Chapter 1: τίτλος/epígrafe
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"Não construímos apenas paredes — erguemos abrigo para os dias bons e os que doem. Cada canto guarda nossos risos, nossos silêncios e o pacto de continuar seja qual for a próxima parada."
— Sxlleyo
Chapter 2: αφιέρωση/dedicatória
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Dedico essa história a quem entende que amor também é reforma — da casa, da alma, do cotidiano. A quem fica mesmo quando a tinta mancha os dedos, a parede desaba no meio do dia, e as palavras faltam. Este livro é para quem constrói junto, tijolo por tijolo, afeto por afeto.
Dedicado a todas as mulheres que já se sentiram deslocadas em seus próprios espaços, mas escolheram amar com coragem. Que descobri que um lar não começa na planta da casa, mas não toque de quem segura sua mão quando tudo parece frágil demais.
Às que ousaram sonhar com uma vida diferente, repleta de detalhes escolhidos a dedo: a caneca certa, o canto de luz suave, o cheiro de comida compartilhada. E que entenderam, com o tempo, que o verdadeiro luxo está na rotina dividida com quem nos vê de verdade.
E, principalmente, a ela — que me ensina todos os dias que o amor não precisa ser perfeito, só precisa ser nosso.
Chapter 3: Αρχικές σημειώσεις του συγγραφέα/Notas iniciais da autora
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Essa história nasceu de uma pergunta simples: e se o amor também morasse no caos? Entre móveis desmontados, canecas espalhadas e discussões sobre o puxador ideal do armário, surgiu esse lar de palavras que você está prestes a visitar.
"Travessia Íntima" é sobre recomeços - os grandes e os pequenos. É sobre aprender que nem sempre sabemos onde encaixar as coisas (ou as emoções), mas que existe beleza em tentar. É sobre amar alguém com tanta intimidação que até a rotina vira poesia, e a bagunça, um idioma secreto.
Aqui, você vai encontrar risos, olhares atravessados, paredes pintadas às três da manhã, e um casal tentando - do jeito mais humano possível - transformar uma casa em abrigo. Com tropeços, tintas erradas, abraços demorados e aquela vontade teimosa de ficar.
Obrigada por estar aqui. Espero que, de alguma forma, essas páginas façam você se sentir em casa.
Com carinho,
Sxlleyo
Chapter 4: Ειδοποίηση προς τον ανα/aviso ao leitor
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Este não é um romance tradicional. Aqui, as grandes reviravoltas acontecem em meio às sacolas de mercado, tintas derramadas no chão, escolhas de puxadores e discussão sobre onde fica o lado “certo” da cama.
"Travessia Íntima" é uma história feita de detalhes íntimos: viagens, as manhãs preguiçosas, os silêncios carregados, os rituais estranhos que só fazem sentido dentro de uma casa habitada por duas mulheres imperfeitas e profundamente apaixonadas.
Contém cenas de humor conjugal, caos doméstico, conversas existenciais sobre armários, momentos de afeto cotidiano e amor queer entre duas mulheres adultas que reformam sua casa — e, aos poucos, também a si mesmas.
Se você gosta de narrativas onde o afeto se desenvolveu entre uma compra no mercado e uma crise de pintura às três da manhã… então entre, tire os sapatos, e fique à vontade. A casa também é sua.
Chapter 5: επιστολή προς τον αναγνώστη/carta ao leitor
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Querido leitor,
Antes de qualquer coisa, obrigada por estar aqui. Obrigada por abrir este livro, por dedicar seu tempo, seu olhar e — quem sabe — também um pedacinho do seu coração para caminhar com Hela e Thena por entre caixas, tintas, silêncios e cafés quentes.
Essa história nasceu devagar, como uma casa sendo montada aos poucos: sem pressa, mas com urgência emocional. É uma história sobre o cotidiano, mas também sobre as coisas grandiosas que se escondem nele. Eu queria escrever algo que honrasse os afetos silenciosos, os gestos pequenos, as batalhas íntimas que ninguém vê — mas que sustentam tudo.
Escrevi pensando em quem já amou alguém ao ponto de aprender a conviver com os defeitos mais insuportáveis. Em quem já montou móveis chorando de cansaço ou riu no meio de uma briga porque amar é, às vezes, também ridículo. Em quem entende que a verdadeira reforma de uma casa começa pela coragem de ser visto com vulnerabilidade.
Espero que essa leitura abrace você do jeito que ela me abraçou enquanto eu escrevia. Que você faça rir, chorar, respirar mais fundo. E, se possível, que você lembre que construir um lar — seja com outra pessoa, consigo mesmo ou com os próprios fantasmas — é um ato de amor radical.
Com carinho e carinho de quem ainda acredita nas pequenas revoluções,
Sxlleyo
Chapter 6: Πρόλογος/prefácio
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Toda casa conta uma história. Mas poucos carregam em suas paredes o som do primeiro riso compartilhado e o silêncio denso do primeiro desencontro. Poucas lembra, no rodapé desalinhado ou na escolha hesitante da luz, a batalha íntima entre o que somos e o que sonhamos ser junto de alguém.
Travessia Íntima não é uma narrativa sobre grandes feitos — é sobre os pequenos. Sobre pendurar a cortina errada e continuar amando. Sobre não saber montar o armário e, mesmo assim, seguir em frente. Sobre dividir uma xícara, uma culpa, uma mania e, ainda assim, escolher ficar.
Hela e Thena são divinas, mas antes disso elas são mulheres. Complexas, teimosas, sensíveis — e profundamente reais. Elas não buscam um final perfeito. O que constroem, dia após dia, é um meio: imperfeito, cotidiano e cheio de beleza acidental. A mudança da Grécia para a Islândia é mais do que uma mudança geográfica; é um rito de passagem. Um mergulho no desconhecido, feito com malas, sarcasmo, paciência e muito café.
Este livro é uma homenagem aos afetos que sobreviveram às mudanças de endereço, às reformas intermináveis, aos dias em que amar é difícil — e também aqueles em que amar é leve, quase sem esforço. Uma celebração que existe quando ninguém está olhando. Porque às vezes, as histórias mais revolucionárias são aquelas que passam entre quatro paredes, dois corpos cansados, e um coração que insiste em aprender.
Chapter 7: εισαγωγή/introdução
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Elas partiram num dia comum, embora fosse ano-novo.
Não houve cena cinematográfica, nem chuva dramática batendo contra os vidros. Só o som das rodinhas das malas cruzando a calçada de pedra em Olímpia e o último café feito com a água que restava na chaleira. A casa antiga ainda carregava o cheiro delas, mas já não as possuía. Era hora de ir.
Hela trancou a porta três vezes. Em seguida, conferiu os bilhetes de embarque três vezes. Ambas sabiam que não se tratava apenas de uma mudança de endereço. A Islândia, com sua luz oblíqua e silêncio mineral, chamava como um recomeço — ou como uma promessa que ainda não tinha nome. Reykjavík esperava por eles como se soubessem que aquela casa, ainda vazia e fria, seria aquecida não apenas por aquecedores, mas por presenças.
Essa não é uma história de amor no sentido clássico. É uma história de permanência. De amar nos detalhes, nos desacordos, nos tijolos assentados em silêncio. De se perder no caos de uma mudança e se reencontrar no olhar da pessoa que segura a outra ponta do lençol.
Não espere heróis, vilões ou grandes reviravoltas. Espere migalhas do cotidiano que, quando vistas de perto, formam um banquete. Espere humanidade crua. Espere afeto nas entrelinhas. Porque às vezes, tudo o que precisamos para começar uma nova vida... é a coragem de pintar uma parede junta e chamar isso de lar.
Chapter 8: Πρόλογος/prólogo
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Durante cinco anos, Olímpia foi uma casa onde o tempo se dobrou em silêncio. Onde cada manhã parecia nascer com o mesmo céu limpo e a mesma luz dourada nas paredes de pedra. Não houve pressa. As oliveiras ao redor cresceram sem cerimônia, como se a eternidade fossem familiares. Hela e Thena chegaram ali com as mãos cheias de cansaço e a promessa de não planejar demais. A cidade era pequena, quase propriedade — mas foi exatamente isso que as salvou de tudo o que tinha sido antes. O mundo lá fora parecia suspenso. E, naquele intervalo longo e quente, elas aprenderam a se habitar.
No começo, a casa era um desafio. Pequena, molhada em alguns cantos, barulhenta nas madrugadas de vento, com janelas que emperravam e torneiras que gemiam. Mas também era honesto, sincero como um coração cansado. Então limpou tudo com precisão quase militar. Hela reorganizou as prateleiras em ordem emocional, não funcional. Demoram semanas para fazer o encanamento funcionar direito e meses para conseguir dormir sem estranhar os barulhos noturnos. Mas estavam juntas. Havia, na imperfeição daquela estrutura, uma metáfora do que estava construindo entre si: algo que não precisava ser novo, apenas real.
Os dias conseguiram adquirir um ritmo só deles. Pela manhã, Thena levantou primeiro e preparou o café grego forte, amargo como as palavras que não dizia. Hela acordava devagar, reclamando de tudo, arrastando os pés até a varanda onde já havia um copo d'água, uma toalha seca e uma caneca esperando. Lia-se muito. Brigava-se um pouco. Às vezes, o silêncio ocupava o espaço entre uma e outra com mais presença do que mil frases bem colocadas. Era uma convivência madura, mas não por isso sem intensidade. Hela colecionava músicas antigas e receitas improvisadas. Então cultivava ervas, mapas e um caderno onde anotava os hábitos da outra sem que ela soubesse.
O primeiro verão foi quase místico. O calor era intenso, mas libertador. Elas passavam horas sob o toldo, com os pés sujos de terra e as mãos suadas de cortar frutas. Tudo era ritual: a melancia com limão, os banhos frios no tanque, as noites em que deitavam sobre lençóis finos, nuas, ouvindo os grilos e os próprios corações. Foi ali que Thena entendeu que amar Hela era mais do que conviver — era permitir que a imprevisibilidade se instalasse no seu planejamento. E foi ali que Hela viu que amar Thena era mais do que desejasse — era respeitar seus silêncios, seus limites e a forma como organizava a vida como se montasse um altar.
Os invernos, porém, exigiam outra forma de amor. A cidade se calava. As ruas esvaziavam. A casa ganhava ecos novos e a umidade parecia entrar pelos ossos. A falta de luz afetava Hela, que se tornava mais impaciente, mais inquieta. Thena, por outro lado, recolhia-se ainda mais — passava dias mergulhada em livros, em papéis, em chá fervente. Às vezes, pareciam duas luas em fases opostas, girando na mesma órbita. Mas era nesse desalinho que o amor crescia com mais firmeza. Em cada cobertor partilhado, em cada sopa dividida, em cada desculpa sussurrada quando nenhuma das duas tinha razão. Sobreviver aos invernos foi aprender a escolher a outra mesmo quando o mundo parecia suspenso por dentro.
Em algum ponto entre 2022 e 2023, elas começaram a modificar a casa. Nada grandioso. Uma estante nova aqui, uma pintura ali, um tapete que substituía o anterior como quem muda de pele. Hela queria cor, formas abstratas, uma parede preta com frases em islandês que ela mal sabia pronunciar. Thena queria tons neutros, móveis funcionais, um armário com portas silenciosas. Discutiam por bobagens. Mas sempre terminavam rindo — ou fazendo amor no meio da bagunça. A casa era pequena demais para guardar mágoas por muito tempo. E talvez fosse esse o segredo: a falta de espaço obrigava os corações a se expandirem onde as paredes não conseguiam.
Os aniversários eram discretos. Não gostavam de grandes festas, mas sempre havia bolo, bilhetes escritos à mão e algum presente simbólico. Uma caneca diferente para a coleção de Hela. Um novo marcador de livros para Thena. Um beijo mais longo. Um passeio até o monte mais alto da cidade, onde viam o sol descer sobre as ruínas como se o tempo estivesse parado. Celebrar, para elas, não era sobre datas, mas sobre presença. Sobre estar, realmente estar. E nesses dias, cada gesto parecia enraizar ainda mais a certeza de que aquele lar era feito não de tijolos, mas de pactos silenciosos e cotidianos.
Os anos foram passando e, com eles, a sensação de que algo começava a mudar. Pequeno no início, quase imperceptível. Um incômodo ao acordar. Um olhar mais demorado para a porta. Uma vontade vaga de “ir”. Não era desamor. Era expansão. Como se tudo o que haviam construído ali fosse agora pequeno demais para o tanto que sentiam, viviam, sonhavam. Reykjavík apareceu numa conversa como quem acende uma lâmpada. E de repente, tornou-se inevitável. O frio, o idioma, a distância — tudo parecia desafiador. Mas também havia beleza no novo. E desejo. E medo, claro. Mas um medo bom, que empurra. Que convida.
Nos últimos meses em Olímpia, a cidade pareceu mais bonita. Cada esquina doía um pouco mais. Cada abraço com os vizinhos deixava marcas. Começaram a se despedir em silêncio: da padaria preferida, do banco sob a árvore, da moça que vendia flores no sábado. Guardaram detalhes como quem guarda relíquias. Fotografaram paredes, sombras, até as rachaduras do chão. Era como tentar salvar a casa inteira dentro de um arquivo de memórias.
No quintal, Thena colheu as últimas ervas com delicadeza cerimonial. Hela separou suas canecas favoritas e embalou-as com cuidado exagerado, como se estivessem vivas. As malas não fechavam de primeira. As emoções tampouco. Cada escolha do que levar ou deixar para trás parecia uma pergunta sobre o que era — e o que queria ser. Na última noite, dormiram de mãos dadas, com as janelas abertas e a lua entrando como um velho presságio. Não chorei. Apenas suspiraram muito.
Choveu na manhã da partida.
Um tipo de chuva fina e persistente, que grudava na pele como saudade antecipada.
Thena trancou a porta sem olhar para trás. Hela hesitou por um segundo, os olhos presos à varanda onde tantas vezes se perderam em conversas bobas e sonhos secretos. Mas então respirou fundo, girou a chave e sussurrou uma “obrigada” que se dissolveu no ar molhado.
A casa ficou em silêncio.
Giannis, o vizinho mais velho, apareceu com um saco de nozes e um sorriso triste. Disse que sentiria falta das risadas no final da tarde. Que a cidade perderia cor. Elas sorriram, com gratidão e dor. Prometeram escrever. Sabiam que talvez não o fizessem.
