante. Roma também, com suas mãos firmes e ideias práticas.

Mas a única que ainda permanecia ali, mesmo depois de todos já terem se dispersado, era Charlotte.

Ela estava sentada em silêncio perto de uma pilha de recipientes, fingindo brincar com um pedaço de corda. Mas seus olhos não paravam de acompanhar Clarke. Como se estivesse esperando... permissão.

Clarke parou por um instante e observou melhor. Charlotte não era só uma garotinha assustada. Havia algo mais ali. Uma sede de pertencimento. Um medo antigo e profundo de ser deixada para trás.

— Charlotte — chamou, com a voz firme, mas suave.

A menina se levantou num pulo, como se tivesse feito algo errado.

— Você tá bem? — Clarke perguntou, e Charlotte assentiu rápido demais, sem coragem de encará-la direto nos olhos.

Clarke se aproximou e se agachou à altura dela, sem forçar um sorriso.

— Eu notei que você tá ficando por perto... mesmo depois de terminar o que precisava. — Ela fez uma pausa. — Eu entendo. Quando eu tinha a sua idade, minha mãe me colocava pra ajudar na enfermaria. Eu não gostava no começo... mas foi ali que eu descobri que queria ajudar as pessoas. Que eu podia aprender a fazer diferença.

Charlotte ergueu os olhos, curiosa.

— E... você aprendeu tudo com ela?

— Com a Abby Griffin? Aprendi muito, sim. Às vezes do jeito mais difícil. — Clarke sorriu com leveza, um brilho antigo nos olhos. — Mas se eu não tivesse aprendido, muita gente já teria morrido aqui.

Charlotte ficou em silêncio, mas seus olhos estavam fixos em Clarke agora.

— Eu vou precisar de ajuda — Clarke continuou. — Não vou conseguir cuidar de todo mundo sozinha quando os feridos começarem a aparecer. E vai acontecer. A floresta é perigosa. As doenças também. Eu posso te ensinar... se você quiser.

Charlotte arregalou os olhos.

— De verdade?

Clarke assentiu.

— Mas você precisa levar isso a sério. Medicina não é brincadeira. Você vai ter que estudar, observar, aprender a lidar com dor. Com decisões difíceis.

Charlotte engoliu em seco, mas se endireitou.

— Eu quero. Eu quero ajudar.

Por um instante, Clarke viu um reflexo dela mesma naquela menina. Não a Clarke endurecida que sobreviveu a Mount Weather, à Cidade da Luz ou a Praimfaya. Mas a Clarke que existia antes de tudo. A garota que acreditava que conhecimento podia salvar vidas. A filha que só queria deixar a mãe orgulhosa.

Ela estendeu a mão.

Charlotte segurou com as duas.

E naquele momento, mais do que uma proposta de aprendizado, nascia um elo. Um elo que poderia, talvez, salvar mais de uma vida.

Clarke observou a menina segui-la de perto com a mão dela ainda na sua. Pela primeira vez em muito tempo, havia esperança em sua expressão.

 

**

》Bunker da base militar desativada

 

O bunker estava escuro, abafado, mas firme. As paredes de concreto ainda suportavam o tempo e a radiação, como se esperassem há décadas por uma nova chance de abrigar vidas humanas.

A expedição vasculhava os corredores silenciosos com lanternas improvisadas, tochas, em mãos. O cheiro de metal oxidado e poeira tomava conta do ar. O grupo se dividia em duplas, explorando os compartimentos como se fossem ruínas sagradas.

Bellamy guiava com segurança, mesmo fingindo incerteza. Precisava que Wells aprendesse a confiar em si mesmo. E Wells, por sua vez, se esforçava com o mapa nas mãos, determinado a ser útil.

Foi Murphy quem encontrou o armário trancado. Com um empurrão e uma ajuda de Atom, ele abriu as portas metálicas com um rangido, revelando caixas numeradas, com logotipos militares ainda visíveis sob a ferrugem.

— Armas. — Murphy sussurrou, os olhos brilhando.

Ele puxou uma delas, pesada, fria ao toque. Era um rifle antigo, mas ainda funcional. Seu sorriso se alargou, quase infantil.

— Isso aqui vai mudar o jogo.

Bellamy se aproximou rápido, a expressão firme.

— Cuidado com isso. Um movimento errado e você explode os miolos de alguém... ou os seus.

Murphy revirou os olhos, mas abaixou a arma devagar.

— Não estamos aqui pra virar soldados. — Bellamy continuou. — Estamos aqui pra sobreviver. Isso vai servir principalmente para caçar, especialmente agora que sabemos que há animais ai fora.Pegue uma, só uma. E mantenha perto do corpo, mas não nas mãos. Vamos precisar carregar coisas muito mais importantes.

Murphy bufou, mas obedeceu.

— Tipo o quê? — perguntou Atom, abrindo outra caixa.

A resposta veio em forma de mochilas, casacos pesados, roupas térmicas dobradas com cuidado, sacos de dormir, pequenos kits de primeiros socorros. Jasper soltou um assobio.

— Jackpot.

Monty, vasculhando um canto mais empoeirado, retirou um pequeno baú de madeira trancado por ferrugem. Com jeitinho, conseguiu forçar a abertura. Dentro, pacotes lacrados com etiquetas científicas. Ele leu em voz alta, os olhos se arregalando:

— Sementes. De árvores frutíferas. Cerejeiras, macieiras... e tem até hortelã.

O grupo se aproximou, animado. Monty continuou, empolgado:

— Isso... isso pode funcionar. A gente pode criar uma pequena estufa aqui. O espaço no fundo, com luz natural filtrada pelas claraboias quebradas... pode dar certo.

Bellamy assentiu, orgulhoso.

— Então vamos levar tudo que conseguirmos agora. Depois voltamos com mais gente pra organizar. Mas hoje, levem o essencial.

Eles se organizaram rápido, enchendo mochilas e sacos com o que podiam carregar. Havia até colchões finos guardados em sacos a vácuo, ainda utilizáveis. Tudo era mais valioso do que ouro para quem estava tentando recomeçar do zero.

Foi quando Bellamy, no fim de um corredor lateral, parou diante de uma porta de metal riscada com o símbolo de um raio azul. Ele empurrou e entrou sozinho, apenas por instinto. Lá dentro, caixas plásticas etiquetadas como "material recreativo" enchiam prateleiras inteiras. Ele se aproximou curioso, abrindo uma delas.

Dentro havia cadernos, papéis em branco, lápis de escrever, giz de cera e até alguns lápis de cor. Tudo um pouco ressecado, mas ainda utilizável.

A imagem de Clarke lhe veio de imediato — o jeito como ela sempre rabiscava em folhas dobradas, os desenhos da Terra que ela fazia antes mesmo de pisarem nela. Ele sorriu, pequeno. A missão era sobreviver, mas aquilo... aquilo era sobre viver.

Ele pegou um caderno com capa azul desbotada, alguns lápis, guardou tudo numa sacola de pano e colocou por cima da mochila.

— Vamos — disse, voltando para os outros. — Tempo de ir pra casa.

E enquanto saíam em silêncio, Bellamy lançou mais um olhar ao chão — às pegadas que só ele parecia notar. Ainda frescas. Ainda humanas. Mas não de nenhum deles.

Ele não disse nada. Ainda não. Mas a tensão em seu olhar dizia tudo.

A floresta parecia menos ameaçadora sob a luz laranja do por-do-sol filtrada pelas copas. As folhas estalavam sob os passos ritmados do grupo, agora voltando mais devagar, com sacos improvisados nas costas e sorrisos que não eram vistos desde o primeiro dia.

Bellamy vinha logo atrás, os olhos atentos — mas não apenas para o caminho. Ele observava os rostos.

Wells, à frente, carregava um dos colchões como se aquilo fosse um troféu de guerra. Monty caminhava ao lado dele, quase empolgado demais, apontando pra um pequeno pote com sementes e divagando sobre germinação e ciclo de crescimento. Finn parecia em paz, liderando com passos leves, como se o simples fato de ter sido útil tivesse acalmado algo dentro dele.

Até Atom e Murphy estavam de bom humor, rindo de algo que a Octavia dissera. Ela, por sua vez, andava com uma expressão leve, os olhos brilhando com uma liberdade recém-descoberta.

Bellamy sentiu o peso de um arrependimento que não tinha tempo de carregar.

Devia ter visto tudo isso antes.

Eles tinham estado ali antes. No mesmo bunker. E só conseguiram enxergar as armas.

Ele se lembrava do cheiro do metal, da pressa em encontrar munição, das mãos tremendo com a ideia de proteger... ou atacar. Tudo parecia mais urgente, mais feroz naquela primeira vez. E talvez por isso tivessem ignorado tudo: os suprimentos, as roupas térmicas, as sementes, os remédios, até mesmo os pequenos cadernos.

Agora... agora é diferente.

Agora, ele não era só o garoto desesperado tentando salvar a irmã. Agora, ele era um líder. E liderar significava ver além do medo.

Ele estava prestes a dizer algo — talvez a agradecer ao Wells pelo mapa, ou ao Monty pelas descobertas — quando ouviu.

— Bang, bang! — Murphy riu, fazendo mira com o rifle.

Octavia riu junto, desajeitada, imitando o gesto. O cano apontava para uma árvore baixa, mas os dedos estavam nos gatilhos.

Bellamy gelou.

— Ei, ei, ei! — começou a dizer, apressando o passo. — Isso não é brinquedo, larga isso agor—

BUM!

O som do disparo ecoou como um trovão estilhaçando o silêncio antigo da floresta.

Todos pararam. A natureza emudeceu por um segundo — pássaros se calaram, folhas congelaram no vento, e até o passo dos garotos desacelerou. Bellamy virou-se bruscamente, os olhos arregalados, o corpo em alerta máximo.

Octavia segurava o rifle, o cano ainda tremendo, apontado para uma árvore baixa. Murphy, ao lado, soltava um riso nervoso, como se aquilo tivesse sido só uma brincadeira.

— Você tá maluca?! — Bellamy rugiu, dando dois passos largos em direção aos dois.

Mas não deu tempo.

SSHHHHTHHK!

Uma flecha? Não. Uma lança. Vinda de lugar nenhum. Rasgou o ar em linha reta, certeira, veloz demais para qualquer reação comum.

— OCTAVIA! — alguém gritou.

Foi Jasper quem agiu.

Ele a empurrou, jogando o próprio corpo no caminho. A ponta de ferro da lança o atingiu no ombro, perfurando com violência. Ele gritou — alto, agudo, sufocante.

O tempo colapsou.

— Jasper! — Monty correu até o amigo, mas Bellamy foi mais rápido.

— Ninguém se move! — ele berrou, olhos vasculhando a mata adiante.

Mas o que viu... foi nada. Sombras, árvores. O silêncio voltando — agora ameaçador. Eles estavam sendo observados.

Bellamy ajoelhou ao lado de Jasper, ofegante, tentando pensar. A lança ainda cravada no ombro do garoto, o sangue escorrendo pelas laterais, o rosto dele pálido.

Instintivamente, Bellamy moveu a mão até o cabo da lança — mas parou.

“Se você puxar, a pessoa pode sangrar até morrer.”

As palavras de Clarke, ditas tempos antes, ecoaram como se ela estivesse ali.

Bellamy largou o cabo, e, com um único movimento, passou o braço por baixo das pernas de Jasper e o ergueu nos ombros como um saco de mantimentos.

— Vai, vai, vai! — gritou para o grupo. — De volta pro acampamento! Agora!

Wells e Finn assumiram a dianteira, abrindo caminho apressado de volta. O grupo seguiu, correndo o máximo que podiam entre raízes e lama.

Bellamy vinha logo atrás, Jasper desacordado no ombro, os olhos pesados no caminho, mas a mente em outro lugar.

As pegadas. Eu sabia. Não eram nossas. Eu vi.

Ele apertou os dentes. Deveria ter sido mais firme. Deveria ter dito a verdade — sobre os Grounders, sobre a ameaça que ele sabia que estava ali desde o início.

O tiro deve ter feito deve ter sido o gatilho para o ataque, ele se lembrava da superstição que existia entre os grounders sobre as armas de fogo e Mount Weather.

Mas agora não era hora de arrependimentos. Não deixaria ninguém pra trás.

Murphy estava quieto, sério pela primeira vez. Octavia vinha com Atom, os olhos arregalados, o rifle esquecido nas mãos. Nenhum deles fazia barulho — mesmo os galhos estalando pareciam respeitar o medo que os dominava.

Quando finalmente saíram da mata e viram a Dropship no horizonte, uma sensação de alívio quase os derrubou.

Bellamy não diminuiu o passo.

Ao se aproximar da clareira, viu a figura de Clarke surgir entre os outros, correndo na direção deles.

Ela viu o sangue. Viu o rosto desesperado de Monty. Viu a lança.

E então, viu o olhar de Bellamy.

Clarke correu na direção deles.

— O que aconteceu? — a voz dela cortou o ar como uma lâmina, firme, mas tomada de preocupação.

Miller, que até então havia permanecido em silêncio durante toda a expedição, veio logo atrás, arrastando uma caixa com os equipamentos médicos recuperados. Sua respiração era pesada. Suas mãos, sujas de terra e tremendo.

— Fomos atacados. Uma lança, do nada… saiu da floresta.

O acampamento congelou. Quem ainda conversava, calou. Quem ainda ria, se calou. O som dos pássaros acima parecia distante demais.

Clarke olhou direto para Bellamy. Uma pergunta silenciosa.

Ele estava imóvel. Os olhos fixos em Jasper, mas o maxilar trincado entregava o que ele não dizia.

Bellamy assentiu uma única vez. Os olhos dela endureceram.

Ao redor, as vozes começaram a subir:

— Uma lança? —
— De quem? —
— Como assim? —
— Tem mais alguém aqui? —
— Isso é impossível! —

E foi quando Clarke levantou a voz. Clara, afiada, como uma sentença.

— Sabemos que a Arca estava errada. Sobre quase tudo. Sobre a Terra. Sobre sua radiação, sua esterilidade, sobre o que sobreviveu aqui.

O silêncio caiu como um manto.

— E pode ser… — ela continuou, olhando ao redor — ...que ela tenha estado errada desde o início. Sobre estarmos sozinhos.

Um arrepio coletivo percorreu os Cem. Alguém sussurrou, como se a palavra queimasse:

— O que isso significa?

Clarke respondeu sem hesitar. A certeza pesava em cada sílaba:

— Significa… que não estamos sozinhos.

Notes:

É isso pessoal, me digam o que acharam e caso não tenha ficado claro , eles chegaram a terra pelo fim da tarde, ent tecnicamente esse é o segundo dia deles na terra embora não tenha se passado 24h completas.

Chapter 4: "Sob a Névoa, Entre Laços e Cicatrizes"

Summary:

A neblina ácida se aproxima, mas os laços forjados entre dor e esperança são mais fortes.

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

》Terra- Acampamento Dropship, momentos depois do ataque.

O sangue escorria pelo ombro de Jasper, tingindo de vermelho o pano improvisado que alguém havia pressionado contra a ferida. Clarke se ajoelhou ao lado dele sem hesitar, os olhos percorrendo cada detalhe com precisão clínica. O rosto de Jasper estava pálido, entre o choque e a dor. Ela apoiou a mão sobre seu peito, sentindo o ritmo irregular da respiração, e então ergueu os olhos.

— O que aconteceu? — sua voz saiu firme, apesar do nó que começava a se formar na garganta.

A multidão ao redor se calou por um instante. Foi Octavia quem respondeu, os olhos arregalados, ainda ofegante da corrida.

— Foi uma lança. A gente... a gente tava brincando — a culpa escorregava nas palavras, mas a urgência as empurrava adiante. — Eu atirei... foi só na árvore! Eu juro! E aí... e aí a lança veio do nada. Ele me empurrou. Ele me salvou, Clarke. Por favor... por favor, não deixe ele morrer!

Clarke estendeu a mão, tocando levemente o braço de Octavia.

— Eu vou fazer o meu melhor, prometo. Mas preciso de espaço agora.

Octavia recuou um passo, mordendo o lábio para conter o choro.

Clarke voltou os olhos para o grupo.

— Levem ele pro segundo andar da dropship. Agora. Peguem os kits médicos, tragam tudo o que achamos até agora. Monty, vai com eles. E você também, Harper.

Monty assentiu rapidamente, já em movimento. Harper ajudou a sustentar Jasper com cuidado, enquanto Miller e Finn assumiam os outros lados da maca improvisada. O grupo desapareceu entre as árvores, seguindo com pressa na direção da nave.

Clarke ficou observando por um momento. Sentia o coração bater forte, não de pânico, mas da lembrança viva do futuro que conhecia.

Foi então que percebeu Charlotte parada a poucos passos, a pequena figura observando tudo com olhos arregalados, entre assustada e hipnotizada.

— Parece que sua aula de medicina em caso de emergência vai começar um pouco antes do previsto — Clarke disse, forçando um leve sorriso.

Charlotte piscou e depois assentiu com vigor, o medo nos olhos dando lugar a algo parecido com determinação.

— Vamos — completou Clarke, pegando sua bolsa de suprimentos e começando a caminhar em direção à dropship. — E não se esquece da primeira lição: não se entra em pânico. Nunca.

Charlotte apressou o passo para alcançá-la. As duas seguiram pelo acampamento, sob os olhares atentos dos demais, que começavam a entender, pela primeira vez, o que significava realmente viver na Terra.

O segundo andar da dropship estava abafado, cheio de vozes sussurradas e passos ansiosos. Jasper jazia sobre uma superfície improvisada feita com mantas dobradas e uma placa de metal. A lança ainda estava atravessada em seu ombro, estagnada no meio do tecido rasgado e da carne ferida.

Clarke subiu apressada, carregando o kit médico que haviam recuperado do bunker. Charlotte subia logo atrás, apertando um frasco de desinfetante contra o peito como se fosse um troféu.

— Alguém mantém a cabeça dele erguida. Isso, com cuidado — Clarke se aproximou, limpando a área ao redor da ferida com movimentos cuidadosos e firmes. O cheiro de sangue já impregnava o ar.

Ela olhou ao redor.

— Vocês fizeram certo em não retirar a lança — disse, aliviada por ver que, ao menos nisso, tinham evitado o pior.

— Foi o Bellamy — Monty respondeu, afastando o cabelo da testa com o antebraço suado.

Clarke virou-se, surpresa, para Bellamy, que observava tudo em silêncio do canto da sala, os braços cruzados. Ele sustentou o olhar.

— Eu lembrei de você falando sobre isso — disse ele.

Clarke franziu o cenho, tentando se recordar.

— Quando foi que eu falei isso pra você?

Bellamy deu de ombros levemente.

— Bom... não exatamente pra mim. Mas eu escutei mesmo assim.

Houve um instante de pausa. Os olhos de Clarke permaneceram fixos nos dele, uma pequena faísca de algo não dito passando entre os dois. Eu escuto você. Sempre escutei.

— Gente? — Monty interrompeu, acenando com a mão. — Concentração aqui, por favor. O Jasper ainda tá com uma lança atravessada no ombro, lembram?

Clarke piscou, voltando ao momento.

— Certo. Precisamos virá-lo de lado. Devagar.

Eles giraram o corpo de Jasper com todo o cuidado. Clarke se abaixou, examinando o ângulo de entrada e saída da lança. O ferimento de saída era mais limpo do que esperava — um alívio, ainda que relativo.

Ela olhou para Otávia, que permanecia em pé, inquieta, as mãos espalmadas ao lado do corpo.

— Você disse que o alvo era você, certo?

Otávia assentiu, engolindo em seco.

— Então vocês dois tiveram muita sorte — Clarke comentou, voltando os olhos para o ferimento. — Se ele tivesse sido o alvo, a lança provavelmente teria atingido o peito. Mas como foi um desvio... acabou pegando o ombro. Vai ser doloroso, vai ser difícil, mas ele vai sobreviver.

E dessa vez, havia kits médicos. Havia uma equipe, havia organização. Clarke tinha Charlotte ao lado, observando tudo com atenção redobrada, como se cada movimento da loira fosse uma lição de vida. Até porque era.

Clarke se sentiu, por um instante, no controle. Algo raro naqueles dias.

— Vamos tirar isso com calma. Monty, álcool. Harper, segura ele. Bellamy... fica aqui perto. Se ele se mexer, você segura o braço.

Bellamy já estava ao lado dela, pronto antes mesmo do chamado.

Clarke respirou fundo, e a operação começou.

O calor era denso dentro da dropship. Mas Clarke mantinha os olhos fixos no ferimento do Jasper enquanto limpava com gaze embebida em solução do kit médico. O sangue já havia começado a secar em volta da lança, mas o rubro escorrendo pelas bordas indicava que o ombro ainda sangrava lentamente — o suficiente para preocupar.

Ela pressionou mais uma vez, firme, até o tecido absorver o excesso.

— Esse ferimento está muito aberto — disse, sem desviar os olhos da pele rasgada. — Precisa ser cauterizado.

Charlotte, que observava tudo com uma mistura de fascínio e horror, prendeu a respiração.

— Se não for, ele pode continuar sangrando por dentro. E com a artéria próxima... ele pode não aguentar. Não temos como fazer uma transfusão aqui. Não temos o equipamento necessário. Nem tempo.

Clarke se virou brevemente.

— Charlotte, desce e traz uma faca. Qualquer uma. E uma tocha. Agora.

Charlotte nem respondeu. Desceu correndo pela escada metálica, com passos apressados que ecoaram como tambores abafados.

Clarke respirou fundo, preparando-se mentalmente. Jasper continuava desacordado, mas seus músculos tremiam em espasmos involuntários. A lança ainda atravessava seu ombro. Precisavam ser rápidos.

Charlotte voltou, ofegante, com a tocha improvisada e uma faca de caça já começando a aquecer na ponta do fogo.

— Obrigada — Clarke pegou a faca com cuidado, posicionando-a sobre a tocha até a lâmina ficar vermelha. Em seguida, olhou para Monty. — Quando eu contar até três, você puxa a lança... bem devagar. Só o suficiente pra ela sair da parte de trás. Eu preciso cauterizar por ali primeiro, antes de tirá-la completamente.

Monty engoliu em seco e assentiu.

Clarke fez um gesto para os outros segurarem Jasper com firmeza.

— Um... dois... três.

Monty puxou. A lança se moveu apenas o necessário, revelando a carne aberta e pulsante nas costas de Jasper.

Clarke não hesitou. Encostou a lâmina quente com precisão no local exposto.

O cheiro de carne queimada encheu o ar. Jasper gritou, inconsciente, um som instintivo, que reverberou em todos ali. Octavia fechou os olhos com força, apertando a mão de Harper. Charlotte arregalou os olhos, mas permaneceu firme.

Clarke retirou a faca após alguns segundos que pareceram uma eternidade.

— Agora, virem ele de barriga pra cima — instruiu. — Devagar.

Eles o moveram com cuidado, o corpo semifechado pela dor. Clarke limpou novamente ao redor da ferida frontal.

— Vamos tirar a lança completamente agora. Monty, pronto de novo. Um... dois... três.

A lança deslizou para fora com um som úmido e breve.

— Segura ele.

Ela pressionou a faca na parte da frente do ombro, com a mesma rapidez e firmeza de antes. O calor chiou contra a pele. Mais um espasmo. Mais um grito sufocado.

E então... silêncio.

Clarke puxou o ar com força. O rosto suado, os braços firmes.

— Pronto. Ele ainda não está fora de perigo... mas está muito mais estável do que antes.

Ela se virou, pegando pomadas e antibióticos básicos do kit.

— Vamos limpar mais uma vez, aplicar o antibiótico e fazer a bandagem. Depois disso, ele precisa ser observado nas próximas horas. Qualquer febre, calafrio, respiração irregular... me avisem imediatamente.

Os demais assentiram em uníssono, ainda digerindo o que haviam testemunhado.

Um suspiro coletivo de alívio tomou o segundo andar da dropship.

A tensão cedeu lugar à exaustão.

Clarke desceu do segundo andar da dropship com as mãos manchadas de sangue. Os panos usados no procedimento ainda pingavam, e ela os apertava contra o peito como se quisesse impedir que qualquer gota tocasse o chão. O cansaço pesava nos ombros, mas não havia tempo para descansar.

Lá fora, a penumbra da floresta já começava a se espalhar.

Ela se aproximou do reservatório improvisado, onde os baldes com água recém-coletada pelo grupo da Ilian estavam repousando. Ainda não tinha chovido, e embora Monty estava certo de que iria chover eventualmente, ela sabia que só viria depois da primeira névoa ácida — algo que ainda não havia ocorrido, mas que ela sabia estar próximo. Clarke tentou afastar o pensamento.

Ela inclinou os panos dentro do balde, mergulhando os dedos junto com o tecido, esfregando mecanicamente o sangue seco. O som de passos se aproximando não a surpreendeu. Já sabia quem era.

— Você deveria descansar — disse ela, sem se virar.

Bellamy parou ao lado dela, o olhar atento.

— E você deveria deixar alguém fazer isso por você. Mas aqui estamos.

Ela soltou um suspiro pela respiração, ainda focada no sangue.

— Eles estavam observando. Desde o começo — ele continuou, olhando para a floresta, como se pudesse ver além das sombras. — Desde que pousamos, provavelmente.

Clarke assentiu. Não era surpresa. Bellamy também sabia. A lança tinha sido certeira demais. O ataque, direto demais. E o silêncio que os seguiu... como se os observadores estivessem apenas testando.

Bellamy então se virou, ergueu a voz com firmeza, cortando o ar como uma lâmina.

— Atenção!

As conversas murmuradas que se espalhavam entre os adolescentes se calaram num instante. Todos pararam. Olhares voltados para ele.

— A partir de agora, ninguém sai do acampamento. Sem exceção. — Sua voz ecoou entre as árvores. — Não tem mais festinha nas sombras, nem amasso escondido perto das árvores. Nada de se afastar por conta própria. Nem pra buscar água. Nem pra caçar. Ninguém sai sem autorização. E quando sair, só em grupos. Armados. Em formação.

O silêncio que seguiu foi quase tão pesado quanto o discurso. Alguns rostos se entreolharam, assustados. Outros simplesmente baixaram o olhar. O aviso estava claro: a infância acabara.

Bellamy virou-se para Miller, que vinha se aproximando com olhar atento.

— Miller, escolhe gente de confiança. Vamos começar a montar turnos de guarda. — Ele apontou ao redor. — E reforçar a barricada. Eles já estavam começando algo antes, então vamos terminar isso hoje mesmo. Agora.

Miller assentiu, já chamando nomes e se afastando com passos decididos.

Bellamy olhou ao redor, os olhos escuros refletindo a chama da fogueira central.

— Eu devia ter feito isso antes. — murmurou, mais para Clarke do que para qualquer um.

Ela não respondeu de imediato. Apenas torceu o pano ensanguentado uma última vez e deixou a água vermelha escorrer como um presságio. Depois, ergueu os olhos para ele.

— Mas agora está fazendo. E ainda dá tempo.

Eles ficaram ali, lado a lado, observando o acampamento começar a se mover. Mesmo com a luz diminuindo, ninguém discutiu. Todos começaram a trabalhar. Madeira sendo empilhada. Arames improvisados. Pedras organizadas em semicírculo. Crianças, até então despreocupadas, erguiam barreiras contra o mundo.

A noite cairia com medo no ar. E agora, o medo era útil.

 

**

 

A noite já havia tomado conta do acampamento quando o cheiro de carne assada começou a se espalhar entre as barracas improvisadas. Bellamy observava a pequena fileira que se formava diante da fogueira central, onde um dos javalis que rondava perto do acampamento que ele mesmo caçara mais cedo assava lentamente. Todos estavam famintos e exaustos, mas o alívio de estarem vivos tornava aquela refeição silenciosa quase sagrada.

Clarke pegou um pedaço, comeu devagar, sem realmente sentir o gosto. Depois de alguns minutos, se levantou em silêncio e se afastou em direção ao dropship, os olhos cansados e a mente ainda ocupada com Jasper.

Bellamy a viu se afastar. Por alguns instantes ficou parado, repassando mentalmente tudo o que ainda precisava fazer naquela noite. Deu algumas ordens rápidas a Miller sobre os postos de guarda, orientou dois garotos sobre a finalização da barricada, e então seguiu atrás dela.

Subiu a escada do segundo andar com passos firmes, mas suaves. Lá em cima, encontrou Monty, Harper e Octavia. Os três estavam sentados ao redor de Jasper, que dormia sob a vigília silenciosa das luzes improvisadas. Havia preocupação em seus olhos — e exaustão.

— Podem ir descansar — Bellamy disse, firme, mas gentil. — Eu fico aqui com a Clarke.

Monty hesitou, lançando um olhar à amiga que permanecia sentada perto da cama improvisada. Harper pareceu querer protestar, mas Octavia foi a primeira a se levantar, tocando o ombro de Monty.

— Vamos. Eles cuidam disso.

Os três saíram, e com eles, o último vestígio de ruído. Até mesmo Charlotte já havia sido mandada dormir mais cedo. Agora, restavam apenas Clarke, Bellamy e Jasper — e o zumbido baixo da floresta lá fora.

Clarke olhava para o garoto desacordado com olhos pesados. Tinha os braços cruzados sobre os joelhos e o semblante de quem carregava o peso do mundo.

— Eu estava falando sério quando disse que você devia descansar. — Bellamy disse, aproximando-se devagar.

Ela nem se virou. Apenas respondeu, com a voz mais baixa:

— E eu também estava falando sério quando disse que você também devia. Eu sei que não tem dormido desde que chegamos aqui. Desde que voltamos.

Ele sentou-se ao lado dela, os dois de frente para o ferido.

— Como eu poderia com descansar com tudo isso?

— É, eu sei.

Ficaram em silêncio por um tempo. O único som era o da respiração leve — e levemente irregular — de Jasper. Até que Bellamy falou:

— Vi que a Charlotte tava aqui com você.

Clarke sorriu de canto, mas não tirou os olhos do garoto.

—Eu não sabia o que fazer com ela. Mas ela não saía de perto de mim... então eu improvisei. Agora tenho uma nova aprendiz, aparentemente. Você sabia que ela tem só dez anos? É mais nova que a Madi.

As palavras saíram antes que ela pudesse contê-las, e com elas veio o aperto no peito. A lembrança de Madi, de Sanctum, dos anos vividos em outro mundo. A saudade era como uma brasa, ardendo sem cessar.

— Sanctum parecia um paraíso — Bellamy murmurou, como se adivinhasse os pensamentos dela — mas nós dois sabemos que não era. Não de verdade. E quem sabe o que teria acontecido se tivéssemos ficado? Agora temos uma chance de recomeçar. Todos eles estão aqui. Vivos. Podemos fazer diferente. Talvez... até reencontrar a Madi. E os outros. Talvez, dessa vez, impedir o Primfaya de novo. Mais cedo. Impedir que tudo se repita.

Clarke finalmente o olhou. Os olhos dela estavam marejados, mas firmes.

— Uma coisa de cada vez, Bellamy. Primeiro, o nosso povo. Esse acampamento. Depois o resto. Se fizermos as escolhas certas, se calcularmos tudo com cuidado, talvez tenhamos uma chance.

Ele assentiu.

— Podemos, sim. Juntos.

A mão dele encontrou o ombro dela com naturalidade. Não era um gesto ensaiado. Era uma lembrança de tudo que viveram. Um lembrete silencioso de que, mesmo em um mundo que parecia desabar, havia algo que resistia entre eles.

Ela se inclinou, encostando a cabeça no ombro dele. E assim ficaram, em silêncio, observando Jasper, enquanto a noite se tornava cada vez mais densa. Não dormiriam naquela noite, mas por alguns minutos, apenas estar juntos bastava para suportar.

 

**

 

》Floresta — Lincoln, escondido entre as árvores.

O cheiro de madeira queimada ainda pairava no ar quando ele se agachou no galho grosso, alto o bastante para não ser visto, baixo o suficiente para ver tudo.

"Oso gaf op Dropgon ste daun."
(A nave deles caiu do céu.)

Foi o que a Heda — Lexa — dissera. E Anya, sua superior imediata, dera ordens claras:
Observar. Avaliar. Não agir sem comando.

Mas desde o início, Lincoln sabia que aquilo não terminaria em silêncio.

A clareira onde o acampamento se formava era uma bagunça de vozes jovens, troncos queimados, e metal enferrujado. Crianças — muitas. Talvez trinta, quarenta visíveis de onde estava. Algumas choravam, outras gritavam umas com as outras. Poucos sabiam como usar uma faca. Um garoto derrubou uma tocha no próprio pé e foi xingado por outro.

"Em nou hod op kom daun," murmurou Lincoln.
(Eles não sabem o que estão fazendo.)

Atrás dele, quatro guerreiros da Trikru, camuflados nas sombras, o acompanhavam. Quando a expedição partiu rumo ao bunker, Lincoln e os outros os seguiram. Sempre nas sombras. Sempre invisíveis.

Mas quando os viram saindo do velho abrigo militar, tudo mudou.

Eles não carregavam apenas mochilas e mantimentos.
Carregavam rifles.

E então, o disparo.

Um estampido seco cortou o silêncio da floresta, fazendo as aves levantarem voo. E então um deles agiu. A lança acertou um deles.

Lincoln olhou para os outros em choque, meio indignado com o ataque precipitado, querendo uma explicação.

"Oso souda! Emo souda op fleimkepa!"
(Eles atiraram! Eles despertam Mount Weather!)

O mais jovem do grupo, Nico, puxou sua lança. Provavelmente querendo dar continuidade ao ataque.
"Ste kri op emo! Emo laik gonplei!"
(É sangue neles! Eles querem guerra!)

Mas Lincoln ergueu a mão, bloqueando o avanço.

"Chon nou laik oso. Emo nou hod op kom daun. Emo nou kru."
(Eles não são como nós. Eles não sabem. Eles não são guerreiros.)

"Ai laik report au Anya," disse outro,resmungando, mas recuando.
( Vou reportar à Anya.)

Os passos se afastaram nas folhas secas. Mas Lincoln permaneceu.

Ele observou o caos que se seguiu. Viu o pânico. O medo. O instinto de sobrevivência.
Viu o menino ser carregado nas costas por outro. Viu os olhares assustados, não olhos de guerra. Aquele parecia ter mais experiência que os outros.

E então, viu ela.

A menina de olhos claros e cabelo escuro, que tentava ajudar. Que gritava por ajuda com desespero. Que atirara, sim — mas sem saber. Sem malícia.

Octavia.

Seu olhar era o mais intenso de todos. Vibrante. Vivo.
Como uma flor nascida em solo irradiado.

Lincoln se retirou silenciosamente da árvore. Encontrou o caminho de volta para sua caverna escondida. Acendeu a lamparina fraca, sentou-se no chão e abriu seu caderno de desenhos.
As mãos sujas de terra começaram a traçar as linhas com cuidado.

Primeiro, desenhou a garota que atirou.
Depois, desenhou os dois que pareciam estar no centro de tudo: o moreno protetor e a loira médica. O líder e a curadora.

Por fim, voltou para ela.
Octavia. De pé no meio da mata, segurando uma arma que não entendia, com olhos que pediam alguma coisa que ela mesma talvez não soubesse nomear.

A legenda sob o desenho, em Trigedasleng, era simples:

"Nou em kom gonplei. Em kom raun."
(Ela não vem por guerra. Ela vem por vida.)

Lincoln fechou o caderno com um suspiro.
Eles podiam viver em paz. Ele acreditava nisso.
Mas não sabia se os outros acreditariam.

 

**

 

》Terra- terceiro dia após a aterrissagem

O sol já tinha subido acima das copas das árvores quando Clarke desceu do Dropship com as bandagens lavadas em mãos. Bellamy já estava no limite da clareira, organizando o pessoal que ajudava a reforçar a barricada com toras afiadas e pedras.

Ela caminhou até ele devagar, observando como ele gesticulava, guiava, corrigia. Como todo mundo ouvia quando era ele quem falava.

— Você virou um especialista em construção de fortalezas? — ela perguntou, com um leve sorriso nos lábios.

— Alguém tem que manter todo mundo vivo. — Ele limpou o suor da testa com o antebraço, olhando diretamente para ela. — E eu prometi que faria isso.

Ela abaixou o olhar por um momento, com o coração batendo no fundo do peito. Palavras simples, mas ela sabia exatamente o que ele queria dizer com aquilo.

“Eu prometi a você.”

Ele caminhou ao lado dela, ambos desviando das toras espalhadas pelo chão. Sem precisar combinar, se afastaram um pouco da confusão. Um lugar só deles, atrás de uma pilha de escudos improvisados.

— Jasper vai sobreviver. — disse ela, olhando o horizonte. — Mas isso... isso é só o começo, não é?

— É. E é por isso que a gente não pode errar. Não dessa vez.

Silêncio. Os galhos se movendo no vento.

— Clarke... se algo acontecer — começou Bellamy.

— Não. — Ela se virou imediatamente. — Não começa com isso.

— Eu só preciso que você saiba. — Ele deu um passo mais perto. — Eu confio em você mais do que em qualquer pessoa nesse lugar. Mesmo quando você me puxa de volta quando quero ir longe demais. Especialmente nesses momentos.

Clarke prendeu a respiração. O sol tocava o lado do rosto dele, realçando o contorno da expressão firme. Mas os olhos... os olhos estavam expostos.

— Isso vale pros dois, Bellamy. — ela respondeu. — Eu... sempre te ouvi, mesmo quando parecia que eu não estava ouvindo. Sempre olhei pra você pra saber se a gente estava fazendo a coisa certa.

Eles ficaram frente a frente, tão próximos que podiam sentir a respiração um do outro. As palavras pararam, mas ali havia algo dito.

"Se for você, eu vou."
"Se você cair, eu vou te levantar."
"Você é a pessoa que eu escolheria, sempre."

Mas nenhuma dessas palavras foi dita.

Ao invés disso, Bellamy apenas estendeu a mão, sem hesitar. Clarke pegou. E por um instante — só um instante — o mundo pareceu menos cruel.

Enquanto eles voltavam para o acampamento juntos, discretamente de mãos dadas, cochichos surgiam pelos cantos:

— Eles tão sempre juntos, já percebeu? — comentou a Roma, afiando um pedaço de madeira ao lado da Harper.
— Acho que eram mesmo um casal secreto na Arca. — respondeu a Harper, em tom de confissão.

Finn, sentado com os cotovelos apoiados nos joelhos, olhava de longe. Tentando entender. Tentando não se importar. Mas falhando.

Wells, com o mapa nas mãos, franzia o cenho enquanto observava os dois de longe.
— Eu conhecia a Clarke desde pequeno. Ela nunca foi assim com ninguém...