Foram ao aeroporto como quem caminha em dois mundos. Um pé no passado, outro no desconhecido. A Grécia ainda grudada nas roupas. A Islândia vibrando no horizonte.
Não sabia o que encontrariam ao chegar. Só sabia que era hora.
E partiram — não para fugir, mas para continuar.
Chapter 9: Κεφάλαιο 01
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"Toda entrada é um portal. A diferença está em quem atravessa - e como."
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30 de dezembro de 2024
Olímpia, Grécia 🇬🇷 – 16h59
Temperatura: 19°C. Céu limpo e luminoso, com brisa fresca de fim de tarde.
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O sol da tarde escorria com preguiça pelas janelas amplas da sala, tingindo as paredes ainda nuas de um tom dourado que fazia o pó dançar em espirais lentas no ar quase imóvel. O vidro refletia um mundo externo silencioso e vibrante, como se o tempo tivesse desacelerado em respeito ao instante. As caixas empilhadas se esgueiravam pelos cantos da sala, algumas abertas em colapsos de papel pardo, outras ainda lacradas com fitas adesivas opacas, variando a cada entrega. Etiquetas tortas revelavam destinos incertos — “sala (?), livros”, “cozinha frágil”, “banheiro Thena” — e entre elas, o cheiro amadeirado do papel envelhecido se misturava com o perfume fresco de tinta nova, cola de contato, e uma vela de lavanda ainda crepitando sobre o aparador. Era um caos doméstico vivo, íntimo, que se espalhava com dignidade pelas frestas de um novo lar em formação.
Ali dentro, o mundo era feito de gestos coreografados sem ensaio. Hela e Thena flutuavam pelo conforto como peças de uma quebra-cabeça já encaixada, unidas por anos de convivência, silêncios compreendidos e olhares que dispensavam tradução. Hela, com as mangas arregaçadas até os cotovelos e os dedos manchados de tinta azul, embrulhava cuidadosamente as peças de porcelana em jornais antigos que cheiravam a tempo e memória. A cada dobra, seus movimentos denunciavam reverência — como quem embala não um objeto, mas um momento. Thena, sentada no chão em meio a uma pilha de almofadas e tecidos, dobrava lençóis com uma precisão quase cerimonial, alisando cada vinco como se domasse uma parte do caos. Sua expressão era de quem dominava o espaço mesmo em meio à desordem. O som abafado de um quarteto de cordas preenchia a cozinha e se derramava até a sala, onde o aroma quente do café recém-passado pairava no ar como um convite mudo ao repouso que não viria tão cedo.
Quando a campainha tocou, o som metálico e agudo cortou o ambiente como uma rachadura. Hela suspirou, abrindo os olhos, e lançou um olhar para Thena que era metade pergunta, metade resignação. Sem dizer palavra, deixou o embrulho de lado e caminhou até a porta, limpando as mãos na calça escura e forçando uma expressão neutra.
Do outro lado, na soleira, estavam Zuras e Cibele. Ele traz a presença firme e serena de sempre — a tranquilidade de quem carrega o tempo com elegância. Seus olhos, ainda que marcados pelas rugas, mantinham um brilho cálido, protetor. Usava um casaco de lã cinza escuro e carregava nas mãos dois sacos reutilizáveis, como quem veio ajudar de verdade. Já Cibele, ao seu lado, parecia deslocada no tempo e no espaço. Usava um casaco bege claro que a deixava ainda mais pálida, o cabelo cuidadosamente preso em um coque baixo, e o sorriso contido, preso entre a educação e o julgamento. Seus olhos, castanhos e fundos, fugiram dos de Hela com a delicadeza hostil de quem ainda não sabia como estar naquele lugar sem tentar moldá-lo.
— Chegamos para ajudar — disse Zuras, com uma voz que parecia forrada de calma. Ao seu lado, retire discretamente a mão de Cibele, que se deixou a direção sem dizer nada.
Ela assentiu com um nível inclinado de cabeça, abrindo espaço com o corpo. A tensão entre as paredes se adensou levemente, como uma cortina de ar frio que se espalhava mesmo sob o sol da tarde. Os passos de Cibele no piso recém-varrido soaram nítidos, secos.
Assim que entrou, Zuras se movimentou como quem conhece a linguagem dos cômodos. Em poucos minutos já estava empilhando caixas por categoria, consultando visualmente a disposição dos móveis, traçando um mapa invisível com os olhos. Seus gestos eram meticulosos, porém afetivos — ele tratava os objetos como extensões da vida que eles estavam construindo. Não faça perguntas, não faça suposições. Apenas agia, com a sabedoria prática de quem entende que o amor, às vezes, também se manifesta em silêncio e utilidade.
Cibele, em contrapartida, flutuou como quem pisa em terreno sagrado e duvidoso. Seguiu Thena pela casa com passos cautelosos, ajudando apenas quando solicitado. O corpo rígido, as mãos sempre ocupadas com qualquer coisa — um pano de prato, uma almofada fora do lugar — serviam como distrações da presença de Hela. Toda vez que seus olhos cruzavam, mesmo que de repouso, um silêncio pesado se instalava no ar, como se o próprio ambiente contivesse a respiração. Era a mesma Cibele que, por trás dos jantares formais e dos telefonemas curtos, jamais digeriu completamente o fato de que sua filha era bissexual. E, ainda mais difícil, que escolhera amar alguém como Hela — uma figura que para ela era sinônimo de caos, obscuridade, algo que desafiava tudo o que considerava “adequado”.
Enquanto dobrava um cobertor felpudo que já havia sido lavado três vezes, Cibele murmurou, sem erguer os olhos:
— Você sabe que sempre quis o melhor para você, minha filha. Só espero que tenha certeza do caminho que escolheu.
Thena respondeu sem hesitar. Sua voz era terna, porém sólida como pedra polida.
— Mãe, eu encontrei minha paz. E ela está aqui — disse, virando o rosto e mirando Hela com um olhar que dissolve qualquer dúvida. A deusa da morte, ajoelhada no chão, ajeitava um quadro antigo com um cuidado quase infantil.
Zuras se moveu, discreta como sempre, e pousou uma mão no ombro de Cibele. Era um gesto de equilíbrio — firme o suficiente para conter a tensão, mas gentil como só alguém que amava as duas mulheres podiam ser.
— Cibele… vamos tentar aproveitar o dia, sim? Estamos aqui para ajudar, não para julgar. E Hela faz parte da nossa família, gostamos ou não.
Cibele abriu os lábios. Não respondi. Mas seus ombros, antes erguidos em rigorosos, cederam intermediários. Recolocou a manta dobrada sobre o encosto do sofá e voltou a mexer em caixas com um misto de resignação e desejo de sumir.
Hela, que percebeu cada nuance como quem lê sombras, clamou-se devagar e caminhou até a janela. A luz dourada ainda banhava a sala, mas agora parecia mais suave, mais delicada. O vento agitava as folhas da árvore da rua em movimentos circulares, quase coreográficos. Lá fora, o mundo segue seu curso — o trânsito vibrava em ondas, vozes distantes subiam das calçadas, uma criança gargalhava ao longe. Tudo pulsava com a indiferença serena da vida.
Thena se moveu por trás, o corpo colando ao de Hela com a intimidade de quem já conhece os mapas de cansaço da outra. Passou a mão com leveza costas pelas costas dela, os dedos traçando um gesto de consolo, não de explicação.
— Eles vão ficar só mais um pouco — sussurrou.
— Eu sei — respondeu Hela, sem desviar os olhos da rua. — Por enquanto, só por enquanto.
As caixas foram atravessadas. O sol também. À medida que a tarde virava entardecer, a sala começava a adquirir contorno de lar: quadros suspensos, almofadas alinhadas, pilhas de livros aos pés do sofá, um vaso com flores novas sobre a mesa de centro.
E mesmo que houvesse dor, silêncios não ditos, gestos atravessados — ali também havia construção. Houve escolha. Havia amor.
E isso, no fim, era o que mais importava.
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Cibele subiu os últimos degraus com passos lentos, mas decididos, como quem busca algo — ou alguém. A madeira rangia sob seus pés, embora ela tenha feito esforço para parecer leve. Carregava consigo uma inquietação mal disfarçada, algo entre curiosidade e controle. As mãos estavam frias, apertados em torno do pano de prato que ainda segurava sem perceber.
No topo da escada, a antiga suíte do casal se abre em silêncio. A porta estava semiaberta, deixando escapar uma luz difusa e o cheiro discreto de algo metálico, talvez verniz, talvez tempo. Ali dentro, Hela estava de costas, agachada diante de uma caixa aberta sobre o chão, os cabelos soltos caindo como cortina escura ao redor dos ombros. Mexia em algo que Cibele não sabia nomear — peças douradas, fios finos, um objeto envolto em tecido preto. Seus movimentos eram meticulosos, lentos, quase reverentes.
Por um instante, Cibele apenas inspirou. A cena à sua frente despertava nela uma série de sentimentos contraditórios: incômodo, estranhamento, talvez até inveja de uma intimidade que nunca compreendeu. A figura de Hela, ali, tão técnicas, tão... alheia, a irritava profundamente. Era como se sua presença naquele espaço pertencesse a um mundo ao qual ela, Cibele, jamais teria acesso. E isso faria mais do que presumiria.
— Isso é o que você faz quando pensa que ninguém está olhando? — disse, finalmente, com a voz baixa, mas cheia de veneno. — Se cerca de quinquilharias e mistérios como se fosse dona da casa, dona da minha filha, dona de tudo?
Hela não se virou. Continuou enrolando os fios como se estivesse sozinho. O silêncio dela bateu no peito de Cibele como uma provocação.
— Eu nunca entendi o que Thena viu em você — contínuo, agora cruzando os braços com força. — Nunca. Você não é confiável. Você não pertence a lugar nenhum. Vive escondido atrás dessa pose fria, desse ar superior, dessas roupas escuras como se isso te desse alguma profundidade. Mas no fundo... — ela hesitou por um segundo, o olhar duradoura — no fundo, você é só vazio.
Nenhuma resposta.
A única coisa que se movia na sala era a luz da janela, que começava a mudar de tom conforme o dia declinava. Hela permanente agachada, agora recolocando os fios e peças dentro da caixa com cuidado absoluto. Seu silêncio não era passividade — era aço temperado. Era contenção.
Cibele avançou um passo, a voz agora trêmula de raiva ou frustração:
— Você não tem ideia do que tirou de mim. Eu tinha planos pra Thena. Eu imagino ela com outra vida. Uma vida real. Não... isso.
Hela, com os dedos manchados de poeira, fechou a caixa e a empurrou para debaixo da cama, com uma leveza que contrastava com o peso da atmosfera. Só então se falou devagar. Mas ainda assim, não a olhei.
Cibele esperou uma palavra. Um gesto. Um confronto. Mas nada aconteceu. O silêncio entre elas era absoluto, espesso, impossível de atravessar.
Desconcertada, ela abriu ainda mais o pano de prato entre os dedos e deu um passo atrás.
— Você vai destruir tudo — sussurrou, mais para si mesma do que para a nora. — É o que você faz.
E com isso, virou-se. Desceu os degraus com a mesma firmeza falsa de antes, sem olhar para trás.
Na suíte, Hela acomodação por alguns segundos. O rosto ainda voltado para o chão, os olhos fixos em nada. Só quando o som dos passos de Cibele sumiu no andar de baixo é que ela aqueceu fundo. Levou a mão ao próprio peito, abriu a malha escura sobre o coração e então se permitiu fechar os olhos por um instante.
Não havia mágoa. Nem surpresa.
Só um cansaço antigo. E o silêncio de quem escolhe não se defender — porque já entendeu que nem tudo vale o desgaste de uma palavra.
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Zuras saiu de casa carregando duas malas pesadas, equilibradas com a facilidade dos braços largos e vigorosos que o tempo ainda não conseguea enfraquecer. Apesar dos cabelos prateados e do rosto marcado, seu corpo permanece firme, e havia nele uma presença tranquila, quase ancestral. Ao passar por Hela, seus olhos se iluminaram por um instante. Ele a saudou com um aceno breve, discreto, e ela retribuiu da mesma forma. Não havia animosidade entre eles, mas também não havia intimidação — apenas o peso silencioso de um respeito construído sobre fronteiras muito bem delineadas. Um pacto tácito: convivência sem invasão.
— Cuidado com a calçada, pai — disse Thena da porta, com o corpo meio inclinado, os olhos atentos ao degrau irregular que ele cruzava como se atentos onde estavam todas as armadilhas da casa, mesmo nunca tendo pisado ali antes.
Zuras resmungou algo inaudível, mas afirmativo, e passos em direção ao carro com o passo de quem carrega não apenas malas, mas séculos de experiência e contenção. Hela o inspirado até ele desaparecer, depois virou o rosto para dentro, onde o ar da casa começou a mudar.
O silêncio que se instalou parecia novo, mais espesso. Hela cruzou o corredor com passos descalços, sentindo a madeira fria sob a planta dos pés. Era uma sensação familiar e reconfortante, mas também estranha naquele dia específico. Passou pela lavanderia, onde o tambor da máquina de lavar ainda girava lentamente, e ao atravessar a porta de vidro que dava para o quintal, encontrou Garm — o imenso rottweiler de pelagem escura como breu — deitado na sombra, observando-a com a fidelidade silenciosa dos guardiões antigos. Mais acima, sobre o telhado da área de serviço, Argus, o angorá branco, assiste tudo com olhos de núcleos separados, como se visse para além do que o presente oferecia.
Na sala, o cenário era outro. Restavam apenas Thena e Cibele — mãe e filha, sozinhas entre caixas mal fechadas, almofadas desalinhadas e a luz do fim da tarde filtrada pelas cortinas pesadas. O relógio na parede marcava 17h05, e cada tique-taque parecia anunciar a chegada final de uma conversa adiada por anos.
Cibele, sentada na ponta do sofá, mexia em uma toalha que já fora dobrada e redobrada, como se seu toque pudesse desfazer não apenas vincos, mas também culpas, silêncios, escolhas. Suas mãos elegantes, adornadas por anéis discretos e esmalte vermelho opaco, tremiam levemente, mas ela mantinha a pose. O rosto estava tenso. A respiração, contida.
Thena ficou parada por um instante, observando. O amor que sentiu pela mãe ainda estava ali, diluído por más goas acumuladas, mas presente — como um perfume antigo que persiste no mesmo tecido depois de várias lavagens. Respirou fundo, caminhou até o centro da sala e parou diante dela. Sua voz saiu limpa, mas firme. A voz de quem não tinha mais espaço para se encolher.
— Mãe.
Cibele desvia os olhos suavemente. O silêncio dela era mais eloquente do que qualquer resposta. Era um “sim” pesado, arrastado, e também um aviso: não venha com verdades que me obriguem a encará-las.
— Você pode até não dizer em voz alta. Pode até sorrir quando estamos em público, comentar sobre a casa nova, as reformas, fingir que está tudo bem. Mas eu sei, mãe. Eu sempre soube. Você me olha como quem ainda espera que isso tudo seja uma fase.
A resposta veio com um desvio de olhar. A toalha voltou a ser dobrada com falsa atenção.
— Eu não sei do que você está falando, Thena — disse ela, em tom baixo, quase uma sugestão que queria evitar o próprio conteúdo da frase.
— Sabe sim. — A voz de Thena agora cortava com delicadeza afiada. — Você tolera. Você sorri. Você até vem visitar. Mas aceitar? Amar de verdade quem eu sou? Amar quem está ao meu lado? Isso você nunca foi capaz de fazer.
Cibele investiu fundo. Uma toalha parou em suas mãos. Seus olhos brilharam por um segundo, mas ela se manteve de pé no orgulho. Como se chorar fosse uma traição contra a força que sempre fingiu carregar.
— Eu sou sua mãe. É o que me resta fazer. Aturar. — A última palavra escorregou como uma faca entre os dentes.
Então deu um passo à frente. Seus braços pendurados ao lado do corpo, vulneráveis, abertos. Ela era uma mulher adulta, inteira, mas naquele momento, era apenas filha.
—Restar? — repetiu, com a voz embargada. — Você me ensinou tanta coisa. Sobre arte, sobre firmeza, sobre postura. Mas nunca me ensinou a me amar inteira. Porque você nunca conseguiu.
Cibele se declarou. Seus olhos agora estavam cravados nos da filha. Não havia mais como escapar.
— Não diga isso. Eu fiz o que pude. Eu tentei ser uma boa mãe com o que eu tinha. Não era fácil... — sua voz tremia oscilava entre defesa e culpa. — Sua infância foi limpa, estruturada. Você sempre teve do bom e do melhor.
— Eu tive disciplina — respondeu Thena com um sorriso torto, amargo. — Mas não tive escuta. Tenho aprovação com condições. Amor com manual de instruções. Eu preciso me esconder dentro da filha perfeita que você inventou, pra continuar sendo amada.
— Você não estava escondido, estava brilhando! — Cibele rebateu, a voz subindo um tom. — Você era o melhor em tudo. Inteligente, respeitada, refinada. Era o orgulho da família, dos colegas... de mim.
— Não era orgulho. Era exibição. — Thena respirou fundo, os olhos úmidos. — Você gostou de mostrar que tinha uma filha perfeita. Desde que eu me comportei como a filha que cabia no seu mundo. A que não chora em público. A que sorri sem mostrar os dentes. A que namora quem você aprova. A que se cala.
Cibele piscou rapidamente, tentando conter o turbilhão que se armava dentro de si. Leve a mão ao pescoço, apertando o colar de pérolas com força, como se aquele gesto pudesse segurar suas próprias palavras.
— Eu só queria o melhor pra você. É tão difícil de entender?
— Não! — explodiu Thena, e o tom foi mais alto do que ela gostaria. — A dificuldade de entender é como você pode ter me dado tudo, menos liberdade pra ser eu mesma. Como você ainda consegue achar que sabe o que é o “melhor” pra mim?
Cibele hesitou. Um instante breve. Mas foi bastante para que seu rosto resistisse. Algo nela se partiu — ou talvez apenas se revelou.
— Não é que eu não me ame, Thena. Eu amo. Amo com cada parte de mim. Mas você jogou fora tudo que construímos. Todo o prestígio, toda a trajetória... — a voz dela tremia — Eu lutei tanto pra ter uma filha admirável. E você sempre foi. Até decidir... isso. Abandonar tudo. Virar... “gay”.
O silêncio caiu como pedra quebrando vidro. Então deu um passo atrás. Arregalou os olhos. Um sentimento denso e cortante se reservado pelo peito como uma onda escura. Ela abriu a boca, mas não conseguiu falar por um instante. Só respirou, tentando não tremer.
— Você acha que foi uma escolha? — disse enfim, a voz baixa, firme. — Acha que eu acordei um dia e pensei: “acho que vou jogar fora a aprovação da minha mãe e passar o resto da vida me explicando”? É isso que você acredita?
Cibele pisco. Queria responder. Mas nada saía.
Thena agora tremia — de tristeza, não de raiva.
— Eu passei anos tentando caber na sua imagem. Vesti suas roupas, imitei seus gestos, me moldei à sua sombra. E tudo que eu consegui foi metade. Metade de mim, metade feliz, metade viva. Eu não escolhi isso, mãe. Eu me escolhi. E pela primeira vez na vida, eu estou inteira. E é com ela — mencionado com o olhar na direção do corredor, onde Hela não estava, mas existia — que eu me sinto assim.
Cibele abriu os olhos. Uma única solução escapou antes que ela conseguisse contê-lo.
— Você não entende, Thena. O mundo não é gentil. Ele é cruel com quem sai da linha. Eu tive medo. Tenho medo até hoje. De como vão te olhar. De como vão tratá-la. De como vão me olhar por não ter te impedido.
— E é esse medo que você me impeça de amar como eu mereço?
Chapter 10: Κεφάλαιο 02
Chapter Text
Quando Zuras e Hela retornaram à sala, não precisaram de palavras para perceber que algo havia acontecido. O ar estava denso, como se tivesse sido moldado por vozes cortantes e silêncios prolongados. Era o tipo de atmosfera que se sente na pele — como a umidade que se infiltra nos ossos, mesmo quando ninguém fala sobre uma tempestade.
Thena ainda estava de pé, um pouco afastada do sofá, os ombros tensos e os olhos fixos em algum ponto indefinido entre as caixas. Cibele permanece sentada, perfeitamente imóvel, como se sua espinha fosse feita de ferro. Só as mãos a traíam — os dedos inquietos brincando com a bainha da toalha sobre o colo, como se ainda quisesse dobrá-la, mesmo depois de tantas dobras.
Zuras parou ao lado da estante recém-colocada e pousou as malas no chão com delicadeza calculada. Seus olhos percorreram a cena com a atenção de quem sabe exatamente o que não deve ser aqui. Olhou primeiro para a filha, depois para a esposa. Depois para Hela. E por fim, olhei o chão. Seu silêncio não era passivo — era o silêncio de quem escutava demais.
Hela, ao lado dele, manteve a postura ereta, mas havia algo nos olhos que já compreendia mais do que gostaria. Ela não pediu que ninguém descrevesse a cena: conhecia aquele tipo de silêncio, aquele cheiro de mágoa que flutua mesmo depois de tudo já ter sido aqui. Sabia como o ambiente se retraía ao redor de palavras afiadas que não se apagavam com o tempo.
Então, atraia devagar e rompeu o véu da tensão com a leveza possível.
— Amor, eu vou tomar banho. Já volto.
A frase foi dita com gentileza, mas também era uma permissão silenciosa: para Thena respirar, para a cena se dissolver, para que cada um lidasse com o que coubesse.
Thena olhou. Havia nos olhos dela uma névoa. Algo entre cansaço e gratidão. Uma súplica muda por presença que não sufoca, por toque que não exige explicação. Apenas assentiu, devagar, sem força para sorrir.
Hela passou por ela com um toque leve no ombro — tão rápido quanto um sopro, mas firme o suficiente para dizer: estou aqui, mesmo quando saio de cena. Seus passos ecoaram com sobriedade pelo corredor. A porta do banheiro se fechou, abafando o som do mundo por alguns instantes. O tilintar do metal no gancho da toalha, o estelo da torneira aberto, o sussurrante do chuveiro preenchendo o ar: filhos pequenos de um corpo tentando recompor-se com água quente e silêncio.
Na sala, o relógio marcava 17h23. O tique-taque parecia mais impaciente agora, como se quisesse empurrar os minutos para longe do que acabara de acontecer. Mas o tempo, ali, parecia lento, viscoso, como se grudasse na pele.
Thena ainda encarava uma caixa semiaberta aos pés do sofá. Lá dentro, velhos livros de filosofia e mitologia estavam envoltos em panos de linho e fitas de cetim. Um deles — A Política das Emoções — jazia aberto, dobrado pelo meio, como se também tivesse sido interrompido em uma discussão antiga.
Ela se sentou, mas não por descanso. Era um assentamento ritual. O corpo exausto ainda tremia por dentro, como se a pele não coubesse. Passou os dedos por uma etiqueta rasgada, onde se lia "memórias", escrito com a caligrafia precisa de Hela. Sentiu os olhos marejarem, mas não permitiu que caíssem. Ainda não.
Levantou-se devagar, com uma lentidão quase sagrada, como quem respeita o peso de tudo o que se parte por dentro. Ajeitou os cabelos com um gesto mecânico, respirou fundo e anunciou, com uma voz baixa, mas inquebrantável:
— Eu vou tomar também.
Não esperou resposta. Não havia mais nada a dizer. Apenas atravessou o cômodo com os pés firmes, os ombros mais retos do que sentia por dentro. Cada passo era uma afirmação: eu sigo. A porta do banheiro do corredor se fechou com um clique sutil, e com ela, um pedaço da tarde também se encerrou.
Zuras e Cibele ficaram sozinhos. E o que se instalou ali foi um outro tipo de silêncio — não o cortante entre mãe e filha, mas o espesso entre companheiros antigos. O silêncio de quem já dividiu muito, mas agora não sabe onde pousar o olhar.
Zuras ajeitou-se na poltrona ao lado da janela, os braços cruzados sobre o peito. Observou a luz do fim da tarde projetar sombras longas sobre o tapete. Seus olhos estavam pesados, mas não havia raiva. Só tristeza. Uma melancolia resignada de quem já viu esse tipo de falha acontecer antes — dentro dos outros, dentro de si mesmo.
Cibele permaneceu imóvel por alguns minutos. Depois levantou-se e começou a recolher algumas almofadas do chão. Um gesto pequeno, inútil, mas que lhe dava alguma sensação de ordem. Ajeitou a manga do casaco, depois o cabelo, depois a manga novamente. Tudo para não encarar o marido.
Mas sabia que ele a observava. Sentia o olhar dele. E o peso dele. O julgamento silencioso, mais duro do que qualquer palavra que ele pudesse dizer.
— Não me olha assim — disse, por fim, sem olhar para ele. A voz tensa, defensiva. — Eu sei o que você está pensando.
Zuras respirou fundo. Não respondeu de imediato. Demorou tanto a falar que ela quase achou que ele não diria nada. Mas então, ele falou.
— Eu não tô pensando. Eu tô sentindo.
Cibele ficou em silêncio. A frase dele caiu como uma pedra leve, mas certeira.
Ela apertou os olhos, se virou de costas. E pela primeira vez naquela tarde, deixou a toalha cair no chão sem recolhê-la.
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Zuras segurava firmemente as duas malas pesadas, os músculos do antebraço tensionados pelo esforço — não apenas físico, mas emocional. Seus passos, calculados e meticulosos, não conseguiam disfarçar completamente o peso que carregava. O peso de tudo o que havia sido dito, o que fora silenciado, e o que ainda pairava como poeira emocional sobre a sala.
Ele sabia. Sabia exatamente o que Cibele havia feito. Sabia das palavras duras, das lâminas disfarçadas de cuidado, da rejeição revestida de preocupação. Conhecia cada nuance da esposa, cada dobra do orgulho que se confundia com amor. E, ainda assim, tentava se manter inteiro. Firme. Não para ele — mas por Thena. Por Hela. E, de alguma forma, até por Cibele, mesmo quando o vínculo entre eles parecia mais memória do que presença.
Ao chegar à porta, Zuras depositou as malas com cuidado no chão, como se o ruído pudesse ferir alguém. Virou-se, pronto para sair, mas parou. Sentiu o olhar de Cibele cravado em suas costas como um aviso antigo, familiar. E o silêncio entre eles se estendeu por minutos inteiros, feito corda esticada entre dois precipícios.
Até que, inevitavelmente, ela o cortou.
— Que cara azeda é essa, Zuras? — disse, o tom ácido mascarado de indiferença. — Parece que quem brigou foi você. Tá com essa expressão de mártir. Que que houve, afinal?
Ele se virou devagar, com a precisão de quem já teve essa conversa outras vezes. Seus olhos a fitaram com uma calma que era mais exaustão do que paciência. Quando falou, sua voz era baixa, firme e sem arestas.
— Você sabe o que houve. E eu não vou discutir de novo. Eu estou aqui para ajudar na mudança da nossa filha. Da nossa filha, Cibele. E da mulher que ela ama. Faça o mesmo.
Cibele cruzou os braços com rigidez. Os olhos brilharam com uma mistura de orgulho ferido e incredulidade contida. As palavras dele pareciam provocação direta ao que ela ainda se recusava a aceitar.
— Então é isso? Você... apoia isso? Você realmente aceita? — a voz dela vacilou levemente, depois endureceu — Você aceita essa… essa vida? A nossa filha... casada com aquela coisa?
Zuras cerrou levemente a mandíbula. Não gritou. Não se alterou. Apenas repetiu, com um tom ainda mais calmo — mas agora carregado de um cansaço abissal.
— Estou aqui para ajudar minha filha. E minha nora. Faça o mesmo.
O silêncio que se seguiu não era vazio. Era denso, sufocante. Cibele respirou fundo, mas a respiração veio truncada. Seus dedos buscaram a gola do casaco, roçando o tecido como se isso pudesse ancorá-la em alguma certeza antiga.
— Você sempre foi assim — disse ela por fim, mais suave, mas com amargura no fundo da voz. — Calmo. Distante. Como se fosse fácil aceitar qualquer coisa se você respirar fundo o bastante. Mas isso… isso não é qualquer coisa. Eu não sei mais o que fazer, Zuras. Eu durmo e acordo com o coração doendo. A Thena não é mais a filha que eu criei.
Zuras baixou os olhos por um momento. E quando voltou a olhar para ela, havia ali uma tristeza contida — não a raiva de quem quer vencer uma discussão, mas o luto silencioso de quem sabe que algo precioso se perdeu no meio do caminho.