Murphy, cruzando os braços:
— E pensar que ele ia ser o rosto da rebelião, né? Agora tá bajulando princesa de setor Alfa. Que piada.

Os boatos corriam. As suposições cresciam. Mas Clarke e Bellamy continuavam juntos. Dormiam próximos, com Jasper entre eles nas noites frias, e sempre se procuravam no meio do caos do dia.

E ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo.

Mas todos sentiam.

 

**

 

O céu noturno era silencioso, pontuado por estrelas que brilhavam intensamente, como se a Terra quisesse lembrar àqueles jovens de que ainda havia beleza naquele mundo esquecido.

Dentro do Dropship, Clarke organizava os suprimentos médicos à luz fraca de uma tocha improvisada. Ao lado, Charlotte ajudava em silêncio, dobrando panos limpos e separando os kits de primeiros socorros com cuidado impressionante para uma menina de dez anos. Desde o incidente com o Jasper, ela não desgrudava de Clarke.

— Você tá aprendendo rápido — disse Clarke, tentando sorrir apesar do cansaço.

— Eu quero ajudar. Quero fazer a diferença.- respondeu a menina.

Clarke parou por um segundo e encarou aqueles olhos pequenos, firmes. Ela assentiu com ternura.

— Você já tá fazendo.

Mas Charlotte mal conseguiu segurar os olhos abertos depois disso. Acabou dormindo sentada, encostada no canto de uma das camas improvisadas, os dedos ainda sujos de sangue seco. Clarke ajeitou um cobertor por cima dela com cuidado.

Do outro lado do Dropship, Bellamy subia as escadas, vindo das últimas rondas. Quando a viu, se aproximou sem dizer nada. Ambos estavam exaustos, mas sabiam que não havia muito tempo para descanso real. Ainda assim, sentaram lado a lado, perto de Jasper, que continuava dormindo — febril, mas estável.

— Um dia de cada vez, né? — murmurou ele.

— É. Um de cada vez.

Ficaram assim por um tempo, em silêncio. Clarke encostou a cabeça no ombro dele, os dois dividindo o mesmo cobertor rústico. As respirações se alinharam. A paz parecia possível por um instante.

Foi quando Charlotte gritou.

Um som agudo, preso entre o terror e a dor. Ela se debatia, os braços tentando se proteger de algo invisível, o rosto banhado em suor.

Clarke e Bellamy se levantaram na mesma hora.

— Charlotte! — Clarke chamou, agachando ao lado dela.
— Shh, tá tudo bem, você tá segura. — Bellamy dizia, se ajoelhando do outro lado.

A menina abriu os olhos aos poucos, perdida, ofegante. Clarke estendeu os braços e a puxou para perto, apertando contra o peito com força.

— Foi só um sonho — sussurrou. — Você tá aqui com a gente agora.

— Eles me pegaram... de novo... — murmurou Charlotte, os olhos cheios de pavor.

Bellamy, com um olhar sério e calmo, tocou o ombro dela.

— Isso não vai acontecer. Não enquanto estivermos aqui. Você confia na gente, não confia?

Charlotte assentiu, os olhos arregalados ainda marejados.

— Então vem. Fica com a gente.

Sem dizer mais nada, Bellamy puxou os cobertores para o lado, e Clarke deitou, segurando Charlotte entre eles. Bellamy se acomodou do outro lado.

E assim ficaram os três — um pequeno refúgio de calor humano no meio da selva selvagem, onde palavras não eram mais necessárias. O silêncio era segurança. O calor, abrigo.

Charlotte, entre soluços abafados, acabou adormecendo outra vez, dessa vez sem medo.

 

**

 

》Na manhã seguinte. Quarto dia após a aterrissagem.

O som da porta do Dropship rangendo anunciou a entrada de Harper e Monty com alguns panos e remédios. Eles congelaram ao ver a cena: Clarke e Bellamy dormindo lado a lado, protegendo Charlotte, os três enrolados no mesmo cobertor improvisado.

Harper encostou no ombro do Monty.

— Ok... isso definitivamente vai alimentar os boatos.
— Você acha que eles...?

— Monty! — sussurrou ela, rindo de leve. — Eles tavam dormindo. Tem uma criança com eles. Mas... olha isso. Se não é a cara de um casalzinho secreto da Arca, eu não sei o que é.

Octavia, que vinha logo atrás carregando um saco de panos limpos, parou ao lado deles. Observou em silêncio, o olhar suave.

— Eles são bons juntos — disse apenas, antes de seguir adiante e começar a organizar os suprimentos.

Monty e Harper trocaram um olhar, um pouco surpresos com o tom da Octavia. E, por mais que os cochichos começassem logo depois no acampamento, ninguém ousou dizer nada na frente deles.

Afinal, Clarke e Bellamy estavam firmes no centro de tudo — e, como dizia o ditado que ainda não existia ali, mas que logo surgiria...

“Se eles estão juntos, a gente tem chance.”

 

**

 

A terceira manhã , e o quarto dia na Terra mal começava, e o acampamento inteiro fervia em sussurros.

— Eu juro que vi! Tavam os três juntos, a Clarke, o Bellamy do lado dela e a Charlotte dormindo entre eles... — cochichava Harper, com os olhos arregalados.
— Isso tem todo o cheiro de romance proibido da Arca... — completou Monty, divertido.

— Ela era do setor Alfa... e ele era dos setores inferiores... Como assim eles se conheciam? — indagava Murphy, mal disfarçando a desconfiança.

— Alguma coisa tá errada. Eles têm respostas demais. Ninguém chega aqui sabendo o que fazer daquele jeito. Nem mesmo a gente que era dos setores técnicos. — comentou Finn, olhando de longe para Clarke e Bellamy conversando com Miller sobre patrulhas.

Mesmo Octavia, que observava em silêncio, comentou:

— Deixem eles em paz. São os únicos que parecem saber o que estão fazendo.

O sussurro se espalhou como fumaça entre tendas improvisadas, madeira serrada e vozes agitadas.

 

**

 

Clarke estava organizando os curativos ao lado de Charlotte quando ouviu o som de algo se soltando — um estalo metálico. Ela girou nos calcanhares e desceu o pequeno barranco de pedras improvisado que levava até um canto afastado do acampamento.

Lá estava Murphy, ajoelhado no chão, com a pulseira quase completamente arrancada do pulso.

— O que você pensa que está fazendo?! — a voz dela veio mais afiada do que uma lâmina.

Murphy se levantou de supetão, com o olhar carregado de provocação.

— Relaxa, doutora. Só tô me libertando.

Clarke cerrou os olhos.

— Libertando do quê?

— Da coleira da Arca. Essas pulseiras são pra isso, não são? Eles tão assistindo tudo de lá. Cada batimento nosso, cada respiração. Já temos Grounders atrás da gente, Clarke. Vai me dizer que também precisamos de espiões flutuando acima das nuvens?

— Eles não estão espionando. Estão tentando sobreviver.

— Ah, claro. Sobreviver. Como mandando cem adolescentes pra Terra pra ver se a gente explodia ou não? Eu ouvi o amiguinho do setor de engenharia dizer. Essas pulseiras são pra rastrear a gente, dar sinal vital. E o que acontece quando elas param de funcionar? A Arca acha que a gente morreu. Bom… talvez seja melhor assim. Talvez seja hora de cortar de vez esse cordão umbilical.

Ele ergueu a pulseira, pronto para arrancá-la de vez.

Foi então que Clarke explodiu.

— A Arca está morrendo.

O silêncio caiu abruptamente sobre os poucos ao redor que haviam se aproximado ao ouvir a discussão.

— O suporte de vida da arca está falhando. É por isso que nos mandaram pra cá. Não foi só uma punição, foi um último suspiro. Eles nos jogaram aqui porque estavam desesperados. E sim, foi cruel. Foi frio. Mas não foi só pra nos descartar. Foi porque eles precisam de uma chance. E nós éramos a chance deles.

Murphy vacilou por um instante.

Clarke continuou, com a voz embargada, mas firme:

— Eu sei que muitos lá decepcionaram vocês. A minha própria mãe me decepcionou. Ela denunciou meu pai. Ela entregou ele. Fez com que ele fosse flutuado. Você acha que eu não entendo o que você sente?

Todos estavam em silêncio. Até Bellamy, que se aproximava com Miller, parou ao ouvir aquilo.

— Mas isso não significa que todos lá merecem morrer. Eu sei que muitos de vocês têm familiares na Arca. Pessoas que amam.

Ela olhou diretamente para Finn ao dizer isso, e ele piscou, confuso — porque ela pareceria saber algo.

— Eles estão contando com a gente. E eu não sei vocês, mas eu não quero sangue inocente nas minhas mãos. Eu não quero ser como os conselheiros que tomavam decisões a portas fechadas. Eu quero ser melhor que eles.

Ela se aproximou de Murphy e olhou nos olhos dele.

— Você pode odiar o sistema. Eu também odeio. Mas se você quer lutar contra ele… então prove que é diferente. Que não abandona quem depende de você.

Murphy abaixou lentamente o braço com a pulseira. Não arrancou.

As palavras pairaram no ar como um trovão silencioso.

Finn, no fundo, desviou o olhar. O peso do que sentia por Raven caiu sobre ele como uma avalanche. Clarke parecia sabia. E mesmo assim, não o julgava. Só queria que ele se importasse com quem estava lá em cima.

Murphy deu dois passos para trás, rindo amargo.

— Você devia discursar mais vezes. Talvez um dia eu até comece a gostar de você.- murmurou baixinho.

Mas havia respeito na forma como ele deixou a pulseira no pulso.

Bellamy, calado, apenas observava. Aquilo confirmava o que ele já sabia: Clarke era muito mais forte do que parecia.

Wells, parado perto de um galho, sentiu o baque. Finalmente entendeu por que Clarke não parecia estar com raiva dele. Ela sabia desde o começo que ele não tinha sido o delator do pai. Sabia… por isso só se afastou, deu espaço. Agora tudo fazia sentido — e com isso, a culpa apertou no peito dele.

Bellamy, de braços cruzados, esperou que o círculo começasse a se dispersar, até estar só ele e Clarke.

— Isso foi… intenso — murmurou ele.

Clarke respirou fundo, olhando para as árvores ao redor.

— Era hora de parar de esconder algumas verdades.

Ele se aproximou, devagar.

— A cada vez que você fala… eles escutam mais. Você tem esse poder, Clarke.

Ela deu um meio sorriso.

— E você também.

Ele olhou pra ela com aquela intensidade que sempre parecia ver através das paredes que ela erguia.

— Só quando estamos juntos.

E com isso, eles voltaram para a organização do dia. As pulseiras continuavam no pulso de todos. Pelo menos por agora.

 

**

 

O sol ainda estava alto no céu, quando a agitação causada pela discussão sobre as pulseiras aos poucos dava lugar a uma calma estranha — como se todos estivessem exaustos demais para discutir mais alguma coisa.

Wells observava de longe.

Clarke e Bellamy haviam se afastado juntos após o discurso. Conversaram algumas palavras, e então se separaram. Clarke caminhava sozinha agora, seguindo na direção dos reservatórios improvisados, a cabeça abaixada, pensativa.

Ele a seguiu. Silenciosamente.

Ela percebeu a aproximação sem se virar. Parou. Esperou.

Ele não hesitou.

— Você sabia.

Mais uma afirmação do que uma pergunta.

Clarke se virou devagar, encarando os olhos dele. Seus ombros estavam tensos, mas seu olhar, firme.

— Sim, respondeu.

Ele respirou fundo, lutando contra os pensamentos.

— Como?

Na cabeça dela, as palavras se formaram com clareza: "Porque você mesmo me contou. E eu só entendi tudo com a ajuda do Finn. Na primeira vez."

Mas não podia dizer isso. Não agora. Talvez nunca.

Então, ela respirou fundo.

— Tive tempo para pensar. Na solitária. — disse com suavidade. — Cheguei à conclusão depois de um tempo. Juntei as peças.

Wells mordeu o canto da boca, abaixando os olhos por um momento.

Ela deu um passo em sua direção, com a voz mais branda agora.

— Escuta... Eu sei que você fez o que achou melhor. Na verdade, todo mundo fez o que achou melhor naquela época. — Ela hesitou. — Fosse certo ou não.

Os olhos dele a encontraram novamente, esperançosos e machucados ao mesmo tempo.

— E eu não te culpo por isso, Wells. — continuou. — Mas eu quero que me prometa uma coisa.

Ela se aproximou mais um passo. Agora, estavam a poucos centímetros.

— Nunca, jamais, esconda algo de mim na intenção de me proteger. Por favor. Não faça isso de novo.

A voz dela oscilou levemente no final, como se abrisse uma cicatriz cuidadosamente costurada.

— Eu ainda gosto muito de você, Wells. Talvez não da mesma forma que você gosta de mim... — e os olhos dele se fecharam por um breve instante — ...mas você ainda é um amigo precioso. E eu não gostaria de ver nossa amizade acabar assim, tão cedo. Não depois de tudo.

Por um instante, houve apenas o som do vento soprando pelas copas das árvores.

Wells assentiu lentamente, e um leve tremor escapou pelos lábios dele.

— Eu prometo.

Sem que precisassem dizer mais nada, eles se abraçaram. Um abraço real, honesto. Do tipo que fecha feridas. Que sela promessas.

Por um instante, o mundo parecia inteiro de novo.

E quando eles se afastaram, Wells respirou fundo e deu meia-volta, voltando ao acampamento com passos mais leves do que antes.

Clarke permaneceu ali, sozinha por um instante. Seu olhar baixou para o pulso esquerdo. Ali, justo abaixo da pulseira ainda intacta, estava o relógio de seu pai.

Ela deslizou os dedos com carinho sobre ele, apertando-o com ternura.

 

**

 

O sol continuará a subir, cortando a neblina que ainda pairava sobre a clareira onde o acampamento se erguia. A brisa fria da manhã ainda era forte, fazendo com que as brasas da fogueira noturna exalassem um último sopro de fumaça antes de se apagarem por completo.

Clarke observava pela entrada do dropship, os olhos fixos nos vultos que se afastavam pela trilha rumo à floresta. Bellamy ia à frente, passos largos e certeiros, acompanhado de Atom, Roma e mais dois garotos, todos com lanças improvisadas e mochilas reforçadas. Iam caçar. Iam tentar garantir o jantar da noite.

“Bellamy sempre assume a liderança quando o assunto é proteger.”
Pensou, com uma mistura de preocupação e alívio. Desde o primeiro dia ele havia estado ao lado dela — às vezes como aliado, outras como espinho. Mas sempre presente.

Ela suspirou e voltou para dentro do dropship. O cheiro metálico de sangue e suor ainda impregnava o interior da nave, mesmo após os panos lavados e o esforço das últimas horas. O corpo de Jasper tremia de leve sob os cobertores que haviam conseguido. Seu rosto, antes apenas pálido, agora estava ruborizado. Suava. Respirava com dificuldade.

Clarke se aproximou, examinando rapidamente a ferida já cauterizada no ombro. O tecido ao redor estava inchado. O sangue voltava a escorrer em pontos mínimos pelas bordas.

— Não... Não agora..., murmurou baixinho.

Colocou a mão sobre a testa dele e confirmou o que temia. Febre alta. Infecção.
Ela já sabia. Havia visto aquilo antes. No fim, o corpo sempre encontrava uma forma de reagir. E a bala de prata contra isso eram os antibióticos. Mas...

Clarke abriu a pequena caixa metálica com o símbolo da Cruz Vermelha já desbotado na tampa. Dentro, restavam apenas dois comprimidos de um antibiótico oral e um frasco com uma dose quase inútil de líquido intramuscular. Nada suficiente.

— Droga, disse, se levantando com brusquidão.

Monty se aproximou, vendo a tensão estampada no rosto dela.

— Clarke? O que houve?

— Os antibióticos estão acabando. E ele piorou. Muito.

— A gente vai ter que voltar ao bunker?

O medo nos olhos dele era palpável. Ela sabia que não era só pelo Jasper. Era pelo que o Bellamy tinha dito. Pelas pegadas. Pelo ataque.

— Não, respondeu, firme. — Não vamos arriscar agora.

Ela olhou ao redor por um momento, os olhos viajando para além do metal da nave, para a lembrança que guardava no fundo da memória.

As algas.
Aquelas algas vermelhas, viscosas, com cheiro forte e sabor amargo, mas que haviam ajudado Jasper na linha do tempo anterior. Monty havia feito uma infusão delas naquela vez, meio por acaso, meio por tentativa e erro. E funcionou.

— Tem um tipo de alga... — começou a dizer, mais pra si do que para os outros — ...com propriedades antibacterianas. Se estiverem no rio próximo, talvez possamos salvá-lo.

Ela se virou.

— Charlotte! Octavia! — chamou, determinada. — Fiquem aqui com ele. Façam compressas frias. Se a febre subir muito, procurem me avisar.

As duas assentiram imediatamente.

Ela desceu as escadas do dropship e encontrou Monty a seguindo.

— Você sabe onde encontrar essas algas? — perguntou ele.

— Não. Mas sei quem sabe.

Finn estava mais adiante, terminando de organizar algumas ferramentas para caça. Ao lado dele, Wells escutava em silêncio. Quando Clarke se aproximou, os dois ergueram o olhar.

— Finn! Vem comigo.

— Pra onde? — perguntou ele.

— Alga medicinal. Rio próximo. Jasper está piorando.

Finn assentiu, já se levantando. Mas antes que ele falasse qualquer coisa, Wells adiantou-se:

— Eu sei como elas são. Minha mãe me ensinou. Posso ajudar.

Clarke olhou para ele por um momento, avaliando se era uma boa ideia. Decidiu confiar.

— Ótimo. Vocês dois comigo. Monty, fica aqui.

Monty assentiu, já voltando para perto do Jasper.

 

**

 

A floresta não oferecia resistência naquela parte do caminho. A vegetação ali era mais espaçada, e os sons da Terra pareciam mais tranquilos — por enquanto.

Enquanto caminhavam, Wells ia explicando:

— Essas algas crescem em água corrente com luz parcial. Se tiver sorte, vamos encontrar várias bem vivas perto das pedras do lado oposto do rio.

Clarke assentiu em silêncio. Estava focada. Jasper não podia piorar mais.

Finn ia um pouco mais à frente, pulando por entre as raízes. Às vezes parecia apenas um garoto explorando um novo mundo, como se nada o afetasse.

Foi quando ele parou abruptamente e deu um passo para trás.

— Whoa... Clarke!

Ela e Wells se aproximaram e então viram. No meio das árvores, parcialmente engolido por raízes e vegetação, estava um carro. Coberto por terra, musgo e tempo, mas ainda reconhecível.

— O que... — Clarke começou.

Finn riu, aquele sorriso leve estampado no rosto.

— Eu acho que encontrei meu novo lugar favorito na Terra.

Ele abriu a porta com esforço. Um rangido longo ecoou.

— Não acredito que isso ainda abre, comentou Wells.

—Pessoal!- disse Clarke, balançando a cabeça. — Vamos. Precisamos das algas. O carro pode esperar. Jasper não.

Finn seguiu com um leve salto.

— Você tá certa.

Clarke revirou os olhos.

E então seguiram o caminho.

O som do rio próximo trouxe alívio imediato. A vegetação mais úmida e o cheiro característico da água doce chegaram primeiro. Ao se aproximarem da margem, eles finalmente viram as algas flutuando, presas entre pedras cobertas de limo.

Clarke se agachou rapidamente.

— É essa. Exatamente essa.
Ela tirou um pote metálico da mochila improvisada e começou a recolher. — Wells, ajuda aqui. Finn, fica de olho no entorno.

Mas Finn estava com os olhos fixos em outro ponto do horizonte.

— Clarke...

Ela ergueu o olhar e viu: uma fina fumaça escura subia entre as árvores, e logo em seguida, o som abafado de uma buzina ecoou pela floresta.

Wells se ergueu num salto.

— Que diabos foi isso?

— Talvez uma buzina de guerra, sugeriu Finn.

Mas Clarke já sabia.

Um arrepio percorreu sua espinha. Ela não precisava de outra confirmação.

— Nevoa ácida.

O sussurro deixou os lábios dela como uma sentença.

E então os pássaros explodiram da copa das árvores.

Centenas, em revoada urgente.

— CORRE! — ela gritou. — VAI, VAI, VAI!

Finn agarrou a mochila, Wells os frascos com as algas. E os três correram. Pulando raízes, galhos, desviando das pedras molhadas. O som da Terra se transformava atrás deles: mais abafado, mais pesado.

Clarke corria como se a vida deles dependesse disso. Porque, naquele momento, dependia.

 

**

 

》Momentos antes... nas proximidades do acampamento dropship.

O mato se fechava em volta deles enquanto caminhavam, Bellamy à frente, Atom logo ao seu lado e outros três garotos do acampamento logo atrás, atentos às pegadas de um animal que parecia estar por perto. A caça não era apenas por comida — era por segurança, por estrutura, por controle. E Bellamy precisava sentir que ainda tinha tudo isso nas mãos.

Foi então que o som cortou a floresta como uma lâmina:

Uma buzina grave e metálica ecoou por entre as árvores, vibrando nos ossos dele.

Os garotos pararam.

— O que foi isso?

Mas Bellamy já sabia. Seu corpo congelou por um segundo.

A névoa.
Maldição, como ele tinha esquecido disso?

Dessa vez ele não esperou para ver a névoa chegando, pra começar a correr.

Ele se virou bruscamente e agarrou Atom pelo braço.

— Vai! Vai! Todo mundo de volta pro acampamento! Agora!

— Mas o que...?!

— EU NÃO SEI O QUE É AQUILO, — mentiu, com a voz firme. — Mas não é um bom som! Provavelmente é uma ameaça! CORRE, VAI, VAI, VAI!

E os garotos obedeceram.

A corrida foi caótica. Galhos sendo quebrados, folhas cortando o ar, passos acelerados.

Quando atravessaram a trilha principal, já podiam ver os contornos do acampamento. O Miller estava na entrada da barricada improvisada, os olhos arregalados.

— ENTREM! ENTREM! TODO MUNDO PRA DENTRO!

Bellamy liderava o grupo, empurrando todos com urgência, os pulmões queimando, o coração aos pulos.

Uma a uma, as crianças passaram pela barricada. Todos indo para dentro do dropship. Gritos abafados.

Ele olhou em volta, respirando com dificuldade, o suor escorrendo.
Mas algo estava errado.

— Cadê a Clarke? — ele perguntou alto, virando-se para Octavia, que descia a escada com panos molhados nas mãos.

Ela parou.

— Ela saiu. Foi procurar algumas algas, ervas… pra ajudar o Jasper. Levou o Finn e o Wells com ela.

Clarke. Fora do acampamento. No meio da floresta. Com a névoa chegando.

Bellamy já se virava antes mesmo de ouvir o próprio pensamento.

— Fica aqui. Tranca essa porta. Não deixa ninguém sair. E você, por favor, só dessa vez... me escuta.

Octavia tentou protestar, mas parou. Ela viu nos olhos do irmão que não havia espaço para dúvida.

Ela assentiu. — Vai.

E ele foi.

Bellamy correu com tudo que tinha. O mato o cortava, os pés escorregavam, a garganta ardia com o ar pesado.
Ele sabia que Clarke tinha sobrevivido a essa névoa da primeira vez, mas isso não significava que ia acontecer de novo.

Ele não podia arriscar. Não depois de quase perdê-latantas vezes a essa altura. Não, ele tinha que tá lá, com ela ,vê que ela estaria bem com seus próprios olhos. Ele não podia deixá-la pra atrás, não de novo.

A névoa começava a surgir pelas bordas das árvores, amarelada, ácida, densa.
O cheiro era horrível. A pele começava a formigar.
Mas ele não parou.

— CLARKE! — ele gritou com tudo que tinha. — CLARKE!!

— BELLAMY!

A voz dela veio fraca, abafada, mas real. Ele a viu correndo, os cabelos voando, a mão no peito, o rosto suado. Atrás dela vinham Finn e Wells.

Eles estavam correndo contra a morte.

Quando os olhos deles se encontraram, os dois se lançaram um para o outro. Bellamy a segurou, a puxou para junto do peito.

— Por aqui! — Finn gritou.

O carro antigo, semi-enterrado, com portas abertas — o mesmo que tinham encontrado minutos antes — era agora a única chance.

Todos correram. Finn entrou primeiro, puxando Clarke. Bellamy empurrou Wells para dentro, entrou por último, fechando a porta com força.

Eles se jogaram no banco de trás, tossindo, respirando pesadamente.

Bellamy girou a alavanca da maçaneta.
Fechada.

— As janelas! — Clarke tossiu. — Vede as janelas!

Eles rasgaram pedaços de roupa, panos, o que conseguiram, e cobriram todas as frestas.

O silêncio caiu de repente.

A névoa passava lá fora.
E eles estavam vivos.
Por enquanto.

Bellamy olhou para Clarke. Ela tremia, mas estava respirando. Viva.

E ele passou o braço em volta dela.

Ela não disse nada. Mas se inclinou para ele, até que sua cabeça repousasse contra seu ombro.

 

**

 

》Dropship, Durante a névoa ácida.

O som do buzinão ainda ecoava na cabeça de todo mundo.

As portas do Dropship foram seladas. Por fora, as sombras da neblina amarela começavam a lamber os troncos das árvores.

Lá dentro, o silêncio era absoluto.

Charlotte abraçava os joelhos, encostada perto de Jasper, com os olhos arregalados. Monty verificava as bandagens com mãos trêmulas, tentando manter a compostura.

— Onde tá a Clarke? — a voz fina de Charlotte rompeu o silêncio. — E o Bellamy?

Todos se entreolharam. Miller estava perto da escotilha, vendo alguns dos outros lá no andar de baixo olhando pela fresta mínima da porta reforçada, tentando ver alguma coisa lá fora.

— Eles ainda não voltaram, — respondeu Monty, num tom que tentou soar calmo.

— Mas por quê? — ela insistiu. — Por que eles não estão aqui?

Octavia se aproximou e se agachou na frente da menina.

— Eles saíram pra ajudar o Jasper. Foram buscar algo pra curar ele. — Ela olhou para o garoto inconsciente, o rosto pálido e suado. — Mas eles vão voltar. Eles sempre voltam.

— Mas e se a névoa pegar eles? — a voz da Charlotte falhou. — E se eles...

Octavia segurou as mãos dela com firmeza.

— Escuta. Clarke e Bellamy são os dois seres humanos mais teimosos e resistentes que eu já conheci. E se tem alguém que pode atravessar aquela floresta e voltar vivo... são eles.

Charlotte assentiu devagar, enxugando as lágrimas.

Harper apareceu com um cobertor e envolveu a menina, se sentando ao lado dela.

— Estamos juntos, lembra? Somos um só povo agora. E ninguém fica pra trás.

Monty olhou para todos ao redor, finalmente dizendo em voz alta o que todos estavam sentindo:

— É a primeira vez que os dois não estão aqui.

Octavia respirou fundo.

— Então é a primeira vez que a gente vai provar que consegue manter tudo de pé... por eles.

Do lado de fora, o som abafado do vento cortava o mundo.
Lá dentro, era só esperança sustentando as paredes.

 

**

 

》Carro, durante a névoa ácida.

O vidro da janela vibrava levemente com o zunido estranho da névoa lá fora. Do lado de dentro, quatro corpos apertados e silenciosos respiravam o ar quente e abafado de um carro enterrado até metade na lama. Nenhum deles ousava dizer o óbvio: se o isolamento não segurasse, estariam mortos em minutos.

Clarke estava encostada ao lado de Bellamy, o ombro dela tocando o dele, ambos suados, ofegantes e cobertos por pequenas folhas grudadas nas roupas. A mão dela apertava um frasco com ervas molhadas — as algas medicinais.

— Acha que vai dar certo? — perguntou o Finn, quebrando o silêncio. A voz saiu baixa, como se não quisesse incomodar a névoa lá fora.

Clarke assentiu.

— Tem que dar.

Bellamy mexeu em algo no painel do carro, abrindo um compartimento enferrujado. Um som metálico ecoou. Lá dentro, uma velha garrafa de uísque, meio vazia, escorregou para a mão dele.

— Pelo menos esse cara sabia como passar o fim do mundo com estilo, — disse ele, levantando a garrafa.

Clarke soltou um riso fraco, cansado.

— Espera aí, — ela disse, puxando algo entre os bancos. — Isso aqui é mais a minha cara.

Era uma caixa fina, metálica, manchada de barro. Dentro, pequenos potes de tinta seca e um velho bloco de papel de desenho, parcialmente protegido da umidade. Clarke passou o dedo por cima de uma das páginas em branco.

Bellamy olhou pra ela, um meio sorriso no rosto.

— Vai voltar a desenhar, princesa?

O tom era leve, mas o jeito que ele a chamou — “princesa” — carregava um carinho que nem ele tentou disfarçar. Finn franziu a testa, olhando de um pra outro.

— Você desenha?

Foi Wells quem respondeu.

— Desde sempre, — disse, com um tom que soava mais nostálgico do que ele queria. — Na verdade, ela é muito boa. Sempre quis ser médica, mas... era nos desenhos que ela se perdia.

Então Wells ficou em silêncio por um momento, só observando.

Era estranho. Clarke não era o tipo de garota que exibia esse lado. Não com qualquer um.

— Como você sabia disso? — ele perguntou, olhando pra Bellamy.

Bellamy deu de ombros, os olhos fixos nos dedos de Clarke, que limpavam cuidadosamente os cantos da caixa de tinta.

— Eu escuto quando ela fala. E já vi alguns eu mesmo.

Wells olhou pra ele por um momento longo. Aquilo não parecia apenas uma frase jogada. Era uma afirmação. Firme. Simples. E estranhamente íntima.

"Eles parecem se conhecer há muito mais tempo do que três dias..." Wells pensou.

E não era só ele que achava isso. Dava pra ver pelo jeito como Clarke se apoiava nele sem hesitar. Pelo jeito como ele olhava pra ela, atento a cada detalhe. Como se estivessem relembrando e não descobrindo um ao outro.

Wells encostou a cabeça no vidro suado e fechou os olhos. Estava tentando não pensar demais. Mas era difícil quando tudo em volta parecia mudar tão rápido.

O silêncio voltou.

Lá fora, a névoa ainda cantava.

Mas lá dentro, no abrigo improvisado, uma verdade invisível começava a se formar — Clarke e Bellamy eram um mundo à parte. E por mais que ninguém entendesse como ou por quê... todo mundo sentia.

 

**

 

O silêncio entre os quatro já parecia vivo. Denso. Como se a névoa lá fora tivesse escorrido pelas frestas do carro e adormecido cada palavra.

Finn observava Clarke com o canto dos olhos.

Ela ria baixinho de alguma piada idiota do Bellamy. Não que Bellamy fosse engraçado, exatamente — mas quando falava com Clarke, ele encontrava um tom diferente. Quase suave. E ela respondia. Sempre respondia.

Havia algo ali.

Finn sabia reconhecer aquilo. Aquela forma de olhar de quem já conhecia o outro no escuro. Como se compartilhassem alguma história que ninguém mais conhecia.

E era isso que o incomodava.

Não... não incomodava.

Doía.

Porque por mais que tentasse, por mais que fingisse, era a Raven quem ocupava esse espaço dentro dele.

A imagem dela surgiu em sua mente como um golpe — os olhos escuros e brilhantes, a voz firme, o sorriso que escondia coragem e medo ao mesmo tempo. Ela sempre foi o elo entre ele e o que ele acreditava que era certo. E ele simplesmente… largou.

Ele nunca quis machucá-la.

Mas quando foi preso, condenado e jogado pra morrer na Terra, algo dentro dele quebrou. Ele achou — por um instante — que nunca mais veria o céu da Arca. Nem ela.

E então Clarke apareceu.

Com sua força silenciosa, sua voz decidida, sua dor que espelhava a dele. Foi fácil se apegar. Foi fácil se enganar.

Mas agora… vendo-a ali, ao lado de Bellamy, verdadeiramente ao lado dele, Finn sentiu uma coisa que ainda não tinha sentido nos últimos três dias:

Vergonha.

Vergonha de ter confundido desespero com amor.

Vergonha de ter se permitido esquecer, mesmo que por segundos, quem realmente importava.

Raven.

Ela ainda estava lá em cima. E por mais que o céu parecesse distante, ela era real. Ela existia. E ele a tinha traído, nem que fosse apenas em pensamento.

Se Clarke e Bellamy tinham mesmo alguma coisa… ele não ia se meter.

Não por orgulho. Não por ciúme. Mas por respeito.

Pela Raven.

Pela Clarke.

E por si mesmo.

— Você tá bem? — perguntou Clarke de repente, a voz quebrando seus devaneios.

Finn ergueu o olhar. Ela o observava, preocupada.

Ele forçou um sorriso e assentiu.

— Tô. Tava só… lembrando de alguém.

Clarke não perguntou quem. Talvez soubesse. Talvez não.

Mas o olhar dela suavizou. E ela voltou a encostar a cabeça no ombro de Bellamy.

Finn fechou os olhos.

Ele não sabia como — ou se — veria Raven de novo. Mas sabia o que faria diferente dessa vez.

Ele esperaria por ela.

 

**

 

》Arca- estação mecânica.

As mãos de Raven estavam sujas de graxa, o rosto suado enquanto ela finalizava os ajustes numa das comportas de vedação da Arca. O alarme de manutenção interna soava levemente ao fundo, mas ela já tinha isolado a falha — e corrigido. Sorriu de leve. Mais um problema resolvido com um pedaço de metal reciclado e inteligência de sobra.

— Você tá muito animada pra alguém que acabou de consertar a vigésima comporta do mês- provocou um dos técnicos ao lado.

Raven girou os olhos, mas sorriu. Tirou um pequeno colar de dentro da roupa e segurou entre os dedos com carinho. Era o colar que Finn havia feito para ela.

— Talvez seja porque eu tenho planos pra hoje à noite,-disse, com um tom brincalhão, mas o brilho nos olhos era real.

— Boa sorte com isso,- comentou um dos homens com tom sombrio. -A prisão tá de quarentena. Ninguém entra nem sai. Dizem que pode ser um vírus.

O sorriso de Raven vacilou por um segundo. Seus dedos apertaram o colar. Ela tentou disfarçar a tensão.

— Quarentena? Finn me mandaria um recado se tivesse alguma coisa errada.

— Talvez ele esteja doente demais pra isso,- respondeu outro, já se afastando.

Ela ficou parada por um momento, confusa e inquieta, o colar agora pendendo frouxo em sua mão.

 

**

 

Raven marchou firme até a médica, entrando sem cerimônia no refeitório. Abby estava conversando com Jackson quando levantou o olhar, levemente surpresa pela interrupção.

— Quero saber por que a quarentena foi colocada. Isso é sobre o vírus?

— Sim,- respondeu Abby, seca.

— Então por que os dutos de ventilação estavam abertos?-
O tom dela era direto, desconfiado.

Abby hesitou, depois disse:

— Não é um virus que se propaga pelo ar...não posso falar mais do que isso.

Raven franziu o cenho.

— E o Finn? Eu quero saber se ele está bem. Ele é... alguém muito importante pra mim.

Abby se manteve firme, embora houvesse compaixão em seus olhos.

—Eu sinto muito. Não posso te dar essa informação.

Raven deu um passo para trás, com raiva e dor misturadas no rosto.

— Não, você não sente. Porque se sentisse, faria alguma coisa.

Ela se virou para sair, jogando por cima do ombro:

— É por isso que ninguém confia em vocês.

Abby observou a jovem se afastar, a mandíbula tensa.

-Menina afrontosa.- murmurou Jackson

Depois de um momento Abby murmurou para si mesma:

— Sim... Ela me lembra alguém.

E por um momento, Abby soube que talvez Raven fosse justamente a aliada que precisava.

 

**

 

O som metálico de ferramentas caiu no chão fez eco na sala. Jackson olhou pela janela do compartimento técnico e sussurrou:

—Tem alguém nos dutos.

Abby foi até lá rapidamente. Ao abrir o compartimento, viu Raven, pendurada pelos braços, já subindo devolta a escada. Sem cerimônia, Abby a agarrou pelo tornozelo e puxou.

—Agh! Tá bom, tá bom! Já entendi!
Raven caiu de costas com um baque e ergueu as mãos. - Desculpa. Mas vocês deviam ser mais cuidadosos. Isso aqui não grita exatamente segredo militar.

— Então foi isso o que realmente aconteceu, não existe nenhum vírus não é, vocês os enviaram pro chão, foi por isso que aquela dropship foi ejetada.

Abby estreitou os olhos.

— Vamos conversar.

Raven franziu o cenho, tensa. Abby sinalizou para ela se sentar, e então disse:

— Relaxe. Você não está encrencada.

— Ainda não, você quer dizer,- respondeu Raven, sarcástica.

Abby sorriu brevemente.

— Você é a única mecânica com experiência real fora do treinamento infantil. Gravidade zero. Diagnósticos em campo. Vinte e sete ajustes de segurança em painéis que nem os engenheiros sabiam que tinham falha. Eu vi o seu histórico.

— Você andou stalkeando meu arquivo?
Raven cruzou os braços, mas não pôde conter o leve orgulho no olhar.

— Preciso de alguém como você. Quero consertar essa cápsula. Quero ir à Terra.

Raven ficou em silêncio por um instante. Então, encarou Abby com seriedade:

— Eu te ajudo. Conserto essa nave. Mas quando ela estiver pronta... você me leva junto.

Abby hesitou, depois assentiu.

— Fechado.

E pela primeira vez em dias, Raven sorriu com o coração. Estava um passo mais perto de reencontrar Finn — e agora, com um propósito que era só seu.

 

**

 

》Terra- Carro, após a névoa ácida.

A maçaneta do carro rangeu levemente quando Clarke a girou. O som parecia absurdamente alto no silêncio denso que restara após a tempestade venenosa. A névoa havia se dissipado aos poucos, revelando a paisagem deformada e úmida, como se a própria floresta estivesse segurando o fôlego.

Clarke foi a primeira a sair, cautelosa, escaneando a mata ao redor. Bellamy veio logo atrás, o olhar firme, mas ainda atento. Finn e Wells os seguiram em silêncio. Os quatro estavam cobertos de sujeira, suor seco e tensão, mas vivos. E, por enquanto, isso bastava.

— Vamos voltar,- disse Clarke, e Bellamy apenas assentiu. Eles sabiam o caminho.

A caminhada até o acampamento foi rápida, ansiosa. Quando os primeiros contornos metálicos do dropship surgiram entre as árvores, Clarke sentiu o alívio pulsar como um segundo coração no peito. Octavia, que esperava do lado de dentro, abriu a escotilha com força, correndo até eles.

— Vocês tão bem?! O que aconteceu?

Clarke respirou fundo, olhando ao redor para todos os rostos ansiosos. O cheiro ainda era forte no ar.

— Não sabemos exatamente,- respondeu ela. - Mas era uma névoa. Ácida. Muito tóxica.

Bellamy completou, a voz firme para todos ouvirem:

— Se não tivéssemos nos abrigado, provavelmente não estaríamos aqui agora.

O grupo trocou olhares alarmados. Alguns murmuraram entre si. Foi quando alguém — talvez Miller ou Monty — fez a pergunta que causou o silêncio repentino:

— Tá todo mundo aqui?

O silêncio pesou por dois segundos. Murphy olhou ao redor, contando nos dedos, e então respondeu:

— Não... O Dax. E o... o Silas, aquele garoto que veio da cela 6. Onde é que eles estão?

Os olhos de Bellamy e Clarke se encontraram. Ambos se lembravam exatamente quem era Dax — e Silas. Dax era o executor que Kane e Shumway usaram numa tentativa de assassinato contra eles. Silas, um dos primeiros a ameaçar outros presos antes mesmo da aterrissagem. Ele tinha cido preso por homicídio.

— Vamos procurar,- disse Bellamy, já se preparando. Alguns se voluntariaram para ir com ele, entre eles Finn, Monty e Atom.

Não demorou muito. Os corpos foram encontrados próximos à borda da floresta, parcialmente dissolvidos pela névoa. Dax estava com o braço encostado numa rocha queimada. Silas parecia ter tentado subir numa árvore e fracassado.

Clarke se aproximou de Silas, o olhar firme, mesmo com o estômago revirando. Respirou fundo.

— Ele já está morto, não sobreviveu à dor.

Bellamy deu um passo à frente, a expressão grave. Ele observou o corpo de Dax por um momento longo, que ainda respirava mais já longe demais para qualquer outra coisa, sem dizer nada. Depois, apenas sussurrou para Clarke:

— Dois problemas a menos.

Clarke não concordou em voz alta, mas também não o repreendeu. Havia verdade demais ali.

Com a faca do kit médico, ela se ajoelhou perto de Dax e cantarolou algo que ninguém mais ouviu. Um sussurro breve, piedoso. E depois, em um gesto prático e silencioso, encerrou o que restava da dor dele.

Eles voltaram ao acampamento em silêncio. Mas quando estavam prestes a entrar, Bellamy sentiu um par de olhos os seguindo. Virou-se e encontrou Charlotte, observando os dois à distância.

Clarke também viu. E então, sem hesitação, sussurrou para Bellamy:

— Eu cuido disso.

Ele apenas assentiu, compreendendo tudo o que aquilo queria dizer. Eles não podiam mudar o passado, mas podiam moldar o presente. Podiam ser melhores do que haviam sido. E talvez, no processo, ensinar isso a alguém.

Clarke se aproximou de Charlotte. O silêncio entre as duas era feito de confiança. De escolha. E enquanto caminhavam de volta ao dropship juntas, Bellamy apenas observou.

 

**

 

O céu ainda guardava resquícios da névoa ácida, mas a maior ameaça já havia passado. Dentro do dropship, o calor era abafado, o ar tenso. Jasper estava deitado, o corpo suado, o rosto pálido e a respiração ainda ofegante. Clarke ficou ao lado dele, trocando compressas e fazendo tudo que podia com o que restava do kit médico.

— Monty, você pode fazer um chá com as algas do rio? — perguntou ela, sem tirar os olhos do rapaz inconsciente. Aquele chá tinha ajudado bastante da primeira vez.

— posso sim — respondeu Monty, erguendo o cantil onde ainda restava um pouco do líquido esverdeado. — Só não garanto que ele não vai ter gosto de calcinha molhada de ogro.

Clarke arqueou uma sobrancelha cansada, mas o canto da boca quase esboçou um sorriso.

— Mesmo assim. Se tiver alguma chance de ajudar...

Monty fez e lhe entregou a bebida. Ela ergueu com cuidado a cabeça de Jasper e despejou um pouco entre seus lábios. Ele tossiu, engasgando no início, mas acabou engolindo. Monty observava, tenso, até ver o peito do amigo se movimentando de forma um pouco mais constante.

— Parece que a febre deu uma trégua — comentou Clarke, sentando-se ao lado, com um suspiro de alívio. — Isso vai nos dar algum tempo.

Monty assentiu, mas não disse nada. Sabia que não era hora de comemorar, apenas de esperar. Alguns minutos depois, quando Clarke percebeu que Jasper estava dormindo mais tranquilamente, ela se levantou e desceu para buscar mais água e lavar os panos manchados de sangue. A escuridão lá fora já não parecia tão ameaçadora quanto antes.

Foi ali, ao pé da escada, que ela viu Charlotte. A menina estava sentada sozinha, abraçada aos próprios joelhos. Clarke se aproximou com calma.

— Não consegue dormir? — perguntou, sentando ao lado dela.

Charlotte deu de ombros, sem levantar a cabeça.

— Eu só... fico pensando — murmurou. — Em tudo que aconteceu. No que ainda pode acontecer.

— É... — Clarke concordou. — Eu também.

Silêncio por um tempo, apenas o som distante de alguém tossindo dentro da nave. Charlotte puxou o ar com força.

— Você acha que ele vai morrer?

— Jasper? — Clarke balançou a cabeça. — Não se eu puder impedir. Ele está melhor agora, pelo menos um pouco.

A menina mordeu o lábio, lutando para segurar o que estava prestes a dizer.

— Eu só... fico com raiva. Raiva de tudo. Dos adultos. Do pai do Wells.

A respiração de Clarke travou por um momento. Ela olhou para Charlotte com atenção renovada.

— Charlotte, escuta... o que o pai do Wells fez foi horrível. Ele flutuou meus pais. Eu entendo isso. Ele também matou o meu pai, do qual ele chamava de melhor amigo.

Charlotte arregalou os olhos.

— Sério?

— Sim. E mesmo assim, eu não culpo o Wells. Ele não teve nada a ver com isso. Assim como você não tem culpa do que aconteceu com seus pais.

— Mas é difícil... é como se tudo que eu sentisse virasse isso, esse peso aqui — ela apontou para o peito. — E às vezes parece que não tem lugar pra colocar.

Clarke assentiu devagar.

— Eu sei exatamente o que é isso. Minha mãe... foi ela quem entregou meu pai. Ela achou que estava fazendo o certo, mas... ela tirou ele de mim. E eu também senti raiva. Muita. Mas nunca desejei que ela pagasse por isso.

Charlotte a observava em silêncio agora, como se cada palavra fosse uma âncora.

— A dor pode ser um monstro — continuou Clarke. — Mas ela também pode ser um lembrete. De que a gente ainda sente. Ainda está viva. E ainda pode escolher o que fazer com isso.

— E se eu não conseguir escolher direito? — sussurrou a menina.

— Aí você me procura. E a gente escolhe juntas — respondeu Clarke, sorrindo com ternura. — Porque você não está sozinha. Nem agora, nem nunca.

Charlotte hesitou por um momento antes de se inclinar devagar e se encostar no ombro de Clarke. A menina fechou os olhos, permitindo-se aquele conforto, e Clarke a envolveu com um braço protetor, como se pudesse afastar todos os fantasmas que ainda rondavam aquela floresta.

 

**

 

A noite estava mais silenciosa agora. O peso do dia havia deixado um rastro de cansaço nos corpos e nas mentes. Clarke ainda estava sentada junto a Charlotte quando ouviu passos suaves se aproximando pela escada. Bellamy.

Ele não disse nada no começo. Apenas se aproximou devagar, os olhos atentos à menina que agora se apoiava nos joelhos de Clarke. Charlotte também ouviu os passos e ergueu o olhar. Por um instante, pensou em se afastar, mas Bellamy se agachou à altura dela, com a expressão mais suave que ela já tinha visto nele.

— Está tudo bem se eu ficar aqui com vocês? — perguntou ele, a voz baixa.

Charlotte assentiu. Ele se sentou ao lado, formando um pequeno círculo com as duas. Por um instante, o silêncio reinou de novo, até que Clarke tocou suavemente a mão da menina.

— Você quer me contar mais sobre os seus pais?

Charlotte respirou fundo. As palavras pareceram doer mais que os próprios pesadelos.

— Eles foram flutuados... por roubo. — Sua voz era pequena, mas firme. — Só que... não foi só isso. Depois que eles se foram, eu não podia ficar sozinha. Eles me colocaram sob os cuidados de um guarda... mas ele não era bom comigo.

Clarke franziu o cenho, seu estômago se apertando com o peso da revelação.

— Ele tentou jogar fora as coisas dos meus pais — continuou Charlotte. — Fotografias, o caderno da minha mãe... tudo. Eu pedi pra ele parar, mas ele só riu. E então... eu perdi o controle. Me disseram que eu ataquei ele.

Bellamy desviou o olhar por um momento. Sua mandíbula travada, os olhos pesados. Aquilo era mais do que qualquer criança deveria carregar.

— E foi por isso que me mandaram pra prisão — completou ela. — Eu só queria que alguém... alguém tivesse me escutado. E agora que estamos aqui... eu fico pensando que, se eles, lá de cima, vinherem pra cá também, eu vou ter que voltar pra ele. Eu não quero. Por favor... não deixem ele me levar embora.

Clarke segurou a mão da menina com firmeza. Bellamy foi quem respondeu primeiro, com a voz carregada de convicção.

— Você não vai voltar, Charlotte. Nenhum de nós vai, não se não quiser. Nós somos o nosso próprio povo agora.

— E você vai ficar com a gente — disse Clarke, envolvendo a menina num abraço. — A gente cuida de você. Eu prometo.

Charlotte se apertou contra os dois, os olhos fechados, respirando como se aquele gesto fosse o último pilar em que ela podia confiar. E talvez fosse mesmo.

Os três permaneceram assim por um tempo. O calor humano entrelaçado no meio da escuridão.

Depois que Charlotte adormeceu, encolhida entre os dois, Bellamy e Clarke trocaram um olhar carregado de significado. Ela passou a mão pelos cabelos da menina, pensativa.

— Ela não deveria ter passado por nada disso — sussurrou Clarke.

— Ninguém deveria. — Bellamy observou o rosto adormecido da menina. — Mas ela ainda tem chance. A gente ainda tem chance.

Clarke olhou para fora do dropship, onde a névoa já havia se dissipado. Lá fora, o mundo era hostil. Mas ali dentro, naquela pequena bolha de calor e humanidade, havia esperança.

— Perdemos o Dax... o Silas... e aqueles dois na aterrissagem. — Ela falou baixo, mas cada nome parecia uma pedra sobre o peito.

— Não dá pra salvar todos. — Bellamy olhou pro chão, os ombros pesados. — Mas isso não quer dizer que não vamos tentar. A cada dia.

Ela assentiu. Sabia disso. E essa era a parte mais difícil: aceitar que a dor nem sempre era evitável, mas que eles podiam escolher o que fazer com ela.

Clarke passou o braço em torno de Charlotte com mais firmeza. Bellamy encostou a cabeça no ombro no dela. E assim, o dia terminou — com perdas amargas, vitórias silenciosas e uma promessa que ainda não tinha nome... mas que pulsava em cada gesto:

Eles não seriam como os da Arca. Eles seriam melhores.

E agora, tinham uma filha pelo visto. Para criar. Para ensinar à fazer o mesmo.

Notes:

Esse capítulo ficou bemmm grande, eu estou assistindo outra vez a série pra deixar a história o máximo possível próxima do original, já que isso é basicamente uma reescrita, mas acabou por ter coisas demais pra colocar ... mas enfim me digam o que acharam até aqui.

Chapter 5: "Onde a Esperança Cria Raízes"

Summary:

O dia seguinte à névoa ácida e a revolta de Murphy, mais uma vez.

Notes:

Pra ficar mais fácil de entender:

— = fala do personagem;
-" "- = pensamento do personagem;
" " = lembrança de diálogo passado, basicamente vozes na cabeça.

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

》Terra- Acampamento Dropship, de madrugada.

O céu ainda carregava o manto escuro da noite, com as estrelas começando a se apagar devagar, tímidas diante do nascer do sol que ainda não ousava romper o horizonte.

Dentro do segundo andar do dropship, a penumbra suavizava os contornos cansados do grupo, onde uma quietude pesada morava — a quietude que vem de quem já passou pela tempestade e agora só espera o dia nascer.

Clarke deslizou pela escada com passos cuidadosos, o olhar fixo na figura imóvel de Jasper, deitado no canto, o rosto ainda pálido, mas menos tenso do que na noite anterior. Ele respirava, devagar, como se tivesse achado um pouco de paz.

Ao lado dela, Bellamy carregava Charlotte nos braços, a menina ainda dormindo, o corpo pequeno e frágil contra o peito dele. Seus olhos não conseguiam se afastar dela, como se carregar aquela criança fosse uma âncora contra o medo que apertava o peito. Ela lhe lembrava tanto a Octavia, quando era pequena demais para o mundo lá fora.

— Não consegui deixar ela sozinha — murmurou, quase para si mesmo.

Clarke lançou-lhe um olhar suave e deu um passo para dentro, aproximando-se do grupo que se reunia em volta de Jasper: Finn, Monty, Harper, Wells e Octavia, compartilhando a garrafa de uísque que tinham encontrado no velho carro durante a névoa ácida.

A conversa era baixa, um misto de alívio e cautela. Quando Jasper abriu os olhos, um sorriso fraco iluminou seu rosto cansado.

— Ei... será que eu posso tomar um gole também? — sua voz saiu rouca, quase brincando com o silêncio.

Um riso quase involuntário escapou do grupo. Monty foi o primeiro a se aproximar, segurando a mão de Jasper com firmeza.

— Claro que pode, parceiro.

Finn, Wells e Harper seguiram, cumprimentando enquanto observava o toque entre Jasper e Monty, um gesto simples, mas carregado de significado naquele lugar onde cada conexão era um fio de esperança.

Clarke já se agachava para checar os sinais vitais de Jasper, os dedos ágeis e seguros.

— Ah...Minha salvadora — ele disse, com um sorriso torto, encarando Clarke.

Octavia se aproximou, pousando um braço firme nos ombros dele e dando um beijo rápido no rosto.

— Uau... acho que esse é o prêmio que ganho por salvar a garota.— disse Jasper, com o tom brincalhão.

Uma gargalhada leve se espalhou pelo grupo, quebrando a tensão.

E, por um instante, a escuridão do lado de fora pareceu menos ameaçadora.

 

**

 

As risadas no pequeno loft dentro do dropship flutuavam no ar, dissolvendo parte do cansaço e do medo que ainda rondavam todos ali.

Jasper já estava totalmente acordado, e o brilho em seus olhos deixava claro que, apesar da dor, ele se sentia melhor.

Charlotte despertou suavemente nos braços de Bellamy, os olhos piscando até que as risadas a trouxeram de vez para o presente. Ela deu um pequeno aceno de mão, tímido e doce, como quem quer dizer “oi” sem fazer barulho demais.

— Ei, princesinha — Bellamy sorriu, beijando a testa dela enquanto a acomodava no chão, perto de Clarke.

Clarke se aproximou de Jasper, o olhar agora sério, profissional.

— Pronto, Jasper. Você está fora de perigo. As feridas estão se fechando bem, mas precisa continuar mantendo tudo coberto para evitar infecções e, claro, repouso.
Jasper fez uma careta divertida.

— Ui, repouso... — resmungou.

Bellamy não perdeu tempo.

— Vai por mim. Você não vai querer quebrar essa regra. Não vai querer desobedecer a doutora aqui.

Todos olharam para ele, e um sorriso brincalhão se espalhou pelo grupo.

— É sério — Bellamy falou, com um meio sorriso. — Existem poucas coisas nessa vida que me fazem ter medo. Mas Clarke Griffin, zangada, é uma delas. Aquilo me faz dar dois passos para trás.

Risos brotaram ao redor.

Clarke ergueu uma sobrancelha.

— Eu não sou tão assim.

— Clarke — Bellamy continuou, dando um sorriso debochado — acho que sou uma das poucas pessoas aqui no acampamento que já foi atendida pelas duas médicas Griffin. E, mesmo sua mãe me odiando — e vale dizer, sem motivo algum, já que quase não falei com ela em toda minha vida — ela dava menos medo do que você quando está zangada.

Clarke cruzou os braços, um leve sorriso se formando.

— É porque ela é uma médica completa. Fez todos os estudos, passou por todo o juramento do médico... onde é obrigada a tratar os pacientes profissionalmente, gostando deles ou não. Já eu não tenho nenhuma inibição em te dar uma surra se você me desobedecer.

Com dois dedos, ela fez o gesto clássico de “estou de olho” em Jasper, piscando para ele antes de se virar e sair do loft.

—Viu só, o que foi que eu falei, completamente assustadora.- disse Bellamy depois que ela saiu.

O silêncio que ficou foi preenchido por olhares, sorrisos cúmplices e risos abafados.

Bellamy se aproximou de Jasper, passando a mão nos cabelos despenteados do amigo, dando um tapinha no ombro, enquanto ainda segurava Charlotte perto, que observava a cena com olhos sonolentos e curiosos.

— É bom te ter de volta amigão, vai com calma tá bom?— Bellamy disse, sorrindo, e já indo na direção às escadas por o de Clarke tinha acabado de descer.

Monty, Wells, Jasper, Octavia, Harper e Finn trocaram olhares e começaram a cochichar, descontraídos, trocando hipóteses sobre aquela relação quase familiar entre Clarke e Bellamy — uma mistura de parceria, amizade e algo que ninguém ali parecia ter coragem de nomear em voz alta.

E assim, naquele momento quieto, no meio do caos da floresta e das incertezas, havia um fio de normalidade e esperança.

 

**

 

》Terra- acampamento, por volta das 7h.

Na manhã seguinte a névoa ácida havia se dissipado, deixando o ar pesado, mas limpo o suficiente para que o sol começasse a espiar entre as copas das árvores.

No acampamento improvisado ao redor do dropship, a rotina ganhava ritmo, uma tentativa silenciosa de normalidade no meio do caos.

Bellamy caminhava entre os grupos que organizavam os poucos recursos disponíveis, seus olhos atentos a cada detalhe, cada rosto cansado, cada gesto. Clarke estava ao lado dele, com o olhar firme, mas um sorriso leve que raramente se permitia fora dos momentos mais sérios.

Um grupo de jovens, ainda com marcas do medo, jogava um improvisado jogo de pedra no chão, rindo sem culpa, como se por alguns minutos tivessem esquecido onde estavam.

Octavia ajudava um menino a levantar depois de um tropeço, enquanto Wells ajeitava a proteção improvisada em volta do acampamento.

— Ei, Bellamy! — chamou uma voz tímida. Era Miller, aproximando-se com cautela. — O pessoal queria falar com você.

Bellamy assentiu, os passos firmes até o círculo formado por alguns jovens. Clarke o seguiu, apoiando-o silenciosamente.

Enquanto resolviam o pequeno problema com a distribuição de roupas entre três garotos, acabaram escutando a conversa rolando não muito longe de onde estavam.

— Eles estão nos ajudando — falou uma garota, com os olhos grandes e expressivos. — Não só salvando a gente da Terra... mas salvando a gente da gente mesmo.

— É, — completou um garoto, cruzando os braços, — antes parecia que iria ser só medo e briga. Agora parece que a gente tem um lugar de verdade.

Bellamy olhou para Clarke, um leve sorriso de reconhecimento.

— A gente também tá aprendendo — respondeu ele, já se virando na direção deles, a voz calma. — Não é só vocês.

Clarke se aproximou, tocando no ombro de uma menina que parecia hesitar.

— Vocês são mais fortes do que imaginam. E essa força... a gente precisa guardar ela pra quando for de verdade importante.

Charlotte, que estava sentada próxima, olhou para eles com um brilho nos olhos — a confiança começava a florescer.

Mais tarde, enquanto o sol subia, Clarke ajudava a organizar um pequeno refeitório improvisado, distribuindo comida racionada.Bellamy estava perto, cuidando para que ninguém ficasse de fora, especialmente os mais quietos, os que pareciam invisíveis aos olhos dos outros.

Octavia, passando por ali, deu um sorriso rápido.

— Eles estão começando a confiar em vocês — disse, num tom de surpresa e admiração.

Bellamy deu de ombros.

— A gente só tá fazendo o que tinha que ser feito.

— Você tem que admitir — Clarke cutucou, sorrindo — que às vezes até parece que você sabe mesmo o que tá fazendo. Bellamy riu.

— Talvez. Mas eu tenho você pra puxar minha orelha quando eu vacilar.

O olhar trocado entre eles dizia mais do que qualquer palavra.

Enquanto isso, Wells estava sentado com Monty, trocando ideias sobre como aproveitar melhor os recursos do dropship e cuidar das feridas ainda abertas — não só no corpo, mas nas memórias.

Clarke e Bellamy, liderando esse grupo de jovens tão feridos e ainda assim tão vivos, se tornavam, aos poucos, o pilar invisível que mantinha o acampamento inteiro em pé.

E naquele dia, entre pequenas tarefas, risadas tímidas e olhares de gratidão, eles começaram a construir algo que ia além da sobrevivência.

Eles estavam construindo um lar.

 

**

 

》Terra- Ainda no acampamento, por volta das 8h...

Wells estava sentado sobre um dos destroços reaproveitados como banco improvisado, perto da fogueira que ainda fumegava do café da manhã, enquanto Monty terminava de explicar algo sobre purificação de água usando areia e pedras.

A maioria dos jovens se dispersava aos poucos, rindo baixo, conversando em tons leves, como se finalmente acreditassem que poderiam respirar sem medo.

Mas Wells não sorria.

Ele observava ao longe, onde Clarke e Bellamy se aproximavam da pilha de materiais médicos e alimentos que ela organizava, trocando palavras que ninguém ouvia, mas que todos viam.

Ele não precisava estar perto para entender o que acontecia entre os dois.

Havia algo nos gestos — no modo como Bellamy pegava o cantil das mãos dela sem que ela pedisse. No modo como Clarke lhe devolvia um olhar que não era apenas gratidão. Era reconhecimento. Era memória. Era laço.

Wells desviou o olhar, apertando os dedos em torno da xícara quente que Monty havia deixado com ele.

Eles não eram óbvios, não eram românticos no sentido tradicional — não havia beijos roubados nem mãos dadas em público. Mas era como se o mundo ao redor deles se dissolvesse sempre que se aproximavam. Um campo gravitacional próprio. Um segredo que só eles dois conheciam.

Os rumores haviam começado a correr logo depois da tempestade. Alguém — talvez Murphy, talvez Harper — tinha contado que Bellamy já estava de volta ao acampamento quando soube que Clarke ainda estava na floresta. E, sem hesitar, ele correu de volta. Sozinho. Contra a névoa.

— “Ele podia ter morrido,” disseram.
— “Mas ele nem pensou nisso. Foi atrás dela.”

Wells ouvira os sussurros. Todos ouviram. E por mais que parte dele quisesse não acreditar, ele sabia que era verdade. Bellamy a conhecia de um jeito que o próprio Wells jamais conheceu.

E aquilo doía.

Porque ele tinha amado Clarke. De verdade. De um jeito inteiro. De um jeito que queria salvar o mundo só pra vê-la sorrir.

E ela... ela tinha gostado dele. Mas não daquele jeito.

Lembrava da conversa que tiveram. Quando ela, com toda calma, disse que ainda se importava. Que prezava muito sua amizade. Mas também, Clarke, sempre honesta, sempre reta, olhou em seus olhos e disse que gostava dele — mas não como ele esperava.

Não era rejeição cruel. Era só a verdade. Uma que ele precisava aceitar.

O tempo todo, ele havia tentado provar que era bom o suficiente. Que era confiável. Que era melhor do que o peso do sobrenome Jaha.

E Clarke... ela havia reconhecido tudo isso. Mas, ainda assim, não o escolheu.

E agora... agora ele sabia. Mesmo se ela quisesse, não poderia mais ver ninguém além de Bellamy. Eles se entendiam em silêncio, se cobriam sem combinar, se apoiavam sem pedir. Eles falavam a mesma língua.

Wells fechou os olhos, deixando o calor da xícara contra a palma de sua mão lhe dizer que ele ainda estava ali. Ainda era parte de algo. Ainda podia ser útil. Importante.

— "Você não é o escolhido, Wells Jaha," ele pensou, com uma serenidade amarga. — "Mas ainda pode ser necessário."

Ele abriu os olhos de novo, encarando o céu que começava a escurecer.

Aceitar não significava desistir. Significava entender que nem todos os caminhos levam ao que o coração quer — mas que ainda assim, há valor em seguir caminhando.

Ele não seria o protagonista do romance de Clarke. Mas talvez, só talvez, ainda pudesse ser parte da história que salvaria todos eles.

E por enquanto... isso bastava.

 

**

 

》Terra- Acampamento Dropship – Meio da manhã.

O sol filtrava por entre as árvores, dourando o ar com um calor ameno e promissor. Embaixo de uma estrutura improvisada de lonas e galhos, um grupo de garotas se ocupava costurando pedaços de tecido reaproveitado para montar mais barracas. Agulhas, linhas e retalhos passavam de mão em mão, mas a conversa era a verdadeira protagonista daquele momento.

— Tá vendo como ele olha pra ela? — sussurrou Roma, com os olhos semicerrados, inclinando o queixo discretamente na direção do Dropship.

— Não precisa nem ver. Você sente — respondeu Harper, dando um ponto firme na lona. — A tensão entre os dois é tipo… pré-nuclear.

— Literalmente, né? — Gina riu, segurando a agulha entre os dentes enquanto ajeitava um pedaço de tecido. — Mas falando sério, vocês perceberam que quase todos os caras daqui já ficaram com alguém? Tipo, todo dia tem gente trocando de barraca… menos o Bellamy.

— Verdade — Fox comentou, arqueando a sobrancelha. — E olha que ele é lindo. Se ele piscar pra qualquer uma daqui, ela desmaia antes de responder.

— Sem ofensa, Octavia — completou Gina, com uma risadinha. — Mas teu irmão é o tipo de cara que toda garota quer... e todo garoto inveja.

Octavia suspirou, dobrando um pedaço de lona e prendendo um riso.

— Eu cresci com ele, lembra? Já vi ele tropeçar pelado tentando sair do chuveiro sem escorregar no sabão. A magia some rápido quando você vive com a criatura.

Todas riram alto, mas Harper não largou o assunto.

— Mesmo assim... ele não tá nem aí pras outras. Ele só tem olhos pra Clarke. Não adianta negar. É tipo... aquela conexão silenciosa. Do tipo que não começa aqui.- Ela apontou para o chão, e então para o coração.

— Começa antes. Em outro tempo.

— É, tipo... quando eles se reencontraram lá no dropship, depois da aterrissagem — Roma se intrometeu. — E quando ele já tava dentro da nave, mas saiu pra correr atrás dela. Da Clarke, não de ninguém mais.

— Eles se abraçaram como se fosse o fim do mundo — disse Gina. — Tipo... de novo.

Harper bateu palminhas, animada.— Eles têm alma de casal de filme antigo, sabe? Tipo: “Se você pular, eu pulo”.

Todas suspiraram, menos Octavia, que apenas ficou olhando para o pano em suas mãos. A voz da Clarke ecoou em sua mente:
"Você tem uma pessoa que te amo muito e estaria disposto a fazer qualquer coisa por você, até infiltrar-se em um dropship..."

E ali, ouvindo tudo, ela começou a entender. Clarke tinha razão. Bellamy faria tudo por ela. Mas também pela Clarke... e com Clarke era outra coisa. Outro tipo de vínculo.

— Eles são os nossos "pais adolescentes" — disse Roma, rindo. — A Clarke é a mãe brava com o kit de primeiros socorros e o Bellamy é o pai que ameaça dar bronca, mas acaba deixando a gente fazer as coisas com cara de “não conta pra ela”.

Mais gargalhadas.

Do outro lado da clareira, um grupo de garotos ouvia sem muito esforço. O som da risada delas era como farol para a fofoca. Um deles comentou:

— Se eles não são um casal, então eu sou o conselheiro Jaha.

— E você nem tem idade pra fazer o bigode do Jaha —respondeu outro, tirando sarro.

Mais risadas
.
Murphy, sentado numa pedra comendo um pedaço de raiz assada, observava tudo. Seus olhos semicerrados e a mandíbula contraída denunciavam o incômodo. Ele não se aproximou. Não comentou. Mas por dentro, a irritação borbulhava.

—“Claro que é com a princesinha da Arca...” —pensou.—“Bellamy Blake. O símbolo da revolução. Da nossa chance de fazer diferente. E lá está ele, grudado na garota dos Griffin como se tivesse nascido no setor de comando.”

Ele mordeu outro pedaço da raiz com força.

— Tsc. Ridículo.

Do seu lado, Atom arqueou a sobrancelha.

— O que foi?

Murphy apenas balançou a cabeça.— Nada. Só me dando conta de que até as revoluções têm seus queridinhos.

Atom o encarou por um segundo, depois voltou a afiar uma estaca de madeira.

Murphy largou a raiz de lado. Ele não ia dizer em voz alta, mas aquela história de “nova sociedade” já tava começando a ficar bem parecida com a velha Arca.

E ele sabia como as coisas funcionavam em estruturas como essas: primeiro vêm os heróis, depois os segredos... e por fim, as quedas.

 

**

 

》Floresta, meio-dia — um pouco afastado do acampamento

O cheiro úmido da vegetação recém-acordada pairava no ar, misturado ao som distante de jovens começando suas tarefas diárias. Mas ali, entre as sombras das árvores, Murphy estava imóvel. Sentado numa pedra coberta de musgo, com os cotovelos apoiados nos joelhos e os olhos fixos em algum ponto perdido no chão.

Ele escutava. Lembrava. Repetidas vozes na própria cabeça.

“Você nunca teve valor.”

“Você é só mais um garoto quebrado.”

“Tá respirando por milagre.”

A Arca o marcou com cicatrizes que não eram visíveis — mas que sangravam o tempo inteiro.

Ao lado dele, um dos delinquentes — talvez o Mac ou aquele garoto novo da cela 14 — soltou uma risada nervosa.

— Então é isso? A gente só vai... fingir que tá tudo bem?

Murphy balançou a cabeça, os olhos ainda fixos à frente.

— Não. A gente vai lembrar. Eles esqueceram a gente por vinte segundos e nos mandaram pra morrer. Agora vão aprender o que é sentir medo de novo.

O outro hesitou.

— Mas... e a Clarke? E o Bellamy? Eles tão tentando fazer as coisas certas.

Murphy riu com escárnio.

— "Certas" pra quem? Pro chanceler que flutuou metade das mães da gente? Eles querem um mundo novo, mas querem construir ele em cima de desculpas. Eu quero que ele olhe pra tela e veja que perdeu o filho. Que entenda o gosto de ver alguém morrer e não poder fazer nada.

O garoto não respondeu. Murphy se levantou.

— Não vamos tirar todas as pulseiras. Só uma. E a certa.

 

**

 

》Terra- acampamento, por volta às 12h.

O sol queimava forte no céu quando Clarke desceu da encosta ao lado do acampamento, com uma caixa improvisada de instrumentos médicos em mãos.

Havia passado a noite atualizando os estoques de ervas e preparando novas compressas — Jasper ainda precisava de cuidados constantes, e os arranhões dos outros continuavam aparecendo com a rotina de trabalho.

O ar estava pesado com o silêncio úmido pós-névoa, e por um instante, tudo parecia em paz.

Até que ela ouviu.

Primeiro foi um grito abafado, depois um burburinho acelerado, seguido de uma movimentação inquieta. Algo estava errado.

Ela largou a caixa na hora e correu, seus passos afundando ligeiramente na terra fofa. Quando chegou na clareira próxima às barracas do leste, a multidão já começava a se formar.

— Sai da frente! — ela empurrou dois garotos para o lado e congelou ao ver a cena.

Murphy, de olhos flamejantes, segurava Wells imobilizado contra o tronco de uma árvore. Dois garotos — um deles era Damon, o outro, Reese — ajudavam a manter os braços de Wells presos. O garoto lutava, os músculos tremendo com o esforço, mas era impossível vencer os três ao mesmo tempo. A mão de Murphy já estava fechada em torno do pulso dele, forçando a pulseira contra a casca da árvore.

— O que você pensa que tá fazendo?! — Clarke avançou, a voz cortando como aço em brasa.

Murphy nem se abalou. Virou o rosto devagar, com um sorriso enviesado e desdenhoso, como se já tivesse ensaiado aquela resposta a noite inteira.

— Relaxa, princesa. Eu entendi sua mensagem, tá? "Não podemos ser como eles, temos que ser melhores"... Que bonito. Me emocionou...quase.

Ele olhou ao redor, o público se formando, absorvendo cada palavra.

— Então não, eu não vou arrancar todas as pulseiras. Isso aí até você já deixou claro que é burrice. Mas eles ainda têm que pagar, Clarke. Eles ainda precisam sentir um pouco do inferno que fizeram a gente passar lá em cima. E que jeito melhor de fazer isso do que...

Ele puxou com força.

CLACK.

A pulseira de Wells caiu no chão com um ruído seco.

O garoto ofegou, em choque, os olhos arregalados, a boca entreaberta, sem palavras. Clarke congelou por um segundo — apenas o suficiente para sentir o gosto amargo da impotência.

Murphy se abaixou, pegou a pulseira e a ergueu como um troféu.

— Agora, o velhote lá em cima vai pensar que o filhinho querido morreu. Imagina a cara dele quando perceber que perdeu o único motivo pelo qual acordava todo dia. Talvez assim ele sinta um décimo da dor que a gente sentiu cada vez que alguém era levado pra execução.

A multidão estava muda.

— E sabe o que seria ainda melhor? — Murphy continuou, se virando na direção de Clarke. — Fazer o povo da Arca acreditar que você morreu também, princesa. A queridinha dos Griffin. Se eles acharem que a filha da conselheira e o filho do chanceler bateram as botas... aí sim eles vão entender o que é desespero.

Ele deu um passo na direção dela.

Clarke estava parada, os olhos queimando com uma raiva límpida, calculada — não irracional, não explosiva. Era a raiva fria de alguém que conhecia o gosto da perda e não aceitava vê-lo ser usado como arma.

Murphy avançou com a mão estendida, pronto para arrancar a pulseira do pulso dela.

E então, de repente, Clarke se moveu.

Como um raio.

Num único impulso, girou o corpo, desviou das mãos que tentavam segurá-la, cravou o cotovelo no estômago de Damon, derrubando-o com um gemido surdo. Reese tentou agarrá-la por trás, mas ela usou o próprio impulso dele para jogá-lo contra o tronco ao lado.

Murphy recuou instintivamente, mas foi tarde demais.

Clarke o alcançou, agarrou o pulso dele e torceu com força, fazendo a pulseira cair da mão dele. Ele tentou reagir, mas levou um soco direto na mandíbula e cambaleou para trás, caindo sentado no chão.

 

**

 

Bellamy estava com as mangas arregaçadas, os braços marcados por poeira e resina seca quando ouviu os gritos.

Estava ajudando Miller a reforçar uma das barracas que havia cedido com a umidade da noite, usando galhos retorcidos como estacas improvisadas. Era um trabalho repetitivo, metódico, e por isso mesmo... silenciosamente acolhedor. Charlotte dormia sob vigilância perto do fogo, e Clarke tinha ido cuidar dos remédios.

Ele estava em paz, pelo menos por alguns minutos.
Mas a paz nunca durava.

A primeira coisa que ouviu foi o barulho seco de vozes exaltadas, e depois a voz dela — “Clarke!” — ela estava gritado com alguém no meio da multidão.

Seu corpo reagiu antes da mente. Soltou o tronco grosso de árvore que carregava, o pedaço caindo com força na lama, e correu em direção à comoção com o coração batendo como um tambor de guerra.

Chegou a tempo de ver a cena inteira se desenrolar.
Dois delinquentes segurando Wells, Murphy avançando para arrancar a pulseira de Clarke.

Mas... não precisou se mover.

Clarke já estava em ação — como uma tempestade contida que, quando explode, não deixa sobreviventes em pé.

Em segundos, ela havia derrubado os dois ajudantes, desarmado Murphy e o colocado de joelhos, figurativamente e quase literalmente. Ela não hesitou, não tremeu, não pediu socorro. Apenas foi.

Bellamy parou na borda da multidão, o peito arfando de tanta tensão acumulada. Ficou ali, parado. Assistindo. Sentindo um misto de orgulho, espanto e algo mais profundo... algo que quase doía.

Ela não precisava que ninguém a salvasse. Nunca precisou.

E foi aí que ela disse:

— O único jeito da Arca pensar que eu estou morta... é se eu estiver morta.

As palavras atravessaram o tempo.

O chão sob os pés de Bellamy pareceu girar por um segundo, como se uma lembrança antiga, presa entre os fios do destino, tivesse sido arrancada do fundo da alma.

Ele já tinha ouvido aquilo antes.
Não naquela clareira.
Mas naquele mesmo tom.
Em outro lugar.
Outra vida.
Na primeira vez.
Na primeira vez que tudo deu errado.

Ele engoliu em seco, lutando contra o arrepio que subia pela espinha.

Os olhos dela encontraram os dele no meio do tumulto.

Não disseram nada. Não precisaram.Ela sabia que ele lembrava.

Ele quase sorriu, e mesmo que o peito ainda doesse com o medo resgatado do passado, encontrou ar para dizer:

— Brave Princess.

Ela soltou um sorriso de canto. Sutil, cúmplice, quase imperceptível — mas para Bellamy, era como ouvir uma promessa silenciosa. Eles estavam ali. Juntos. De novo.
E desta vez, daria certo.

Ele respirou fundo, voltando ao presente, e então se virou para Murphy. O olhar dele já não era caloroso nem contido. Era gelo. Duro. Cortante.

Murphy percebeu. Sentiu. O jeito como o rosto de Bellamy se fechou não deixava espaço para interpretação. Ele estava ferrado.

— Miller. Adam. Comigo. — Bellamy avançou sem esperar resposta, agarrando o braço de Murphy com força suficiente para arrancar um xingamento abafado do outro.
— Vamos resolver isso longe das crianças.

Os dois ajudantes se adiantaram, pegando Damon e Reese pelos ombros.

Os olhos de Clarke se encontraram com os de Murphy por um instante — e ele apenas abaixouoolhar, respeitando a força dela.

Clarke se abaixou, pegou a pulseira de Wells e a entregou de volta com cuidado, o olhar cheio de uma compaixão frustrada.

— Sei como é... o sentimento de querer fazer eles sentirem o mesmo que você sentiu. Mas dor que causaram não justifica causarmos mais. Se você quiser mudar o mundo, Murphy, começa não sendo um babaca.