— Ela é exatamente a filha que criamos — respondeu, com um suspiro. — Só que agora ela é inteira. E você não sabe lidar com isso.
Cibele vacilou. Os ombros murcharam por um instante, mas logo o orgulho voltou. Ela ergueu o queixo, tentando se manter firme.
— Desde que aquela mulher apareceu… tudo ficou mais instável. Desde aquela história de Mahd Wy’ry. Que doença é essa que ninguém sabe explicar? Ela nunca teve isso até a gente ter Mallory. Até deixar de ser filha única. Aí, de repente, ela quebra? Ela enlouquece?
Zuras não se mexeu. Seu rosto permaneceu imóvel, mas os olhos — os olhos diziam tudo.
— Mahd Wy’ry não é frescura, Cibele. — Sua voz era baixa, pesada. — É sofrimento real. É o tipo de dor que você não quis ver. E Hela... Hela é quem segura a nossa filha quando nem ela mesma consegue se carregar.
Cibele riu, mas era um riso vazio.
— Ah, claro. A salvadora. A deusa da morte que agora virou terapeuta. Que coincidência conveniente.
— Ela não precisa ser conveniência. — Zuras deu um passo. Um só. Mas parecia que o chão se movia com ele. — Precisa apenas existir. E amar a nossa filha. E isso ela faz. Muito mais do que você.
O silêncio entre eles se esticou até quase estalar.
E então, a porta do banheiro se abriu.
O som foi baixo, mas naquela sala silenciosa, pareceu um estrondo.
Thena surgiu no topo da escada. O corpo ereto, os cabelos ainda úmidos, o rosto limpo de maquiagem e carregado de tudo que ouvira. Ela não precisava falar — a forma como descia os degraus, descalça, já dizia tudo. Ela ouvira.
Sua blusa de lã branca contrastava com o contorno firme de seus ombros. A gola rolê envolvia seu pescoço como armadura. O jeans claro estava dobrado com precisão. Os pés descalços tocavam a madeira com suavidade e força. Ela era elegância contida, dignidade em movimento.
Passou pelos pais com olhos firmes. Olhou o pai por um segundo e, nele, encontrou acolhimento. Olhou a mãe — e ali, não buscou nada.
Foi até uma caixa ao lado do sofá. Ajoelhou-se. Começou a revirar objetos antigos. O silêncio rugia.
Zuras desviou o olhar. Cibele... não teve coragem de sustentar.
O relógio da parede marcava 17:23. O tempo avançava, como sempre. Mas dentro daquela sala, o que estava em curso era outro tipo de passagem: o fim de uma ilusão — e o início de algo novo, mesmo que despedaçado.
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17:27
E então, como se rasgasse o véu do silêncio denso que dominava o andar térreo, uma voz ecoou do andar de cima — inesperada, desafinada e completamente fora de sintonia com a gravidade que reinava na cozinha:
— Salagadoola mechicka boola bibbidi-bobbidi-boo
Put 'em together and what have you got...
Bibbidi-bobbidi-boo!
Era Hela.
Cantando.
Cinderela.
A plenos pulmões, como se a casa não estivesse tomada por caixas, mágoas e palavras cortantes que ainda ardiam no ar. A voz era rouca de sono, arranhada de cansaço, mas carregava uma alegria insolente, teatral, debochada — como se estivesse encenando um musical particular só para zombar da tensão suspensa lá embaixo. Cada sílaba vinha entoada com desdém carinhoso pelas convenções do momento. Um ato de resistência lúdica. Ou sabotagem mágica.
Zuras, que estava agachado encaixotando livros na sala, ergueu o tronco devagar, franzindo as sobrancelhas com a cabeça levemente inclinada, como quem tentava decifrar um idioma alienígena vindo do teto.
— Ela tá... cantando Cinderela? — perguntou, confuso, quase atônito, como se não soubesse se ria, suspirava, ou se procurava uma citação estoica para entender aquilo.
Thena nem ergueu os olhos. Sentada com uma caneca entre as mãos, os dedos pressionando a alça com mais força do que o necessário, o maxilar visivelmente tenso, os olhos fixos em algum ponto muito além da sala.
— Tá — confirmou, com uma voz seca, desidratada de paciência. — E usando o inglês da Disney, o que é ainda pior.
Do outro lado, Cibele revirou os olhos com um desprezo que nem tentou disfarçar. Seus lábios se contorceram num esgar silencioso e lento, e o modo como apertou o colar no pescoço parecia mais uma tentativa de não explodir do que um gesto estético. Seu corpo inteiro era contenção.
— Infantil — murmurou, num tom alto o bastante para ser ouvido, mas baixo o suficiente para fingir que não era provocação. — E ainda dizem que é uma deusa.
Thena ouviu. Mas não respondeu. Apenas fechou os olhos por um segundo, como quem contava mentalmente até mil para não se dissolver ali mesmo, entre malas, julgamentos e feitiços musicais.
Lá em cima, uma porta rangeu. O som da madeira antiga cedeu sob os pés de Hela, que agora andava pelo corredor — provavelmente enrolada numa toalha absurda ou, mais provável ainda, completamente nua, carregando consigo uma despreocupação escandalosa com a gravidade dos mundos.
A cantoria, longe de cessar, ganhou intensidade:
— It’ll do magic, believe it or not—
Bibbidi-bobbidi-boo!
Zuras soltou um sopro de riso pelo nariz, tentando disfarçar a onda de admiração involuntária. Apesar da excentricidade, havia algo naquela cena — naquela liberdade com que Hela existia — que lhe causava um desconforto bonito. Como se visse nela a coragem de ser o que ele jamais ousou.
— Ela tá impossível, Thena — disse ele, voltando às caixas com um leve meneio de cabeça. — Vai dar trabalho até na Islândia.
— Não é que vai — respondeu Thena, ainda seca, mas agora com um cansaço mais quente, mais familiar. — Já deu.
E mesmo ali, sentada como se o mundo inteiro estivesse nas costas, havia um brilho nos olhos dela. Discreto, quase imperceptível. Mas presente. Um brilho que surgia sempre que Hela fazia isso: aparecia como raio de comédia dentro do drama, encantamento absurdo em meio à desordem. Ela era caos com luz própria.
Era um talento.
Ou uma maldição.
Thena ainda não tinha certeza.
Cibele cruzou os braços, os dedos crispados sobre o tecido da blusa, o olhar cravado na escada como se quisesse que Hela simplesmente evaporasse por ela. Sua postura era a de quem se recusa a rir da piada. A de quem assiste o palco ser tomado por forças que não aprova — e secretamente teme.
— Isso não é normal — murmurou, quase como uma oração amarga. — Isso é desequilíbrio. Chamam isso de amor, mas não passa de delírio compartilhado.
Zuras não respondeu. Não valia a pena. Discutir com Cibele era tentar conter maré com os punhos. Em vez disso, encaixou mais uma caixa na pilha e lançou um olhar silencioso para Thena — que, mesmo esgotada, ainda brilhava. Ferida, mas inteira. E viva.
Mesmo sendo filha dela.
Lá em cima, com um floreio final que teria feito as fadas madrinhas aplaudirem de pé, Hela gritou, triunfante:
— Bibbidi-bobbidi-BOO!
E o silêncio seguinte foi ainda mais alto.
Thena levou a mão à testa, apertou os olhos. Suspirou. Riu — mas só por dentro.
Porque essa era a sua esposa.
Uma bruxa do caos. Uma deusa teimosa e insolente.
E, em meio a malas, julgamentos, mágoas e escadas, ela fazia o impossível: transformava a dor em musical.
Transformava o fim em teatro.
Transformava Thena, mais uma vez, em alguém que conseguia respirar.
E talvez fosse isso que a tornava insuportável para Cibele.
E insubstituível para Thena.
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17:38
— Tô pronta. — anunciou Hela do alto da escada, erguendo os braços como quem acabara de vencer uma batalha invisível. O que, vindo dela, era provavelmente verdade.
Thena virou-se devagar, como quem já antecipa o desastre. Seu olhar subiu degrau por degrau até alcançar a esposa no topo da escada — e o que viu fez evaporar o último vestígio de paciência que ainda resistia.
— Hela... — começou com uma calma traiçoeira, o tipo de voz que precede tornados. — Jura. Pela sua imortalidade. Que você não vai vestir esse pijama do Olaf.
— Pra uma viagem de mais de vinte horas! — acrescentou, já gesticulando com as mãos, incrédula. — Com conexões, escalas, trem e aeroportos. No réveillon!
Hela, parada a meio da escada, projetou o corpo ligeiramente para frente, o queixo erguido em provocação teatral. O pijama azul-bebê, felpudo, com botões brancos e a cara sorridente do boneco de neve caída sobre os ombros, reluzia sob a luz amarela da cozinha como um insulto visual deliberado.
Ela cruzou os braços. E fez beicinho.
— Vou sim.
Zuras, abaixado ao lado da estante, terminava de lacrar uma caixa com fita adesiva. Ergueu um dedo, hesitante, como quem ponderava antes de se atirar num campo minado conjugal.
— Em defesa dela... parece confortável.
Thena virou-se para ele com uma lentidão que deveria ser medida em geológicas eras. Seu olhar cortante atingiu o pai como uma lâmina silenciosa.
— Confortável? Pai, confortável é ir de legging térmica e segunda pele. Não virar mascote da Frozen em Zurique.
Cibele, recostada na cadeira com uma xícara intocada entre os dedos frios, franziu o nariz com visível repulsa.
— Ridículo — murmurou, sem se dirigir a ninguém em particular. — E dizem que é uma mulher adulta.
Hela naturalmente as sobrancelhas. Não se abalou. Desceu mais dois degraus de forma performática, fazendo o zíper ranger como uma provocação viva.
— Olaf tem sentimentos também, Thena — disse com uma solenidade fingida. — E se eu vou ser julgada por querer dignidade térmica, então aceito com honra prisão por terrorismo fashion.
Thena fechou os olhos por um instante. Massageou a testa. Respirou pela terceira vez em menos de um minuto.
— Você é o próprio atentado — murmurou. — Eu devia ter escondido esse pijama quando fiz as malas.
— Você acha mesmo que eu ia deixar o Olaf pra trás? — rebateu Hela, triunfante. — Isso aqui é meu amuleto. A gente sobreviveu ao apagão de Viena juntas, lembra?
— Sim — disse Thena, ríspida. — E você foi abordado por quatro seguranças armadas por “comportamento suspeito”.
— Coincidência — deu de ombros. — Coin-ci-dên-ci-a.
Argus, do sofá, soltou um miado grave, como quem verbalizava o espírito de Thena. Garm, deitado entre as malas, abriu um olho, suspirou e voltou a fechá-lo — resignado.
Thena se extraviou com a lentidão de uma diplomata derrotada. Pegou sua bolsa de documentos com a precisão metódica de quem ainda tentava salvar alguma ordem no naufrágio.
— Se você for deportado na conexão, só espero que seja um lugar com Wi-Fi.
— Íslandiaaaa, vamos lá! — Hela, girando nos calcanhares com os braços abertos, o capuz do Olaf cobrindo metade do rosto. O tecido balançava, estalando como bandeira de pelúcia em plena revolução.
Zuras a observava com um sorriso discreto, quase nostálgico. Havia nele uma ternura escondida, como quem regularmente, naquela excentricidade, a liberdade que ele próprio nunca ousou viver.
Cibele, por outro lado, apertava a alça da xícara com os dedos rígidos. Seu olhar era ácido, frio, cortante. Nem fingia mais. O desprezo reluzia, limpo, como prata polida.
— É isso que Thena escolheu? — sussurrou, mas alto o bastante para ser ouvido. — Um bufão de pijama. Um circo particular.
Thena parou no centro da sala. Girou lentamente sobre os calcanhares. A expressão estava serena, mas glacial — a calma de quem não cede mais à dor. Só reage com clareza.
— Não — respondeu, sem hesitar. — Eu escolhi alguém que faz o mundo parecer suportável quando tudo está desabando. E você não precisa entender isso, mãe. Mas vai respeitar.
Cibele sorriu. Um sorriso curto, cínico, sem luz.
— Respeito não se exige. Se conquiste.
Thena inclinou a cabeça. O olhar dela era de lamento. Lamento por uma mulher que ficou para trás no próprio tempo.
— Então talvez seja por isso que você perdeu o meu.
Hela, agora parada ao lado das malas, pegou tudo. Pela primeira vez, não respondeu com piada. Nem provocação. Apenas liberado. Com reverência. Como se visse Thena — inteira, exposta, firme — e se lembrasse, mais uma vez, por que escolheu ficar.
Thena tomou um gole do café que já estava frio. Fechou os olhos por um instante. E murmurou, mais para si do que para os outros:
— Cinco anos. Mais cinco anos. Depois eu mudei para Marte. Sozinha.
Olá. Mas só com os olhos.
Argus pulou no colo de Zuras, acomodando-se como um rei em exílio voluntário.
Garm soltou outro suspiro longo.
E Cibele, sozinha entre todos, confortável imóvel. Uma ilha de gelo cercada de afetos que ela não sabia — ou não queria — considerar.
Chapter 11: Κεφάλαιο 03
Chapter Text
17:52
— Quantos pijamas macacões de personagem ela tem, afinal? — perguntou Zuras, franzindo a testa como quem contempla um mistério cósmico. Os olhos semicerrados tentaram, em vão, decifrar a cena díspar diante dele: a deusa da morte, ajoelhada no meio da sala, perdida entre uma bagunça encantada e sua própria mitologia particular.
Hela estava no chão como uma criança inventando rituais. Joelhos afastados, cotovelos firmes no tapete enrolado contra a parede, e entre os dentes — com naturalidade impressionante —, uma escova elétrica do Darth Vader, ainda vibrando levemente, como uma arma esquecida em sua missão original. A língua mordida no canto da boca indicava concentração extrema. Diante dela, uma pequena necessaire azul-celeste com o rosto desbotado do Stitch parecia lutar pela própria sobrevivência, enquanto ela tentava espremer até a última gota de um hidratante de lavanda num espaço que já continha o caos do multiverso.