Murphy limpou o sangue do canto da boca, sorrindo torto.

— Eu não sou um babaca, Clarke. Só não sou cego.

Ela não respondeu.

Bellamy puxou Murphy como um fardo que já estava cansado de carregar, arrastando-o para fora da clareira sob os olhares atentos de todo o acampamento.

E Clarke apenas observou, sua respiração ainda oscilando com o resquício da adrenalina.

No fundo, ela sabia que não havia vencido só aquela briga.
Ela tinha vencido o passado.

E o olhar de Bellamy, a frase sussurrada no meio do caos, era a prova de que não estavam mais sozinhos nessa luta.

Nem contra os inimigos ao redor, nem contra os fantasmas que insistiam em assombrar seus passos.

 

**

 

》Acampamento Dropship - alguns minutos depois.

O céu ainda estava bem claro, pintando a copa das árvores com tons suaves de dourado, mas o acampamento ainda carregava a tensão amarga do que acabara de ocorrer.

Após a confusão com Murphy, Clarke se afastou dos olhares curiosos e procurou Wells. O garoto estava sentado próximo à beirada do bosque, longe do coração do acampamento, com os braços apoiados nos joelhos e o olhar perdido entre os troncos escurecidos.

Ela se aproximou em silêncio, parando ao lado dele. Por um momento, nenhum dos dois disse nada. Apenas o som dos pássaros, que aos poucos retomavam suas canções, preenchia o espaço entre eles.

— Você está bem? — perguntou Clarke, enfim, com a voz baixa.

Wells hesitou, depois assentiu. Mas não parecia uma resposta verdadeira.

— Eu não esperava... aquilo. — A voz dele estava rouca, quase um sussurro. — Eu sabia que algumas pessoas ainda estavam irritadas comigo. Mas... ele queria que meu pai achasse que eu morri. Como se isso fosse algum tipo de punição justa.

Clarke se sentou ao lado dele, ainda sem dizer nada. Sabia que havia mais por vir.

— Você acha que ele se importaria? — Wells virou o rosto para ela. Os olhos estavam secos, mas havia dor neles. Uma dor profunda, de abandono. — Meu pai... o chanceler. Você acha que, se ele visse minha pulseira apagar, ele se importaria? Você acha que ele sofreria?

A lembrança do que Clarke havia dito no primeiro dia — aquela discussão tensa, onde ela o acusou diretamente — ecoou entre eles.

"Seu pai te mandou aqui para morrer."

A acusação ainda doía, mas de um jeito diferente agora. Ele a conhecia melhor. Conhecia o peso que ela carregava. De saber que a culpa de seu pai ter cidoflutuando foi de sua própria mãe e da pessoa que dizia ser o melhor amigo de seu pai, o meu pai...

— Eu acho... — Clarke começou com cuidado — que seu pai fez escolhas terríveis. Que permitiu coisas horríveis. Ele deixou você ser preso, Wells. Sabia do risco que era te mandar pra cá. A terra podia ser inabitável. E mesmo assim...

— ...ele me mandou. — Wells completou, amargo. — Como se eu fosse... como se não importasse.

Clarke inspirou fundo.

— Talvez ele ache que fez isso por um bem maior. Ou talvez sabia de suas verdadeiras intenções ao querer ser preso. Mas o que eu sei é que, se você estiver vivo quando ele te vir de novo, você vai ter a chance de olhar nos olhos dele e perguntar tudo isso. Você vai poder exigir as respostas. E eu vou garantir que você esteja vivo pra isso.

Ele virou o rosto para ela, surpreso com a firmeza nas palavras.

— Obrigado. — disse ele, de coração. E era sincero. — Eu não sei se ele merece essa chance... mas talvez eu mereça.

Clarke assentiu com um pequeno sorriso.

— Você com certeza merece.

Ele se levantou devagar, ainda com a expressão sombria, mas menos pesada. Enquanto se afastava, a gratidão não estava nas palavras, mas no jeito como seus ombros deixaram de pender tanto.

Sozinha, Clarke permaneceu sentada por mais alguns minutos.

Então percebeu: até aquele momento, ninguém ali tinha sequer tentado reconstruir a comunicação com a Arca.
Ela havia se esquecido completamente.

Na primeira vez, esse era seu foco principal. Ela lembrava bem das conversas com Monty, dos esforços para descobrir o que estava quebrado no sistema. Mas agora... tudo tinha sido diferente. Estava ocupada demais tentando manter a paz, evitar tragédias, salvar vidas. A comunicação tinha sumido do radar.

Mas talvez fosse pra melhor ,ela lembrava de como na primeira vez, ao tentar usar as pulseiras como meio de reaver a comunicação como a arca, monty acabou fritando todas as pulseiras de uma vez só.

E com isso, sumiu também uma promessa silenciosa: de que eles voltariam a falar com os pais, com os irmãos... com a Arca.

“Estamos sozinhos.”

O pensamento veio como um sussurro frio.

Mas não seria assim dessa vez. Eles não estavam sozinhos — não mais.

Não com Wells, Bellamy, Monty, Octavia, Charlotte... não com todos aqueles que Clarke agora chamava de povo.

Mas havia uma diferença entre estar com os outros, e permanecer com esperança.

Ela se levantou, sacudindo a poeira das pernas, e olhou para a clareira onde o sol finalmente atravessava as folhas.
Estava na hora de relembrar o propósito original. De não apenas sobreviver… mas de realmente viver.

 

**

 

》Arredores do acampamento dropship- momentos antes.

Murphy ainda esfregava o braço com raiva onde Bellamy o havia segurado com força demais. Ele mantinha o rosto irritado, mas havia cautela agora — uma hesitação sutil em cada passo que dava para mais longe do círculo de barracas.

Bellamy o seguia com o olhar, os braços cruzados no peito, os músculos ainda tensos do esforço de conter algo que queimava por dentro.

— Qual é, Bellamy? — rosnou Murphy, a voz pingando desdém e frustração. — Desde quando você virou o capacho da princesinha da Arca?

Bellamy permaneceu imóvel. Mas os olhos escureceram.

— Você fica aí, seguindo ela, defendendo tudo o que ela diz, como se ela entendesse alguma coisa da nossa dor. Como se ela soubesse o que é ter sangue nas mãos, o que é passar fome, o que é perder tudo antes mesmo de sair da infância.

Bellamy deu um passo à frente. Não rápido, mas firme. O suficiente para fazer os outros ao redor prenderem a respiração.

— Clarke Griffin... — ele começou, a voz baixa, mas carregada de tensão — ...não é como os outros da Arca. Você acha que conhece ela, mas só conhece o sobrenome. A filha da Conselheira Griffin. Só que ela não é a mãe. E ela não é como eles. Nem um pouco.

Murphy bufou.

— Ah, claro. Porque ela ajudou uns dois ou três aqui embaixo. Agora virou santa?

— Não. — Bellamy respondeu seco. — Porque ela se importa. E não porque disseram pra ela se importar. Porque ela escolheu. Ela está lá, todos os dias, cuidando de gente que cuspiria no rosto dela se tivesse forças. Vai por mim, eu sei, eu já fui uma dessas pessoas. Ela não pediu pra ser nossa líder. Mas quando ninguém mais sabia o que fazer, nem mesmo eu, foi ela quem ficou. Você deveria tentar conhecê-la antes de julgar. Porque, se conhecesse, saberia que ela não é como os grandalhões da Arca. Ela é como a gente... só que mais forte do que a maioria de nós juntos.

Murphy não respondeu. Seus olhos fugiram para o chão, depois para os outros ao redor. Nenhum deles tinha coragem de rir ou se meter agora.

— E outra coisa — continuou Bellamy, voltando a cruzar os braços —: da próxima vez que você tentar começar outra rebelião, Murphy... não vai passar batido. Não é porque estamos tentando sobreviver juntos que cada um pode fazer o que quiser. A paz aqui não é um luxo. É uma necessidade.

Ele olhou ao redor, os olhos varrendo cada rosto ali. Depois se virou e começou a se afastar com passos largos, deixando para trás um silêncio desconfortável.

No caminho, entre uma árvore e outra, Bellamy soltou o ar devagar, como se estivesse descarregando o peso da fala que segurava há dias.

“Não é porque estamos tentando sobreviver juntos que cada um pode fazer o que quiser.”

Aquelas palavras ainda soavam estranhas, quase hipócritas, se comparadas à primeira vez que ele discursou para o grupo.

"Você quer a Arca? Fique com ela. Aqui embaixo, nós fazemos as regras, e eu digo que cada um faz o que bem quiser fazer."

Ele lembrava de cada sílaba. Do orgulho com que disse aquilo.

Mas agora… agora parecia diferente.

Tanto tempo com Clarke. Vendo o jeito como ela organizava tudo, como tratava cada um com o mesmo respeito, mesmo cansada, mesmo ferida. O jeito como ela não se esquivava das decisões difíceis.

Ele não admitiria em voz alta — ainda não conseguia. Mas no fundo, sabia: ela havia colocado juízo em sua cabeça.

Talvez até... esperança.

Ele entendia, finalmente, que lutar contra a Arca era uma coisa.

Mas dentro daquele acampamento, onde cada rosto importava, eles não podiam se dar ao luxo de repetir os mesmos erros. Precisavam de ordem. De propósito. De união.

E Murphy... Murphy precisava entender isso antes que fosse tarde demais.

Bellamy ergueu os olhos. O sol continuava a se erguer mais alto, aquecendo a clareira com promessas de uma nova era.

Mas ele sabia — o verdadeiro calor vinha daqueles com quem se podia contar.

E agora, ele sabia de quem estava ao lado. E por quem lutava.

Brave Princess.

Ele sorriu de leve, quase imperceptível, enquanto sumia entre as barracas.

**

 

》Terra- Acampamento Dropship, tarde do quinto dia..

O acampamento havia acompanhado ao seu silêncio inquieto.

A poeira da confusão ainda pairava no ar, mesmo depois de Bellamy arrastar Murphy e os outros garotos para longe.

Alguns jovens cochichavam, outros apenas trocavam olhares. Mas todos estavam pensando a mesma coisa: Clarke Griffin não era só uma "princesa da Arca". Ela era outra coisa. Uma força diferente.

Todos viram como ela se livrou dos braços que buscaram segurá-la e como avançaru sem hesitar.

Vários garotos comentaram, num misto de respeito e espanto, sobre a forma como ela derrubou Murphy como se ele não fosse nada além de um obstáculo.

As meninas, em especial, trocavam olhares que diziam mais do que palavras: aquilo era coragem. Era autoridade. Era uma fúria silenciosa que vinha de um lugar de dor, sim — mas também de justiça.

E no centro de tudo aquilo… era Clarke. Respirando fundo, os olhos firmes, o corpo tenso ainda em posição de defesa, mesmo tempo depois do fim da briga.

Ao seu lado, Wells, ainda sentado no chão, com o pulso machucado onde a pulseira havia sido arrancada. Havia algo no olhar dele — um peso, uma decepção silenciosa, mas não com os outros. Com o próprio pai.

Mais adiante, perto de uma árvore, Monty e Harper observaram tudo. Monty segurava a pulseira danificada nas mãos, virando o metal como se tentasse encontrar sentido naquele gesto brutal.

— Eles acham que dor é justiça — comentou Harper, baixinho. — Mas tudo o que é oferecido é divulgado mais dor.

Monty concordou em silêncio. Ninguém disse nada. Era impossível olhar para Clarke depois daquele momento e ainda duvidar que ela carregava o acampamento nas costas.

Já mais afastado, sem limite entre a clareza e a escuridão da floresta, Murphy sentou-se sozinho sobre uma pedra. O rosto ainda ardia onde Clarke o atingiu, mas o que incomodava de verdade não era a dor física.

Era o que Bellamy havia dito.

"Você deve conhecê-la antes de julgar."

O eco dessas palavras girava em sua mente como uma pedra jogada num lago escuro. E ele não conseguia mais fingir que não sentia.

Claro que ele estava com raiva. Raiva da Arca. Raiva de todos os anos em que se sentiu intercalado. Raiva dos adultos que decidiu quem vivia e quem morria com uma frieza que ele nunca entendeu.

Mas havia algo diferente em Clarke. Algo que ele não queria admitir... mas que viu hoje, como todo mundo viu.

Ela não era como os outros. Não estava ali por cima de um pedestal. Estava ali no chão, com eles. Lutando com as mãos, com os olhos, com o corpo inteiro.

Murphy chutou uma pedra, irritado consigo mesmo. Parte dele queria dizer que não se importava. Que aquilo não mudou nada. Mas outra parte, mais silencioso e mais sincero, sabia a verdade:

Ele 'matou', figurativamente, o único garoto do acampamento que ainda acreditava em algum tipo de compaixão.

E Clarke… ela o impediu de continuar com essa ideia tosca. Não só com força. Na verdade. Com coragem. E agora, mais do que nunca, Murphy odiava a sensação de que começava a brotar dentro dele — o incômodo peso da dúvida.

Porque talvez, só talvez… ele estava errado.
E isso doía mais do que qualquer soco.

 

**

 

O dia já havia começado a escurecer quando Monty deslizou para dentro do dropship, segurando com cuidado a pulseira de Elser, que encontrara caída entre os restos do último tumulto.

Harper veio logo atrás, carregando uma caixa de ferramentas improvisada com peças recuperadas. Nenhum dos dois havia dito muito durante o caminho até ali, mas havia algo no olhar de Monty que Harper reconhecia — uma inquietação persistente.

— Você tem certeza que a gente não devia avisar a Clarke ou o Bellamy primeiro? — ela perguntou, parando ao lado dele enquanto ele desmontava um dos painéis do chão.

Monty hesitou, os dedos ainda sobre o compartimento da pulseira.

— Talvez mais tarde. Eu só quero testar uma coisa antes... Talvez a gente consiga um sinal de volta pra Arca. Nem que seja um impulso... qualquer coisa.

Harper não insistiu. Ela conhecia a saudade que o corroía em silêncio — a mãe dele ainda estava lá em cima, e Monty tinha esperança de que ela estivesse tentando fazer o mesmo por ele. Talvez, de alguma forma, os dois pudessem se encontrar no meio do caminho. Ou pelo menos era isso que ele esperava.

Enquanto trabalhavam, sons de passos se aproximaram. Clarke e Bellamy surgiram na entrada do dropship, atentos, talvez já estranhando a ausência de ambos.

— Monty? Harper? O que estão fazendo aqui? — Clarke perguntou, a voz preocupada, mas firme.

Monty girou rápido, surpreso como uma criança pega pelos pais com os dedos no pote de biscoitos.
E, no susto, errou.

Um estalo agudo cortou o ar.
Fumaça.
E em um segundo, as luzes nas pulseiras — todas as pulseiras ainda ativas — começaram a piscar de forma errática. Uma a uma, apagaram.

— Não, não, não, não! — Clarke correu até ele, a voz falhando. Bellamy a seguiu, os olhos arregalados.

Monty deixou cair a pulseira que segurava.

— Me desculpa... me desculpa! Eu só pensei... pensei que se usássemos o sinal das pulseiras, talvez a gente pudesse criar um caminho pro rádio. Eu só queria tentar... — sua voz ficou mais fina, afogada pelo pânico. — Eu juro que ia falar com vocês... eu só...

Clarke ajoelhou ao lado dele, respirando fundo.
Ela olhou para as pulseiras queimadas como se visse o tempo se esvaindo por entre os dedos.
Se a Arca ainda os estava monitorando, agora... não mais.

— Está tudo bem. — ela disse por fim, e sua voz era gentil, apesar da dor. — A gente vai encontrar outro jeito, Monty. Mas você precisa respirar, tá?

Bellamy colocou a mão no ombro do garoto, forçando um meio sorriso.

— Não é o fim. Não pra gente.

Harper estava pálida, mas assentiu, puxando Monty para se sentar.
Lá fora, a noite caía lenta, como se o mundo inteiro segurasse o fôlego.

E, naquele silêncio apertado dentro do dropship, o grupo soube — agora, mais do que nunca, eles estavam por conta própria.

 

**

 

Quando a poeira baixou dentro do dropship e Monty, Harper e Raven se ocuparam em tentar salvar o que restava do rádio, Bellamy e Clarke saíram por instinto para tomar ar.

A noite já havia caído, envolvendo a floresta com aquele manto úmido de silêncio quebrado apenas pelo farfalhar das folhas.

Clarke cruzou os braços, encarando o céu escuro. Seus olhos pareciam procurar estrelas que não estavam mais lá.

— Parece que a história se repete — disse, com a voz baixa, ferida.

Bellamy encostou o ombro ao dela, calado por um momento, antes de responder:

— A primeira vez, a gente perdeu as pulseiras e mesmo assim achamos um jeito. Sobrevivemos.

Ele virou o rosto em direção ao dela. — E agora a gente tem mais do que antes. Temos aliados. Temos o bunker. E ainda temos a Raven por chegar.

Clarke soltou um riso sem humor.

— E temos a lembrança de todos os erros que não queremos repetir.

— Exatamente. — Bellamy concordou. — Isso não é o fim. Só mais um obstáculo. A gente vai superar. De novo.

Ela olhou pra ele, finalmente, os olhos ainda cheios daquele medo que só quem já perdeu tudo conhece.

— E se for tarde demais? E se acabar tudo do mesmo jeito?

Ele não hesitou.

— Não vai ser. Porque agora... a gente tá aqui. Juntos.

E então acrescentou, mais suave:

— Raven vai conseguir achar um jeito quando estiver aqui. Você sabe que vai.

Clarke assentiu, e quando Bellamy estendeu a mão, ela segurou — com firmeza.

Dois líderes. Duas crianças que já tinham enfrentado o fim do mundo antes.

Agora, com uma chance de impedir que ele chegasse de novo.

E naquele silêncio cúmplice, sob o céu escuro da Terra, o capítulo encerrava não com derrota — mas com determinação.

Notes:

É isso espero que tenha gostado, me digam o que acharam.

Chapter 6: "Esperança e Recomeços"

Summary:

Basicamente no ep 1x04 da série original, Octavia diz a Jasper, que ja tinha passado uma semana desde que ele acordou, esse capítulo é uma olhadinha mais de perto do que poderia ter acontecido durante essa semana .

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Terra- Acampamento Dropship, dia seguinte...

A luz da manhã se filtrava por entre os galhos retorcidos das árvores, criando um mosaico de sombras suaves no chão úmido da floresta.

O acampamento começava a despertar, não com o pânico e as tensões dos dias anteriores, mas com um tipo raro de silêncio: o que nasce quando o caos recua e o cansaço finalmente encontra espaço para ser sentido.

Não era exatamente paz, mas era o mais próximo que eles tinham conseguido até agora.

Agora, os mesmos jovens que carregavam medo e desconfiança no olhar estavam reunidos em pequenos grupos — costurando, limpando, levantando estruturas improvisadas. Reconstruindo não só o acampamento, mas também a confiança entre eles.

Ninguém parecia saber o que exatamente aconteceu com as pulseiras, mais de uma coisa sabiam: parecia que agora qualquer chance da arca entrar em contato com eles havia sido cortada.

E estavam preocupados com o que isso poderia significar para o povo da arca , já que todos se lembravam do que a Clarke tinha falado antes.

Já sobre o que isso poderia significar para eles, não havia muita preocupação, pois começavam a perceber que Bellamy e Clarke estariam lá para cuidar de todo mundo.

Na verdade havia muita coisa que começavam a perceber em relação ao Bellamy e a Clarke.

Perto da encosta, as meninas se reuniam ao redor de uma das barracas rasgadas para fofocar sobre isso.

Fox e Harper seguravam os tecidos remendados enquanto Gina usava um espinho de osso como agulha. Roma ria de algo que Octavia dissera, os olhos ainda inchados do choro da noite passada, mas com um brilho novo.

Otavia observava as outras com mais atenção do que falava, mas não deixava de sorrir quando uma piada escapava.

— Quem diria que a gente ia virar costureiras no fim do mundo — comentou Harper, franzindo o cenho ao enfiar a linha torta.

— Pelo menos a gente tem talento, diferente de certos garotos por aí — retrucou Gina, levantando o olhar na direção onde alguns meninos tentavam, desajeitadamente, montar uma cobertura para os suprimentos.

— Ei! Eu ouvi isso — gritou Miller, lá do outro lado, fingindo indignação.

— Era pra ouvir mesmo! — Roma rebateu com um sorriso.

Mais adiante, Monty e Jasper estavam sentados sobre uma lona esticada, organizando os frascos recuperados do bunker improvisado. Jasper ainda estava pálido, se recuperando da infecção e do trauma, mas era visível o esforço que fazia para manter o humor vivo.

— Você acha que esse aqui é álcool ou água radioativa? — brincou, erguendo um dos frascos com líquido amarelado.

— Só há uma maneira de descobrir. Mas se for o segundo, você vira planta em três dias — respondeu Monty, seco, mas com um brilho cúmplice no olhar.

Jasper deu risada, mais fraca do que de costume, mas ainda assim uma risada.

Charlotte, sentada ao lado deles com as pernas cruzadas, observava tudo em silêncio, rabiscando algo num pedaço de casca de árvore com carvão. O olhar atento, como se quisesse guardar cada momento de leveza como um tesouro raro.

Do outro lado do acampamento, Clarke e Bellamy estavam agachados perto da pilha de mantimentos, discutindo a melhor forma de separar os alimentos que estragariam rápido dos que ainda podiam durar.

— Precisamos fazer um inventário decente — disse Clarke, riscando com um graveto sobre a terra. — E distribuir em pequenas porções. A gente tem que pensar em longo prazo, especialmente se o Monty conseguir fazer funcionar uma plantação.

— Vamos precisar guardar as sementes num lugar seco e seguro. Talvez em uma daquelas caixas metálicas que a gente achou no bunker — Bellamy respondeu, olhando ao redor.

O silêncio entre eles não era incômodo. Era natural. Como se os pensamentos fluíssem melhor quando divididos entre os dois.

— E a castanha? — perguntou Clarke, sem erguer os olhos.

— A que causa alucinações? Já marquei a área no mapa do bunker. Podemos voltar lá e cercar a região. Se alguém se perder, não quero ninguém comendo coisa errada.

Ela assentiu. Um gesto pequeno, mas carregado de entendimento. Era impressionante como haviam aprendido a pensar à frente. A antecipar os riscos, a tentar garantir segurança em um mundo onde nada era garantido.

Mesmo com o clima mais calmo, o olhar de Clarke insistia em varrer os rostos ao redor, verificando se todos estavam bem. E Bellamy notava isso. Notava também as olheiras fundas que ela tentava esconder e o leve tremor nas mãos que se apressavam demais.

— Você não vai conseguir carregar o acampamento sozinha, princesa — ele disse, com a voz baixa, quase como um segredo.

Ela ergueu os olhos e sorriu. Cansada, sim. Mas firme.

— Eu não tô sozinha, Bellamy. Você tá aqui comigo.

E por um instante, o mundo pareceu menos cruel.

Eles continuaram o trabalho. O sol subia lentamente entre as árvores, espalhando uma luz suave pelo acampamento.

Era o começo de algo novo. Frágil. Mas verdadeiro.

 

**

 

A noite tinha chegado sem pressa, vestindo a floresta com seu manto escuro e silencioso.

A luz da lua passava tímida por entre os galhos altos, e no centro do acampamento, a fogueira crepitava com uma dança viva e laranja, jogando sombras no rosto dos jovens sentados ao redor.

Os pratos improvisados de casca e metal já estavam empilhados de lado. Os últimos goles de água ou uísque resgatado ainda circulavam discretamente entre mãos cansadas. Mas ninguém parecia querer sair dali. Pela primeira vez em dias, havia um sentimento estranho no ar: pertencimento.

Octavia, com os joelhos abraçados, soltou uma risada baixa depois de ouvir uma das piadas tolas do Jasper, e Harper aproveitou o momento para soltar a pergunta com naturalidade, como quem joga uma pedra no lago só para ver as ondas.

— Ei, O, por que você foi presa mesmo?

O silêncio caiu por um segundo. Octavia desviou o olhar para o fogo, as chamas refletindo nos olhos escuros. Quando respondeu, sua voz era firme, mas carregava o peso de quem já carregou uma prisão muito antes das grades.

— Por nascer.

A resposta ficou suspensa no ar, crua e dura como a realidade que a envolvia.

Ninguém soube exatamente o que dizer. Mas antes que o silêncio virasse constrangimento, Roma murmurou um “que merda” sincero, e Jasper tentou suavizar o momento com um assovio impressionado.

— E pensar que minha maior infração foi roubar sedativos pra uma brincadeira — comentou Monty, tentando puxar de volta a leveza.

— E você, Clarke? — perguntou Fox, curiosa. — Foi o quê? Coisa de classe alta? Talvez roubar um cartão de acesso de elite?

Clarke, sentada com Charlotte recostada sonolenta em seu colo, ergueu os olhos devagar.

Ela hesitou por um momento, mas depois suspirou, como quem já não via motivo para esconder nada.

— Tentativa de incitar rebelião contra o governo da Arca. Divulgação de documento confidencial. Ameaça à segurança interna. E difamação de conselheiros seniores... Algo assim.

Os olhos se arregalaram em volta da fogueira. Algumas bocas se abriram em choque. Um ou dois riram, achando que fosse brincadeira.

Mas Bellamy, que acabara de se aproximar com um balde de água para alimentar o fogo com segurança, parou ao ouvir a frase. Ele olhou para todos e disse com seriedade contida:

— Ela não tá brincando.

Os olhares se voltaram para Wells, que até então estava calado. Ele confirmou com um aceno lento.

— É verdade.

Monty assobiou.

— Isso é... ao mesmo tempo, super chocante e... ao mesmo tempo faz totalmente sentido.

Jasper riu.

— Realeza rebelde. Eu gosto disso.

As risadas voltaram. Um senso de admiração percorreu o grupo, leve, mas presente.

A Clarke fria e certeira dos primeiros dias estava agora ali, com uma criança adormecida no colo, ouvindo seus crimes contados como se fossem parte de uma lenda.

— E você, Wells? — Harper perguntou, cutucando-o com o cotovelo. — Você parece bonzinho demais. O que fez pra parar aqui?

Ele deu um meio sorriso, mas seus olhos estavam sombrios.

— Vandalismo. E ameaça de expor o mesmo segredo que a Clarke tentou divulgar.

— Que segredo era esse mesmo? — perguntou Gina, e por um tempo ninguém respondeu.

Mas depois de trocar um olhar com Clarke e receber um aceno lento positivo Wells respondeu:

— O pai da Clarke queria expor para todos na Arca sobre o problema no sistema de oxigênio. Ele acreditava que as pessoas mereciam saber a verdade ... eu disse que iria expor o arquivo dele nos canais públicos da Arca...

— Eu fiz de propósito. Pra ser preso. Pra ficar com ela.

Todos o olharam. A sinceridade em sua voz era uma confissão em si mesma.

— E seu pai deixou isso acontecer? — Harper perguntou, um pouco mais suave agora.

Ele demorou um pouco para responder.

— Ele sabia o real motivo para eu querer ser preso. Por isso não impediu. Provavelmente achou que... era melhor deixar eu fazer o que queria.

Ninguém disse nada. Mas os rostos estavam sérios agora. Um entendimento silencioso se espalhou entre eles: isso não era o suficiente para um pai mandar o filho para uma possível morte certa.

— Bom... pelo menos a monarquia rebelde se formou, né?
— tentou Jasper, levantando a caneca de metal num brinde desajeitado. — Vivas à princesa Clarke e ao príncipe Wells!

Clarke revirou os olhos, mas não conseguiu evitar um sorriso.

A Charlotte, já meio dormindo, afundou ainda mais em seu colo, e Clarke automaticamente ajeitou o casaco ao redor da menina.

— Ei, princesa... — murmurou Jasper, rindo —, parece que a monarquia também é materna.

Mais risos. Um pouco de zombaria afetuosa, uma pitada de admiração.

Clarke suspirou e olhou para o céu estrelado acima.
Ali, naquela clareira isolada, cercada por paredes de árvores e ameaças invisíveis, formava-se uma comunidade.

Fraturada, sim. Ferida. Mas cheia de cicatrizes vivas que, se tivessem tempo, talvez virassem laços.

A vigília seguiu. Com histórias sussurradas, provocações amistosas e risadas mais leves do que qualquer um esperava sentir naquela noite.

Charlotte adormeceu completamente no colo de Clarke.
E Clarke, por fim, se permitiu afagar o cabelo da menina.

Como quem reconhecia o peso que aquele gesto carregava.

E, ainda assim, o aceitava.

 

**

 

》Terra- Acampamento Dropship, uma semana após a aterrissagem...

O sétimo dia amanheceu com nuvens baixas e o chão ainda úmido da garoa noturna. O ar tinha aquele cheiro terroso de renovação, e apesar do cansaço geral, o acampamento despertava com algo novo: propósito.

Monty foi o primeiro a falar.

— E se a gente usasse o bunker de verdade?

Estava com a testa franzida, os cabelos bagunçados pelo travesseiro improvisado e uma prancheta de anotações já meio suja de barro. Clarke o ouviu com atenção. Bellamy também.

— Não só como abrigo temporário... mas como uma base de verdade. Tem estrutura, paredes sólidas, divisões internas, e se eu conseguir ativar a energia com as placas solares... — ele apontou o mapa no chão com um pedaço de carvão —, a gente pode ter luz, segurança, até armazenamento de comida.

Bellamy cruzou os braços, olhando o esboço.

— Os Grounders passaram por lá. Eu vi pegadas. — disse, firme. — Mas não pareciam hostis. Ou estavam só observando... Acreditamos que o ataque foi só uma resposta precipitada ao tiro.

— De todo jeito é mais seguro do que ficar completamente exposto aqui fora, com a névoa ácida voltando sem aviso — acrescentou Clarke, trocando um olhar sério com Bellamy. — Se a gente quer sobreviver de verdade... precisa de mais do que sorte.

O grupo silencioso ao redor assentiu. Finn, Monty, Clarke, Bellamy e Octavia formavam um pequeno círculo de decisão naquele momento. Outros se aproximavam aos poucos, ouvindo a conversa.

— Podemos começar aos poucos — sugeriu Monty. — Um grupo por vez. Levar ferramentas, lanternas, sementes, coisas úteis. E sempre ir armados. Nunca sozinhos.

Bellamy olhou pra Octavia, que já estava de pé com a mão no quadril, como se pronta pra sair naquele segundo.

— Eu vou com você. Toda vez — disse ela.

Bellamy assentiu, com um meio sorriso orgulhoso.

— É claro que vai.

 

**

 

A primeira expedição do dia foi pequena. Bellamy, Octavia, Monty, Atom, Roma, Finn, Miller e Murphy surpreendentemente.Clarke permaneceu no acampamento com Wells, cuidando da organização médica e dando instruções para a divisão de tarefas enquanto o grupo se ausentava.

Jasper observava tudo com uma inquietação nos olhos. Desde a névoa, seus nervos pareciam ainda mais frágeis, como um vidro que rangia a cada nova tensão.

— E se... der ruim lá dentro? — perguntou ele, num sussurro, quando Clarke passou por perto com mais bandagens nas mãos. — E se tiver mais alguém lá? E se a névoa vier de novo?

Ela parou, abaixando o olhar com gentileza. Pousou uma das mãos no ombro dele.

— Jasper... eu sei que parece assustador. Porque é. Mas é isso ou continuamos à mercê de tudo. A gente não pode esperar o perigo nos pegar de novo. Tem que estar um passo à frente. Eu prometo que vamos estar prontos. E ninguém vai deixar você pra trás.

O garoto deu um pequeno aceno, os olhos marejando discretamente.

 

**

 

O bunker, por dentro, ainda era sombrio. Mas menos hostil do que parecia na memória.

— A umidade não comeu tudo — comentou Roma, iluminando um dos corredores com sua tocha improvisada. — Algumas portas ainda deslizam.

Monty começou a trabalhar imediatamente. Painéis abertos, fios analisados, estruturas sendo estudadas com atenção.

Atom e Finn limpavam os cantos, retirando entulhos e montando apoios para carregar mais caixas nas próximas viagens.

Bellamy andava em círculos pelo perímetro interno, atento a todo som. Seus olhos escuros passavam de canto em canto, analisando o ambiente. Octavia estava ao seu lado, armada com uma lança que Monty ajudou a improvisar.

Do lado de fora, Murphy e Miller guiavam os preparativos das próximas viagens. Pequenas bandejas com sementes coletadas começaram a ser organizadas — um início de horta, protegido entre duas paredes de metal que ainda resistiam ao tempo.

Ao final do segundo dia, o bunker já começava a parecer mais que um abrigo. Era um projeto em andamento. Um símbolo do que estavam construindo juntos.

Não apenas sobrevivência: continuidade.

— Esse lugar tem futuro — disse Monty, limpando as mãos sujas de graxa na barra da camisa. — Dá pra sentir. Como se a gente estivesse plantando um novo mundo.

Bellamy olhou para ele, depois para Octavia que conversava com Roma mais adiante, e para a entrada iluminada pelo sol poente.

— É isso que estamos fazendo — respondeu ele. — Um novo povo. Nosso povo.

 

**

 

》Terra- oitavo dia após a aterrissagem...

O dia amanheceu com um sol tímido e um vento mais forte, que fazia as folhas secas da floresta dançarem pelo acampamento. O cheiro de madeira queimada ainda estava no ar, e os sons do dia anterior — marteladas, arrastões de pedra, vozes discutindo onde colocar um suporte ou outra coisa — voltaram com força.

Era oficial: o segundo acampamento estava nascendo.

No interior do bunker militar, a vida começava a encontrar seus lugares. Quatro das salas principais já estavam parcialmente limpas. Algumas portas enferrujadas tinham sido arrancadas, outras remendadas com painéis de metal reaproveitado.

Um pequeno gerador alimentado por placas solares — graças ao trabalho incansável de Monty e a ajuda técnica improvisada de Harper — agora fazia acender uma ou duas luzes por sala, fracas, mas constantes.

Charlotte caminhava por entre os corredores com olhos brilhantes. Nas mãos, segurava um kit básico de primeiros socorros que Clarke havia preparado para ela mesma.

— Isso é álcool. E isso aqui é gaze. Serve pra proteger o ferimento depois de limpar. Mas tem que ser rápido — explicava Clarke, com a voz firme e gentil. — E sempre lavar as mãos antes.

A menina assentia com intensidade, como se estivesse decorando uma lição de sobrevivência para a vida inteira. Ao lado dela, Bellamy observava com um meio sorriso, os braços cruzados.

— Você vai ser médica também princesinha? — ele perguntou, mais suave do que o normal.

— Eu... quero ajudar — respondeu Charlotte, com os olhos ainda fixos em Clarke.

Bellamy trocou um olhar com Clarke que dizia muito sem nenhuma palavra. Ela deu um sorrisinho de canto, e então voltou a mostrar os instrumentos.

 

**

Um tempo depois do lado de fora do bunker, Finn apareceu segurando algo nas mãos, chamando a atenção de Clarke.

— Achei isso aqui — disse, estendendo um lápis de carvão que parecia ter sido esculpido à mão. — Se quiser posso te mostrar onde eu encontrei...

Clarke o reconheceu na hora. Os lápis do bunker da família artista — onde um dia, em outra linha do tempo, ela e Finn se perderam um no outro.

Mas agora, ele parecia estender o objeto sem intenções, sem olhar faminto. Era só... um presente de memória. Um gesto de paz.

— Você disse que gostava de desenhar, não foi? — completou ele.

Ela pegou o lápis com cuidado.

— Obrigada.

— Achei umas páginas secas também. E algumas molduras com desenhos meio apagados. Talvez você consiga restaurar algo...

— Pode ser que sim- respondeu Clarke.

 

**

Depois de explorar o pequeno bunker os dois se sentaram na entrada do pequeno abrigo, entre o acampamento e a mata.

Os outros continuavam trabalhando — risadas ao longe, barulhos de tralha sendo carregada, a voz do Jasper reclamando de uma farpa no dedo — e Clarke e Finn observaram o vazio do espaço por um instante.

— Esse lugar... — murmurou Clarke. — Era o lar deles. Aquelas pinturas... não eram só arte. Eram despedidas. As últimas coisas que deixaram pra trás.

Finn ficou em silêncio, respeitando o tom.

— Tem muita dor nesses lugares — disse ele. — Mas também tem algo... que resistiu.

Clarke assentiu.

— Ainda é estranho pensar que a gente está morando entre os fantasmas do que sobrou da Terra.

— E reconstruindo — respondeu ele. — Dessa vez... talvez a gente consiga fazer melhor.

Os olhos de Clarke buscaram o horizonte por um instante, Finn nunca saberia como aquelas palavras eram verdadeiras para ela, depois voltaram para ele.

— Você tá tentando, né?

— Sempre estive. Às vezes do jeito errado. Mas... sim. Estou tentando de novo.

Ela sorriu. Pequeno, mas sincero.

— Vamos ver se você aprende dessa vez.

Finn riu baixinho. E naquele momento, algo novo nasceu entre eles. Não amor. Mas respeito. Compaixão. Compreensão mútua.

Uma nova amizade que podia ser, quem sabe, uma ponte.

 

**

 

Naquela noite, as primeiras pessoas dormiram dentro do bunker. As camas eram sacos de dormir sobre o concreto frio. Mas havia portas que trancavam, luzes que brilhavam, mãos segurando mãos.

Monty e Harper dormiram ao lado dos painéis, prontos para qualquer problema técnico. Octavia dividiu o espaço com Roma e Gina, testando qual sala seria mais silenciosa. Jasper, ainda receoso, dormiu perto da saída.

Bellamy e Clarke fizeram a última ronda da noite — lanternas em mãos, olhos atentos, vozes baixas.

— Estamos mesmo fazendo isso — sussurrou Clarke.

— Um lar — respondeu Bellamy. — Não é a Arca, e não é o Dropship. Mas é nosso.

Clarke parou por um momento e olhou para o gerador zumbindo ao fundo.

— Talvez... só talvez... isso nos protega pouco mais de Mount Weather.

Bellamy a olhou de lado.

— Você ainda pensa nisso?

Ela assentiu.

— Como esquecer?

O silêncio entre eles era cheio de memórias que só os dois podiam tocar.

— Então vamos garantir que ninguém mais precise lembrar — completou ele.

Ela sorriu, e os dois continuaram caminhando pelos corredores silenciosos, as luzes tremeluzindo suavemente nas paredes restauradas de concreto.

 

**

 

》Terra- dia 9

Na manhã do nono dia, o acampamento acordou mais tarde do que o costume. Talvez fosse a exaustão das construções. Ou talvez... fosse a conversa que correu à algumas noites anteriores, passando de voz em voz como fagulhas espalhadas pelo vento.