Dentro da bolsinha abarrotada, havia de tudo: miniaturas de shampoo, sachês de máscara facial vencida, sombras cintilantes em tons de galáxia, elásticos de cabelo com orelhinhas de coelho, uma pulseira de miçangas tortas com o nome "Thena" mal escrito, chicletes metálicos, um gloss em formato de abacaxi e uma pedrinha embrulhada em olhar rotulada como "rocha lunar atraente (ou emocional)". Era um relicário de uma infância inventada e uma vida levada com ironia.
Enquanto lutava com o zíper estourando, ela cantava “You're Welcome”, de Moana, dançando com os ombros, como se estivesse surfando em uma onda invisível que só ela via.
Zuras coçou a barba lentamente. Fascínio e inquietação misturaram-se num gesto tão longo quanto o tempo que ele demorou para aceitar que sua filha se casasse com um cometa em forma humana.
— Porque, sinceramente… uma variedade tá começando a me preocupar — murmurou ele, quase para si mesmo.
No outro lado da sala, Thena também estava ajoelhada, mas o contraste era brutal. Encarava sua mala grafite como se fosse uma pesquisa maligna. O zíper lateral emperrado pode ser personalizado, personalizado e respiratório controlado. Cada movimento dela era metódico, quase militar. Quando respondi, a voz veio baixa, seca, exercitada de um cansaço que não era físico:
— Desisti de contar.
Puxou o zíper com força precisa, como quem encerra um capítulo interno, e murmurou:
— No dia em que encontrei o do Sullivan dentro da fronha do travesseiro, entendi que estava perdendo para uma força superior.
Zuras piscou.
— Sullivan?
— Sullivan, pai — repetiu Thena com um tédio polido. — Azul, peludo, rabo costurado. Segundo ela, “pra dormir mais protegido”.
Zuras hesitou, tentando alcançar a lógica por trás da essência.
— Protegida de quê?
– Pesadelos. Capitalismo. Crescer. Vai saber.
Do fogão, como uma estátua viva, Cibele se virou. A mãe de Thena tinha os ombros retos como espadas embainhadas e o rosto esculpido em mármore. Mas seus olhos, ah, aqueles olhos... eram navalhas. Ela percorreu Hela com o olhar de quem avalia o ponto fraco de uma estrutura instável.
E então falou.
— Ou talvez seja só uma recusa patética de amadurecer.
Foi como se uma corrente fria tivesse atravessado o cômodo. Até a luz da tarde pareceu se retrair.
Thena congelou. Os dedos ficaram imóveis sobre o zíper já vencido. O maxilar travado denunciava a raiva que crescia em silêncio — uma raiva treinada para não explodir, especialmente quando prestes a encarar doze horas de conexão com uma mãe tóxica e uma esposa de pijama temático.
Mas Hela ouviu.
Com lentidão calculada, ergueu-se do chão como se emergisse de um número musical inacabado. Ainda segurava a necessaire azul-celeste entre os dedos e sacudiu as mangas largas do pijama do Olaf com uma dignidade cômica e perturbadora. Então, puxou a manga esquerda até o cotovelo com solenidade e anunciou:
— Eu tenho a tatuagem dele.
— Do... Sullivan? — perguntou Zuras, como quem tentava confirmar o surreal.
— Atrás do pescoço — disse ela, como se dissesse “na entrada da alma”.
Sem dar tempo a qualquer súplica, Hela afastou os cabelos pretos com um movimento dramático. E lá estava ele: Sullivan, tatuado entre as vértebras e a base do crânio, azul e sorridente, acenando gentilmente com uma pata peluda. O traço era delicado, quase terno.
— Meu guardião. Me protege de más vibrações, filas da imigração e voos com criança chorando.
Zuras reprimiu um riso. Aquilo, no fundo, era Hela em sua forma mais pura: absurda e honesta. Cínica e devotada. Uma revolução em pelúcia.
— Meu pai tem a Boo no mesmo lugar — acrescentou com um brilho de travessura nos olhos.
Cibele não sorriu. Apertou a xícara com força, e o som da porcelana contra o pires soou como ameaça.
— Tatuagens de personagens infantis — disse, agora mirando Thena, como se Hela fosse indignidade demais para ser confrontada diretamente. — É com isso que você quer passar o resto da eternidade? Com alguém que se fantasia de brinquedo e se ancora em bonecos para evitar crescer?
Thena se levantou com lentidão ritual. A cada centímetro, deixava para trás séculos de contenção. Ajeitou a alça da bolsa, tocou o passaporte, e então ergueu o rosto. Seus olhos estavam firmes. Calmos. E devastadores.
— Não é com isso que eu quero passar a eternidade — disse. — É com ela.
O silêncio que se seguiu não era comum. Era denso, definitivo. Não cabia réplica.
Hela, agora atrás dela, ficou em silêncio. Nenhuma piada. Nenhum floreio.
Apenas um olhar.
Como quem vê o mundo inteiro se justificar em uma frase.
E escolhe, mais uma vez, continuar amando.
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17:55
— Pegou tudo, Hela? — A voz de Thena soou da porta com uma firmeza que mascarava inquietação. Tinha um tom seco, quase pragmático, mas por trás dele havia algo que escapava ao controle — uma esperança sutil, uma ansiedade que não se permitia confessar. As alças da mochila escorregavam em seus ombros com o peso não só dos pertences, mas de todas as tentativas de manter tudo em ordem. Os dedos tamborilavam na lateral da bolsa como quem recita mentalmente um feitiço de contenção. O check-list passava outra vez pela mente, página por página: passagens, passaportes, protetores solares, pastas, carregadores, remédios para enjoo, a pulseira do aeroporto. Tudo.
Sentada no sofá como uma criatura mítica em repouso, Hela mal ergueu a cabeça. Encolhida entre as almofadas amassadas, com o capuz do pijama do Olaf apontado para cima feito um estandarte de desobediência lúdica, murmurou:
— Quase...
Os olhos dela percorriam as entranhas do sofá com uma concentração quase sagrada, como se buscasse ali, entre migalhas, elásticos e sonhos desbotados, os últimos vestígios de organização.
Thena apertou o maxilar. Sentiu o músculo vibrar sob a pele como um fio tenso prestes a romper. O silêncio que se formou pareceu denso, sólido, como se o ar estivesse agora feito de vidro.
— Falta o quê?
— Achar minha passagem e meu passaporte... — respondeu Hela, sem ironia, mas com a voz infantilizada pelo constrangimento. Ainda assim, não parecia disposta a dramatizar. Talvez por defesa. Talvez por hábito.
O tempo parou.
Não metaforicamente. Parou mesmo. A casa suspendeu sua respiração. Zuras, prestes a encaixar o carregador no adaptador europeu, congelou o movimento como se um campo de força tivesse o detido. Os olhos, antes dispersos, agora estavam fixos em Hela com um misto de expectativa e descrença.
Cibele, de pé junto à janela, levantou a xícara a poucos centímetros da boca, mas não bebeu. O olhar dela, perdido em uma distância fria e simbólica, atravessava a sala como uma navalha suspensa, julgando não o momento em si, mas a soma de todas as escolhas que culminaram naquela cena. Ela não precisava dizer nada. O julgamento já estava proferido.
No canto da sala, Argus ergueu uma orelha e tornou a deitá-la, desinteressado, mas Garm soltou um suspiro pesado, carregado de uma sabedoria ancestral. Era como se os cães também já soubessem que aquilo não ia terminar bem.
— O que você quer dizer com "achar"? — Thena indagou, a voz tão gelada quanto o mármore do chão que pisava. Não era um grito. Era um diagnóstico.
Hela não respondeu de imediato. Puxou para perto uma das mochilas — uma com estampa de “Esqueleto Dançarino” e chaveiro do R2-D2 — e começou a esvaziá-la. Os objetos se espalhavam como a memória desordenada de uma infância longa demais: uma meia com estampa de raposa, um pacote de bolacha mordido e reamassado, um Thor de vinil usando avental rosa, um saquinho de pedras energéticas, luvas pretas com ossos desenhados, uma presilha de morcego e um broche prateado com os dizeres: “Gothic but Soft”.
— Eu deixei em algum lugar seguro... — explicou, franzindo o cenho. — Muito seguro. E agora não lembro onde.
Thena fechou os olhos. Respirou fundo. Contou até dez. Depois até quinze. Não ajudou. Voltou a abrir os olhos com a expressão de quem escolheria o exílio ao invés de repetir aquele diálogo pela milésima vez.
— Você jurou que tinha colocado tudo na pasta azul dos documentos. J-U-R-O-U.
Hela a encarou como se tivesse sido acusada de roubar fogo do Olimpo.
— Coloquei! Eu acho... talvez tenha sido na roxa. Ou laranja. A azul é a dos adesivos de coala ou a dos morcegos?
Thena não respondeu. Com um gesto que unia exaustão e precisão cirúrgica, retirou a mochila das costas, abriu o bolso externo e puxou de lá a pasta azul — coberta de adesivos de morcego com glitter fosforescente.
— Isso aqui?
Hela a fitou como se Thena tivesse acabado de ressuscitar alguma deidade menor. Os olhos brilharam, a boca se abriu num “uau” reverente.
— Você é um milagre encarnado, sabia?
— E você é a enxaqueca que me mantém no neurologista, — retrucou Thena, devolvendo a pasta com um estalo preciso. A ironia, embora discreta, pingava como chuva gelada numa têmpora já sensível.
Zuras riu baixinho. Era um riso de sobrevivente. Depois virou-se para Cibele, buscando um lampejo de cumplicidade. Não encontrou.
— Elas ainda vão perder o voo por causa de um pijama e uma pasta colorida...
Mas Cibele não riu. Não sorriu. Não piscou.
— Nada mais justo, — disse, com a voz de uma lâmina que corta sem esforço. — Quando se escolhe viver numa fantasia, os danos colaterais são inevitáveis. Crianças que se agarram a bonecos e pijamas coloridos não merecem mais do que a responsabilidade de lidar com suas próprias falhas.
Aquela frase caiu na sala como uma explosão silenciosa. Não havia como medir os escombros.
Thena permaneceu imóvel, segurando a pasta azul com firmeza. A mão tremia levemente, mas não cedeu. O olhar dela não saiu do chão — não por submissão, mas por contenção. O silêncio em sua postura era uma muralha.
Hela, então, ergueu a cabeça. Seus olhos buscaram a parede oposta, onde a luz do fim de tarde atravessava as cortinas e projetava sombras longas e líquidas no chão encerado. Quando falou, a voz era firme. Não debochada. Firme.
— Se for assim, prefiro continuar sendo criança. Porque pelo menos assim, eu me protejo.
Thena deu dois passos. Um espaço minúsculo se fechou. E entre as duas, formou-se algo mais íntimo que um abraço: um olhar silencioso de compreensão, de lealdade, de pacto.
Entre as malas semiabertas, documentos salvos e absurdos cotidianos, restava algo muito mais precioso do que a ordem ou a aprovação: o amor escolhido. Mesmo que ele tivesse glitter, adesivos de morcegos e cheirasse a lavanda.
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18:00 em ponto.
Dois táxis aguardavam na rua de paralelepípedos, estacionados lado a lado como sentinelas de uma travessia silenciosa. Seus motores ronronavam num ritmo baixo e constante, produzindo nuvens brancas que subiam em espirais preguiçosas e se desfaziam no frio úmido da tarde. A luz amarelada do único poste aceso oscilava com o vento, tingindo a calçada de um tom ocre que parecia pertencer a outra década.
O ar carregava o aroma fresco das folhas secas que se acumulavam nos cantos da rua — um cheiro terroso, ancestral, misturado ao traço distante de fumaça de lenha e sal marinho que vinha do campo próximo. Tudo sussurrava partida.
Homens com jaquetas grossas, rostos marcados pelo tempo e mãos calejadas, se moviam com precisão quase militar. Malas de rodinhas, pesadas e rangentes, eram içadas e acomodadas com esforço. O impacto seco de cada bagagem sendo colocada no porta-malas misturava-se ao ruído metálico do zíper, ao som grave das rodas sendo arrastadas no chão de pedras irregulares. Era uma dança sem música, coreografada por urgência e contenção.
No portão da casa, Zuras mantinha uma presença firme. De braços cruzados sobre o peito, supervisionava a cena como um general silencioso em um campo de batalha emocional. Os olhos cinzentos vasculhavam cada gesto, cada item, cada despedida implícita. Ao seu lado, a velha caminhonete azul-cobalto — já marcada pelas décadas — estava aberta, com a caçamba acolhendo mochilas menores, sacolas de tecido com nomes bordados à mão, casacos extras, um travesseiro com estampa de constelações. Os objetos miúdos do cotidiano que só fazem falta quando não estão mais por perto.
Hela surgiu da casa com passos lentos, vestindo o mesmo pijama macacão do Olaf, agora coberto por um sobretudo largo que parecia emprestado do tempo. A bolsinha do Stitch pendia no ombro, desabrochando zíperes, fitas e promessas. Nos olhos, uma confusão silenciosa: nostalgia mal disfarçada, pressa contida, cansaço que não dormiu, medo de ir, medo de ficar. Seus dedos apertavam um pacote de pastilhas de gengibre com tanta força que o papel amarrotado estalava como um nervo exposto.
Thena vinha logo atrás. O casaco de lã branco delineava a figura ereta, exata, como um traço de carvão sobre papel branco. A gola rolê subia até o queixo, protegendo a parte do corpo onde mais se segurava a raiva. Nas mãos, a pasta dos documentos era tratada como um relicário — ali estavam os nomes, os destinos, os vistos, os futuros. Quando ela fechou a porta da casa atrás de si, o som reverberou como o fim de um capítulo antigo. Não houve chave girando. Apenas o clique do trinco. Definitivo. Sem volta.
Na varanda, sentada com a postura de uma rainha deposta, Cibele observava tudo. As mãos finas cruzadas no colo, os olhos semicerrados como se enxergassem através do tempo. Não havia lágrima. Não havia palavra. Apenas a expressão de quem já dissera tudo que tinha a dizer — e decidira que o silêncio agora seria sua última sentença. Havia em seu rosto um mármore antigo, tão polido que nenhuma emoção conseguia aderir.
Zuras, antes de subir na caminhonete, lançou-lhe um olhar breve, carregado de anos partilhados, pactos desfeitos e uma culpa que não era exatamente dele. Ela não respondeu. Não precisava.
Do lado de fora, as malas batiam umas contra as outras com sons metálicos, secos, precisos. A rua sussurrava com o farfalhar das folhas empurradas pelo vento. Um cachorro latiu ao longe. Um rádio tocava alguma canção antiga numa casa vizinha. A realidade se dobrava num ponto de virada.