— Então quer dizer que a princesinha da Arca é uma criminosa?

— E o Wells foi preso por querer proteger ela?

— Eles quase derrubaram a Arca sozinhos, cês sabiam?

— E você viu como o Bellamy olhou pra ela ontem? Aquele olhar não é novo. Aquilo ali é história antiga, pode apostar.

— Além disso, Bellamy parecia já estar por dentro da história toda. Ele com certeza conhecia o plano dela.

— Talvez ele até tenha ajudado também, mas ela nunca falou pra proteger ele ,já que ele seria flutuado por já ter mais de 18 anos...

Fox, Roma, Harper e Gina cochichavam enquanto trançavam pedaços de tecido para reforçar a barraca de suprimentos.
Octavia observava à distância, fingindo que não prestava atenção, mas absorvendo tudo.

Monty e Jasper também ouviram parte das conversas enquanto ajustavam os fios dos painéis solares.

O acampamento inteiro estava murmurando.

De um momento para o outro, Clarke e Bellamy não eram apenas os líderes... eram um casal lendário, com uma história secreta vinda da Arca, cheia de encontros proibidos, rebeliões e coragem silenciosa.

A maioria dos detalhes era completamente inventada, mas ninguém parecia se importar com a veracidade.

O mais curioso era que ninguém parecia desconfortável com a ideia. Pelo contrário: havia admiração. Havia algo reconfortante na ideia de que aquelas duas figuras que mantinham todos em pé, tinham um ao outro para se apoiar.

No final da tarde, Bellamy sentou-se ao lado de Clarke no limite da clareira.

Os dois observavam de longe o bunker tomando forma, os grupos de trabalho se dividindo sem conflitos, vozes rindo enquanto passavam sacolas e placas de ferro.

— A paz tá começando a parecer... natural — disse ele, com a voz baixa.

— Por enquanto — respondeu Clarke. — Mas sim... é bonito de ver.

Eles ficaram em silêncio por alguns instantes. Até que Bellamy pigarreou.

— Você já ouviu, né? Os boatos.

Clarke suspirou.

— Todo mundo já ouviu. E o engraçado é que ninguém parece interessado em saber se é verdade ou não.

— É. E aí... o que a gente faz?

Ela o olhou de lado, a expressão indecifrável por um instante. Depois deu um sorriso suave.

— A gente deixa. Que falem.

— Você acha mesmo?

— Por que não? — respondeu. — Ninguém tá nos atacando. Eles só... parecem aliviados por ver alguém que se importa um com o outro. Se acham que isso explica por que a gente funciona bem juntos... então tudo bem. Uma coisa a menos para explicar.

Bellamy riu com o canto da boca, aquele sorriso meio cético, meio encantado.

— E o que exatamente eles acham?

— Que a gente era um casal na Arca. Que fugimos juntos, que tomamos o Dropship como aliados secretos...

Ele assentiu, ainda sorrindo.

— Isso explicaria algumas coisas mesmo.

— Mas eles estão errados numa parte.

Bellamy franziu a testa, curioso.

— Qual?

— Eles acham que já éramos um casal. Antes.

A pausa no ar ficou densa por um instante. Bellamy se virou um pouco mais para ela. O sol poente tingia os cabelos dela de dourado.

— Mas nós não éramos.

Ela olhou nos olhos dele, séria. Mas os olhos brilhavam. Aquela expressão Clarke que ele já conhecia bem: firme, honesta, aberta.

— Não, não éramos... Mas talvez... devêssemos deixar que pensem que somos agora. Pode não ser uma ideia tão ruim assim.

Bellamy não respondeu de imediato. Ele abaixou o olhar, coçando a lateral do queixo, e soltou um suspiro lento, como quem ponderava o peso de uma escolha muito grande, muito silenciosa.

— Você sabe — disse ele por fim, ainda sem olhar pra ela — que se alguém fosse criar uma história de amor sobre a gente, ela teria que começar na Terra. Com guerras, revoltas e um monte de idiotices no meio. Mas também com um... com um tipo de lealdade que não se inventa. Inabalável. Incondicional. Do tipo que é capaz de atravessar o espaço tempo por exemplo...

Clarke engoliu em seco.

— Não é uma história fácil — murmurou.

— Mas é a nossa — completou ele, finalmente encarando-a.

Os dois sorriram. Sem tocar um no outro. Sem beijos. Sem promessas. Só o olhar firme e cheio de significado.

Era a confissão.

Do tipo que não precisava de palavras como 'amor' ou 'ficar juntos'. Porque já estava tudo ali. Na escolha de permanecer. Na confiança que ninguém mais tinha. Na forma como cada um caminhava com a certeza de que o outro estaria logo atrás.

E enquanto o sol desaparecia atrás das árvores, o acampamento ainda murmurava boatos — mas agora, com uma ternura diferente. Uma admiração.

Porque mesmo que os boatos estivessem errados... eles pareciam, sim, um casal agora.

E talvez, só talvez, fosse isso mesmo que estavam se tornando.

 

**

 

John Murphy estava com os braços cruzados, recostado num dos troncos do acampamento recém-fixados como limite.

O rosto ainda carregava aquele meio sorriso debochado, o olhar sempre estreito, como se tudo ao redor fosse digno de julgamento.

Mas por dentro... ele estava entediado. E um pouco irritado. E — talvez o mais desconcertante — curioso.

"Ficar de olho na princesa."

A ordem do Bellamy ainda ecoava na mente dele como uma humilhação. Como se ele fosse um moleque de escola expulso da aula e obrigado a sentar na frente da professora que odiava.

Mas Murphy sabia reconhecer um castigo quando via um. Bellamy não gritou. Não o empurrou. Só olhou e falou com aquela voz firme e baixa.

"Observa ela. Vê como ela realmente é. Depois você me diz se ainda acha que estamos do lado errado."

E agora ali estava ele. No meio da clareira, fingindo estar de guarda enquanto, na verdade, seguia a movimentação da Clarke.

Ela estava cercada por uns três garotos mais jovens — um deles com um corte feio no braço, os outros só acompanhando, provavelmente assustados com a ideia de infecção.

Clarke se ajoelhou, limpou o ferimento com cuidado, acalmou o menino com uma piada suave e instruiu os outros dois a buscarem ervas secas. Tudo em menos de três minutos.

Murphy observava, com os braços ainda cruzados.

Ela não levantava a voz. Não pedia nada em troca. Nem ao menos parecia se importar que estivesse suja, exausta e claramente sem dormir direito havia dias.
Ele bufou.

-“Pose de santa não quer dizer nada.”-

Mas então viu outra cena. Clarke estava com Charlotte. A garotinha parecia tentar imitar os curativos que Clarke tinha feito, agora em um boneco improvisado de palha.

Clarke não zombava, não ignorava, não empurrava para outro. Ela ajoelhou novamente e ensinou.

Murphy desviou o olhar. Mas alguma coisa no peito pinicou. Incômoda.

Com o tempo, ele percebeu outras coisas. O modo como Clarke colocava comida no prato dos outros antes de pegar a própria.

O modo como conversava com Monty, com Wells, até com Octavia — e todos respondiam com respeito e, de algum jeito, com leveza. A presença dela aliviava, mesmo quando o mundo desmoronava.

E o mais irritante de tudo?

Ela não se parecia com os grandalhões da Arca.
Nada de arrogância. Nada de “sabe com quem está falando?”. Nada de punições exemplares ou discursos falsos sobre justiça.

Ela era... de verdade.

Murphy coçou o queixo, olhando de canto. Não era o tipo de verdade que ele confiava. Ainda não. Mas era o suficiente pra deixar as coisas confusas. E Murphy odiava se sentir confuso.

-"Não é como a mãe"-, ele pensou, lembrando do rosto da Dra. Abigail Griffin nas telas da Arca. Clarke era parecida no rosto, sim. Mas não nos olhos. Nem no jeito de comandar.

Ela não mandava. Ela liderava.

E então Murphy entendeu.

Talvez fosse isso que doía tanto.

Ver que alguém como ela — uma princesa de berço, uma rebelde diplomática, uma idealista com as mãos sujas de terra — estava fazendo o que ele sempre quis fazer: ser ouvido. Ser respeitado. Ser necessário.

E Bellamy viu isso nela antes de todo mundo.
Murphy franziu a testa, abaixando o olhar.

 

**

 

》Terra- dia 10

 

O céu cinza da manhã não impediu a animação que pairava sobre o acampamento. O chão ainda estava úmido do orvalho, mas não importava. Pela primeira vez desde que desceram à Terra, os delinquentes estavam reunidos por vontade própria — sem caos, sem brigas, sem medo. E dessa vez, era para aprender.

No centro da clareira, Bellamy estalava os ombros enquanto esperava o grupo se formar. À sua esquerda, Wells cruzava os braços com postura firme, os olhos atentos. Do outro lado, Atom aquecia os punhos com um sorriso animado.

Murphy, por sua vez, sentava-se numa pedra mais afastada, com cara de poucos amigos, como se estivesse ali por obrigação — mas todos sabiam que ele tinha sido o primeiro a chegar.

— Tá todo mundo pronto? — Bellamy perguntou, alto o bastante para chamar atenção. Seu tom era direto, mas tranquilo. Um líder experiente que sabia que estava sendo observado — e imitado.

Um coro de vozes respondeu positivamente.

Monty e Jasper já estavam de pé ao lado de Roma, Harper e Octavia, todos com sorrisos ansiosos. Charlotte, mais atrás, ao lado de Clarke, praticamente pulava de empolgação.

— A gente vai aprender a fazer o que a Clarke fez, né? — Jasper perguntou, com olhos brilhando de excitação.

— É — murmurou Murphy, de braços cruzados. — Levar uma surra no meio da clareira também tá no pacote? Porque parece que eu sou o único com experiência nisso.

As risadas foram inevitáveis. Até Clarke sorriu, escondendo a boca atrás da mão.

Murphy revirou os olhos, mas não saiu do lugar. Ele também queria aprender.

Bellamy ergueu a voz novamente, agora mais firme:

— A partir de hoje, todos aqui vão aprender o básico. Não pra começar briga — ele lançou um olhar direto pra Murphy, que fingiu não ver — mas pra se defender. Se um dia a gente for atacado... e esse dia vai chegar... quero que vocês tenham pelo menos uma chance de lutar de volta.

As palavras ficaram suspensas no ar. Um lembrete de que, apesar da calmaria passageira, estavam em guerra com um inimigo invisível: a Terra.

Bellamy continuou:

— Vamos começar com a postura. Isso é o mais importante. Ficar estável no chão significa que você aguenta o impacto e ainda consegue se mover rápido.

Ele demonstrou, pés afastados na largura dos ombros, corpo levemente inclinado para frente.

— Joga o peso pra frente, mas deixa leve nos calcanhares. Nada de pé travado, senão você cai com o primeiro empurrão.

Wells completou:

— Ombros relaxados. Braços erguidos. Queixo abaixado. Nunca lutem com o queixo levantado — ele bateu de leve o punho fechado contra o próprio maxilar — ou vão cair com o primeiro golpe.

Octavia tentava copiar os movimentos com concentração, ao lado de Harper. Roma imitava tudo com perfeição, como se já tivesse treinado alguma coisa antes.

— E se alguém vier por trás? — perguntou ela.

— A gente vai chegar nessa parte — Atom respondeu, animado. — Primeiro, quero ver vocês se esquivando.

Durante a próxima meia hora, eles praticaram movimentos simples: esquiva lateral, bloqueio de antebraço, giro de tronco.

Bellamy e Wells circulavam entre os grupos, corrigindo posturas com toques leves no ombro ou no cotovelo. Murphy, eventualmente, se levantou da pedra e começou a imitar à distância, tentando não parecer interessado demais.

— Ei, princesa — ele disse quando Clarke passou perto. — Você devia estar aqui ensinando também. A maioria quer aprender o seu famoso golpe.

— Foi só reflexo — respondeu ela, com um sorriso de canto. — E um pouco de prática.

— Se isso foi 'só reflexo', vou ficar aqui até conseguir fazer igual.

Mais risadas.

Bellamy olhou para Murphy por um segundo. Viu a tensão nos ombros do garoto — a impaciência, a vontade de se provar. Mas, pela primeira vez, não havia desprezo nos olhos dele. Havia determinação. E orgulho ferido.

Ele chamou:

— Murphy, vem cá. Você vai treinar com o Atom. Ele é rápido. Vai te manter alerta.

— E se ele tentar me dar um soco de verdade?

— Aí você desvia. — Bellamy sorriu. — Ou aprende do jeito difícil.

Murphy bufou, mas caminhou até Atom. Com isso, o treinamento seguia — suor começando a escorrer, mas ninguém reclamava. Era algo novo. Algo que dava esperança.

Naquele instante, Clarke observava de longe, com Charlotte ao lado. A menina tentava imitar os movimentos dos outros, mesmo sem saber direito o que fazia.

Clarke sorriu.

— Você quer treinar também?

— Quero ser forte, igual a você.

Clarke passou o braço ao redor da menina.

— Você já é forte, Charlotte. Mais do que imagina.

E do outro lado da clareira, Bellamy observava também. Mas não só os movimentos — ele via as ligações que se formavam. O brilho nos olhos. O riso depois do esforço. A sensação de propósito.

A Terra era dura. Mas eles estavam ficando mais duros. Mais vivos. Mais unidos.

Ele respirou fundo, com um orgulho que não ousava colocar em palavras. Mas que sentia vibrar em cada fibra do peito.

Talvez não estivessem tão perdidos quanto pareciam.

 

**

 

》Terra- Bunker militar, madrugada do dia 11...

A madrugada caiu pesada sobre a floresta, envolta em névoa fina e um silêncio profundo demais para ser conforto.

O acampamento havia se recolhido cedo. O céu limpo e as estrelas visíveis davam uma falsa sensação de paz, mas, dentro do abrigo improvisado à estrutura do bunker, Charlotte tremia debaixo do cobertor, as pálpebras contraídas num novo pesadelo.

Ela não gritou.

Tinha aprendido a não chamar atenção.

Mas Bellamy, deitado de lado, a poucos metros, ouviu o som abafado da respiração acelerada. Quando se levantou, Clarke já estava ajoelhada ao lado da menina, sussurrando baixinho enquanto passava os dedos por entre os fios loiros embaraçados.

— Está tudo bem... Você está segura... Estamos aqui.

Charlotte se encolheu nos braços de Clarke, os olhos úmidos demais para manter abertos. Bellamy sentou-se atrás delas, silenciosamente, estendendo o cobertor sobre as duas, como quem cria uma fortaleza com as próprias mãos.

Mas, naquela noite, eles não estavam sozinhos.

— Pesadelos, hein? — disse uma voz rouca e familiar da sombra da entrada. Murphy.

Clarke o olhou, surpresa.

Ele carregava um cantil, mas não bebia. Apenas se aproximou com calma, sem sarcasmo, sem armadura, apenas ele. Os olhos escuros pareciam observar Charlotte com algo quase imperceptível: culpa.

— Posso? — perguntou.

Charlotte olhou para ele por um momento longo. Então, de forma inesperada, acenou com a cabeça e deu tapinhas no espaço ao seu lado de onde estava perto de Clarke e Bellamy.

Murphy se sentou ali, meio torto, meio desconfortável... até que passou o braço em volta dos ombros da menina e sussurrou, com voz baixa:

— Eu também odeio a noite. A gente fica sozinho demais com as coisas que quer esquecer.

Charlotte fechou os olhos outra vez. E, aos poucos, voltou a respirar em ritmo calmo.

Clarke observava a cena em silêncio, sentindo um déjà vu forte o suficiente para apertar o peito. Por um instante, ela viu Madi, em outra época, outro mundo. Murphy ao lado dela, também assim: rabugento, sarcástico, mas protetor. Leal. Tio Murphy.

Ela sorriu de leve. Nem tudo estava perdido.

 

**

 

Na manhã, o sol ainda lutava para ultrapassar o topo das árvores quando Octavia apareceu com os braços cruzados e um olhar curioso.

— O que tá acontecendo aqui?

Bellamy e Clarke, ainda meio sentados, olharam um para o outro com cumplicidade. Murphy já havia voltado a seu canto, tentando fingir que nada daquilo tinha significado para ele.

Charlotte respondeu por todos:

— Tivemos pesadelos. Mas agora a gente tem um ritual. Sonhos ruins não vencem se a gente enfrentar junto.

Octavia sorriu. Pegou uma flor silvestre que crescia entre as pedras próximas ao acampamento e a girou nos dedos.

— Então talvez a gente devesse plantar sonhos bons também.

Charlotte piscou, pensativa. E foi só quando Atom apareceu com um grupo vindo da floresta — já de volta da expedição ao bunker — que a ideia tomou forma.

— Podemos fazer um memorial, né? — sugeriu ele. — Pelos quatro que a gente perdeu.

A clareira ficou em silêncio por alguns instantes.

— E pelos noventa e oito que ainda estão aqui — completou Charlotte, com firmeza incomum, a fazendo ter uma grande semelhança com Clarke e Bellamy. — A gente precisa lembrar dos dois lados. Do que perdemos... e do que ainda temos.

Poucas horas depois, a encosta próxima ao Dropship já tinha um pequeno campo demarcado com pedras.

Flores foram colhidas por Octavia, Roma, Harper e Jasper — coloridas, vibrantes. Alguns fizeram desenhos em pedaços de madeira; outros deixaram apenas nomes esculpidos em cascas de árvore.

Clarke cavou com as mãos a terra ainda molhada, com Charlotte ao seu lado. Murphy deixou uma pedra escura no centro do memorial. Não disse nada, mas ninguém o questionou.

Wells escreveu os nomes de Silas, Dax, Pascal e Maya com a caligrafia firme que aprendera ainda criança, quando sonhava em ser diplomata.

E então Monty fez o que sabia de melhor: instalou uma pequena haste de metal com um fragmento refletivo no topo. Algo que, mesmo simples, refletiria a luz do sol todos os dias.

— Pra lembrar que a gente ainda tá aqui — ele disse.

Mais tarde, quando os últimos passos se afastaram da clareira, Clarke e Bellamy ficaram para trás.

— Eles estão crescendo — ela comentou, os olhos marejados, mas com um sorriso orgulhoso. — Cada um do seu jeito.

— E você também — respondeu ele. — Eles seguem você, princesa.

Ela olhou pra ele de lado.

— Não sou princesa de ninguém.

— Não? — Ele arqueou uma sobrancelha. — Então por que é você quem acorda a Charlotte dos pesadelos, organiza o acampamento e carrega o mundo nos ombros sem reclamar?

Clarke riu, sacudindo a cabeça.

— Porque eu prometi que seria diferente dessa vez.

Bellamy assentiu. Ficaram em silêncio, lado a lado, diante do memorial recém-plantado.

As flores balançavam ao vento, e o pequeno espelho de Monty já refletia os primeiros raios da tarde. Era pouco... mas era o suficiente para começar algo novo.

 

**

 

》Terra- Bunker militar, dia 12..

O sol ainda nem havia despontado completamente no céu, mas Monty já estava ajoelhado na pequena horta improvisada atrás do bunker, os olhos brilhando como se estivesse diante de um milagre.

— Olha só isso... — murmurou, quase sem acreditar, enquanto passava os dedos com cuidado pelas folhas pequenas e verdes que brotavam da terra. — Nós conseguimos...

Ali, no solo da Terra que um dia fora considerada estéril e hostil, brotavam pequenas fileiras de milho, arroz, abóboras e vagens, ao lado de mudas tímidas de tomates silvestres e ervas medicinais que Clarke ajudara a selecionar.

Tudo crescendo com o apoio de uma estrutura simples de irrigação que Monty improvisara com peças do bunker, potes de metal e mangueiras reaproveitadas.

Jasper apareceu bocejando, com um sorriso preguiçoso.

— Cuidado, se isso der certo, você vai ser promovido a fazendeiro-chefe do povo rebelde do céu.

Monty riu, mas havia lágrimas nos olhos.

— Não é só comida. É... esperança. É saber que a gente pode ficar.

Na parte interna do bunker, o cenário era quase irreconhecível comparado aos primeiros dias.

As paredes foram reforçadas, portas reconstruídas com trancas improvisadas, beliches consertadas com pedaços de metal reaproveitados da Dropship, e um sistema simples de eletricidade alimentava luzes fracas, mas constantes, graças ao trabalho incansável de Monty, Clarke e alguns ajudantes.

Agora, cada pessoa tinha um espaço próprio para dormir, algo que parecia impensável quando chegaram à Terra.

Os risos ecoavam pelos corredores do bunker à medida que mais delinquentes faziam a transição definitiva do antigo acampamento para a nova base.

Alguns ainda dormiam junto à Dropship — a ligação emocional persistia — mas estava claro: um novo lar estava nascendo.

Sentados em frente à entrada principal do bunker, Clarke e Wells observavam o movimento ao redor. Charlotte brincava com Roma e Harper mais à frente, tentando ensinar as meninas a trançar flores no cabelo. O vento suave carregava o cheiro da terra molhada e do milho recém-brotado.

— Sabe o que é mais estranho? — Wells perguntou, com um sorriso pensativo. — Eu tô sentindo esperança.

Clarke desviou o olhar até ele, com os olhos suaves.

— Você não é o único.

— Quando a gente desceu da Arca, eu achei que esse lugar ia nos matar em uma semana. E talvez a gente tenha matado uns aos outros primeiro. Mas olha só...

Ele apontou com a cabeça para onde Murphy ajudava Atom e Miller a instalar mais prateleiras no refeitório improvisado do bunker. Riam de alguma piada. Murphy parecia leve.

Wells foi até eles, sorrindo e brincando. E Clarke apenas ficou para atrás, observando, comparando o que foi com o que era agora, no que também poderia ter sido desde o começo... se apenas eles soubesse melhor.

 

**

 

Mais tarde, já dentro do bunker, Clarke andava pelos corredores observando as camas arrumadas, as paredes limpas, as luzes fracas mas acolhedoras.

Uma pequena fogueira artificial com luz laranja (ideia de Monty) iluminava a entrada.

O cheiro de ferro e suor misturava-se com o leve aroma de terra fresca vindo das mudas de manjericão no canto da horta interna.

Bellamy veio se aproximando de onde estava até ficar ao seu lado, passando o braço por cima dos seus ombros, puxando-a pra perto em um abraço que ,se fosse honesta comigo mesma, não eram tão frequentes como gostaria.

— Esse era o dia. Hoje. O dia em que tudo desandou, lembra?- ele murmurou baixinho.

Clarke sabia.

Ela se lembrava com perfeição do primeiro ciclo. Do ódio crescendo, do medo se tornando tirania, da morte de Wells, do desespero de Charlotte. Da pulseira arrancada. Da injustiça.

Mas agora...

Charlotte estava ali, viva, rindo.

Wells também.

Murphy não era adorado, mas estava... inserido. Participando. Deixando-se transformar.

Clarke fechou os olhos por um instante, respirando fundo.

— Dessa vez, não deixamos o caos vencer.

— Não — concordou Bellamy, firme. — Não mesmo.

98 pessoas vivas.

96 pulseiras ativas. Ela encostou-se em seu peito por um momento, tentando conter o peso da emoção.

Pela primeira vez desde que seus olhos se abriram na Dropship, ela sentia que estava… funcionando.

Não só sobrevivendo. Eles estavam vivendo.

Reconstruindo.

E era só o começo.

Notes:

É isso minha gente, obrigada por ler até aqui e agradeço muito os kudos !! Vou me esforçar para atualizar com mais frequência.
Me digam o que acharam desse capítulo!<3

Chapter 7: “Rupturas e Escolhas"

Summary:

No coração da Arca, alianças se desfazem e decisões difíceis mudam o destino de todos. Enquanto Abby enfrenta antigas amizades e confrontos, Raven luta contra o tempo e a própria esperança em uma missão que pode salvar muitos.

Notes:

Um detalhe que passou despercebido nos primeiros capítulos é que houve uma reunião do conselho onde Kane tenta convencer os outros de seu plano de " sacrifício pelo bem maior", mas abby discorda e há um empate, deixando assim a decisão pro chanceler, que decide votar nulo e assim dando um prazo que 2 semanas a Abby enquanto eles esperam a data para a próxima reunião do conselho, de acordo com os costumes da Arca.

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

》 Arca- uma semana atrás, dia 5

O som agudo dos alarmes secundários preencheu a sala de controle como um aviso de guerra. Um dos técnicos se levantou tão abruptamente que derrubou um copo de metal no chão, o barulho ecoando como um tiro seco. Telas se acendiam com luzes vermelhas, dados piscando em amarelo, vozes cruzando ordens apressadas.

— Perdemos o sinal da pulseira 029! — gritou uma voz aguda perto da entrada.

Abby se virou num salto.

— Quem é 029? Quem é?!

O operador hesitou.

— É... Wells Jaha.

O mundo pareceu parar por um segundo. Mas só dentro de um homem.

Do lado de fora, o caos continuava. Técnicos digitavam com mãos trêmulas. Outros tentavam contato de emergência com os receptores, mesmo sabendo que não havia retorno. A sala virou um redemoinho de ruídos: batidas de dedos, avisos automáticos, suspiros contidos, exclamações desesperadas. A voz de Kane soava em algum lugar pelo comunicador da parede, exigindo confirmação da perda. Abby tentava manter a racionalidade, buscando falhas de leitura, distorções eletromagnéticas, interferência solar. Qualquer coisa.

Mas Thelonious Jaha não se mexia.

Ele ainda encarava a tela onde o nome do filho piscava em vermelho. 'Transmição encerrada'. Um aviso pequeno. Uma morte sussurrada em código binário. A mão direita dele apertava a borda metálica da mesa de controle, como se precisasse de algo sólido para não desabar. A esquerda... pendia solta, sem força, como se tivesse perdido sua razão de existir.

Dentro dele, o mar de emoções já transbordava.

"Foi rápido demais. Estável... depois pânico. Depois... nada."

Ele ouvira milhares de relatos de morte ao longo da vida. Vira gráficos, estatísticas, diagnósticos clínicos. Mas nada disso o preparara para ver a linha de vida do próprio filho se apagar.

"Você devia ter parado ele. Devia ter dito não. Devia ter sido pai."

Abby se aproximou, a voz falhando.

— Thelonious... pode ter sido um erro de leitura. As pulseiras ainda não são perfeitas. Talvez... ele tenha tirado por vontade própria, você sabe como os jovens podem ser impulsivos, pode ter sido...

— Não foi — interrompeu ele, com a voz tão baixa que quase se perdeu no barulho ao redor.

Seus olhos ainda estavam fixos na tela.

— Foi rápido. Houve medo. Raiva. Luta. E...

Fechou os olhos por um segundo, como se tentasse segurar algo que implorava para escapar.

— Ele morreu.

— Você não pode ter certeza — sussurrou Abby, embora ela mesma soubesse que aquilo não era verdade.

— Eu sabia por que ele queria ir — murmurou, e pela primeira vez sua voz rachou.

— Eu sabia que era pela Clarke. Que ele queria protegê-la. Ficar ao lado dela. Achei que era um gesto nobre. Uma escolha dele... então, eu o deixei ir. Eu o deixei.

Pausou.

— E agora ele está morto.

Abby recuou um passo.

Não havia nada que pudesse dizer. Nada que ele quisesse ouvir.

O ruído da sala pareceu se intensificar ainda mais. Um técnico questionava o estado emocional de outras pulseiras. A de Clarke marcava picos anormais. A de John Murphy, instabilidade súbita. Os dados falavam por si. Alguma coisa terrível tinha acontecido em solo. E tudo apontava para Wells como a vítima.

Thelonious finalmente se virou para Abby. O rosto estava pálido, mas os olhos escuros queimavam de culpa.

— Já se passaram cinco dias do prazo que te dei na última reunião do conselho.

— O quê?

— Você tem nove dias restantes pra provar que a Terra é habitável.

Respirou fundo, como se a simples fala o esgotasse.

— Nove dias, Abby. Não mais. E... não perca seu tempo tentando me consolar.

Abby ainda tentou se aproximar, mas ele ergueu a mão, pedindo silêncio.

— Só... me deixe. Agora.

E ele foi.

Atrás dela, os monitores continuavam piscando. Os dados continuavam chegando. A vida seguia nos gráficos. Mas para Thelonious Jaha, ali, o céu tinha acabado de silenciar.

 

**

 

O silêncio na sala parecia mais pesado do que o vácuo do espaço.

Abby observava os dados da tela há minutos — talvez horas. O sinal vital do Wells Jaha permanecia inerte, como uma ferida aberta. Ela tentava analisar o padrão cardíaco anterior, verificar oscilações, picos de adrenalina, qualquer coisa que sugerisse erro de leitura. Mas não havia erro.

A pulseira dele havia sido desligada.

Ela se sentou devagar, como se seus ossos tivessem dobrado de uma vez.

“E se fosse Clarke?”

O pensamento veio tão rápido que ela apertou os olhos com força. Não podia imaginar.

A lembrança da filha, com seus olhos intensos e seu coração obstinado, surgiu nítida.

A dor apertou.

“Será que fui responsável também?”

Todas aquelas crianças. Jogadas na superfície de um planeta que não pisavam havia cem anos. Sem comunicação. Sem orientação. Sem defesa.

Eram só adolescentes. Só isso.

A porta se abriu com um ruído metálico seco.

Kane entrou com passos firmes. O rosto sério. A voz controlada, mas afiada como uma lâmina recém-forjada.

— Você ainda está aqui? Achei que já tivesse entendido.

Abby não respondeu. O silêncio dela parecia ainda mais eloquente.

Kane avançou até o visor central. Observou o gráfico estático. O sinal da mais nova pulseira apagada.

— Quantos mais vão ter que morrer até você aceitar a verdade? — disse ele, a voz cortante. — Isso não é sobrevivência. É ilusão. A Terra não é habitável. Não está pronta. E nós mandamos cem jovens para morrer.

Abby virou lentamente, os olhos marejados, mas firmes.

— Talvez… talvez eles tenham sido a única chance de provar o contrário.

Kane recuou um passo, quase imperceptível.

— Isso não é uma chance. É uma sentença. Você sabia dos riscos. Sabia o que significava perder a comunicação. Sabia que não tínhamos como protegê-los lá embaixo. Mas mesmo assim, você aceitou.

Ele fez uma pausa. A máscara de controle começava a rachar. A dor também era dele, mas ele a enterrava sob camadas e mais camadas de lógica.

— Eles eram crianças, Abby. E agora, estão morrendo um a um. E tudo isso porque você se agarrou a uma esperança irracional.

Ela sentiu como se tivesse levado um tapa.

Kane deu meia-volta, parando por um breve instante na porta.

— O oxigênio está acabando. Se continuar recusando soluções, mais pessoas aqui em cima vão morrer também. E aí, quem vai carregar essa culpa?

O silêncio pesou de novo, como chumbo no ar rarefeito.

Quando a porta se fechou atrás dele, Abby apoiou a testa nos punhos.

Estava sozinha. Rodeada por fantasmas vivos.

"E se for verdade? E se tudo isso... for culpa minha?"

Mas no fundo de si, havia uma semente.

Minúscula.

Insistente.

Esperança.

Do outro lado da estação, em silêncio, ela sabia que Raven trabalhava sem parar na pequena cápsula de comunicação, desmontando, soldando, tentando vencer o impossível.

E mesmo sem dizer em voz alta, Abby sabia que aquela garota era sua última esperança.

“Se alguém pode fazer isso dar certo, é ela.”

E lá embaixo… Clarke. Sua filha.

Ela a conhecia.

Sabia que Clarke estaria colocando o bem-estar dos outros na frete dos dela,como sempre fazia.

Mas agora, com a notícia da morte de Wells...

Ela só podia torcer para que Clarke tivesse encontrado alguém que cuidasse dela também — porque até as mais fortes precisam de um ombro onde descansar.

**

 

》Arca- Sala de monitoramento, algumas horas depois...

A sala de monitoramento antes relativamente calma mergulhou em tensão quando os sinais , de repente, começaram a piscar.

Um a um, os dados vitais das pulseiras se apagavam no visor como estrelas morrendo no céu.

— O que está acontecendo? — sussurrou Abby, já se levantando da mesa, o olhar preso às telas.

Jackson não conseguiu responder.

Ele apenas observava enquanto os últimos pontos de vida se apagavam, como se a própria Terra os tivesse engolido.

Um técnico virou-se para o conselho, pálido.

— São todas as pulseiras. Todas. Apagaram de uma vez só.

Abby levou a mão à boca, instintivamente, os olhos arregalados, o mundo desabando ao redor dela como se o chão tivesse sumido.

Kane, de pé ao lado, não disse nada.

Mas seu olhar cortante encontrou o dela.

Ele não precisava dizer “Eu avisei.” Estava estampado em seu silêncio.

— Não... — a voz dela saiu abafada. — Isso não é... eles não podem... — Ela se virou para o painel, tentando encontrar qualquer leitura, qualquer ruído, qualquer sinal. — Isso tem que ser um erro. Isso tem que ser um erro técnico.

Jackson se aproximou, cuidadosamente.

— Abby...

— NÃO! — ela se virou para os dois, com a convicção flamejando nos olhos, tão intensa quanto o luto. — Eles estão vivos. Eu sei que estão. Isso foi uma falha técnica. Foi só isso. Eles ainda estão lá. Eu acredito nisso.

Houve um silêncio denso, incômodo.

Mas ninguém teve coragem de contestar. Nem Kane.

E então, Abby respirou fundo, como se puxasse pra si o peso de trezentas vidas apagadas. O corpo dela tremia, mas seus olhos não vacilaram.

— Eu não vou desistir deles. Não agora.

Ela encarava o agora vazio das telas, onde antes havia vida — ainda determinada a encontrar, na ausência, um sinal de esperança.

— Clarke... por favor, esteja bem...

 

**

 

》Terra- Tondc, noite silenciosa.

As tochas queimavam em volta do salão de pedra, lançando sombras nos rostos tensos reunidos ali. O ar era pesado com o cheiro de fumaça, musgo e couro molhado. No centro, Lexa — a Heda — permanecia em pé, com seu olhar cortante fixo sobre Lincoln, que se ajoelhava diante dela, a cabeça baixa em respeito.

Ao seu redor, generais da Coalizão murmuravam entre si. Anya permanecia à esquerda da Heda, em silêncio, atenta. Indra estava mais atrás, braços cruzados, rígida como uma estátua. A tensão na sala era densa como névoa antes da chuva.

— Chon bilaik, hodnes laik raun? — perguntou Lexa, em voz firme. (Então fale. Qual é a situação lá fora?)

Lincoln levantou a cabeça com cautela.

— Bilaik laik campa niron. — (Eles construíram um acampamento próximo da floresta.) — Kamp raun kom op non. (Jovens. Todos muito jovens.)

Ele hesitou por um momento, buscando as palavras certas.

— Há uma mulher entre eles. Curandeira. Inteligente. Líder. Os outros a escutam. Clarke.

Lexa inclinou levemente a cabeça, sinalizando para que ele prosseguisse.

— Ela parece ser a comandante deles, — disse Lincoln em voz baixa. — E há outro… Bellamy. Um guerreiro. Mais velho que os outros. Carrega dor nos olhos. Luta como quem já perdeu muito. Shof op. (Obedece a ela.)

Anya cruzou os braços.

— Em laik sarra? — (Ela é a comandante?)

Lincoln assentiu.

— É o que parece. Eles carregam armas, mas não atacaram. Apenas as carregam junto ao corpo e para se defender de feras na floresta. Apesar da confusão, seguem a liderança dela. Clarke é racional.

Murmúrios surgiram entre os generais.

— Taim kom ripa op, gon ai laik op hod. —( Quando o sangue for derramado, será tarde demais.) — resmungou Indra.

Lexa permaneceu imóvel.

— Existe algo precioso para eles? Para a comandante e o guerreiro, além um do outro?

Lincoln refletiu por um segundo.

— Yumi luk op naida laik sis op gon Bellamy. — (Vi uma jovem, provavelmente irmã do guerreiro.) — Octavia. E… uma criança pequena. Parece ser deles… uma pupila. Uma garota. Vive grudada na Clarke.

O olhar de Lexa se tornou ainda mais atento.

—Kompashon laik snapon.— (Compaixão é fraqueza.)

— Den, frag em. Bos op frag wan, den won heda op kom. — (Então testem eles. Se são racionais… ou apenas ameaça.)— Pegue uma das duas. Force um contato direto. — decretou ela.

Um arrepio percorreu os ombros de Lincoln.

Por fora, ele apenas inclinou a cabeça em sinal de obediência. Mas por dentro, a dúvida já o corroía. Ele sabia que a Charlotte seria o alvo mais fácil — pequena, vulnerável, sem muito treinamento. Mas seu pensamento não ficava nela.

Octavia …

Desde que a viu entre as árvores, algo dentro dele se agitou. Havia uma chama nos olhos dela. Uma beleza crua, selvagem, quase ferida. Ela se movia como uma criatura que nasceu nas sombras, mas ria como quem sonha com a luz.

Ele sabia que não deveria pensar nisso.

Não agora. Mas...

“Sha, ai gou op Otávia.” — ("Sim, eu vou atrás de Otávia.")

Mas ele não disse isso em voz alta. Ele apenas se virou para sair, pronto para cumprir as ordens da Heda. A guerra podia parecer distante … mas as escolhas perigosas estavam apenas começando.

 

**

 

》Arca- uma semana depois, dia 12 , as 10h45...

O corredor da Arca estava mais silencioso do que o normal. As luzes piscavam de leve em alguns setores, efeito do desgaste dos sistemas, mas para Abby, era o peso no peito que oscilava mais do que qualquer energia. Passos apressados ecoavam enquanto ela cruzava a galeria em direção ao setor de engenharia. Ela não sabia se esperava encontrar esperança ou apenas mais uma desculpa para não parar de tentar.

— Indo pra mecânica de novo? — a voz de Kane surgiu às suas costas, firme, quase cínica, como sempre.

Abby parou, respirou fundo antes de se virar.

— Sim, pra mecânica — respondeu, tentando manter o tom neutro.

— É a nona vez essa semana — ele comentou, franzindo a testa, braços cruzados diante do peito. — Está me dando a impressão de que anda muito... ocupada.

— Está me vigiando agora?

— Eu estou vigiando todos — respondeu sem hesitar.

Abby apertou os lábios, controlando a resposta que gostaria de dar. Seu olhar era firme.

— Tem uma mecânica com sintomas de infecção viral. Dei a ela uma vacina, ela está melhorando, mas quero ter certeza de que não vai virar um surto.

Kane hesitou por um segundo. Os olhos dele, mesmo por trás da rigidez, demonstravam cansaço.

— Entendo. Desculpe por segurar você... — disse, mas não se moveu. Observava-a como se ainda houvesse algo que não conseguia entender — ou aceitar.