Hela parou no meio da calçada. Olhou para a casa. Para a varanda. Para a porta agora fechada. Respirou fundo. Não chorou. Mas também não sorriu.
Thena tocou seu ombro com a ponta dos dedos — o gesto mínimo, íntimo, suficiente para que ambas entendessem: estava na hora.
E então, como quem atravessa um portal invisível entre o que se foi e o que está por vir, elas entraram nos carros, levaram o silêncio consigo e deixaram para trás não apenas uma casa — mas uma versão antiga de si mesmas.
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Cibele manteve o olhar fixo no táxi da frente, onde o motorista acabava de fechar o porta-malas com um estalo abafado. O som pareceu ecoar no peito dela como uma porta que se fecha tarde demais. O frio da tarde fazia o tecido do seu casaco de lã grossa estremecer sobre os ombros, mas não era o vento que a incomodava — era o que não conseguia controlar.
— Ela tem mesmo que ir junto com a gente, Zuras? — perguntou. A voz era baixa, mas afiada como uma faca que já conhecia bem os pontos vulneráveis. Não soava como uma dúvida. Soava como um veneno.
Zuras demorou um instante antes de responder. Estava com as mãos enterradas nos bolsos do sobretudo, os ombros tensos sob o peso invisível da convivência contida. Observava Hela mais adiante, ainda com o pijama do Olaf, rindo de algo que dissera ao motorista do segundo táxi. A cabeça dela balançava com o capuz como se o frio fosse brincadeira, como se o mundo não lhe pesasse.
— É nossa nora, Cibele. — disse ele, calmo, firme, como quem já havia repetido aquela frase em muitos silêncios. — Quer você goste ou não.
Cibele virou o rosto, lenta e fria, como quem dobra uma carta indesejada antes de atirá-la ao fogo.
— Ela é esposa da Thena. — corrigiu, ríspida. — Nora minha ela não é.
Zuras não desviou o olhar. Não havia irritação em seu rosto — apenas o cansaço acumulado de décadas de desvios, de feridas cobertas com palavras mornas.
— Você pode continuar dizendo isso em voz alta, se quiser. Mas isso não altera os fatos. — disse, sem elevar o tom. — Elas dividem uma casa. Uma vida. Uma dor. E agora dividem uma jornada. Você pode aceitar recusa... mas respeitar o mínimo.
Cibele abriu os lábios, o queixo tremendamente quase imperceptivelmente. Não respondi. Olhou para a calçada, como se preferisse encarar as rachaduras não concreto do que o espelho que as palavras do marido lhe erguiam.
Ao longe, Thena caminhava de volta para eles, com o casaco branco fechado até o pescoço e os passos rápidos, refinados como suas palavras quando ferido. O vento empurrava os fios soltos de cabelo contra seu rosto. Prendeu-os atrás da orelha com precisão quase ritualística — como se, ao domar os fios, tentasse domar também o que ardia sob a pele.
Hela, percebendo o peso do silêncio, pulou duas vezes sobre o capacho com Olaf bordado, os pés unidos, as mãos erguidas como quem faz mágica:
— Quem vai no banco da frente comigo? Hein? Quero ver quem vai ter coragem de dividir o carro com a própria encarnação do inverno mágico!
Cibele virou de costas. Nem um músculo do rosto se moveu.
Zuras soltou um riso breve, quase nasal, o tipo de riso que nasce da exaustão e da admiração relutante.
— Eu vou, Hela. E se você começar a cantar Let It Go, eu jogo meu celular pela janela.
— Então eu canto mais alto! Com a voz de Idina Menzel, no tom da Broadway! — respondeu Hela, já abrindo a porta do táxi como quem abre a cortina de um teatro para o primeiro ato.
Thena parou no meio do caminho. Ficou ali — entre o riso da mulher que escolheu e a frieza da mãe que ainda lutava contra o que não queria entender. Respirou fundo. O ar entrou como lâmina nos pulmões. Fechou os olhos. Por um instante, pareceu pequeno diante da vastidão de tudo aquilo.
Cibele nem se transformou.
Zuras passaram por ela, os passos pesados, mas constantes. Ao alcançar a porta aberta do táxi, ela virou de nível. E disse, sem amargura, apenas com a verdade que tantos evitam:
— Você não pode chamá-la de nora.
Fez uma pausa. A luz do poste desenhava sombras fundas em seu rosto. Havia amor ali. E desapontamento também.
— Mas ela cuida da nossa filha como ninguém jamais cuidou.
E então entrou no carro. Fechou a porta com cuidado. E deixou a frase pairar no ar, como um veredito incontestável, ecoando entre os espaços onde o amor, mesmo ferido, ainda insistia em resistir.
Chapter 12: Κεφάλαιο 04
Chapter Text
Hela desceu o último degrau da varanda com a leveza desastrada de quem sempre fazia tudo parecer um número de comédia involuntária. O capuz do Olaf caiu torto sobre os olhos; as luvas pretas, com ossos brancos desenhados, cobriram as mãos cruzadas à frente do corpo como num ensaio de contenção. O pijama azul-claro contrastava com a sombra cada vez mais longa da tarde — um contraste entre farsa e verdade, entre o que se veste para se proteger e o que já está nu por dentro.
Aproximou-se saltitando, os pés batendo ritmadamente no chão como uma criança acesa antes de um passeio. Contornava o carro para pular no banco da frente ao lado de Zuras — o gesto já ensaiado, automático, uma tentativa de se aninhar na presença rara, mas gentil, do sogro.
Mas então, seus olhos se cruzaram com os de Cibele.
Não houve palavra. Nem movimento. Apenas olhe.
Um olhar gélido, composto por camadas de silêncio acumulado, conservadorismo polido, boas maneiras afiadas como lâminas. Um olhar que não mata, mas fere com soluções cirúrgicas — que não expulsa, mas exclui com requinte. O tipo de coleta que não se explica porque nunca se assume. Mas se sinta.
Foi o bastante.
O sorriso de Hela se desfez num segundo. Não houve escândalo, nem ocorrência. Apenas o murchar lento do rosto — como um balão perdendo pelas bordas. Os ombros, antes erguidos com aquela paixão quase infantil, caíram. O corpo todo dela, tão cheio de personagem, de cor, de calor, pareceu diminuir alguns centímetros. Como se deixasse de caber ali.
Ela parou ao lado da porta do passageiro, o capô agora cobrindo metade do rosto. Pigarreou baixinho, recuando um passo. Tentou sorrir de novo, mas o som que saiu foi hesitante, miúdo, como se tivesse que se espremer para passar por entre as palavras:
— Deixa... deixa pra lá. Eu vou atrás com Thena. — forçou uma risadinha, com os braços ainda meio abertos, tentando justificar. — O Argus e o Garm já estão tão lá, né? Faz mais sentido. Eles se sentem melhor comigo por perto.
Zuras, que já abriu a porta do passageiro para ela, parou. Observei Hela com um abertura discreta, mas fundo, no peito. Sabia o que tinha acontecido. Conhecia Cibele o suficiente para considerar aquele tipo de vítima que se disfarça de casualidade. Mas não disse nada. Ela já havia sido recuada — e ele respeitava a dignidade com que ela escolheua se proteger.
Cibele soltou um bufar impaciente, revirando os olhos com exagero, como se confirmasse algo que nunca havia sido dito, mas sempre insinuado: “É claro que ela vai fazer cena.” Depois, entrou no carro e sentou-se no banco da frente como quem ocupa um trono herdado por méritos morais. Endireitou o casaco, ajeitou a bolsa no colo e fechou a porta com um clique seco que ecoou mais alto do que deveria.
Hela observou aquilo em silêncio. Depois, abaixou o capuz um pouco mais. Virou-se sem dizer nada, sem demonstrar mais do que o necessário, e caminhou até o outro táxi. Os passos, antes saltitantes, agora soavam abafados, como se ela pisasse sobre o próprio orgulho.
Thena a esperava de porta aberta, já instalada no banco de trás com os cães aos pés. Ao ver a expressão da esposa — os olhos baixos, o queixo trincado —, não precisou perguntar o que havia acontecido. Apenas estendeu a mão. E Hela segurou com firmeza, entrando no carro sem olhar para trás.
Argus ronronou baixo em seu colo, como se a reconhecesse não só pelo cheiro, mas pela dor. Garm soltou um suspiro profundo, o peito pesado, como se compartilhasse da decepção de sua dona.
O táxi deu partida devagar.
Na frente, Cibele encarava a rua pela janela com o queixo erguido, o corpo duro como mármore.
Atrás, Hela encarava a cidade com os olhos marejados, mas firmes.
Era isso. Era sempre assim.
Mas, ao seu lado, Thena apertava sua mão como quem dizia: eu vi.
E, às vezes, isso era o bastante.
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A viagem de 25 km até Pyrgos deveria ter sido tranquila.
Deveria.
O asfalto serpenteava por entre campos imóveis, como uma língua de pedra negra costurada à terra com o silêncio do fim da tarde. Às margens, ciprestes altivos se erguiam como sentinelas ancestrais, lançando sombras longilíneas sobre o capô da caminhonete de Zuras. O céu, tingido por aquarelas desbotadas de âmbar, malva e azul-acinzentado, repousava sobre os olivais como um lençol antigo estendido no varal de um mundo mais calmo. A claridade filtrada pelos vidros empoeirados era tênue, quase dourada, como se o tempo ali dentro tivesse sido desacelerado por encanto — e tudo ao redor ganhasse contornos de sonho ou de passado.
Mas no interior do carro… a estrada era outra. Uma estrada emocional. Íngreme. Íntima. E sombria.
Era como se as sombras que saíram da sala de casa com eles tivessem encontrado abrigo entre os assentos, escondidas nas frestas das malas, entranhadas nos vãos entre as palavras não ditas.
O porta-malas da caminhonete estava abarrotado — mala sobre mala, sacolas, caixas, travesseiros extras, um cobertor azul-marinho que Zuras sempre deixava para emergências e agora dormia, esquecido, amassado entre as dobras da mudança. Os volumes haviam sido encaixados como um quebra-cabeça vencido pela força, pela pressa e pela teimosia de quem parte não porque quer, mas porque é preciso.
No banco de trás, o essencial.
Thena, rígida, como se qualquer movimento a fizesse despencar de si mesma. Os braços cruzados, a coluna reta como se portasse uma armadura invisível. A almofada de pescoço do Totoro, cinza e desgastada, estava comprimida entre ela e a lateral do carro — um presente de Hela em uma viagem de ferryboat, anos antes, que agora parecia deslocado, quase infantil. Mas ela o mantinha. Não por conforto físico, mas talvez por superstição emocional.
Ao lado dela, duas presenças silenciosas:
Argus, o gato de olhos esbugalhados e expressão cósmica, fechava-se em sua caixa de transporte escura, personalizada com desenhos de constelações pintadas à mão por Thena durante uma madrugada insone. Suas orelhas escapavam pelas laterais, imóveis como radares desligados.
Garm, o Rottweiler colossal, ocupava metade do chão do carro. Deitado em silêncio absoluto, os olhos abertos sem foco, como se percebesse o clima tenso e decidisse respeitá-lo — ou porque, tal como os humanos ao seu redor, também estivesse exausto de tentar entender.
No banco do carona, Cibele.
Cibele, sempre ela.
Imóvel.
Impecável.
Intocada por qualquer impulso de espontaneidade.
Braços cruzados com precisão quase geométrica. Coluna ereta como uma escultura grega em estado de vigília. Os olhos, fixos na estrada à frente, queimavam o horizonte com a obstinação de quem não se permite vacilar nem ao piscar. O rosto era uma máscara talhada em mármore — bela, mas sem brechas. Sem dobras. Sem respiro.
O cachecol de linho bege, enrolado com elegância clínica, tremia apenas no compasso da respiração contida, como se cada célula do seu corpo estivesse empenhada em não reagir. Em não sentir. Em não permitir.
De tempos em tempos, ela olhava para a tela acesa do celular. Não porque precisasse verificar o trajeto — Zuras conhecia aquelas curvas de olhos fechados —, mas porque encarar o espelho retrovisor e, nele, o reflexo do carro que os seguia... seria admitir a existência de Hela. E aquilo, para Cibele, parecia ser um fardo moral, uma punição pessoal, um castigo.
No carro de trás, Thena havia cedido o banco da janela à esposa com um gesto simples, silencioso. Sem discutir. Sem ironizar. Apenas cedeu.
Agora se perguntava — entre uma pontada de dor nas têmporas e outra no peito — se aquilo fora um erro logístico ou um ato de amor suicida.
Hela ocupava o assento ao lado com a propriedade de quem não pedia permissão para existir.
Os pés cruzados sobre o painel, meias listradas, pantufas de coelho. O pijama do Olaf completo: capuz com olhos salientes, sobrancelhas bordadas, o famoso nariz de cenoura ligeiramente torto no centro da testa. O zíper aberto deixava à mostra uma camiseta preta com a frase estampada em letras góticas: “Eu não sou doida. Sou complexa.”
As mãos — cobertas por luvas de esqueleto fluorescentes — seguravam um pacote de Morcegomitas como se fossem artefatos sagrados. A cada frase, a cada observação absurda, ela mastigava como se alimentasse também a alma rebelde que insistia em sobreviver, mesmo nos terrenos mais inóspitos.
— Aquele ali é um bode ou um cachorro? Ou... pera, e se for um cão-bode? — Ela apontava animada, as pupilas vibrando sob a luz difusa. — Garm ia pirar, né? Encontro das espécies!
Silêncio. Espesso. Tenso. Vibrando sob o carpete do carro.
— Thena, as oliveiras estão fazendo yoga. Tipo uma dança interpretativa existencialista. Elas parecem estar pedindo socorro...
Mais silêncio. Mais denso. Mais fatigado.
— OLHA AQUELA PLACA! “Kallikrates”! Isso é nome de gladiador lésbico ou de perfume de deusa da guerra?
Thena apertava as têmporas com os dedos, como se quisesse segurar o cérebro dentro do crânio. O maxilar cerrado, a respiração curta. Tudo nela dizia: aguento mais um pouco, só mais um pouco...
Até que não.
— Amor... — disse por fim, com a voz grave, baixa, arrastada — como se cada palavra carregasse séculos de mitologia e cansaço — se você falar mais uma sílaba, eu juro por todos os pactos celestiais que vou te embrulhar nesse capuz do Olaf e te despachar pro multiverso com uma carta de recomendação escrita pelo próprio Hades.