Ela apenas assentiu e seguiu o caminho.

A oficina de manutenção tinha o cheiro metálico de sempre, misturado ao calor da solda e ao óleo velho das ferramentas. Raven estava sentada no chão, rodeada por peças espalhadas, fios desencapados e um painel de controle aberto à sua frente. Os olhos cansados, mas atentos, nem se levantaram quando Abby entrou.

— Como estão as coisas? — perguntou a médica, já se abaixando ao lado dela.

— Indo — Raven respondeu, enquanto ajustava um dos fios. — Mas eu preciso de um novo regulador de pressão. O atual tá instável, e se a cápsula subir assim, a pressão pode explodir no meio do caminho. Ainda temos dois dias, certo?

Abby assentiu.

— Sim. Ainda temos dois dias.

Houve um silêncio rápido. Raven olhou por cima do ombro.

— Alguma coisa mudou?

Abby hesitou, antes de responder. A lembrança ainda ardia.

— O que foi o que aconteceu? — perguntou de novo, mais seria desta vez, ao ver o semblante ainda mais abatido do que antes da doutora.

Abby hesitou por mais um segundo. Mas já não fazia sentido esconder. Raven também tinha o direito de saber.

— Todas as pulseiras se apagaram.

Raven congelou.

— Todas? — repetiu, quase sem voz.

— Sim. — Abby respirou fundo. — Mas foi um problema técnico. Eles ainda estão lá. Eu sei que estão.

Raven assentiu, engolindo o nó na garganta.

— Claro. Foi só um problema técnico. Quando a gente pousar, vamos consertar o rádio, reconectar tudo... E vamos restabelecer o contato de novo.

As duas trocaram um olhar. Era quase um pacto silencioso — sustentar uma à outra com o pouco de fé que ainda tinham.

— Certo... — murmurou ela, voltando-se para a cápsula. — Eu vou conseguir o regulador.

— Como? — Abby perguntou.

Raven lançou um meio sorriso, amargo, e respondeu sem olhar para ela:

— Quanto menos você souber, melhor.

Abby ficou ali por um instante, observando aquela jovem tão determinada quanto qualquer comandante da Arca. E se perguntou, pela milésima vez naquela semana, quantas regras ainda poderiam ser quebradas em nome de uma esperança remota — e se valia a pena continuar arriscando tudo.

 

**

 

O refeitório da Arca era um dos poucos lugares onde ainda se ouvia alguma forma de risada — mesmo que abafada, rouca ou debochada. As pessoas ali eram diferentes. Trabalhadores cansados, marginais que escapavam por entre as frestas das regras, e figuras que tinham o poder não por autoridade, mas por medo.

Foi ali que Raven entrou, com a postura rígida de quem já sabia que não seria bem recebida.

Um dos capangas parou diante dela, cruzando os braços largos na frente do peito.

— Ainda não é hora de comer — disse ele, com voz entediada, mas carregada de ameaça.

Raven nem piscou.

— Corta essa. Eu não vim aqui pra comer. Vim pra fazer negócios.

Ela deu mais um passo à frente, os olhos firmes, e completou, sem desviar o olhar:

— Só avisa à Nigel que o passarinho dela está aqui.

O apelido ecoou como uma memória desconfortável — uma daquelas que se crava nos ossos. O homem hesitou um instante, e foi exatamente nesse instante que a voz conhecida cortou o ar, vinda de trás.

— Ora, ora... quanto tempo, passarinho. — Nigel surgiu com um sorriso enviesado e os olhos afiados como lâminas. — O que te traz de volta ao ninho?

— Preciso de um regulador de pressão — disse Raven, direta.

Nigel ergueu uma sobrancelha.

— Pra quê?

— Pra regular a pressão — respondeu Raven, com um sarcasmo seco.

Nigel soltou uma risada curta.

— Vejo que você herdou o humor da sua mãe.

— Só me diz o preço — disse Raven, cruzando os braços, sem paciência para jogos.

Nigel mudou de tom. A zombaria desapareceu, substituída por frieza comercial.

— Não mexo mais com peças mecânicas. Muito arriscado.

— O que você quer em troca? — cortou Raven, firme.

Nigel a avaliou dos pés à cabeça. O sorriso voltou, mais torto, mais venenoso.

— Sabe, eu devo um favor pro chefe da elétrica. Ele tem um fraco por garotas bonitas e duronas... como você.

O ar ficou mais pesado.

Raven piscou devagar, sem acreditar.

— Você tá brincando, né?

— Eu não brinco com negócios.

— Eu não posso aceitar isso — disse ela, a voz agora trincando entre raiva e nojo.

— Então talvez você não precise tanto do regulador de pressão quanto pensa que precisa.

Raven balançou a cabeça, indignada.

— Tá brincando com a minha cara...

Ela girou nos calcanhares e começou a sair, sentindo o estômago revirado.

A voz de Nigel veio atrás, venenosa como sempre.

— Sua mãe teria aceitado.

Raven parou.

O mundo pareceu congelar por um segundo. Ela se virou de uma vez, os olhos ardendo.

— Não fala da minha mãe! — avançou com o punho cerrado.

Dois dos capangas de Nigel foram rápidos. Um a segurou pelos ombros, outro se colocou entre elas.

— Vai me bater agora? — provocou Nigel, com um sorriso desdenhoso.

— Eu devia! — gritou Raven, se debatendo. — Minha mãe era mil vezes mais mulher do que você! Vá se flutuar!

Os homens a arrastaram para fora enquanto Nigel apenas assistia, ainda sorrindo.

 

**

 

O corredor da ala médica estava abafado, úmido, mais carregado do que o normal. A linha de espera serpenteava até os limites da parede, marcada por tosses secas, olhos vermelhos, e o choro impaciente de um bebê que parecia estar ali desde o amanhecer.

Raven enfiava os ombros dentro da jaqueta, tentando não parecer nervosa demais. Ela caminhou até Abby e tossiu uma vez, só o bastante para chamar atenção. Funcionou.

Uma lanterna brilhou em sua direção, forte e rápida, como um reflexo condicionado. Abby a puxou, deixando os pacientes, a expressão já tomada por preocupação ao ver quem era.

— Vem comigo — disse a médica, séria, virando-se sem dar chance de resposta.

Raven seguiu, sem hesitar. Atravessaram uma porta lateral da ala médica e, em poucos segundos, estavam sozinhas.

Abby parou e se virou, os braços cruzados, o cenho franzido, tentando equilibrar a decepção e o cuidado.

— O que você está fazendo aqui?

— Desculpa. Eu pisei na bola. Não consegui a peça.

Abby não respondeu logo. Seu olhar percorreu o rosto da garota, como se procurasse sinais de algo pior.

— Onde você foi? — perguntou enfim, já com suspeita na voz. — Você foi até a Nigel?

Raven hesitou por um momento, depois assentiu com um olhar resignado.

— Sim.

A expressão de Abby se fechou.

— Estamos tentando prender aquela mulher há anos. — A médica deu um passo para o lado, frustrada. — O que você pensou que conseguiria com ela?

Raven respirou fundo, os ombros caídos de vergonha.

— A peça. Eu achei que... eu achei que valia tentar.

Um silêncio desconfortável se formou entre as duas, quebrado apenas pelas tosses abafadas além da porta da enfermaria. Raven olhou em direção ao coredor, então murmurou com o coração apertado:

— O que está acontecendo com todas essas pessoas?

Abby a olhou nos olhos, séria.

— Carência de oxigênio. Está ficando pior. — Sua voz baixou, grave, como um aviso. — Por isso precisamos nos apressar.

Essas palavras caíram sobre Raven como um peso real. Ela engoliu em seco, o peito apertado por uma culpa que agora ardia mais fundo. Ela não tinha conseguido a peça. E a peça era parte da cápsula que restauraria a comunicação com a Terra. Com isso, talvez houvesse esperança, respostas. Talvez nem todas essas pessoas precisassem morrer.

Ela poderia ver Finn de novo.

— A Nigel... ela pode mesmo conseguir a peça? — murmurou Abby — Você tem certeza?

— Tenho.

Abby assentiu devagar, sem tirar os olhos dela. Então, girou nos calcanhares e foi em direção à porta.

— Tudo bem. Eu vou conseguir com ela.

Raven a olhou com surpresa.

— O quê? O que você vai fazer?

Abby parou à porta, virando apenas o suficiente para lançar-lhe um último olhar, carregado de firmeza.

— Quanto menos você souber, melhor.

E a porta se fechou atrás dela com um sibilo suave, deixando Raven ali, parada no silêncio que agora parecia mais denso. Ela sentiu a garganta secar. Não era apenas uma missão. Era uma corrida contra o tempo. E o tempo estava acabando.

 

**

 

Àquela hora o refeitório já estava cheio. Pessoas entravam e saíam com bandejas de plástico, a fila para a biometria se arrastava, e o ar cheirava a metal, suor e ração reaproveitada.

Abby mantinha o olhar firme enquanto avançava, o jaleco da ala médica lhe abrindo caminho entre os olhares desconfiados. Parou diante do terminal, pressionou o dedo contra o sensor e retirou um cartão de ração.

Mas não era isso que viera buscar.

Com um gesto discreto, manteve a mão parcialmente fechada ao caminhar até o balcão onde Nigel costumava atender. O olhar da mulher já a esperava — frio, calculista, com aquele meio sorriso presunçoso de quem sabia reconhecer oportunidade onde os outros viam desespero.

— Olá, doutora Griffin — disse Nigel, com um tom cantarolado, venenoso como um fel disfarçado de gentileza.

— Nigel — respondeu Abby com frieza.

Em um movimento sutil, abriu levemente a mão, revelando as duas seringas de morfina escondidas na curva dos dedos. A luz do refeitório brilhou por um segundo contra o vidro dos frascos, como um aceno silencioso.

Os olhos de Nigel cintilaram de interesse.

— Morfina… — murmurou, fingindo surpresa, mas a voz já cheia de desejo. — E o que você quer em troca?

— Um regulador de pressão — respondeu Abby sem rodeios.

Nigel arqueou as sobrancelhas com um sorriso malicioso. Encostou os braços no balcão e a observou de cima a baixo, como se analisasse mais do que a proposta.

— Eu realmente subestimei a passarinha — disse, referindo-se à Raven. — Me pergunto como uma garota da mecânica conseguiu uma benfeitora de tão alto escalão.

Abby não piscou.

— Você tem três segundos pra decidir. Quanto menos falarmos, melhor. Temos um acordo ou não?

O silêncio durou menos de um segundo. Nigel pegou o cartão de ração com uma mão, e com a outra, puxou discretamente as seringas da palma de Abby, deslizando-as para dentro do bolso do casaco como se estivesse pegando um simples guardanapo.

— Atrás da cortina — murmurou, indicando com um gesto leve da cabeça.

Abby passou por ela, atravessando discretamente uma porta lateral do refeitório que levava a uma área de armazenamento — onde os negócios “paralelos” de Nigel aconteciam.

No momento em que a porta quase se fechava, uma figura surgiu entre a multidão.

Kane.

Ele estava parado a alguns metros de distância, meio oculto pelas pessoas. Os olhos acompanhavam cada movimento. Não disse uma palavra. Apenas observou enquanto Abby desaparecia do outro lado da porta. Depois, desviou o olhar para Nigel, que sequer fingiu não notar. O sorriso dela aumentou, venenoso.

Kane não disse nada. Apenas se virou e foi embora, o maxilar tenso, a dúvida crescendo dentro do peito.

 

**

 

》Arca- dia 12, às 18h40...

O saguão estava parcialmente tomado por uma roda de pessoas sentadas ao redor de uma mulher de cabelos ruivos grisalhos, que falava com um fervor calmo. A voz dela ecoava leve pelos corredores metálicos.

— Os ancestrais construíram esta Arca com fé — dizia a mulher, com as mãos erguidas. — Fé de que um dia, os filhos deles caminhem novamente sob o Sol. E nós, sobreviventes, mantemos essa chama viva.

Alguns tossiam ao fundo. Uma criança pequena agarrava a perna da mãe, inquieta. No meio da roda, um menino regava com cuidado um bonsai dentro de uma redoma de vidro empoeirada. As folhas frágeis tremiam sob a gota controlada.

Kane se aproximava com os ombros rígidos, a expressão tão fechada quanto as portas ao seu redor. Quando sua mãe o viu, abriu um sorriso quase esperançoso.

— Marcus — chamou ela, suavemente. — Veio se juntar a nós?

A voz veio de outro canto do corredor antes que ele pudesse responder.

— Ele não veio por fé, veio por mim — anunciou Nigel, sua voz saindo das sombras com aquele sorrisinho torto de sempre. — Pode continuar com suas abobrinhas, senhora Kane.

A mulher respirou fundo, decepcionada, mas não disse nada. Voltou-se novamente para o grupo, tentando manter a compostura e a liturgia do momento. Kane, por outro lado, rumou direto até Nigel, o olhar afiado.

— O que você quer de mim?

— Tenho algo que pode ser do seu interesse — disse ela, casual, cruzando os braços.

— A menos que seja uma confissão assinada, não tenho interesse em nada que venha de você.

Nigel deu um risinho.

— Mesmo? Nem se for sobre a sua amiguinha Abby Griffin?

Ele congelou por um instante, só um segundo. Nigel percebeu.

— Acontece que a Dra. Griffin veio até mim. E parece que ela conhece muito bem aquela garota da mecânica… Raven Reyes, não é? — Ela se inclinou ligeiramente. — E sabe o que elas precisavam? De um regulador de pressão. Bastante específico, não acha?

Marcus apertou os lábios.

— Você não tem provas. E mesmo que tivesse, seria a sua palavra contra a de um membro do Conselho. Quem você acha que vão acreditar?

Ela deu de ombros.

— Sabe, Marcus… Você devia me agradecer. Com a Abby fora do jogo, seus planos vão seguir de vento em popa.

Nigel abriu um compartimento escondido na lateral de sua roupa e retirou um pequeno pacote metálico. Entregou a ele sem cerimônia. Ao abrir, Kane viu quatro seringas perfeitamente alinhadas. Morfina.

— Desde quando você entrega seus fregueses, Nigel?

— Eu não tenho fregueses, Conselheiro. — Ela ergue o queixo, zombeteira. — Sou apenas uma cidadã honesta da Arca. E acho que ninguém deveria estar acima da lei.

Kane segurava o pacote com dedos tensos. O peso daquilo parecia multiplicar em sua mão. Ele olhou para ela com nojo contido.

— Você é uma praga nesta Arca.

Nigel sorriu, satisfeita.

— Sabe… Eu me lembro de você assim. Quando era só o garotinho que regava aquele bonsai ali.

Ambos olharam por um segundo para o pequeno menino que ainda pingava gotas lentas sobre a planta frágil, sob o olhar atento da mãe de Kane.

— Um desperdício de água, se você me perguntar — continuou Nigel.

— Não pra eles — respondeu Kane, seco.

E saiu, os passos firmes ecoando pelos corredores.

 

**

 

》Arca- algumas horas depois...

A oficina improvisada zumbia com o som baixo da solda portátil. Raven trabalhava curvada sobre a cápsula, o rosto suado, a expressão tensa, mas focada. Cada fio soldado era mais do que um ajuste técnico — era uma chance de esperança.

Abby andava de um lado para o outro, as mãos inquietas, mordendo os lábios, o olhar fixo na contagem regressiva invisível que se acumulava na mente. Ela tentava se acalmar, mas falhava.

— Abby — murmurou Raven sem tirar os olhos do painel — dá pra parar? Você não gostaria que eu ficasse andando de um lado pro outro enquanto você faz uma cirurgia, né?

Abby suspirou e parou, mas antes que pudesse responder, o comunicador vibrou em sua cintura. Ela atendeu com um gesto automático.

— Abby? — era Jackson, a voz baixa, ansiosa. — Você tirou uma seringa de morfina do inventário?

Ela travou.

— Eles já fizeram o inventário? — respondeu, tentando soar calma.

— Não. Mas Kane veio aqui. Ele perguntou diretamente sobre a morfina... e está a caminho da mecânica. Ele vai prender vocês duas.

Abby fechou os olhos por um instante, o coração disparando. Ao desligar, virou-se para Raven.

— Você deu morfina pra Nigel? — a garota perguntou, franzindo a testa, confusa.

— Ela me delatou — Abby respondeu, seca, amarga. — Quanto tempo você ainda precisa?

Raven checou o visor do painel e mordeu o lábio inferior.

— Vinte minutos, se tudo correr bem.

Abby respirou fundo, encarando a cápsula como se ela fosse a única tábua de salvação pendurada entre o céu e o inferno.

— Eles vão estar aqui em cinco.

O silêncio caiu sobre elas por um instante.

Abby começou a andar de novo, mas desta vez com outra energia. Parou diante de Raven e segurou seu braço com firmeza.

— Escuta... aconteça o que acontecer... você lança essa cápsula, entendeu?

Raven hesitou, o olhar preso no dela.

— Abby...

— Quando você encontrar os jovens no chão, mande um sinal de rádio — disse Abby, sua voz embargando pela primeira vez —. Senão... trezentas pessoas aqui em cima vão morrer.

— Eu não vou sem você — Raven respondeu, a voz trêmula.

Abby sorriu com dor, com afeto, com um orgulho contido.

— É preciso.

— Eles vão te flutuar, Abby!

Abby não respondeu de imediato. Apenas a encarou. E naquele olhar, Raven viu tudo: o medo contido, a força absurda, a certeza do sacrifício.

— Então que me flutuem — disse ela, baixinho.

Raven parou. O corpo inteiro vacilou como se algo tivesse sido arrancado de dentro. Ela foi até Abby e a abraçou com força, como se pudesse segurá-la ali por mais tempo, como se pudesse impedir o destino.

Abby não soltou lágrimas, mas seus olhos brilharam com tudo o que sentia. Quando se afastaram, seus dedos apertaram levemente a mão da jovem mecânica.

— Diga à Clarke... que eu a amo.

Raven assentiu, incapaz de falar, a garganta apertada demais. Tudo dentro dela dizia que não era justo — não depois de perder tanta gente, não depois de ter encontrado alguém como Abby.

Mas não havia tempo para justiça. Só para ação.

A cápsula pulsava, viva.

A esperança ganhava forma diante delas.

 

**

 

A oficina vibrava num zumbido abafado. Depois que Abby saiu Raven continuou a soldar o regulador de pressão com pressa, os olhos fixos, os dedos correndo como se o tempo estivesse literalmente escorrendo pelo chão.

Ela prendeu o último encaixe, ajustou a válvula com um estalo preciso… e então:

— PSSSSHHHH!

Um jato de pressão escapou com força. Um estalo metálico ecoou. A peça soltou. Fumaça subiu, e o painel apitou em vermelho.

— Droga! — ela exclamou, dando um soco no console.

Abateu-se um silêncio doído por alguns segundos. Raven abaixou a cabeça, os ombros caídos, o rosto encostado na lateral fria da cápsula. O barulho do próprio coração batendo nos ouvidos.

— Ela me deu uma peça defeituosa... — sussurrou, com raiva e desânimo misturados. — Aquela desgraçada da Nigel…

Ficou ali, imóvel, por um momento. Como se estivesse à beira do colapso, sozinha, prestes a aceitar a derrota.

Foi então que, ao erguer o olhar pela oficina, viu pendurado na lateral do compartimento o traje espacial — empoeirado, antigo… esquecido por todos, menos por ela.

Seus olhos se arregalaram.

O plano começou a tomar forma, rápido e desesperado.

 

**

 

Passos firmes ecoavam pelo corredor metálico da Arca. Kane avançava com quatro guardas ao seu redor, os olhos fixos à frente, determinado. A luz fria do teto refletia em seus ombros, a tensão marcando cada linha do rosto.

Do outro lado do corredor, Abby apareceu sozinha, vinda da sala de mecânica.

Ao vê-la, Kane diminuiu o passo. Dois dos guardas se posicionaram atrás dele; os outros dois se moveram discretamente para trás de Abby, fechando o cerco sem uma palavra.

Ela parou no centro do corredor, ereta, com o rosto calmo demais para quem sabia o que estava prestes a acontecer.

— Espero que haja uma explicação lógica para tudo isso — disse Kane, com a voz baixa e controlada.

Abby manteve o olhar fixo nos olhos dele.

— Minha filha... — começou ela.

Ele a interrompeu com um leve abalo de cabeça.

— Eu sei. Eu sinto muito. Mas todos nós sabíamos que havia riscos.

Deu um passo lateral, começando a circular lentamente ao redor dela, como um predador estudando sua presa.

— Não existe bactéria, não é? — sussurrou, os olhos estreitados. — Pra que, então, servia o regulador de pressão?

Parou diante dela de novo. Abby não respondeu.

— Sua “mecânica contaminada” é Raven Reyes. O que ela está aprontando, Abby?

Ela continuou ali, imóvel. Os olhos marejados, mas duros. Reconhecia aquele homem, ou pelo menos achava que reconhecia. Ele fora o amigo de seu marido e Thelonious, o conselheiro em quem ela confiava, o homem que conversava com empatia.

Mas agora… agora ele era só uma sombra daquele homem.

"E ela? Ela ainda era a mesma?"

Por dentro, uma guerra silenciosa de emoções se agitava. Mas por fora, Abby mantinha a firmeza. Por sua filha. Pelo povo.

 

**

 

Dentro da cápsula, a luz vermelha do painel piscava, intercalada com os bipes agudos da contagem regressiva interna.

Raven já estava com o traje espacial vestido, os movimentos rígidos pelas camadas grossas do uniforme.

Suas mãos tremiam um pouco enquanto encaixava os últimos fechos da trava de segurança do assento.

A pressão do momento era sufocante — e não apenas por causa do capacete que ainda estava em sua mão.

Ela puxou o pequeno colar com o pingente de corvo que o Finn lhe dera, os dedos roçando no metal frio com delicadeza.

Por um breve segundo, o tempo pareceu desacelerar.

Havia algo simbólico ali — o nome dela, o símbolo dela, e o presente de alguém que tinha sido importante. Ela amarrou o cordão em volta do regulador de pressão defeituoso, como se, de alguma forma, aquilo fosse garantir que a peça aguentaria.

— Por favor, só dessa vez... — sussurrou para si mesma, a voz abafada pelo silêncio da cápsula.

Com um suspiro trêmulo, ela puxou o visor para baixo e o trancou no lugar com um clique metálico.

Seus olhos se fecharam por um segundo, respirando fundo uma última vez antes da decolagem. Quando os abriu de novo, estavam firmes, determinados.

Os dedos pressionaram os comandos no painel.

Tudo pronto.

 

**

 

As botas de Marcus Kane ecoavam contra o chão metálico enquanto ele encarava Abby com frieza contida. A tensão no corredor podia ser cortada com uma lâmina.

— Você sabia — disse ele, a voz baixa, mas firme. — Que o namorado dela, Finn Collins, era um dos cem que foram mandados para o chão?

Abby não respondeu. Apenas o olhou, olhos pesados de preocupação.

— E agora, graças à sua obsessão — ele continuou — ela também vai ser flutuada.

Ela ainda não desvia o olhar. Não há mais espaço para arrependimento.

Kane se aproxima mais um passo. O peso das palavras seguintes cai como um julgamento.

— Só me diga o que vocês estão aprontando. Se eu não souber, não conseguirei salvá-la.

Abby respira fundo. Por um instante, parece ver ali o homem que já foi seu amigo, um dos poucos com quem dividiu esperanças. Mas agora... agora ele parece uma casa que desabou de dentro pra fora.

Ela balança a cabeça lentamente, um meio sorriso amargo curvando seus lábios.

— Você não entende. Ainda não entende.

Ela se aproxima, quase sussurrando:

— A Terra é habitável. Eu estou tentando salvar todos nós.

Mas Kane a olha como se ela fosse o delírio de uma mulher que passou tempo demais entre esperanças quebradas.

— Prendam-na.

As ordens vêm frias. Dois guardas a cercam. Abby não resiste. Apenas ergue o queixo com dignidade enquanto é algemada.

— Continuem as buscas por Raven Reyes — Kane ordena.

Os guardas assentem e começam a se mover quando:

—BUUM!

Um estrondo metálico vibra pela estrutura da Arca.

Todos param. Um dos guardas ergue o olhar.

— O que foi isso?

Kane franze o cenho. Vira-se para um painel de monitoramento improvisado, onde um pequeno alarme começa a piscar em vermelho.

Abby... ela se vira com dificuldade, os punhos presos. Mas seus olhos brilham com orgulho. Um suspiro quase invisível escapa.

Ela conseguiu.

— Uma cápsula foi ejetada — diz um dos guardas, pasmo, observando um visor.

Kane se vira bruscamente para Abby.

— Abby! — grita, correndo de volta até ela.

Ela o encara, olhos firmes. Mesmo derrotada, mesmo algemada, há um brilho triunfante em sua voz.

— Nós precisamos saber a verdade.

Kane para, olhos cravados nos dela.

— O que você fez?

Ela apenas responde com o silêncio de quem acredita no impossível. Porque ela viu algo que ele ainda não quis ver.

A esperança.

 

**

 

A cápsula prateada desliza para longe da Arca.

Primeiro, como um ponto luminoso no infinito escuro.

Depois, ganha velocidade, atravessando o vácuo silencioso entre a estação e o planeta azul abaixo.

Dentro dela, Raven está imóvel, olhos fechados atrás do visor do traje.

As luzes do painel refletem em seu rosto tenso, enquanto ela segura firme o colar do corvo.

Do lado de fora, a cápsula começa a vibrar conforme entra na atmosfera.

As nuvens se abrem.

A Terra aparece.

Verde, viva, selvagem.

E a cápsula mergulha em direção a ela, como uma estrela cadente feita de metal e esperança.

Notes:

Mais um capítulo! Dessa vez focado mais com o que estava acontecendo na arca e com a Raven, me digam o que acharam <3

Chapter 8: "Laços reescritos "

Summary:

Voltamos a terra , dessa vez com a reescrita do que aconteceu, ou o que poderia ter acontecido durante daquele dia em que Clarke e Finn passaram o dia inteiro se pegando na serie original.

Notes:

Esse capítulo ta menor em comparação ao outro que venho postando pq na verdade ele ficou muito mais longo do que o previsto então preferir dividir em dois capítulos

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

》Terra- Acampamento Dropship, dia 13

O sol ainda engatinhava pela linha do horizonte quando Clarke abriu os olhos. O céu acima do acampamento se tingia em tons quentes de laranja, rosa e ouro — um espetáculo silencioso que contrastava com a agitação crescente dentro dela.

Era o dia.

Ela sabia. O peso disso se fazia presente no ar, nas batidas do coração, no som distante das primeiras vozes despertando entre as tendas improvisadas. Na primeira vez, naquele outro tempo que já não existia, naquela mesma noite, a cápsula de Raven havia cortado o céu como uma estrela cadente. E agora, Clarke esperava. Ou temia. Ou apenas respirava.

Ela caminhou entre os corpos ainda adormecidos, cobertos por cobertores sujos e folhas secas. Os 100 — seu povo. Seus escolhidos. Sua responsabilidade.

Bellamy estava de pé, silencioso, junto à entrada do acampamento. Tinha uma lança improvisada na mão e os olhos fixos na mata densa à frente. Quando sentiu sua aproximação, ele virou o rosto — e o que houve ali, entre os dois, foi mais do que um cumprimento. Foi uma confirmação muda de que os dois sabiam.

— Você acha que ela já desceu? — Clarke perguntou, sem rodeios, como sempre era com ele.

Bellamy respirou fundo antes de responder. — Talvez. Mas... ela vai. — Seus olhos pareciam procurar o céu, mesmo através das árvores. — Na primeira vez... eu estava surtando nesse ponto. Achava que tinha matado o chanceler. Achei que, quando a nave viesse, ela traria a minha sentença junto.

— Você era um garoto assustado — Clarke disse, com a voz baixa, gentil. — E mesmo assim... fez o que achava necessário. Você não é diferente de ninguém aqui, Bellamy. Todos fizemos escolhas. Difíceis. Mas por amor. Pelo povo.

Ele soltou um sorriso sem humor. — O problema é que o povo quase nunca entende, não é mesmo?

Ela se aproximou mais, como quem não queria deixar espaço para o arrependimento crescer entre eles.

— Talvez não, talvez nem precisem. — ela disse. — Porque agora você não está mais sozinho. Nós dois fizemos esse caminho. E vamos continuar fazendo. Até o fim. Juntos.

Os olhos dele encontraram os dela. Havia algo ali, não dito. Um reconhecimento profundo. Uma aliança indestrutível.

— Juntos.

 

**

 

Octavia saiu da barraca com os cabelos soltos e um casaco improvisado sobre os ombros. Estava inquieta — era visível. Os olhos curiosos, os passos indecisos, como se procurasse algo para preencher o silêncio dentro dela. Clarke percebeu antes mesmo de ela dizer qualquer coisa.

— Dormiu mal? — ela perguntou, caminhando ao lado da garota.

— Eu durmo mal desde que cheguei aqui — Octavia respondeu, meio rindo, meio suspirando. — Acho que o chão ainda não gosta muito de mim.

Clarke sorriu. — O chão é só... exigente. Mas você está aprendendo a dançar com ele.

Octavia riu dessa vez. — Isso soou muito como algo que a minha mãe diria. Ou você. — Ela olhou para Clarke com um sorriso brincalhão. — Você tá virando tipo minha segunda mãe agora?

Clarke deu de ombros, fingindo desinteresse. — Talvez só uma amiga mais velha que se preocupa. Isso é crime?

— Só se você começar a mandar eu ir dormir cedo.

Clarke riu. O riso delas foi breve, mas verdadeiro.

— O que foi? — Octavia perguntou, ao notar o olhar distante da loira.

— Nada... — Clarke hesitou. — Só estava pensando que... talvez hoje alguma coisa importante vá acontecer. Quem sabe , talvez até você conheça alguém especial. Alguém que nem imaginaria.

Octavia arqueou uma sobrancelha, desconfiada. — Que tipo de previsão mística foi essa? Tá escondendo um oráculo por aqui, princesa?

Clarke apenas sorriu. — Chame de intuição materna.

Octavia riu, dizendo — Bom, se esse “alguém especial” aparecer, espero que ele traga comida. — Octavia deu um passo à frente, girando nos calcanhares como quem brinca com o próprio destino. — Aí, sim, seria amor à primeira vista.

Clarke ficou ali parada por um instante, observando a garota seguir. Por dentro, uma lembrança mordia sua consciência. Lincoln. A conexão que mudou tantas coisas. O laço que nasceria ainda naquele dia, sob condições improváveis... e que ela já sabia.

Mas Octavia, não.

E Clarke jamais diria.

 

**

 

O calor do sol da manhã já se fazia sentir quando o som da voz de Bellamy ecoou pelo acampamento.

Ele estava em pé sobre a rampa da dropship, com a coluna ereta e o olhar firme, chamando a atenção de todos como alguém que já havia nascido para comandar — ou, pelo menos, como alguém que já carregava o peso de liderar.

— A partir de hoje — ele anunciou —, começaremos a migração definitiva para o bunker militar.

Murmúrios tomaram conta do acampamento. Alguns trocaram olhares desconfiados, outros apenas escutaram em silêncio, tentando compreender o significado prático daquela decisão.

— O que a gente vai fazer com aqui? — perguntou Monroe, franzindo a testa e olhando ao redor, como se a madeira improvisada e o ferro retorcido da nave pudessem ouvi-la.

— A dropship vai continuar aqui — explicou Bellamy. — Com as muralhas, os portões e tudo que construímos. Vai ser nosso forte. Se algum dia precisarmos voltar... se algum dia formos atacados, esse lugar ainda vai nos proteger.

— Um forte? — perguntou alguém no meio da multidão.

— É uma estrutura defensiva — Bellamy respondeu, já caminhando entre os jovens, com os braços cruzados. — Antigamente, os soldados construíam fortes pra se defender de invasores. Era onde se recolhiam quando o inimigo chegava. Não era uma casa. Era um escudo.

— Hm... ainda não entendi muito bem — admitiu Miller, coçando a nuca.

Clarke, que observava tudo da lateral, deu um pequeno passo à frente, cruzando os braços enquanto sorria.

— Pensa assim: se o bunker é onde a gente vive... a dropship é onde a gente luta, caso precise.

O grupo assentiu em silêncio. Era uma lógica simples, mas nova para muitos. Aos poucos, os murmúrios foram diminuindo, dando lugar a uma movimentação prática: grupos se formando, mochilas sendo preparadas, pertences pessoais recolhidos com cuidado.

As lembranças da chegada apressada estavam gravadas em cada objeto improvisado — uma rede pendurada entre as árvores, o assento de nave usado como mesa, o cantil amassado que já fora de alguém que não estava mais ali.

Bellamy desceu os últimos degraus da rampa e seguiu a multidão com o olhar atento.

Quando Clarke surgiu ao seu lado, ele não precisou se virar para saber que era ela.

— Ainda estou tentando entender como você acabou sendo um cadente na Arca em vez de um professor de história — ela comentou com um tom leve, quase rindo, enquanto caminhavam lado a lado em direção ao bunker.

Bellamy deu de ombros com um meio sorriso. — Não sei... acho que não tinha muita adrenalina nesse trabalho. Não combina muito comigo.

Clarke ergueu uma sobrancelha. — Ah, claro. Porque a Arca, com certeza, era pura adrenalina.

— Bom... foi esse trabalho que me trouxe até aqui, não é? — Ele disse olhando para ela com um brilho zombeteiro nos olhos. — Então, acho melhor não reclamar.

Os dois sorriram. Um riso pequeno, partilhado apenas entre eles, como um segredo a mais entre tantos que carregavam.

Foi o suficiente para reacender os sussurros.

Cochichos discretos começaram a se espalhar entre os grupos que arrumavam suas coisas. Olhares se cruzavam, risos abafados escapavam.

Bellamy e Clarke já tinham virado assunto desde o primeiro dia, mas agora... agora era inevitável.

Estavam sempre juntos, sempre em sintonia. Como se tivessem um entendimento que ia além das palavras. Como se já tivessem vivido mais do que os olhos podiam ver.

Mas nenhum dos dois parecia se importar. Porque, no fim das contas, eles sabiam que aquele era apenas o começo.

O verdadeiro desafio estava só começando — e eles precisariam um do outro como nunca antes.

 

**

 

O sol da tarde começava a filtrava-se pelas fendas estreitas do teto do bunker, criando feixes de luz dourada que dançavam sobre o chão de concreto.

As crianças corriam mais ao fundo, rindo, improvisando cantos de brincadeira entre os corredores de metal e concreto que agora serviriam de lar.

Clarke caminhava lentamente por um dos corredores principais, os olhos atentos aos detalhes do ambiente.

Tudo ali ainda parecia carregado por ecos do futuro que apenas ela podia ouvir — memórias de uma linha do tempo que já não existia, mas que ainda doíam como cicatrizes.

Ela parou perto de uma das janelas estreitas, observando a floresta do lado de fora, quando ouviu passos leves atrás de si. Virou-se com um pequeno sorriso. Era Finn.

— Ei — ele disse, com um sorriso tímido. — Achei que você estivesse supervisionando a instalação dos dormitórios.

— Deleguei. Por incrível que pareça, o Jasper parece entender de logística. — Ela deu de ombros, divertida.

Finn riu, encostando-se ao lado dela. Ficaram ali em silêncio por alguns segundos, como se ambos estivessem tentando entender o que aquele lugar significava agora.

— Esse lugar... — ele começou, olhando em volta com olhos nostálgicos — me lembra o estúdio da minha mãe. Ela pintava também. Tinha janelas assim, grandes, e a luz invadia tudo. Ela dizia que luz natural dava vida às cores. Acho que é por isso que gosto daqui.

Clarke o encarou com atenção. Era uma faceta dele que poucos conheciam — sensível, observador. E, por um instante, ela quase viu o garoto que um dia amou. Mas esse garoto ainda não existia aqui. E esse Finn aqui ainda estava se formando. E talvez agora fosse diferente. Melhor.

— Eu também gosto de pintar coisas assim... — ela comentou, suave. — Minha mãe dizia que pintar era minha forma de organizar o mundo.

Ele sorriu, surpreso. — Isso explica por que você é tão boa em planejar tudo. Você vê o que os outros não veem.

Clarke desviou o olhar, tocada pela simplicidade daquilo.

— Você esteve na primeira expedição até aqui, não é? — ela perguntou, mudando de assunto.

— Estive, sim. Foi... interessante. — Ele riu. — A gente viu um cervo com duas cabeças. Juro, Clarke, ele me encarou como se tivesse entendido meus pecados.
Ela soltou uma risada sincera e, por um instante, o ar entre os dois pareceu mais leve.

— Eu acho que ele só estava tão confuso quanto vocês — disse ela, piscando.

— Talvez. — Finn a olhou com mais calma. — Sabe, eu... Queria dizer que admiro você. De verdade. Você pensa, age, cuida de todo mundo. É fácil... querer estar por perto.

Ela o olhou, surpresa pela franqueza. Mas havia apenas sinceridade nos olhos dele, não desejo.

— Eu pensei em flertar com você — ele confessou, baixando os olhos. — Mas... isso não seria justo. Nem com você, nem com a Raven, minha namorada na Arca. Eu só quero fazer as coisas certas dessa vez. Começar limpo. E... ser seu amigo. Se você quiser.

Clarke sentiu o peito apertar. Aquilo não era uma lembrança. Era novo. Genuíno.

— Eu quero, Finn. Muito. — E, ao dizer isso, ela sabia que estava soltando, aos poucos, o peso do que fora. E abraçando o que poderia ser.

Depois de que se separaram sorriram um para o outro. Dois aliados. Dois corações feridos tentando ser melhores.

E, à distância, parado entre as sombras do corredor, Bellamy observava.

Não era ciúme. Era vigilância. Um instinto quase protetor. E talvez, um traço de algo que ele ainda não ousava nomear.

Mas, quando viu o sorriso de Clarke ao lado de Finn, desviou o olhar com um leve suspiro, virando-se em silêncio e desaparecendo no fundo do corredor.

 

**

 

》Terra- Acampamento bunker militar, noite do dia 13.

O refeitório improvisado ainda zumbia de risos, vozes e o som metálico das colheres contra as tigelas, enquanto os jovens terminavam sua refeição.

Clarke levantou com calma após as últimas mordidas, acenando com a cabeça para Jasper, que falava algo animado sobre uma nova configuração de fogareiro portátil.

Caminhou pelo corredor iluminado apenas por lâmpadas portáteis, em direção ao seu dormitório. Um espaço só dela, uma concessão silenciosa que todos aceitaram sem discutir.

Bellamy havia sido o primeiro a insistir: “Ela é nossa médica. Precisa de silêncio, descanso, e privacidade.”

Ninguém ousou contrariar. Mas as risadinhas de fundo — e os olhares trocados entre os mais ousados — deixaram bem claro que ninguém acreditava que fosse só isso.

Clarke entrou no quarto e deixou a porta entreaberta por costume. Começou a ajeitar algumas anotações rabiscadas, frascos com folhas secas, reorganizando os remédios artesanais que vinha testando.

A porta se fechou com um leve clique. Ela nem precisou se virar para saber quem era.

— Passou a tarde toda com ele. — A voz de Bellamy soou baixa, mas firme, sem rodeios. — Com o Finn.

Ela suspirou, pegando um pano para limpar os dedos manchados de pigmento vegetal. — Sim. Ele me procurou. Disse que queria conversar.

— Conversar? — Bellamy arqueou uma sobrancelha, recostando-se na parede ao lado da porta, os braços cruzados. — Vocês estavam rindo. Vi até um abraço.

— Ele... está tentando fazer o certo — disse ela com paciência, sem olhar para ele ainda. — Disse que não seria justo, nem comigo, nem com a Raven, se fingisse que não sabia o que estava fazendo. Tá começando a entender que as ações dele têm consequências. Isso importa. Ele tá tentando mudar.

Bellamy bufou, desviando o olhar.

— Você tem certeza que ele desistiu mesmo? Porque da última vez que isso aconteceu, vocês passaram o dia inteiro sumidos. E a madrugada também.

Clarke parou de mexer nas coisas. Endireitou-se, virou-se de frente para ele, os braços cruzados — como espelho da postura dele. Um sorriso brincava no canto dos lábios.

— Você tá com ciúmes, Bellamy Blake?

Ele soltou uma risada seca, se afastando da parede e se aproximando. Parou a poucos centímetros dela, os olhos escuros nos dela.

— Eu tenho motivos pra estar com ciúmes?

Ela ergue uma sobrancelha, não recuando nem um milímetro.

— Se você tem... então talvez eu também devesse ter, não? Já que, da primeira vez, eu encontrei não uma, mas duas garotas seminuas na sua barraca quando fui te procurar.

Bellamy deu um passo a mais, como se o jogo fosse físico agora — de equilíbrio, de provocação, de tensão.

— Tem motivos pra ficar zangada, princesa?

Clarke sorriu, um sorriso que carregava ironia, lembrança e algo mais profundo — algo que nem ela queria nomear ainda.

— Tem motivos pra ficar com ciúmes, Bellamy?

Ele susteve o olhar por um segundo longo demais, então deu aquele sorrisinho clássico, um que só ela conhecia direito.

— É claro que não, princesa.

Ela assentiu com uma calma controlada.

— Ótimo.

Por um instante, ficou tudo em silêncio.

Só a respiração dos dois e o som abafado do acampamento lá fora preenchiam o ambiente.

Seus olhares intercalavam entre os olhos e os lábios um do outro.

E logo a pequena e quase inexistente distância entre eles se tornou muito notável .

As suas respirações ficaram mais tensas, como se até isso pudesse quebrar aquele feitiço.

Até que ambos escutaram a risada alta de um grupo de crianças passaram pelo corredor atrás da porta, e Bellamy desviou o olhar, disfarçando um tosse .

Clarke abaixou os olhos, passando os dedos distraidamente sobre um frasco na mesa.

Bellamy hesitou, como se fosse dizer algo mais — mas apenas soltou um leve suspiro e se virou para sair.

Antes de fechar a porta, olhou por cima do ombro. — Se precisar de algo... qualquer coisa, me chama. Eu tô por perto.

Clarke só assentiu, o rosto meio sombreado pela luz amarela da lâmpada.

 

**

 

》Espaço- Orbita da terra...

Tudo estava em silêncio.

Não o silêncio técnico das máquinas desligadas, mas um silêncio quase solene — como se até o espaço ao redor segurasse a respiração.

Raven conferia os últimos indicadores com os dedos trêmulos.

Pressão atmosférica interna: instável, mas aceitável.

Isolamento térmico: comprometido, mas funcional.

Oxigênio: limitado. Coração: disparado.

Ela ajustou as travas, apertou os cintos com firmeza, e então, cuidadosamente, afivelou o capacete.

Seus olhos percorreram cada botão, cada tela, cada indicador de falha piscando em laranja — quase todos piscando.

Respirou fundo.

A mão pousou sobre a alavanca de ejeção.

O pingente de corvo balançava preso no regulador de pressão, girando lentamente. Ela pousou os olhos nele por um segundo longo, como se fosse sua última âncora.

—Por favor... que dê certo.

As palavras saíram em sussurro, como prece, como ordem, como necessidade.

Então puxou a alavanca com toda a força que tinha.

BZZZZT-THUD!

A cápsula estremeceu, os propulsores externos roncaram, e a gravidade artificial começou a falhar — um prenúncio do mergulho que viria.

Raven sentiu a vibração tomar o corpo, o peito preso ao banco pela força da aceleração. Seu olhar subiu, atravessando o visor do capacete, fixo na pequena escotilha acima de si.

Estava deixando tudo para trás.

E mesmo assim, não se sentia sozinha.

Pensou em Finn, seu sorriso torto, sua voz calma que prometia liberdade em um mundo feito de grades.

Pensou em Abby, na forma como ela a olhou nos olhos e disse "Você consegue", com mais fé do que qualquer outro jamais teve.

Pensou em Clarke, a filha de Abby, e na responsabilidade que carregava de levar uma mensagem. Uma promessa.

Um recomeço.

Raven fechou os olhos e sussurrou dentro do capacete:

— Eu vou chegar lá. Eu juro que vou.

E a cápsula rompeu o espaço, iniciando sua queda ardente em direção à Terra.

 

**

 

》 Terra- Bunker Militar, Setor Externo das Plantações...

A noite caía devagar, mas o céu ainda ardia com as luzesde centenas de estrelas, refletindo sobre os rostos jovens reunidos no espaço aberto entre as plantações e o velho heliporto improvisado.

O buraco no teto deixava entrar o frescor do vento e os últimos raios do sol, fazendo cintilar as pequenas fogueiras que os adolescentes tinham acendido com cuidado.

Havia música.

Improvisada, é claro. Batucadas com latas, palmas ritmadas, vozes afinadas o suficiente para cantar algo que lembrava uma canção de ninar misturada com um canto de guerra.

Alguns dançavam. Outros riam, enrolados em cobertores, dividindo frutas secas e histórias irreais sobre o que havia do outro lado da floresta.

Casais se aconchegavam, amizades floresciam. Pela primeira vez em dias, o medo não era o convidado principal.

Até que...

— Olha lá! — gritou um garoto, apontando para o céu aberto. — Uma estrela cadente! Rápido, faz um pedido!

Vários riram e olharam para cima.

A princípio, era só um risco de luz cortando o céu. Mas em segundos, o brilho suave virou uma trilha flamejante.

O ar mudou.

O clima de festa silenciou.

— Isso não é uma estrela cadente... — murmurou Monty, se levantando devagar.

— Tá pegando fogo... — disse Octavia, olhando com os olhos arregalados. — Isso é... é uma cápsula!

Clarke e Bellamy trocaram um olhar rápido e intenso.

Já sabiam.

Tinha chegado a hora.

Era ela.

Raven.

Notes:

Então é isso , me digam o que acharam, eu provavelmente estarei vindo postar um novo capítulo, ou a segunda parte desde , na sexta-feira. Beijos e até lá <3

Chapter 9: "Enquanto Ainda Há Tempo"

Summary:

Neste capítulo, os ecos de escolhas passadas se cruzam com as decisões urgentes do presente. Na Terra, Clarke corre contra o relógio para evitar um massacre silencioso nas estrelas. Na Arca, homens e mulheres comuns fazem o impossível: oferecem o que têm de mais precioso — suas próprias vidas — para proteger os que amam.

Notes:

Passando para avisar que o final do capítulo 5, o início do capítulo 6 e algumas partes do capítulo 7 foram reescritas porque percebi um furo na narrativa, se quiser podem ir lá conferir ,mas basicamente o Monty foi mecher nas pulseiras e acabou fritando todas ,como aconteceu na série original.

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

》Terra- Bunker Militar, Setor Externo das Plantações

Antes mesmo que Bellamy e Clarke pudessem processar o que tinha acontecido e pudessem reagir, o burburinho cresceu.

— É a Arca! Eles vieram nos buscar!
— Foi um ataque! Eles estão nos atacando!
— A gente vai ser preso de novo?!

— SILÊNCIO! — gritou Clarke, sua voz como um trovão cortando o tumulto. O eco da autoridade reverberou no concreto.

O silêncio caiu pesado, nervoso.

Clarke deu um passo à frente, com a postura firme de quem não ia permitir mais pânico.

— Isso não foi um ataque. Isso foi uma cápsula de transporte. Alguém foi enviado da Arca. Isso... isso é bom.

— Bom? Eles vão prender a gente! — murmurou alguém.

— Escutem. — Clarke respirou fundo. — A Arca está ficando sem oxigênio. Vocês sabem disso. Vocês viram os dados. Se eles não souberem que a Terra é habitável, eles vão começar a sacrificar pessoas inocentes — mães, irmãos, avós — tudo para que os mais fortes sobrevivam um pouco mais.

A multidão agora estava quieta. Alguém engoliu em seco.

— Se essa cápsula chegou... então talvez eles tenham começado a ouvir nossos sinais. Talvez tenham acreditado. Ou talvez ainda não saibam de nada, e essa seja nossa chance de mostrar.

— Mostrar que estamos vivos. Que estamos bem. Que a Terra é nossa casa de novo.

Bellamy cruzou os braços, ao lado dela.

— Seja quem for que esteja naquela cápsula, vai precisar de ajuda. Então a gente vai esperar até o amanhecer.
Quando estiver claro e seguro, vamos até lá.

— E se forem inimigos? — questionou Murphy, desconfiado.

— Então a gente lida com isso juntos. — disse Clarke, com firmeza.

Bellamy assentiu, e pela primeira vez em muito tempo, todos aceitaram a decisão sem resistência.

A tensão foi cedendo devagar. As fogueiras continuaram acesas, mas ninguém cantava mais.

No fundo do céu, a trilha da cápsula ainda brilhava como uma cicatriz de esperança.

 

**

 

》Terra-Pátio do Bunker Militar, antes do amanhecer

O céu ainda estava escuro, mas uma brisa morna já anunciava a aproximação da alvorada. A luz das tochas e dos faróis improvisados iluminava o pátio externo do bunker, onde Bellamy e Clarke se movimentavam com precisão.

Mochilas sendo abastecidas. Ferramentas revisadas. Armas conferidas. Cada gesto revelava a tensão contida de quem sabia que estava prestes a mudar o rumo da história — de novo.

Finn testava a lanterna e checava seu canivete com a agitação de quem queria mostrar serviço, enquanto Wells dobrava cuidadosamente o mapa, com a concentração de alguém que não queria falhar.

Foi quando Octavia apareceu, cruzando os braços ao se aproximar.

— Vocês não deviam ir agora? Lá fora ainda pode ser perigoso. E se os terrestres atacarem?

Bellamy nem parou de amarrar a alça da mochila ao responder, com a voz calma, mas firme:

— Eles não vão atacar, O. Se quisessem fazer isso, já teriam feito quando a gente chegou aqui. Eles estão só observando... aprendendo com a gente. Mas sair agora, no escuro? Isso sim seria estúpido. Esperar pelo amanhecer é mais seguro pra todo mundo — inclusive pra quem está naquela cápsula.

Octavia não pareceu satisfeita, mas relaxou os ombros.

— Tá... então, quando amanhecer, a gente vai.

Bellamy se endireitou, olhando para ela com seriedade.

— Você não vai.

Ela franziu a testa, indignada.

— O quê?! Por quê?

— Porque eu preciso que você fique aqui. Alguém tem que ajudar a manter a calma, cuidar das coisas, proteger o acampamento se algo der errado. Eu preciso confiar em alguém aqui dentro — e esse alguém é você, O. Mas, por favor... fica dessa vez.

A súplica contida na voz dele foi o que a desarmou. Ela queria gritar, queria insistir. Mas havia algo na forma como ele a olhava — não como sua irmãzinha escondida sob o assoalho, mas como alguém em quem ele confiava de verdade.

Ela bufou e virou as costas.

— Isso não vai durar pra sempre, Bell.

— Eu sei — respondeu ele, suavemente.

Do outro lado, Clarke observava com um olhar de quem sabia melhor, e sabia mesmo , Octavia nem imaginava mais Bellamy estava garantindo que o encontro dela com o Lincoln aconteceria. Ela então se agachou diante de Charlotte, que observava tudo com olhos arregalados.

— Charlotte, eu quero que você fique com o Monty e a Harper hoje, tá bom? Eles vão cuidar de você. Fique perto deles.

— E se vocês... não voltarem? — sussurrou a menina, apertando a barra da blusa.

Clarke colocou uma mão sobre o ombro dela, sorrindo com doçura.

— Nós vamos voltar. Só vamos ver quem veio naquela cápsula. Pode ser alguém importante. Pode ser... esperança.

Ela puxou Charlotte para um abraço breve, e a menina assentiu, com relutância, indo na direção de Monty.

Um tempo depois, quando os raios de sol começaram a ameaçar aparecer, no meio do pátio, Bellamy e Clarke se encontraram com um aceno silencioso.

Não precisavam de palavras. Tudo que havia entre eles — desde o que foi dito até o que ficou suspenso no ar — ainda estava ali.

Mas no olhar de ambos havia algo mais forte do que o constrangimento: cumplicidade.

Estavam prontos. Juntos.

Bellamy passou os olhos pelo grupo, agora completo. Finn, com um sorriso nervoso. Wells, sério e preparado. Clarke, forte como sempre.

Ele assentiu.

— Vamos.

E juntos, os quatro desapareceram na sombra que restava antes da manhã.

 

**

 

》Terra – Floresta alguns minutos antes do amanhecer, dia 14...

O grupo avançava em fila pela trilha irregular, as sombras das árvores oscilando sob a luz pálida do céu que lentamente começava a clarear.

O silêncio era preenchido apenas pelo som dos passos e pelo leve tilintar dos equipamentos que traziam amarrados ao corpo.

Wells, curioso, mantinha o olhar no horizonte, acompanhando o brilho ainda fraco que parecia aumentar no céu.

— Você acha que isso pode ser algum tipo de cápsula da Arca? — perguntou, virando-se brevemente para Finn, que caminhava ao seu lado.

Finn deu de ombros.

— Pode ser... Mas também pode ser um pedaço da nave principal. Ou... sei lá, uma cápsula de lixo.

Wells riu, um pouco nervoso.

— Uma cápsula de lixo pegando fogo?

— Tá, talvez não — Finn admitiu, coçando a nuca. — Mas seja o que for, caiu bem perto. E caiu de verdade.

Wells concordou em silêncio. Era a primeira vez que via algo da Arca se aproximar tão nitidamente desde que chegaram ao solo, mas uma parte dele queria acreditar que havia esperança.

Enquanto os dois seguiam na frente, Bellamy e Clarke vinham logo atrás. Ela mantinha o olhar atento na trilha, mas o silêncio dele a fez desviar os olhos por um instante.

— Você tá quieto — ela comentou.

Bellamy hesitou antes de responder.

— Na primeira vez... foi aqui que tudo começou a desandar — disse, a voz baixa. — Quando o rádio foi cortado.

Clarke o olhou, surpresa com a sinceridade.

— Você acha que vai ser diferente agora? — ela perguntou.
Ele deu um meio sorriso, cansado.

— Já é. Com eu não cortando o rádio. Ainda estamos conectados.

— E você também não está escondido atrás de um plano maluco para se proteger — Clarke disse suavemente, seus olhos buscando os dele. — Você está aqui. Comigo.

Ele soltou um suspiro, quase imperceptível.

— Eu tô tentando fazer certo dessa vez.

— E tá conseguindo — ela garantiu, tocando levemente o braço dele. — O rádio ainda está transmitindo. Talvez alguém lá em cima tenha ouvido. Talvez essa cápsula seja a prova.

Os dois se entreolharam por um momento. Era pouco, mas era mais do que haviam tido na primeira vez. Mais do que qualquer um sabia.

 

**

 

O mato começou a rarear, e Clarke foi a primeira a ver o brilho metálico refletindo entre as árvores.

— Ali! — exclamou, o coração disparando.

Antes que qualquer um conseguisse reagir, ela disparou pela trilha molhada, os galhos raspando contra os braços e o orvalho grudando na pele. Quando os outros três chamaram seu nome, ela já estava longe.

A cápsula jazia parcialmente enterrada no solo, envolta por marcas de fogo e vapor, ainda soltando calor e fumaça pelos vincos.

Clarke correu até ela, apoiando as mãos na lateral, sentindo a vibração morna do metal. Com esforço, forçou a trava até abrir a escotilha.

Lá dentro, entre cintos de segurança e cabos soltos, estava Raven Reyes, desacordada, pálida e com a respiração fraca. Clarke se inclinou rapidamente, tocando no ombro dela.

Os olhos da engenheira se abriram de súbito, assustados, e ela engasgou com o ar, tentando se situar.

— Eu consegui...? — sussurrou, os olhos marejados.
Clarke assentiu, sorrindo com força.

— Você conseguiu. Tá na Terra.

Com sua ajuda, Raven saiu da cápsula com passos lentos e cambaleantes.

Ainda fraca, ela inspirou fundo, levantando o rosto para o céu.

A garoa fina começava a cair entre as nuvens escuras do amanhecer.

Clarke observou, silenciosa, enquanto Raven removia o capacete e, logo depois, a roupa pesada do traje espacial.

A engenheira agachou-se por instinto e encostou a mão no solo úmido.

— Isso é...? — murmurou, quase em reverência.

— Chuva — respondeu Clarke, quase num sussurro. — Bem-vinda de volta.

Nesse momento, passos e vozes vieram correndo por trás.

Finn surgiu no meio dos arbustos e estacou ao ver Raven ali, viva, diante dele.

— Raven?

Ela ergueu o olhar e sorriu, como se o mundo inteiro tivesse se encaixado de novo.

— Finn!

Raven correu para ele e se jogou em seus braços, o impacto abafando qualquer outra emoção.

O beijo que seguiu foi longo, intenso e cheio de alívio, como se ambos tivessem sobrevivido a guerras diferentes e finalmente se encontrado.

— Você tá aqui? Você ta vivo?!— ela perguntou, as mãos tocando o rosto dele, como se tivesse medo de estar sonhando.

— É claro que tô aqui e sim estou vivo.— respondeu Finn, rindo nervoso. — Isso é loucura!

— Eu faria loucuras muito maiores por você — disse ela, e o beijou de novo.

Bellamy observava em silêncio, parado ao lado de Clarke.

Os olhos fixos no casal à frente, mas os dedos hesitantes.

— Isso aconteceu da primeira vez também? — perguntou, num tom quase imperceptível.

Clarke demorou um segundo para responder, mas quando respondeu, foi apenas com um leve:

— É.

Sem dizer mais nada, Bellamy se aproximou, e seus dedos roçaram os dela.

Quando ela não recuou, ele entrelaçou a mão na dela com firmeza.

Ambos olharam adiante, mas o gesto dizia tudo: estavam juntos. Em tudo.

 

**

 

O reencontro entre Raven e Finn ainda pairava no ar como uma névoa quente quando ele a encarou com os olhos brilhando, perguntando, surpreso:

— Mas... como você chegou aqui?

Raven deu um sorriso cansado, mas orgulhoso.

— Ah, lembra daquele monte de sucata que você adorava ignorar no setor de manutenção?

Finn piscou, confuso. — Você reconstruiu... isso... com sucata?

— É — ela deu de ombros, o tom provocativo. — Não é como se fosse difícil. Só precisei de umas pecinhas... e um pouquinho de amor.

Os dois riram juntos, o momento se aquecendo entre olhares cúmplices.

Mas então Raven cambaleou.

— Uou! — exclamou Wells, correndo até ela. — Você precisa sentar.

— Você tá sangrando — murmurou Finn, a voz tensa, notando a mancha escura se espalhando pela lateral do traje dela.

Apressados, sentaram-na numa pedra próxima enquanto chamavam por Clarke que se ajoelhava na frente dela, rasgando uma parte do traje e derramando um pouco de água no ferimento.

Raven piscou, reconhecendo a loira pela primeira vez.

— Clarke? Clarke Griffin?

Clarke assentiu, concentrada em estancar o sangramento.

— Sou eu.

Raven respirou fundo, com dificuldade, e olhou nos olhos dela.

— Isso... isso é tudo por causa da sua mãe.

Clarke parou. O nome pesou no ar como uma rocha.

— Minha mãe?

— Abby — disse Raven. — Ela que planejou tudo. Nós... nós planejamos vir juntas. Mas... — Raven engoliu em seco — não havia tempo.

Wells se inclinou à frente, tenso.

— Não havia tempo pra quê?

Raven apertou os olhos, lutando contra a dor.

— O conselho... eles estavam voltando da reunião. Eles vão sacrificar 300 pessoas. Hoje. Pra tentar poupar oxigênio. Nós... viemos avisar que vocês estão vivos, que a Terra é habitável. Mas... — ela gemeu, apoiando o corpo no ombro de Finn — temos que avisar agora. Eles precisam saber.

Todos se entreolharam por um segundo — o silêncio do pânico e da urgência. Então correram para a cápsula onde Bellamy ainda observava, vigilante, apoiado na lateral metálica, a expressão dura.

Quando os outros se aproximaram, ele se virou, mas não perguntou nada. Apenas estendeu o rádio rudimentar que havia recuperado da cápsula e entregou o microfone para Raven.

Ela tentou. Várias vezes. Ajustou botões, mexeu em fios, trocou peças, gritou pelo canal.

— Aqui é Raven Reyes, estou na Terra, me escutam? Estão vivos! Por favor, respondam! É urgente!

Só estática. Um chiado abafado. Ruído e mais ruído. O rádio cuspia sons incompreensíveis, uma cacofonia de frequências perdidas.

Raven começou a ficar pálida de frustração. Finn tentou ajudá-la, Wells tentava captar alguma coisa. Clarke se aproximou para checar os circuitos, mas antes que ela dissesse algo, Bellamy explodiu.

— Merda! — Ele chutou a lateral da cápsula com força, o metal ecoando alto na clareira. Depois passou as mãos pela cabeça e se afastou, os olhos fixos no chão, andando em círculos.— Droga!!

Clarke correu até ele, pousando a mão em seu ombro.

— Calma, Bellamy... vai dar certo, vamos descobrir um jeito.

Ele não respondeu de imediato, o maxilar trincado.

Foi quando, mais atrás, Raven se endireitou, ainda sentada, e olhou para ele com mais atenção.

— Bellamy...? Bellamy Blake?

O silêncio caiu como uma pedra. Todos olharam de volta para ela.

Os olhos de Bellamy se estreitaram, os ombros tensos.

Raven ainda não sabia, mas aquele nome, pronunciado ali, trazia mais do que apenas identificação. Trazia consequências.

Clarke respirou fundo, como quem segura o mundo nas mãos.

 

**

 

O silêncio ainda pairava no ar depois da pergunta de Raven. O nome Bellamy Blake ecoava na mente de todos ali, como se estivesse carregado demais.

Ele encarou todos à frente, os olhos fixos. O vento frio cortava entre as árvores.

— Sou eu. — disse Bellamy, a voz firme.

Raven arqueou uma sobrancelha, surpreendida com a resposta direta.

— Uou... — soltou. — Surpreendente ver você tão empenhado em restabelecer contato com a Arca. Alguém pensaria que, depois do que você fez, queria a maior distância possível deles.

Finn franziu o cenho. — Espera... o que ele fez?

Raven hesitou por um segundo, olhando para Bellamy e depois para o grupo.

— Ele... ele é procurado por atirar no Chanceler.

O baque caiu como uma rocha.

Wells parou no mesmo lugar, o rosto congelado. — Você atirou no meu pai?

Bellamy virou lentamente para encará-lo.

— Sim. Eu atirei nele.

A tensão aumentava a cada segundo, mas Bellamy não desviou o olhar.

— Eu não podia simplesmente quebrar alguma coisa ou fazer uma revolta pra ser preso e jogado no dropship. Se fizesse isso, só ia ser flutuado. Eu precisava estar aqui, precisava entrar naquela nave com minha irmã. Então... falei com alguém. E me deram uma missão. Se eu fizesse isso, me colocariam no dropship. E o trabalho era esse.

Ele deu um passo à frente, a voz baixa, mas cheia de convicção.

— Foi um tiro horrível porém. Eu nem tava olhando pra ele. E sei que uma doutora como a Dra. Griffin conseguiria salvar a vida dele. Sei que isso não justifica mas eu não queria matá-lo.

Wells continuava olhando fixamente, tentando digerir.

— Você não se arrepende, não é?

Bellamy balançou a cabeça.

— Não, Wells. Eu não me arrependo. Se eu pudesse voltar no tempo para aquele momento em específico, faria exatamente a mesma escolha. Eu não sou um assassino... mas sou alguém que faria qualquer coisa pra proteger quem eu ama. — Os olhos dele se moveram sutilmente na direção de Clarke.

Finn, Wells e Raven seguiram o olhar dele. E os meninos pensaram na mesma coisa: Octavia e Clarke.

Clarke também olhava para o chão, pensativa, com a mandíbula apertada. Ela sabia o que aquilo significava. Sabia exatamente como se sentia.

Wells finalmente suspirou. Ele pensou em tudo: como Bellamy sempre cuidava de Octavia, como assumiu responsabilidades que ninguém pediu, como nunca o tratou mal, mesmo sendo filho do homem que flutuou sua mãe e prendeu sua irmã... e a Clarke, se levarmos em conta os rumores do acampamento.

Ele ergueu os olhos.

— Ok... obrigado pela sua honestidade.

Bellamy soltou um meio sorriso e, com um gesto inesperado, bagunçou o cabelo de Wells.

— De nada, campeão.

Wells revirou os olhos, mas não conteve o riso. A tensão se quebrou um pouco.

— Vocês estão de brincadeira, né? — disse Raven, olhando de um pro outro. — Ele atirou no estômago do Chanceler! Perfuração direta. E vocês chamam isso de tiro ruim? E sim ele sobreviveu, mas será que realmente podemos chamar isso de "não querer matar"?

Finn cruzou os braços e riu.

— Pra Bellamy, isso foi um tiro ruim. Eu vi ele acertar uma pantera em movimento, entre os olhos, a dez metros de distância.

Clarke riu com o canto dos lábios. Wells balançou a cabeça, dando risada.

Raven, incrédula, levantou as mãos, mas não tinha mais argumentos. O momento finalmente tinha desarmado a tensão.

Clarke respirou fundo, e então voltou ao foco:

— Ok. A gente pode voltar pro Dropship. Talvez o Monty consiga usar as peças da nave pra consertar o rádio. Ainda dá tempo de avisar a Arca.

Bellamy assentiu. Finn passou o braço ao redor de Raven, ajudando-a a se levantar com cuidado. Wells já estava caminhando na frente. O grupo se afastou juntos, entre os galhos da floresta e a névoa da madrugada.

 

**

 

》Arca- Cela de Abby, Piso Solitário, dia 14...

A luz fria e constante da Arca lança sombras pálidas sobre as paredes metálicas.

Abby está sentada no chão, encostada na cama da cela onde antes Clarke passou tantos dias. Seus olhos vagueiam pelos desenhos à mão ainda visíveis nas paredes — riscos infantis, fragmentos de sonhos, rabiscos de esperança. Cada linha parece uma lembrança viva da filha.

O silêncio é interrompido pelo som da porta se abrindo com um chiado mecânico seco. Um sargento entra, rígido, a voz formal:

— Presente-se para o canto da cela.

Abby se vira com calma, sem se levantar, os olhos firmes.

— Recebemos notícias da Raven?

O sargento não responde. Apenas dá espaço para que Thelonious Jaha entre logo atrás, carregando uma maleta prateada em uma mão e um tablet na outra. O rosto dele está abatido, os olhos cansados.

— Sargento... nos deixe a sós.

O guarda hesita por um segundo, depois obedece e fecha a porta.

Jaha estende o tablet para Abby em silêncio. Ela se levanta devagar, pega o aparelho e analisa os gráficos. Os olhos se estreitam.

— Condições de ar. Níveis de oxigênio... — ela murmura. — O carbono está nas alturas... o metano também. Isso é alarmante.

— Pessoas já estão apresentando sintomas sérios.
Cegueira momentânea, alucinações, dores de cabeça. Alguns estão desmaiando nos corredores. — Jaha fala num tom neutro, mas cada palavra carrega o peso do desespero.

Abby fecha os olhos por um instante. — Déficit de oxigênio. Eu sei exatamente como eles se sentem. — Um sussurro de culpa, de impotência.

— Temos notícias da Raven? — ela repete, com urgência.

Jaha não responde. Em vez disso, ele abre a maleta e retira um pequeno respirador portátil. Estende para ela.

— Abby... use isto. Está saturado. Vai ajudá-la.

Ela balança a cabeça, firme. — Não. Eu não vou tirar mais do que a minha parte.

— Abby, pessoas estão sofrendo agora. Você é médica. Você pode ajudá-las se estiver bem.

Ela o encara. — E isso é só o começo, não é? O primeiro passo para decidirmos quem vive e quem morre.
Jaha respira fundo. Os ombros dele pesam como se estivessem carregando toda a Arca.

— O Conselho votou. Esta manhã. Foi unânime. Vamos seguir com o plano do Kane.

Abby dá um passo para trás, como se tivesse levado um golpe físico.

— Quantas pessoas? — A voz dela treme.

— Trezentas e vinte. — A resposta sai engasgada. — Serão sedadas... para poupar oxigênio.

Ela solta o tablet no colchão, os olhos se enchendo de raiva e incredulidade.

— Não, Thelonious. — O tom agora é cortante. — Trezentas e vinte pessoas vão ser assassinadas.

Ele hesita. — Eu fui contra. Mas não fez diferença.

— Você podia ter adiado. Podíamos ter esperado. Ainda não sabemos se a Terra é segura. Não recebemos confirmação da Raven.

Jaha fecha os olhos por um segundo.

— Você mandou uma criança... num caixão de metal. Sem dados suficientes. Apenas com a esperança de que você estivesse certa. — A voz dele agora quebra. — A confiança dela em você a matou. Do mesmo jeito que matou meu filho. Sua filha.

As palavras caem como chumbo entre os dois. O silêncio retorna, desta vez mais pesado.

Jaha estende novamente o respirador. — Tome. Pessoas estão sofrendo. Você pode ajudá-las.

Abby olha para o aparelho, depois para o rosto dele.

Com mãos trêmulas, ela pega o respirador e o leva devagar ao rosto. Quando inspira, os olhos se enchem de lágrimas. A dor, a culpa e o peso da responsabilidade a sufocam mais do que a própria falta de ar.

 

**

 

》Arca- Enfermaria da Arca — Piso Médico, Nível 2

A enfermaria está lotada, abafada, com um zumbido baixo de máquinas lutando contra o tempo. O ar parece mais pesado que o normal — não é só pela atmosfera rarefeita, mas pela preocupação silenciosa de todos ali.

Abby está ajoelhada à frente de uma pequena maca, com uma lanterna numa mão e uma pasta de exames na outra.

À sua frente está Jace, uma menina magrinha, de apenas 9 anos, com olhos curiosos e inquietos — embora agora, um deles esteja coberto por um tampão.

— Vamos lá, Reese — diz Abby suavemente. — Olha aqui pra mim. Que cor é essa?

Ela mostra uma ficha com uma mancha grande e colorida.

— Roxo! — responde a menina, animada.

— Muito bem. E agora? — Abby troca o cartão.

— Verde... acho. Um verde estranho.

Abby faz uma pequena anotação, depois troca o tampão de olho com cuidado.

— Agora o outro. Pronta?

— Pronta!

Abby mostra uma nova ficha.

Silêncio.

— Reese?

— Uhm... não tem nada aí. — A voz da menina murcha. — Tá tudo escuro desse lado.

Abby respira fundo, tentando manter o rosto sereno.

— Ok. Eu vou te mostrar uma luz agora. Me avisa se conseguir ver qualquer coisa, tudo bem?

Ela liga a lanterna, apontando-a cuidadosamente para o olho descoberto da menina.

— Já tá mostrando?

A lanterna já está acesa há alguns segundos.

Abby desliga e fecha os olhos por um momento.

— Terminamos por hoje. Que tal ir ali encontrar sua mãe enquanto eu falo com seu pai?

— Tá bom. — diz Jace, pulando da maca e indo embora com passinhos leves, inconsciente do peso que acabara de lançar no ar.

O pai se aproxima, preocupado.

— Então? Ela tá pior? O ar... nunca esteve assim, não é?

Abby guarda a lanterna lentamente. A voz dela sai controlada, mas baixa:

— Está piorando. A perda de oxigênio está afetando o sistema nervoso. Ela está com degeneração no nervo óptico.

— Mas vocês vão consertar, né? O ar? Vocês sempre consertam. — A voz dele é mais um pedido desesperado do que uma afirmação.

Abby ergue os olhos lentamente.

— Eu espero que sim.

— Não! — ele bate com a mão na beirada da maca. — Ela só tem nove anos! O que vai ser de uma criança cega num lugar como esse?

Abby permanece firme. — Ela é forte.

O pai a encara. Os olhos vermelhos dele se enchem de lágrimas.

— Ela não precisava ser. — Ele sai, levando junto o peso de cada palavra.

Abby fica imóvel por um instante, até que escuta passos suaves atrás dela.

Jackson surge, com a prancheta na mão, hesitando.

— Abby? Você tá bem?

Ela engole em seco, depois murmura:

— Acabei de examinar uma criança que está ficando cega por falta de oxigênio, Jackson. Então não... não, eu não tô bem.

Ele a encara, com pesar.

— Vamos precisar do seu melhor.

Abby dá uma risada seca, sem humor.

— O meu melhor não é o que essas pessoas precisam. A Terra é a única chance que temos. O único jeito de salvá-los.

Ela o encara. — Por que você não está no rádio tentando contato com a minha filha?

— Abby, olha em volta — diz ele, apontando a enfermaria lotada. — Tá tudo sobrecarregado. Eu deixei o rádio em automático. Se houver qualquer sinal, a gente vai ouvir.

Abby fecha a prancheta, firme.

— A enfermaria é minha. Cuido daqui. Você volta pro rádio. A gente precisa da Terra, Jackson. Só a Terra pode salvar essas pessoas.

Jackson apenas assente, entendendo. Ele sai rapidamente.

Abby se vira, limpando discretamente uma lágrima antes que outra criança entre.

 

**

 

》Arca- acomodações do Chanceler, por volta das 8h...

O silêncio no interior das acomodações do Chanceler era absoluto, exceto pelo zumbido contínuo do sistema de ventilação, que agora parecia mais um lembrete cruel da escassez iminente.

As luzes ali não tremeluziram como em outros setores — não ainda —, mas o ar já carregava um gosto metálico estranho, como se até ele soubesse o que estava prestes a acontecer.

Marcus Kane mantinha a postura rígida diante da mesa de projeção, os olhos fixos nas informações que dançavam no holograma flutuante à sua frente. Gráficos, códigos de acesso, mapas da Sessão 17 — tudo avançava rápido demais.

O som da porta se abrindo quebrou o momento. Kane virou-se e encontrou Thelonious Jaha ali, o Chanceler da Arca, caminhando com passos medidos, como se cada centímetro do piso metálico pesasse toneladas.

— Trouxe a autorização final — disse Jaha, pousando um tablet prateado sobre a mesa. — A Sessão 17 será selada em três horas. Antes disso, o gás será liberado.

— Gás sonífero — corrigiu Kane automaticamente, ainda sem conseguir tirar os olhos do painel. — Para que todos durmam... sem dor.

— É o que dizemos a nós mesmos, não é? — murmurou Jaha, com um meio-sorriso sem graça. — Mas você e eu sabemos que não se dorme em paz quando é o ar que nos mata.

A tensão pairava entre eles como uma névoa espessa.

— Sessão 17 — disse Kane, tentando se manter no foco — é onde estão os trabalhadores de manutenção, as famílias dos decks inferiores...

— Exato — respondeu Jaha com simplicidade. — E são também os que menos protestarão. Os que menos têm voz.

Kane ergueu os olhos.

— Não pode estar falando sério.

— Estou. E é por isso que a última ordem não virá de mim.

Kane franziu a testa.

— Como assim?

Jaha respirou fundo, e naquele instante ele parecia menor não como chanceler, mas como homem. Como pai.

— Quando o momento chegar, eu estarei dentro da Sessão 17 — disse, com a voz firme. — Eu mesmo vou garantir que tudo esteja pronto. Que ninguém se machuque. Que tudo ocorra como planejado.

— O quê? — Kane recuou um passo, atordoado. — Você vai entrar lá dentro?

— É o mínimo que posso fazer. Depois de tudo... depois de enviar cem crianças para o solo... depois de silenciar médicos, engenheiros e mães de família em nome do “bem maior”... é o mínimo.

— Isso é suicídio.

Jaha apenas encarou o homem diante de si, e naquele momento não havia política, nem protocolos — só convicção.

— Quando as portas se fecharem, Marcus... a ordem final será sua.

— Eu não tenho essa autoridade.

— Terá. Como futuro Chanceler, você terá. Quando eu estiver lá dentro, quando for tarde demais... você apertará o botão. Você dará a ordem. E viverá com ela.

O silêncio caiu como uma sentença. Kane encarava o tablet como se fosse uma arma carregada. Em parte, era.

— Você está me pedindo para te matar — disse, num sussurro quase irreconhecível.

— Estou pedindo que você salve quem puder. E confio que, mesmo com o peso nos ombros, você será frio o bastante para fazer o que for necessário.

— Frio... — repetiu Kane, com amargura. — Isso é o que sou pra você?

— Não — disse Jaha, suavemente. — É isso que você precisa ser. Porque se vacilar, se hesitar... mais gente morre. É cruel. Mas é verdade.

Kane não respondeu. Seus olhos vagaram de Jaha para o reflexo do próprio rosto no metal escovado da parede.

— Marcus — disse Jaha, aproximando-se, mais calmo agora. — Você já viu o que acontece com líderes que se rendem ao coração em momentos como este. Abby acreditou demais. E agora está presa em falsas esperanças. Eu acreditei demais... e agora vou morrer com aqueles que confiaram em mim. Não cometa o mesmo erro.

Ele pousou a mão no ombro do homem à sua frente.

— Faça o que for necessário.

E então, sem dizer mais nada, virou-se e saiu, deixando Kane sozinho com o tablet, com a decisão, e com o peso irreversível do destino.