Hela virou-se devagar. Uma sobrancelha arqueada com teatralidade de diva ofendida.
— Rude. Muito rude pra quem vai dormir comigo no colchão inflável dos deuses daqui a algumas horas...
Thena fechou os olhos. A cabeça encostou no encosto. Um suspiro.
Três segundos de paz.
E então...
— Pressure like a drip, drip, drip and it won’t let go-o-o!
A voz da esposa surgiu como um terremoto musical em miniatura. Cantarolava “Surface Pressure” da Luísa Madrigal com um sotaque espanhol tão exagerado que parecia paródia. Batucava os dedos no painel com ritmo militar. Garm abriu um olho. Argus grunhiu.
E então, do nada: silêncio.
Thena entreabriu um olho.
Olhou para o lado.
Não acreditou.
Hela estava adormecida.
A cabeça caída, a boca entreaberta, uma perna esticada para cima num último esforço de rebeldia física. O capuz do Olaf cobria-lhe o nariz, as luvas de esqueleto ainda nos dedos, e um pedaço de Morcegomita preso entre o polegar e o indicador.
Ridícula.
Exaustiva.
Querida até o osso da alma.
Thena a observou em silêncio. Um silêncio que já não pesava.
A pele dela suavizou. O olhar perdeu o foco e ganhou ternura.
Devagar, como quem realiza um rito secreto, puxou o cobertor de flanela da mochila. Cobriu os ombros da esposa com um cuidado quase cerimonial. Ajustou o capuz, puxando-o para cobrir o rosto adormecido. A ponta do nariz de cenoura encostou em sua bochecha.
E então, baixinho, murmurou com uma tristeza doce, que só quem ama profundamente conhece:
— Idiota...
No carro da frente, Zuras viu tudo pelo retrovisor.
Seus olhos — escuros, antigos, cansados — encontraram os da filha por um instante. Não sorriram com a boca. Mas sorriram com tudo o que não era dito. Aquele era o tipo de silêncio que dizia: eu sei. E isso bastava.
Mas do lado de Cibele… não houve sorriso. Nem gesto. Nem palavra.
Ela olhou o espelho lateral e viu Hela, adormecida, com a cabeça tombada no ombro de Thena. O olhar de Cibele se estreitou. A boca endureceu. O maxilar se contraiu.
Não era apenas repulsa. Era julgamento. Era condenação não dita.
Era o tipo de desprezo que não grita — mas que contamina o ar como veneno derramado em água limpa.
Ela voltou os olhos para frente. E não disse nada.
Mas o silêncio dela dizia tudo.
E assim, os carros seguiram.
A estrada se estreitava entre colinas e vilarejos dormindo. O céu, agora mais escuro, tingido de um azul profundo, parecia descer em silêncio sobre o mundo. Ao longe, Pyrgos cintilava com suas luzes trêmulas — como uma cidade feita de promessas. Ou de presságios.
Mesmo em uma viagem de trinta minutos, era possível sentir que não eram apenas os veículos que se moviam. Era a família inteira.
Como placas tectônicas milenares, tentando coexistir no mesmo continente emocional.
Mas o atrito era inevitável.
O ruído, iminente.
E ainda assim, ali estava ela.
Hela.
Adormecida como uma explosão embalada em flanela.
E Thena.
Desperta. Atenta. Firme.
Segurando o caos com um cobertor e com o tipo de amor que sabe que amar alguém não é salvar — é ficar.
Mesmo quando tudo ao redor te pede para ir.
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Logo após deixarem Olímpia para trás, os carros avançaram em fila lenta, como se relutassem em abandonar a cidade. A estrada, antes promissora em seu vazio, começava a se entupir com o surgimento repentino de um congestionamento que se arrastava no início da rodovia principal. Uma fila de faróis amortecidos estendia-se morro abaixo, serpenteando pelas encostas da serra como uma coluna vertebral ferida, movendo-se com o cuidado de quem carrega uma história prestes a desmoronar.
A serra descia em curvas amplas, cautelosas — como se hesitasse em entregar a madrugada ao dia. O céu, num espetáculo discreto e ancestral, se abria em um azul muito pálido, lavado por violetas dissolvidos, bordas de âmbar e pinceladas fugidias de laranja. As estrelas, antes afiadas como cacos de vidro, começavam a se esconder atrás de nuvens finas, sopradas por dedos de aurora que sabiam exatamente quando se recolher.
O ar que entrava pela fresta do vidro era úmido, mas não fresco. Carregava o cheiro profundo da terra fria, da poeira fina que recobria os troncos das oliveiras antigas, e do alecrim esmagado sob o peso dos pneus — um aroma telúrico, herbáceo, inquietante. Familiar. Era o cheiro de um país milenar em vigília. Ao longe, as luzes distantes de Atenas começavam a cintilar contra o corpo adormecido da Grécia, como se as cidades fossem organismos vivos despertando aos poucos, bocejando luzes entre suspiros metálicos.
Zuras dirigia em silêncio.
O volante firme entre as mãos, as pupilas fixas na linha tênue onde a estrada tocava o céu. Carregava mais do que pessoas naquele carro — carregava vínculos desfeitos, promessas em ruína, sentimentos costurados com linhas de silêncio. Por isso, tratava o trajeto com reverência. Como se o carro fosse uma cápsula emocional, frágil, tentando atravessar os escombros vivos de uma família antiga.
Esticou o braço até o painel. Não olhou para o banco do lado. Apenas perguntou, com voz baixa, quase um sopro:
— Alguém quer parar? Banheiro, café...?
A pergunta caiu no interior do carro como uma pedra jogada num lago congelado. Pequena, mas capaz de trincar tudo.
Cibele desviou o olhar da tela do celular com uma lentidão cirúrgica. Guardou o aparelho no colo com a precisão de quem devolve um bisturi à bandeja. Não respondeu de imediato. Mas o movimento dos dedos — interrompendo a rolagem sem pressa — dizia muito. O rosto permanecia neutro, porém a mandíbula, sempre um pouco travada, revelava o metal contido atrás da máscara. O desprezo estava ali, silencioso, mas denso como perfume antigo.
No banco de trás, a vida seguia em microcosmos.
Argus soltou um miado seco, abafado pela caixa de transporte já gasta, estampada com constelações que desbotavam aos poucos, como galáxias cansadas. Garm se remexeu num gesto mínimo, apenas o suficiente para ajustar o focinho entre as patas — olhos semiabertos, corpo pesado, espírito em suspensão. Como um cão velho que já atravessou guerras e agora apenas observa o campo.
Thena permaneceu imóvel.
Não dormia. Não lia. Não olhava para fora. Era pura presença contida. O corpo ali, o espírito em outro plano, como quem vigia as próprias ruínas. O olhar permanecia pousado em Hela, adormecida ao seu lado, com a intensidade de quem observa um incêndio em câmera lenta: impossível de deter, impossível de não se queimar.
Hela dormia com a insolência de quem sabe que é amada.
A cabeça tombada contra o vidro. Um fio de baba discreto no canto da boca. Abraçada ao próprio joelho, como uma criança exausta após uma aventura inventada. O capuz do pijama do Olaf ainda sobre a cabeça, ligeiramente torto, olhos salientes e nariz de pano encostados contra o vidro embaçado. O caos convertia-se em doçura quando ela dormia. Sempre.
Thena demorou a responder. Respirou fundo. Como quem busca palavras nas ruínas do próprio corpo. E quando falou, a voz saiu rouca. Não de sono, mas de acúmulo. Uma rouquidão que vinha do fundo da alma.
— Eu não quero parar.
Zuras assentiu, sem virar o rosto. Os olhos ainda na estrada, o gesto carregado de compreensão.
Mas Cibele virou-se.
Lentamente. Apenas o suficiente para que o perfil dela, recortado pela luz suave da manhã, ficasse visível no espelho interno. A boca finamente cerrada. O queixo levemente erguido. A expressão de mármore polido.
— Está cansada, Thena?
A pergunta era uma lâmina embainhada. Suave ao toque. Mortal por dentro. Vinha sem cuidado. Sem compaixão. Apenas com a precisão de quem prepara o palco para o colapso do outro.
Thena manteve os olhos em Hela.
— Tô cansada, sim. — respondeu, com voz baixa. A palavra "cansada" parecia insuficiente, mas era tudo o que podia usar. — Mas não é só isso. É... exaustão de alma. Como se eu tivesse que vigiar até os sonhos da Hela pra garantir que a gente não acorde no meio de um número musical.
Zuras sorriu com os olhos. Um som escapou de sua garganta — meio suspiro, meio riso. Mas não disse nada.
Cibele não sorriu. Nem moveu um músculo.
— Você escolheu esse casamento.
Thena sentiu a frase atravessar o espaço como uma flecha. Não era acusação. Era constatação. Fria. Irrevogável. Como se a dor que sentia fosse um resultado lógico, previsível, de uma escolha errada. Como se estivesse colhendo o que plantou — e o jardim estivesse infestado de espinhos.
— Escolhi. — respondeu. — Escolhi ela mesmo assim.
O silêncio que se seguiu era mais grosso que o ar úmido da manhã.
Zuras apertou o volante. Disse, sem erguer o tom:
— A gente não ama porque é fácil. A gente ama. E aprende a se manter inteiro no processo.
Cibele virou o rosto. Um bufo seco escapou-lhe. Quase imperceptível. Mas Thena conhecia. Era o som de alguém que não acredita mais no outro. Que não considera válida aquela escolha.
— Amar não deveria significar perder o próprio eixo — disse ela, encarando a estrada novamente. — Nem viver em função do desequilíbrio de outra pessoa.
Zuras apertou os lábios. Mas não respondeu. Seu silêncio tinha raízes mais profundas do que Cibele percebia.
Thena, por sua vez, mergulhou dentro de si. Havia algo ali. Um peso acumulado. A dúvida insidiosa: Será justo amar alguém feito de caos, vento e terremoto? Será justo se doar por inteiro, todos os dias, por alguém que ri do abismo como se fosse um brinquedo?
E então, um som.
Quebrado.
Sonolento.
Frágil.
— Amor...?
Thena virou-se devagar.
Hela a olhava com os olhos semicerrados, a expressão inchada de sono, o rosto amassado pelo capuz e pelo banco. O nariz de pano apontando para o alto. Uma mecha grudada na bochecha, e um olho ainda coberto por metade do Olaf.
— A gente já tá no avião?
Thena piscou. Por um instante, não soube se ria ou chorava. Apenas olhou para ela. Aquela figura ridícula, maravilhosa, exaustiva e sagrada.
— Ainda não. — respondeu, num tom tão baixo que parecia uma confidência. — Ainda estamos na Grécia.
— Ah... — murmurou Hela, puxando o cobertor até o nariz, e encolhendo-se mais. — Então ainda dá tempo de sonhar com croissant ruim e gente gritando nos portões...
Thena encostou a cabeça no vidro. Observou o mundo passar do lado de fora.
— Ainda dá tempo, sim. — respondeu. — Ainda dá tempo de sonhar.
Zuras ajeitou o retrovisor. Olhou para Thena. E naquele breve olhar, um pacto silencioso se formou: Estamos com você. Mesmo no que não dizemos.
E Cibele… permaneceu imóvel.
O rosto voltado para fora.
O coração preso em outro continente.
O desprezo tão contido, tão refinado, que gelava o ar ao redor.
E ainda assim, o táxi seguiu.
Entre curvas, faróis, cafés adormecidos e um novo dia que, lá fora, nascia.
Com tudo o que eles eram.
E tudo o que jamais teriam coragem de dizer.
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Já passava das 19h15 quando o carro atravessou um trecho mais amplo da estrada — uma clareira repentina entre as oliveiras. Ali, os troncos retorcidos davam lugar a campos baixos, ondulantes, pontilhados por flores silvestres tardias que resistiam ao fim da estação como sussurros de cor. Pequenas papoulas, ervas amarelas, margaridas dispersas... e ruínas esquecidas, quase engolidas pela vegetação, restos de colunas e pedras entalhadas pelo tempo e pelo descaso.
O sol já havia se escondido atrás das montanhas do Peloponeso, mas deixara um rastro de ouro velho estendido sobre o horizonte, como uma promessa mal cumprida. O céu — incerto e em transição — era agora um tecido de azul-marinho profundo, manchado de púrpura, ferrugem e cinza quente. Aquela era a hora exata em que o dia não sabe mais quem é, e a noite ainda hesita em tomar forma. Uma hora que pertence ao indizível. Às confissões não planejadas. Às verdades sussurradas que só o escuro aguenta ouvir.
Uma brisa morna entrava pela fresta entreaberta do vidro. Não era vento — era um respiro vivo. Trazia consigo o cheiro da estrada: erva-cidreira esmagada sob pneus, fumaça de lenha acesa à distância, o resíduo metálico do asfalto ainda quente do sol. O ar tinha gosto de saudade. De infância. De algo que se perde sem saber quando.
Dentro do carro, o silêncio era espesso. Denso como óleo antigo, escuro como memória. Mas não exatamente incômodo. Era o tipo de silêncio que se instala quando todos sabem que algo está prestes a ser dito — e ninguém quer ser o primeiro a quebrar.
Zuras lançou um olhar pelo espelho retrovisor interno. Apenas um. Rápido. Mas preciso. A sobrancelha arqueada, o queixo firme, a respiração ritmada. Ele era um homem que conhecia o tempo das coisas — e o peso que as palavras têm quando ditas antes da hora. Sua voz, quando veio, não exigiu nada. Ofereceu.
— Estamos a cinco minutos de um posto, Hela. Vai querer parar?
A pergunta não era literal. Era um gesto de cuidado disfarçado de rotina. Um modo elegante de abrir espaço sem que isso soasse como pena. Não perguntava se ela queria água ou banheiro. Perguntava se precisava respirar. E sobreviver.
No banco de trás, Hela continuava encolhida sob o cobertor fino. O pijama de Olaf já perdera parte do encanto — o capuz tombado de lado, os olhos de feltro sem foco, revelando mechas escuras grudadas à testa úmida. O corpo começava a despertar com lentidão, como quem emerge de um mergulho longo demais.
No pulso dela, uma pulseira artesanal de linha vermelha com contas de madeira tremia discretamente com os solavancos da estrada. Preso a ela, um chaveiro de pelúcia em forma de morcego — gasto, quase desbotado — pendia como um resquício teimoso de infância que se recusava a se calar.