 

**

 

A sala do chanceler estava mergulhada em uma penumbra silenciosa, iluminada apenas pela luz fria de um monitor suspenso no canto e o brilho suave vindo de um tabuleiro de xadrez abandonado.

As peças estavam dispostas no meio de uma partida interrompida, e no canto da madeira gasta, uma inscrição quase apagada dizia: "Pertence a Wells Jaha."

Thelonious passava os dedos sobre o nome do filho, como se, com o toque, pudesse trazê-lo de volta. Era um gesto inconsciente, doloroso, quase piedoso — como quem pede perdão sem palavras. Seu olhar estava distante, fixo no passado.

A porta se abriu com um som seco.

— Me diga — a voz de Abby cortou o silêncio como um raio —, me diga que não é verdade.

Thelonious não se virou. Os olhos ainda fixos no tabuleiro, ele respondeu com um cansaço que não era só físico:

— Eu gostaria que muitas coisas hoje não fossem verdade.

— Ah, por favor, me poupe do discurso nobre — ela entrou com passos decididos, a raiva pulsando no tom da voz. — Você vai entrar na Sessão 17?

Ele assentiu levemente.

— Eu não pediria às pessoas que fizessem um sacrifício que eu mesmo não estivesse disposto a fazer.

— E vai deixar a humanidade nas mãos do Kane? — ela retrucou, incrédula. — Marcos Kane?

— Eu confio que Marcus fará o que for necessário para manter os outros vivos.

Abby soltou uma risada amarga.

— Isso é loucura. Nós podíamos ter feito mais! Você sabe disso!

— Já fizemos tudo o que era possível — retrucou ele, com uma calma ensaiada. — Não existia outra alternativa.

— Claro que existia! Existe! Você se acomodou nessa ideia de que já não dá mais tempo. Mas nunca tentou de verdade!

— Abby... acabou. — A voz dele soou mais baixa, mas definitiva. — Eu estou fazendo o que é necessário.

Ela o encarou em silêncio por um instante. E então, com um olhar que misturava mágoa e desprezo, disse:

— Você está fugindo.

Thelonious levantou lentamente os olhos para ela, mas não disse nada.

— Você diz que está fazendo o que é certo, o que é necessário... — continuou Abby, dando um passo mais perto. — Mas você está sendo um covarde.

Ela passou por ele, indo em direção à porta. Quando já estava com a mão na maçaneta, virou-se.

— Como você vai explicar isso ao Wells? — sua voz saiu mais baixa, mas cortante como lâmina. — Como vai olhar para o seu filho e dizer que tinha o poder de tentar salvar essas pessoas... e escolheu abandoná-las? Como vai explicar que nem tentou?

Jaha permaneceu parado, olhando para o tabuleiro. Não disse nada. Mas a rigidez do seu corpo denunciava o impacto das palavras.

Abby abriu a porta e saiu, batendo-a com força.

 

**

 

》Arca- acomodações da Abby...

A médica entrou rapidamente, respirando fundo como se precisasse se recompor antes de desmoronar. O quarto estava escuro, mas ela conhecia cada canto.

Abriu uma das gavetas laterais, puxou uma caixa metálica e de dentro dela, um pequeno pendrive prateado com o símbolo da Estação Alpha gravado embaixo.

Ela conectou o dispositivo ao terminal embutido na parede e recostou-se na cadeira.

A tela se iluminou, revelando o rosto de um homem sorridente, com os olhos intensos e a voz suave. Jack Griffin.

— Povo da Arca... meu nome é Jake Griffin. Eu sou engenheiro-chefe da Estação Alpha. E hoje, eu estou aqui para falar sobre o nosso futuro.

As imagens continuaram, mas Abby não ouvia mais com os ouvidos — ela ouvia com o coração.

Seu rosto se suavizou. Um pequeno sorriso surgiu nos lábios. E então, algo mudou em seu olhar.

Um plano se formava.

Ela não salvaria apenas os doentes da enfermaria.
Ela salvaria todos que ainda restavam vivos.

 

**

 

》Terra — Campo aberto entre a floresta e o Dropship.

As primeiras luzes do amanhecer filtravam-se por entre as copas das árvores, tingindo a paisagem de dourado e azul.

A relva ainda úmida sob os pés e o cheiro da noite chuvosa preenchiam o ar enquanto Bellamy, Clarke, Finn, Wells e Raven caminhavam de volta. O silêncio entre eles não era vazio — era carregado de pensamentos, expectativas, lembranças e tensão.

Raven ainda mancava levemente, mas se recusava a parar. Ela estava ali. Ela tinha chegado. E isso bastava.

Ao se aproximarem do campo onde o dropship havia caído semanas antes, viram uma silhueta curvada sobre um painel eletrônico improvisado, logo à entrada da rampa metálica. Monty.

— Monty! — Wells chamou, apressando o passo.
Monty levantou os olhos, surpreso. — Clarke? Bellamy? E…

— Essa é a Raven, longa história. — Bellamy respondeu, meio ofegante, dando um sorriso de canto. — Mas a parte boa é que ela trouxe peças de rádio.

Monty arqueou as sobrancelhas. — Vocês têm um rádio?

— Temos metade de um. — Raven respondeu, já se ajoelhando ao lado dele. — E eu apostaria que você pode me ajudar com a outra metade.

— Bom , eu sempre posso tentar — Monty respondeu, sorrindo.

Eles se reuniram em volta, e logo Harper surgiu ao lado com Charlotte, que correu para ficar ao lado de Clarke, trazendo uma caixa de ferramentas improvisada.

Clarke ajudou a apoiar os cabos, enquanto Finn e Wells mantinham vigia.

Rapidamente, os fios foram unidos, o terminal ajustado, e os sintonizadores ativados. Um chiado invadiu o ar, e então, por um instante breve e incrivelmente nítido, uma voz surgiu.

— Aqui é a Estação 1 da Ala Médica. Aqui é o Dr. Jackson. Estamos operando no modo automático. Alguém consegue ouvir?

Monty e Raven se entreolharam.

— É a Arca… — Raven murmurou, em choque.

Finn olhou para o rádio como se fosse algo sagrado.

Clarke deu um passo à frente.

— Aqui é Clarke Griffin. Estamos na Terra. Vocês estão me ouvindo? — ela apertou o botão de transmissão. Nada.
Bellamy assumiu o microfone em seguida.

— Aqui é Bellamy Blake. Vocês estão recebendo?

Raven tomou o rádio das mãos dele.

— Sou eu. Raven Reyes. Estou na superfície. Estou viva. Por favor, respondam.

Mas tudo o que veio em resposta foi o chiado. A voz de Jackson continuava surgindo intermitente, perguntando, chamando, sem jamais ouvir nada do outro lado. Era como falar com um fantasma.

Raven se ajoelhou ao lado do painel, analisando.

— O receptor tá funcionando. A gente consegue ouvir eles. Mas o microfone… tá morto.

Monty confirmou com um aceno. — O problema é na saída de transmissão. Não é no rádio — é no microfone mesmo.

Bellamy franziu o cenho. — Dá pra consertar?

— Vai dar trabalho. Mas sim — respondeu Raven ao lado de Harper, já se agachando ao lado deles.

Enquanto os três mergulhavam nas conexões e placas, Clarke se afastou levemente, parando diante do dropship, olhando para o céu ainda acinzentado.

Seus ombros tremiam imperceptivelmente. Não era a primeira vez que ela enfrentava isso. Falar com o vazio. Gritar e ser engolida pelo silêncio.

Ela passou seis anos sozinha, falando no radio com Bellamy sem jamais ser ouvida. Agora, ali estavam eles — de novo. Um rádio quebrado. Uma chance minúscula. Vidas em jogo.

Ela abraçou os braços, tentando conter a ansiedade, os flashes do passado invadindo seus pensamentos como trovões distantes. Ela apertou os olhos, respirando fundo.

E então sentiu algo. Um calor no ombro. Uma presença familiar.

Bellamy se aproximou por trás, colocando a mão em seu ombro com delicadeza. Ela virou levemente o rosto e o viu ao seu lado — firme, presente. Sempre presente.

— Nós vamos encontrar um jeito, princesa. — ele disse em voz baixa, olhando nos olhos dela. — Vamos consertar esse rádio. Vamos salvar aquelas pessoas. E vai dar tudo certo.

Ela não respondeu com palavras. Apenas assentiu, fechando os olhos brevemente. O peso daquele gesto — o conforto silencioso, a promessa velada — era tudo o que ela precisava naquele momento.

Ele entrelaçou os dedos aos dela devagar. Ela apertou de volta, com força. Com fé.

E ali, entre o céu cinza e o solo ainda úmido da madrugada, eles esperaram.

 

**

 

》Terra- Bunker Militar, por volta do meio dia...

Octavia andava de um lado para o outro no refeitório improvisado do bunker, as botas ressoando levemente no chão de metal. O lugar estava quieto, com poucos acordados àquela hora.

Alguns cuidavam das plantações, outros limpavam ferramentas ou dormiam mais um pouco, aproveitando a trégua da madrugada.

Ela tentava ajudar — pegava caixas, organizava suprimentos, limpava utensílios — qualquer coisa que a fizesse se sentir útil. Mas a frustração estava crescendo dentro dela como vapor preso sob pressão. Cada tarefa concluída só servia pra lembrá-la de que não estava com eles.

De que Bellamy a havia deixado pra trás.

De novo.

— Você tá bem, princesa subterrânea? — a voz de Murphy veio, debochada, enquanto ele a observava derrubar uma lata ao reorganizar um dos compartimentos.

Ela suspirou, não estava com paciência. — Cala a boca, Murphy.

— Olha, se for TPM, eu entendo. Mas se for birra de irmão mais velho, aí já virou drama demais. — Ele riu, achando que estava sendo engraçado.

Octavia parou. As mãos cerraram em punhos. Ela virou de uma vez só, o olhar faiscando.

— Você nunca passou metade da vida trancado num porão com medo de fazer barulho pra não ser descoberto. Você não sabe o que é ver a única janela pro mundo ir embora enquanto você é forçada a ficar. Eu não sou mais aquela garota que vocês todos tratam como criança.

Murphy ergueu as mãos, levemente surpreso. — Ok, calma. Só tava tentando aliviar o clima.

Ela bufou, a respiração descompassada, e saiu sem olhar pra trás, ignorando o chamado de alguém pedindo ajuda para mover caixas.

Ela saiu e foi dar uma volta na floresta aos arredores. O ar era mais fresco ali fora. A névoa rasteira ainda não havia se dissipado completamente, e o sol ainda era só uma promessa atrás das nuvens espessas.

Octavia caminhava entre as árvores, tentando encontrar algum alívio para a raiva que ainda ardia dentro dela. Pisava nas folhas molhadas, sentindo a liberdade sob os pés… ou pelo menos tentando.

Mas mesmo ali, mesmo na floresta aberta, ela ainda se sentia presa.

Presa às decisões do irmão.

Presa ao medo constante de ser deixada de novo.
Presa à imagem da garota escondida, que ninguém deixava ser livre de verdade.

Foi quando ela ouviu. Um estalo sutil de galho. Um farfalhar mais forte. Silêncio em seguida.

Ela congelou.

O coração acelerou.

A lembrança dos relatos sobre os Grounders — os Terrestres — invadiu sua mente. As pegadas que Bellamy mencionou. O ataque a Jasper. A flecha que ninguém viu chegar.

Ela se virou, olhos varrendo a mata. Nada.

— Tem alguém aí? — a voz saiu firme, mas havia uma leve hesitação no fundo.

Outro som. Mais perto. Um sussurro do vento... ou seria algo mais?

Ela deu um passo para trás, olhando ao redor. Mais um.
E então seu pé escorregou.

O chão sumiu sob ela.

Ela tentou se agarrar a uma raiz, a um tronco — qualquer coisa — mas tudo aconteceu rápido demais.

Ela rolou ladeira abaixo, folhas e pedras arranhando sua pele, até que o corpo foi bruscamente detido por uma elevação de terra. A cabeça bateu contra uma pedra encoberta por musgo, e tudo se apagou.

O silêncio da floresta voltou.

E Octavia ficou ali, imóvel, inconsciente, perdida entre as árvores que pareciam observá-la.

 

**

 

》Arca- corredores...

O som dos passos apressados ecoava pelos corredores metálicos, enquanto grupos de pessoas se deslocavam de um lado para o outro — médicos, engenheiros, civis.

A tensão estava no ar como uma corrente elétrica invisível. Os olhos carregavam olheiras. As bocas sussurravam incertezas.

De repente, as telas públicas espalhadas pelas paredes ganharam vida.

A voz calma, grave e firme de um homem rompeu o ruído abafado da rotina.

— “Povo da Arca...”

As pessoas pararam. Uma mulher deixou cair uma bandeja. Um mecânico interrompeu o aperto de um parafuso. Uma criança segurou a mão da mãe mais forte.

— “Eu sou Jake Griffin. Engenheiro-chefe da Estação Alfa. Hoje, eu venho falar sobre o nosso futuro.”

A imagem se espalhou por toda a nave. Canais de comunicação interna. Telas nas enfermarias. Telões nos refeitórios. Corredores, elevadores, hangares.

SALA DE REUNIÃO — MARCUS KANE

Kane girava algo entre os dedos, olhos fixos em uma prancheta de dados, quando um cadente entrou, ofegante.

— Senhor! Você precisa ver isso. — E entregou um tablet com a transmissão.

— De onde isso tá vindo? — perguntou Kane, erguendo-se de súbito.

— De todos os canais internos. Toda a Arca está vendo.
Kane apertou os lábios, reconhecendo a gravação. — Nunca devia ter deixado ela sair da cela... — murmurou, a voz sombria.

CORREDORES — VÁRIOS PONTOS DA ARCA

Jake continuava:

— “Essa cidade nas estrelas, que durante quase um século foi o nosso santuário... está fadada a perecer.”

As palavras caíam como marteladas silenciosas no coração dos ouvintes.

— “O sistema de oxigênio está falhando. E o tempo que nos resta é curto. Muito curto.”

Câmeras captavam expressões de espanto. Mães abraçavam filhos. Técnicos deixavam ferramentas de lado. Guardas trocavam olhares apreensivos.

EQUIPE DE SEGURANÇA EM MOVIMENTO

O som de botas correndo ecoava nas passagens de serviço. Um comandante gritava ordens. A localização da origem do sinal estava identificada.

— “Mas nós lutamos para que a humanidade prevaleça. Lutamos para que nossos filhos herdem não só a sobrevivência, mas também a esperança.”

— “E agora, eu peço a todos vocês que lutem por essa esperança. Que enfrentem este momento difícil juntos. Que não aceitem a escuridão como fim.”

SALA DE TRANSMISSÃO — INTERIOR DA ESTAÇÃO ALFA

A imagem de Jake desapareceu. E, em seu lugar, surgiu Abby Griffin, o rosto firme, olhos marejados, o crachá pendendo do jaleco branco.

Ela respirou fundo, encarando a lente. A voz era serena, mas carregada de dor e convicção.

— “Meu marido morreu tentando nos alertar. Morreu acreditando que nós ainda éramos capazes do melhor.”

Do lado de fora, dois guardas se aproximavam da porta reforçada.

— “Hoje, o Conselho, liderado por Kane, decidiu sacrificar 320 pessoas.”

— “Mas não são eles que decidem quem vive e quem morre.”

Os soldados apontavam as armas de pulso para os controles da porta. Abby sabia.

— “Essa decisão é sua. É nossa. Ainda há tempo de fazer a coisa certa.”

Ela apertou o botão. A tela escureceu. O silêncio tomou a sala.

No mesmo instante, a porta se abriu com um estalo seco.
Marcus Kane entrou.

Os olhos dele se fixaram nela — a mulher que ele havia julgado, ameaçado e tentado controlar — e encontrou alguém que, apesar de tudo, ainda não havia se curvado.

Abby o encarou, sem desviar. O ar parecia denso. Nenhuma palavra foi dita.

Mas naquele instante, a batalha silenciosa entre esperança e pragmatismo já estava declarada.

 

**

 

》Terra- acampamento dropship...

O silêncio na tenda improvisada ao lado da torre do dropship era cortado apenas pelo som de fios sendo conectados, ferramentas tilintando contra metal e o leve zumbido dos circuitos do rádio parcialmente remontado.

Monty estava suado, com a testa franzida em pura concentração, os dedos manchados de graxa. Harper segurava uma lanterna torta, tentando manter a luz firme sobre a parte traseira da carcaça aberta do rádio.

Do outro lado, Raven ainda ajeitava a articulação interna da peça, forçando suavemente uma solda improvisada.

— Monty... — murmurou ela, sem tirar os olhos do circuito.
— Tenta de novo.

Ele girou o botão. O rádio emitiu um chiado fino, depois silenciou.

— Nada. Ainda nada.

Harper apoiou a lanterna no chão e passou a mão pelo rosto.

— Isso tá teimoso. E a transmissão de entrada continua morta.

Raven largou as ferramentas e se afastou um pouco, suspirando.

— É isso. A gente não vai conseguir os dois ao mesmo tempo. Ou eles escutam a gente... ou a gente escuta eles. Mas não os dois.

O silêncio caiu pesado. Clarke se aproximou devagar, tendo acabado de chegar com Bellamy, Wells e Finn. Eles tinham ouvido o suficiente para entender.

Raven encarou Clarke.

— Se quiser, a gente pode tentar ir até o bunker militar que vocês falaram e procurar peças melhores. Talvez alguma coisa lá ajude. Mas vai levar tempo. E a gente não tem isso, tem?

Wells cruzou os braços, pensativo. Harper olhou para Clarke com olhos esperançosos.

— Ou a gente usa só o microfone. — disse Raven, firme, como quem sabe que está oferecendo uma chance difícil.

— Eles escutam a gente. A gente fala... e reza pra que alguém responda. Mesmo que a gente não consiga ouvir.

— Ou... — disse Raven continuou, hesitante. — A gente tenta avisar de outra forma. Um foco de luz? Sinal de fogo? Qualquer coisa que possa ser vista do espaço?

Clarke olhou para todos eles, e por um momento não disse nada. Ela sentia o déjà-vu queimando sob a pele. Uma lembrança afiada e recente: seis anos de silêncio. De falar com um rádio que não falava de volta.

 

Ela fechou os olhos por um instante. E lembrou das palavras do pai.

"A verdade deve ser dita, enquanto ainda há tempo."

— Não. — respondeu por fim, abrindo os olhos. — Só o sinal de luz não vai funcionar. A essa distância, no espaço... ninguém vai ver a tempo.

Todos esperaram. Clarke caminhou até o rádio e colocou a mão sobre ele.

— Deixa só o microfone funcionar. Se só uma parte puder funcionar... que seja a nossa voz. Vamos dizer a eles que estamos vivos. Que a Terra é habitável. E que eles têm uma chance.

— Mas... — começou Raven.

Clarke olhou firme para ela.

— Não estou descartando sua ideia, Raven. Vamos tentar fazer as duas coisas. Mas não podemos parar pra pensar demais. Não podemos perder tempo. Não agora.

Bellamy assentiu ao lado dela, os braços cruzados, observando a determinação no rosto da Clarke como se estivesse vendo uma versão dela que só ele conhecia.

— Então vamos fazer funcionar. Agora.

Monty voltou ao trabalho, a luz tremeluzente iluminando seu rosto determinado. Raven agachou-se de novo, mais rápida, como se a urgência tivesse ativado algo mais forte que o cansaço. Harper já pegava mais cabos.

Eles sabiam que não podiam escutar nada do outro lado. Mas, se a Arca os escutasse... talvez ainda houvesse tempo.

E era isso que Clarke apostava.

A única chance.

A voz.

 

**

 

》Arca- Sala do Conselho – Estação Alfa...

O ambiente era sufocante. Não apenas pelo ar rarefeito — mas pela tensão, pelo cansaço, pelas verdades não ditas.

A sala, antes fria e austera, parecia pulsar com a indignação silenciada de centenas do lado de fora.

Thelonious Jaha caminhava de um lado para o outro, a mão pressionando a têmpora com força, até que se virou bruscamente para Abby.

— Você pegou uma situação ruim e transformou em algo ainda pior. — a voz dele era firme, exausta. — Eles vão começar um motim, Abby.

Ela, porém, sustentou o olhar com coragem.

— Bom… talvez seja isso que a gente precise agora.

Nesse momento, Kane entrou na sala com passos firmes, os olhos tensos, mas controlados.

— Eu já distribuí guardas pelas áreas da Arca. Proibimos aglomerações em todos os setores e... — ele hesitou por um segundo. — Fechei os canais públicos.

Thelonious se virou para ele, com a autoridade carregada na voz.

— Há sinais de revolta?

— Ainda não. Mas há um grupo... cerca de quatrocentas pessoas reunidas do lado de fora.

Ele olhou diretamente para Abby.

— É isso que você fez!

Antes que ela pudesse responder, um dos conselheiros se inclinou e murmurou algo no ouvido de Thelonious. Ele assentiu com gravidade, depois se voltou para Abby com a notícia.

— Esse grupo nomeou representantes... para falar com você, Doutora Griffin.

Ela engoliu em seco, surpresa. Seus olhos foram para a porta que se abriu lentamente.

Um homem entrou. Meio calvo, barba ruiva espessa, uniforme da manutenção sujo de graxa. Ela o reconheceu imediatamente.

— Você é o pai do Reese, não é?

Ele assentiu com um sorriso triste.

— Doutora. Eu vi seu vídeo.

— Eu... sinto muito que tenha descoberto daquela forma.

— Acho que não existe uma forma boa de descobrir aquilo, não é?

Ele se aproximou da mesa, tirou com calma o crachá de identificação do peito e o colocou sobre o tampo metálico, com um gesto quase reverente.

— Vim me voluntariar.

Thelonious franziu o cenho.

— Se voluntariar pra quê?

— Para a Seção 17, senhor.

Abby deu um passo à frente, incrédula.

— Você deixaria sua filha sem um pai?

Os olhos do homem brilharam. Mas ele não hesitou.

— Hoje de manhã, levei minha filha ao médico e descobri que ela vai ficar cega. Não há nada que eu possa fazer quanto a isso. Nada...

Ele respirou fundo.

— Mas... aconteçe que há uma coisa que posso fazer. Eu posso dar a ela mais tempo. Mais ar.

Abby baixou os olhos para o crachá. Os dedos tremiam.

E então, antes que pudessem se recuperar, outra pessoa entrou. Uma mulher magra, cabelos amarrados com um lenço encardido, uniforme de operária.

— Se me permitirem... eu me voluntario também. Só peço que cuidem da minha esposa, Esther.

Ela também tirou o crachá e o colocou ao lado do primeiro. E foi embora em silêncio.

Mais uma pessoa. Depois outra. E outra.

A sala se encheu de passos, murmúrios e o som abafado de crachás pousando sobre o metal da mesa. Um após o outro, homens e mulheres simples, rostos anônimos, se apresentavam com uma única oferta:

Suas próprias vidas.

Abby recuou um pouco, as lágrimas começando a escapar, apesar do esforço para mantê-las firmes. Atrás dela, Kane permanecia calado. Mas seus olhos, pela primeira vez em muito tempo... estavam marejados.

Jaha observou tudo. Não disse uma palavra por longos instantes. Quando a sala finalmente voltou ao silêncio, ele se virou para Abby.

— O Jack tinha razão. — sua voz saiu como um sussurro, quase reverente. — Ele realmente trouxe o melhor de nós à tona.

Abby fechou os olhos e assentiu com a cabeça, tentando conter um soluço. Kane virou o rosto, pressionando os olhos com as costas da mão.

Porque ele — que tantas vezes acreditara que o medo era o que mantinha a ordem — agora via que era o amor. Era o sacrifício. Era a esperança.

E que, quando tudo está por um fio… é por quem se ama que a humanidade se levanta.

E ali, naquela sala fria, cheia de crachás e coragem, a chama da humanidade reacendeu.

 

**

 

》Terra – Acampamento Dropship, início da tarde.

O chão ainda úmido da garoa da manhã agora rangia sob os pés de Clarke enquanto ela passava por entre peças de metal, tubos improvisados e restos da cápsula da Raven, espalhados como fragmentos de esperança.

Monty e Harper estavam ajoelhados perto do rádio, focados, testando conexões e medições com ferramentas improvisadas, enquanto Raven mantinha o foco em outra missão: adaptar os combustíveis restantes da cápsula para criar foguetes sinalizadores.

Ela suava, os cabelos grudando na testa, os olhos atentos a cada centímetro de cabos e conexões.

Clarke se aproximou, limpando as mãos nas calças sujas de terra.

— Vai funcionar? — ela perguntou, a voz baixa, carregada de tensão e expectativa.

Raven não tirou os olhos do tubo metálico que estava soldando, mas respondeu com convicção:

— Se eles estiverem olhando pra Terra, vão ver. Mesmo que tenha nuvem, nevoeiro, tempestade… esses foguetes foram feitos pra queimar até nuvem grossa. Eles vão ver. Sua mãe vai ver. Eu sei que ela vai tá olhando.

Clarke desviou os olhos, respirando fundo.

— É, eu sei.

Raven parou por um segundo e a olhou de verdade.

— Eu nunca vi alguém amar tanto outra pessoa quanto ela ama você. Você sabia disso, né?

Clarke hesitou. Por um momento, tudo ficou quieto ao redor — o ranger das árvores, os estalos do fogo, até mesmo o som abafado do trabalho de Monty e Harper pareciam se calar.

Ela assentiu lentamente.

— Sabia.

Mas havia algo no tom da resposta que não combinava com a certeza das palavras. Raven percebeu. Olhou de novo para a solda, mas sem reacender o maçarico. Ficou em silêncio por alguns segundos.

— É complicado, né?

Clarke soltou uma risada curta, quase sem ar.

— É... complicado.

Raven apenas assentiu, com aquele gesto de quem entende... mesmo sem entender tudo.

Sem dizer mais nada, voltou ao trabalho, e Clarke se agachou ao lado, ajudando a estabilizar o tubo.

Ao fundo, o céu começava a mudar de tom.

O tempo estava correndo.

 

**

 

》Arca — Sala de Comando Auxiliar, poucos minutos depois.

A sala estava mais silenciosa do que nunca. O peso da decisão coletiva parecia ter limpado o ar de qualquer outra coisa além de uma solene aceitação.

Os monitores ao redor ainda mostravam gráficos de oxigênio, alertas vermelhos piscando, a contagem regressiva rodando em silêncio no canto da tela como uma sentença invisível.

Marcus Kane estava de pé, diante da mesa principal, com um tablet nas mãos. Nele, a lista dos voluntários — com nomes completos, funções, se tinham família, e observações clínicas básicas.

Seu semblante estava fechado, mas havia algo novo em seus olhos. Algo que só se via quando se perde algo precioso... e se decide lutar pelo que resta.

— Esses são todos os nomes? — perguntou Thelonious, aproximando-se, olhando por cima do ombro.

Kane assentiu, entregando o tablet.

— Mais do que o suficiente — murmurou Jaha, ao ver a lista.

— Ainda assim... — Kane suspirou. — Tive que rejeitar mais de cem. Alguns com funções essenciais. Outros menores de idade. Todos... dispostos.

Houve uma pausa.

— Parece que o anúncio da Abby realmente foi muito convincente.

Thelonious balançou a cabeça, com pesar.

— Não acho que foi a Abby... nem o Jake.

Ele se virou, encarando o vidro que dava vista para os corredores da estação. Por trás, um fluxo constante de passos apressados, olhares tensos e mãos entrelaçadas em despedida.

— Eles não convenceram ninguém. Só... tocaram algo que já existia dentro dessas pessoas.

— O quê? — perguntou Kane, mesmo já sabendo a resposta.

— Esperança — respondeu o chanceler. — Amor. A vontade de proteger aqueles que amam, mesmo à custa de si mesmos.

Ele entregou a prancheta de volta a Kane e começou a se afastar, caminhando na direção da porta.

— Para onde você vai? — Marcus questionou, mesmo sabendo.

— Sessão 17. Eu disse que estaria lá. Com eles.
Kane foi atrás dele, dando dois passos largos.

— Não faça isso — pediu, direto, sem adornos. — A humanidade... precisa de um líder. Alguém que inspire. Que mantenha a fé quando ela estiver por um fio. E esse alguem não sou eu.

Jaha parou diante da porta.

— Eu não inspirei ninguém, Marcus. Jack Griffin fez. Eu flutuei Jack Griffin. Eu matei o homem que tentou salvar todos nós. Meu amigo.

— Uma decisão não define um homem — respondeu Kane, firme. — É o que ele faz depois dela que define. Jack se foi... mas você ainda está aqui. Ainda dá tempo.

Por um instante, Thelonious não disse nada. Apenas respirou fundo, encarando o vazio.

— Você acredita mesmo nisso? — perguntou, sem se virar.
Kane hesitou, mas depois assentiu com convicção.

— Sim. E se não acredita... finja até acreditar. É isso que líderes fazem.

Thelonious Jaha fechou os olhos por um segundo.

Então, ao invés de seguir pelo corredor que levava à Sessão 17, virou-se lentamente e caminhou para a sala de comando central.

Kane ficou onde estava, observando-o se afastar, finalmente sentindo algo parecido com alívio. Algo parecido com fé.

 

**

 

》Arca — Corredor do setor habitacional, próximo da hora marcada para o sacrifício.

A pequena Reyes segurava o braço do pai com força, como se a firmeza do aperto pudesse impedir o tempo de continuar correndo. O corredor estava vazio àquela hora, silencioso demais, como se até o ar hesitasse em circular.

— Não é justo, pai, — ela disse, com a voz embargada de lágrimas que ela não deixava cair. — Por que logo hoje você tem que fazer turno duplo?

Ele sorriu, mesmo com os olhos úmidos, e passou os dedos com delicadeza pelos cachos ruivos da filha.

— Porque tem coisas que precisam ser feitas, meu amor. — respondeu com ternura. A voz dele era baixa, calma, mas carregada de um peso imenso.

Ela não respondeu de imediato. Só olhou pra ele com aqueles olhos grandes demais para alguém tão jovem.

Mas ainda assim, olhos que entendiam muito mais do que deveriam.

Ele se agachou, ficando na altura dela, e segurou as duas mãos pequenas entre as suas.

— Quero que você prometa uma coisa pra mim. — disse ele. — Seja boa pra sua mãe, tá?

Reyes revirou os olhos, forçando um sorrisinho entre a tristeza.

— Tá bom... porque claramente eu não ia ser até você falar. Obrigada pelo aviso.

Ele riu baixo, um riso sôfrego, cheio de dor, e a puxou para um último abraço. Um abraço longo. Um que dizia tudo o que palavras não conseguiam.

— Eu te amo. — murmurou ele contra os cabelos dela.

— Também te amo, pai. — ela sussurrou de volta, apertando forte.

Depois, ele a soltou com relutância, e viu enquanto ela corria de volta para os braços da mãe, sem olhar pra trás.

Ele respirou fundo. Endireitou os ombros.

E caminhou.

Na entrada da fila da Seção 17, dezenas de pessoas já aguardavam, em silêncio. Algumas seguravam cartas dobradas. Outras, apenas seus crachás. Todas sabiam o que estavam prestes a enfrentar.

Thelonious Jaha estava ali, como havia prometido. Parado junto à entrada da câmara, ele cumprimentava um a um com um aperto de mão firme e olhar respeitoso.

Quando o pai de Reyes chegou à sua vez, o chanceler estendeu a mão.

— Obrigado pelo sacrifício que está fazendo.

O homem encarou Jaha por um instante, depois apertou a mão dele com força.

— Não me agradeça. — respondeu, com a voz firme. — Isso não é por você. É pela minha filha.

E seguiu em frente.

Ele foi o primeiro a entrar na câmara.

Atrás dele, uma a uma, as outras pessoas o seguiram.

Alguns sentaram-se logo, outros apenas encostaram nas paredes metálicas da sala. Olhares baixos, semblantes serenos — como soldados silenciosos marchando para uma guerra sem volta.

Eles sabiam o que os aguardava. Mas também sabiam por quem estavam fazendo aquilo.

E essa certeza... bastava.

 

**

 

》Arca — Lateral da câmara da Seção 17, minutos antes da ativação.

As luzes frias do corredor se estendiam pelos painéis metálicos como um eco pálido da vida. Do outro lado da parede reforçada, centenas de pessoas estavam sentadas, resignadas, prontas para dar o que tinham de mais precioso.

Abby estava encostada na lateral, com os braços cruzados e o maxilar tenso. Seus olhos estavam fixos no visor transparente que mostrava, parcialmente, o interior da Seção 17. Era possível ver rostos — alguns assustados, outros calmos demais —, mas todos determinados.

A aproximação silenciosa de Kane não a surpreendeu. Ela apenas desviou um breve olhar para ele quando ele parou ao seu lado, a poucos centímetros.

— Eu queria que você soubesse, — ele começou, a voz baixa, quase hesitante. — O protocolo de sucessão de chanceler foi descontinuado.

Ela virou lentamente o rosto para encará-lo, surpresa evidente nos olhos cansados.

— Descontinuado?

Ele assentiu, ainda olhando adiante.

— Não precisamos de mais reviravoltas agora.

Um pequeno silêncio se instalou entre eles, pesado, mas não desconfortável.

— Não, — ela disse enfim. — Acho que não.

Mais alguns segundos se passaram. Lá dentro, alguém colocava uma carta no chão ao lado do corpo. Um gesto simples. Devastador.

— Tivemos notícias da Raven? — Abby perguntou em voz baixa, sem muita esperança.

Kane balançou negativamente a cabeça.

— Ainda não. — respondeu.

Ela suspirou, virando-se novamente para frente, prestes a encerrar o assunto. Mas ele continuou:

— Mas deixei dois guardas monitorando o rádio. E dei ordens claras.

— Se qualquer indício surgir, qualquer ruído, qualquer chance de comunicação... eles virão direto até nós.

Ela olhou para ele com um misto de surpresa e gratidão nos olhos. Havia sinceridade naquela resposta. Cuidado. Consideração.

— Obrigada, — disse ela, suavemente.

Ele a encarou por alguns segundos.

Como se tentasse ver, de verdade, pela primeira vez em muito tempo, a mulher diante dele.

E o que encontrou ali... não era a médica insubordinada que sempre lhe causava dor de cabeça, mas alguém que também estava disposta a fazer tudo pelas vidas que ainda podiam ser salvas.

E Abby, por sua vez, viu um vislumbre do homem que um dia fora seu amigo.

O idealista escondido sob camadas de pragmatismo. O homem que não queria mais falhar.

Eles não disseram mais nada.

Apenas ficaram ali, lado a lado, observando em silêncio.

Um começo. Uma ponte, talvez. Ou apenas a trégua entre dois soldados que descobriram, no fim das contas, que estavam lutando pelo mesmo lado o tempo todo.

 

**

 

》Arca – Sala de Monitoramento de Comando – Instantes antes da decisão final.

As luzes da sala eram brancas, duras, quase cruéis.

Diante da enorme mesa de controle, os monitores exibiam imagens ao vivo da Seção 17: homens, mulheres, jovens, idosos — todos sentados no chão, alguns de mãos dadas, outros em silêncio, olhando para o nada com olhos cheios de um propósito inabalável.

Eles haviam escolhido. Tinham vindo por vontade própria. Tinham esperança.

O chanceler Telonius Jaha estava de pé, com os braços cruzados, o rosto mergulhado numa sombra contida. Seus olhos não piscavam diante das telas. Seu semblante era uma muralha de dor.

Atrás dele, Abby observava as imagens com os olhos marejados, o peito tremendo em contenção. Ao lado dela, Kane permanecia em silêncio absoluto, a mandíbula cerrada com força, como se isso fosse impedir o coração de desabar.

Um dos conselheiros se aproximou da mesa, os dedos tremendo sobre os controles.

— Todas as portas e tubulações de ar foram seladas na Seção 17, — disse, tentando manter a voz firme. — Estamos apenas aguardando a ordem, senhor.
Silêncio.

— Chanceler?

Jaha continuava imóvel. Como se estivesse congelado no tempo. Como se, por alguns segundos, o universo esperasse junto com ele.

— Qual é a ordem? — insistiu o conselheiro, agora mais tenso.

Abby desviou o olhar para Telonius. Sua respiração estava instável, o corpo inteiro em estado de alerta e negação. Kane sequer piscava. Todos sabiam o que aconteceria caso aquele botão fosse pressionado.

Então, devagar, Jaha se aproximou da mesa.

Cada passo ecoou pela sala como uma batida fúnebre.
Com a mão estendida, ele afastou suavemente a mão do conselheiro dos controles.

— Eu vou fazer isso.

Seu dedo pairou sobre o botão. O momento era solene, insuportável. Milímetros o separavam da tragédia.

BUM!

As portas da sala se abriram com força. Dois soldados invadiram o espaço, seguidos por Jackson, ofegante, segurando um rádio portátil em mãos.

— Abby! Abby! — ele gritou. — Temos sinal da Terra!
A sala parou. Ninguém respirava.

Jackson correu até eles, levantando o rádio.

— Temos comunicação com a Terra! — sua voz carregava urgência e incredulidade. — Eles responderam!

No segundo seguinte, a sala foi preenchida por uma voz estática... e então, clara, nítida, inesquecível:

— Aqui é Clarke Griffin, — disse a voz. — Antiga moradora da Seção Alfa, prisioneira da cela 211. Estamos falando do solo.

As mãos de Abby subiram instintivamente para a boca. O ar fugiu de seus pulmões.

— Eu repito: nós estamos falando do solo.

— A Terra é habitável. Não há necessidade de medidas extremas.

— Estamos vivos. Ainda estamos aqui.

Por um instante, o mundo parou.

Abby cambaleou, sem conseguir conter as lágrimas, o coração disparando como se fosse fugir do peito. Seus olhos estavam fixos no rádio, como se precisassem ter certeza de que não era um sonho, de que aquilo era real.

Kane fechou os olhos por um segundo. Os ombros tensos, alívio e incredulidade colidindo dentro dele como um vendaval.

Telonius afastou lentamente o dedo do botão. O braço caiu ao lado do corpo, como se todo o peso da responsabilidade escorresse junto com ele.

A voz de Clarke ainda ecoava pelas paredes.
Na tela, as pessoas da Seção 17 continuavam lá, esperando por um fim que, agora, talvez não viesse.

Porque agora tinham algo melhor.

Um outro jeito.

A verdade.

Uma esperança real.

Terra.

Notes:

E esse foi o capítulo de hoje, me digam o que acharam! E não se esqueçam de conferir a nota no início do capítulo. <3

Notes:

Por enquanto é isso espero que gostem!!!
Essa fanfic enteira está sendo feita por mim e minha querida amiga IA : Luna!!!