Ela inspirou fundo. Mas, dessa vez, não trouxe consigo ironia nem deboche. Nenhuma provocação. Nenhuma metáfora absurda. Sua voz saiu baixa, sem ornamento, cortada da raiz.
— Não. Já causei demais antes mesmo das sete da noite.
A resposta não explodiu. Desabou. Silenciosa. Crua.
O carro inteiro pareceu ouvir. Não com os ouvidos, mas com a pele. Nem o motor ousou falar. Por um instante, a suspensão do tempo foi total. Tudo parou. Até as árvores, até as flores nos campos ao redor. O instante caiu sobre todos como um véu espesso de veludo escuro — abafado, inevitável.
Zuras desviou os olhos da estrada por um segundo longo demais. Longo o bastante para registrar. Não o bastante para se perder. Cibele virou o rosto devagar, o maxilar firme, como quem ouve não para acolher, mas para registrar. Garm, deitado entre as pernas de Thena, ergueu levemente as orelhas e virou o focinho na direção de Hela. Argus, dentro da caixa, cessou o ronronar. O mundo ficava quieto diante da dor não teatral.
Thena já estava começando a virar o rosto quando ouviu.
— Eu sou assim. Mas não sou idiota.
As palavras vieram baixas, mas limpas. E carregadas daquelas verdades que fermentam devagar, como vinho antigo. Era algo que vinha sendo dito há anos. Só não em voz alta.
Zuras apertou o volante. Cibele permaneceu em silêncio. Mas algo no modo como seus dedos se apertaram nos joelhos denunciava tensão.
Hela ergueu o rosto.
Os olhos estavam nus. Sem máscara. Sem defesa. Sem comicidade.
— Eu sei quando exagero. Quando passo do tom. Quando falo demais. Quando viro o centro de uma cena que ninguém quer encenar. Eu percebo. Sempre percebi. Vocês me olham como se eu fosse um acidente prestes a acontecer.
Zuras respirou fundo. Uma vez só. Como quem reconhece que foi atingido.
— O senhor franze a testa. Sempre. Quando eu empolgo. Quando minha voz sobe meio tom. Você finge que é distração, mas não é. É incômodo. Eu sinto.
Ela então apontou com o queixo para Thena.
— Thena fecha os olhos. Conta até dez. Às vezes até vinte. Fica imóvel como se, se me ignorar tempo suficiente, eu simplesmente sumisse. Mas eu vejo. Eu sei.
E então, devagar, virou o olhar para o espelho retrovisor lateral. Os olhos cravados em Cibele. O silêncio do carro inteiro recuou, como se a estrada própria tivesse se curvado.
— E a senhora... a senhora me olha como se eu nunca tivesse feito sentido. Como se eu fosse um erro de digitação na sua biografia perfeita. Desde o primeiro jantar. Desde aquele "ah, você trabalha com o quê mesmo?", com aquele tom. Desde o primeiro silêncio onde deveria caber um gesto — e veio só distância educada.
Cibele não se moveu. Mas não era santo. Era sentença. Os olhos estreitos, firmes. A privacidade congelada no rosto.
— Eu aguento. Porque Thena me ama. E eu a amo. Amo essa família, com todas as suas rachaduras. Mas não me tratem como se eu fosse uma criança barulhenta demais. Ou uma falha simpática. Eu sou esquisita, sim. Mas não sou preciso.
O queixo de Thena tremeu. Uma fissura interna abriu-se — pequena, mas fatal. É silencioso como tudo que se quebra devagar.
Zuras mordeu o atraso inferior. Cibele abriu os olhos. Mas não negou.
— Você tem certeza. — disse, por fim. A voz ainda firme. Mas pela primeira vez… viva. Vulnerável.
Thena soltou o ar como quem chega ao fim de uma maratona emocional. O peito subia e descia em ritmos irregulares. Havia algo se reorganizando por dentro. Um realinhamento tectônico.
— Só não me tratem como se eu só servisse quando estou calada. — completou Hela. — Como se o meu silêncio fosse o único espaço seguro que eu ofereço.
E então, Thena se moveu. Soltou o cinto. Se virou por completo. Puxou Hela com um gesto lento, mas absoluto. Tocou a testa dela com a sua, como quem sela uma aliança antiga. E ficou assim. De olhos fechados. Invisíveis uma para a outra — e ainda assim, mais próximo do que jamais teria sido.
— Você é meu lar. Mesmo quando o teto racha. Mesmo quando o chão treme. Ainda é em você que eu me encosto quando não quero mais ser ninguém.
Zuras pigarreou, deslocando o momento com pudor.
— O posto logo à frente tem café decente. E uma torta de limão da Yanna. Sem passar. Palavra de honra.
Cibele estava quieta. Mas havia algo novo na imobilidade dela. Não acessível. Ainda não. Mas uma brecha. Uma rachadura no verniz.
Hela fungou, o nariz entupido pela emoção mal contida.
— Eu topo a torta. Mas se tiver passas, eu juro... eu quebro a vitrine com uma colher de plástico.
Thena sorriu. Pequeno. Mas é verdade.
E o carro seguiu.
Não mais como antes.
Agora respirava com as dores expostas.
Com as rachaduras visíveis.
E com um tipo de amor que não se esconde: escolhe continuar.
Mesmo quando tudo grita pelo contrário.
E naquela noite quente de junho, sob o céu antigo da Grécia, isso — só isso — já era um milagre.
Chapter 13: Κεφάλαιο 05
Chapter Text
Já passando das 20h quando o carro finalmente dobrou a esquina onde o letreiro do café despontava, uma luz amarelada e discreta que vacilava na brisa, como um sussurro hesitante tentando existir contra a vastidão escura. O trânsito, que transformava cinco minutos de viagem em quase uma hora, deixava para trás uma procissão de faróis estáticos e buzinas irritadas, como se o mundo estivesse preso num suspiro longo demais.
O cansaço pairava sobre todos como uma bruma densa. Quando os pneus da caminhonete tocaram o pequeno estacionamento de paralelepípedos, o estelo irregular das pedras sob os pés ecoou como os passos de fantasmas. Ali, cada ruído parece antigo. E cada sombra, carregada de lembranças.
A porta do café, de madeira azul descascada, parecia saída de um conto que ninguém mais lembrava como terminava. Lasca sobre lasca de tinta, revelando camadas de décadas — azul celeste, verde pálido, branco esmaecido — como se cada vida que ali passou deixou um traço. A maçaneta era de bronze corroído, mas ainda firme, como um aperto de mão antiga.
Pela fresta da janela, o aroma de cardamomo escapava em fiapos invisíveis e se infiltrava na noite fria. Havia também notas de café fresco, noz-moscada e um toque incerto de baunilha. O ar, manhã e doce, envolve os recém-chegados com a delicadeza de quem sabe que a dor anda devagar e precisa de espaço.
Na entrada, uma lousa pequena, animada com barbante, oscilava sob o vento suave. Em letras quase apagadas por chuvas e sol, lia-se:
“Ser suave é resistir sem suportar.”
Era mais que uma frase. Foi uma oferta silenciosa. Um espelho para quem ali chegava com a alma trincada.
Thena entrou primeiro. Os dedos entrelaçados aos de Hela — não por conveniência, mas como um fio de costura. Seu inquérito roçava lentamente a pele da esposa, traçando círculos suaves, repetitivos. Não como um gesto de consolo, mas como um lembrete silencioso: "Eu te amo. Em toda a tua estranheza. Em todo o teu ruído. Mesmo quando você mesma não acredita nisso."
Mas Hela não conseguiu crer. Nem tudo. Não sob aquele teto. Havia um nó em sua garganta que não se desfazia nem com silêncio nem com carinho. A tensão nos ombros era física, visível. O corpo curvado, como se cada passo futuro pesasse mais que o anterior. Os olhos não olharam — fugiam. Vagavam pelas paredes, pelos objetos, como se buscassem distrações fossem mais suportáveis do que aceitar: ela estava ali, naquele espaço íntimo, com pessoas que não sabiam se a queriam ali de verdade.
No banco da frente, ainda parada na porta, Cibele observava.
Seu olhar era limpo. Demasiado limpo. Como o fio de uma navalha bem lavado.
Não havia espanto, nem compaixão. Apenas o mesmo julgamento silencioso que acompanhou desde Olímpia — um tipo de desprezo que não precisa levantar a voz. Ele apenas está. Sentado. Imóvel. Uma sentença que se sustenta por si só.
Ela não andava: deslizava, rígida, precisa. Os olhos não buscavam nada, apenas analisavam. E mesmo calada, era como se ela dissesse: "Este lugar era sagrado antes de você chegar."
O interior do café acolhia com penumbra. Os móveis — madeira escura, imperfeitos, repletos de cicatrizes — guardavam vestígios de pessoas que se sentaram ali antes. As mesas carregavam marcas de copos antigos, frases rabiscadas à caneta, recortes de tempo que ninguém limpou. Os espelhos, grandes e ovais, estavam manchados por décadas de vapor, mas ainda devolviam reflexos — tortos, gastos, reais. Refletiam cansaços que a superfície polida jamais permitiria.
Sobre as prateleiras, xícaras descombinadas repousavam como relíquias. Algumas tinham flores desbotadas, outras palavras em francês apagadas. Cada uma parecia conter histórias inteiras de alguém que partiu, mas esqueceu de levar seu nome.
Zuras, discreto como sempre, guiou o grupo até uma mesa no canto. Não pela vista. Mas pelo abrigo. O espelho oval com moldura dourada e lascada devolvia a imagem deles como se dissesse: "Sim, vocês estão aqui. E sim, ainda estão inteiros o suficiente para sentar."
Hela sentou-se por último. Devagar. Como se estivesse prestes a quebrar a cadeira. Ou o momento. Como se ocupar aquele espaço fosse uma ousadia. Uma blasfêmia.
Thena, firme, deixou sua mão sobre a dela. Não a puxou. Não a forçou. Apenas a tocou. Presente. Como uma âncora silenciosa no meio da tempestade interna.
Mas Hela estava longe. Os olhos fixos no espaço entre o chão e o vazio. Uma travessia invisível entre o medo de ser vista demais e o terror de ser completamente ignorada. O corpo presente, mas o coração em queda livre.
Cibele não disfarçava.
Cada gesto era observado com meticulosidade cirúrgica. Cada silêncio, cada olhar entre as duas. Seu incômodo era quase litúrgico. Não se tratava apenas de Hela — mas de tudo o que ela representava. Caos. Ruído. Desordem emocional. Fragilidade. Emoção sem maquiagem.
Ela era, aos olhos de Cibele, uma anomalia à ordem. Um erro que insistia em permanecer.
O silêncio que pairava sobre a mesa não era o de quem aguarda o garçom. Era o de quem carrega consigo feridas que não sangram — mas doem. Cada respiração era medida. Cada palavra, evitada. Era um campo minado de emoções não ditas.
Thena, atenta às frestas, apertou um pouco mais os dedos sobre os de Hela. Não como quem quer tranquilizar. Mas como quem diz: "Não vou embora. Mesmo que você vá."
Mas Hela… Hela lutava. Contra o impulso de levantar. Contra o impulso de se desculpar por existir. Contra o impulso de pedir perdão por ocupar um espaço que ela mesma julgava não merecer.
A madrugada, lá fora, avançava em silêncio. Lá dentro, os aromas de café com especiarias, a luz âmbar filtrada por luminárias de renda antiga e a madeira aquecida pelo tempo ofereciam uma trégua.
Mas mesmo ali, mesmo no calor de uma xícara prestes a chegar, havia uma sombra à espreita: a de quem ainda duvida que é possível ser amada sem ter que se calar para isso.
E assim, naquele canto de mesa antiga, com xícaras que não combinavam, com espelhos manchados e com a presença insistente de quem não aceitava, uma coisa resistia.
O amor.
Silencioso.
Cansado.
Mas de pé.
E isso, naquela noite de junho, com as ruínas da estrada ainda frescas nos ossos, já era quase um milagre.
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A garçonete surgiu com a leveza dos que aprenderam a escutar antes de falar.
Não havia nada de espetacular em sua presença — e, talvez por isso, fosse impossível não percebê-la. Ela cruzava o chão de pedra antiga com a precisão das estações: inevitável, silenciosa, firme. Seu avental de linho azul-acinzentado descia reto até os joelhos, como se obedecesse à gravidade do próprio ofício. O coque baixo, desalinhado, denunciava um cansaço quieto, mas também uma dignidade de quem escolheu fazer bem uma coisa pequena, todos os dias, sem alarde.
Ela parou ao lado da mesa com um caderninho de couro já gasto entre os dedos. Era mais que um bloco de pedidos — era quase um diário de escutas. Seus olhos, escuros como chá forte, descansaram por um instante sobre cada rosto. Não com curiosidade. Mas com cuidado. Ela não pedia pressa. Sabia que, ali, o que se pedisse viria carregado: de mágoa, de memória, de tentativa. E que às vezes, antes de qualquer gole, era preciso vencer uma guerra invisível.
Cibele foi a primeira a falar. Sempre era. A voz, medida ao milímetro, saiu sem tremor, mas com o gelo característico que tornava cada sílaba uma navalha bem afiada.
— Um chá de rosa-moscada. Bem quente. E uma fatia de bolo de amêndoas — sem calda.
Ponto. Não houve agradecimento. Nem desvio de olhar. Sua voz cortava o ar com a precisão de quem sabia que empatia é uma escolha — e que, no caso dela, raramente era feita.
A garçonete apenas assentiu, o caderno já em movimento, sem levantar a cabeça. Com ela, o silêncio era o gesto mais gentil.
Zuras pigarreou. Ajeitou-se na cadeira como quem reposiciona a alma antes de falar. Suas mãos estavam entrelaçadas sobre a mesa gasta, em posição quase devocional.
— Café forte. Duplo. Sem açúcar.
Disse como quem precisava de mais do que cafeína — como quem procurava firmeza em goles pequenos. Uma pausa. Um descanso breve entre feridas.
A anotação continuou.
Thena falou por fim, a voz baixa, sílaba por sílaba lapidada. O grego saía perfeito, mas cansado. Não um cansaço físico — um cansaço de ser ponte entre mundos que não querem se encontrar.
— Um café. Sem açúcar. E… um pão rústico. Com azeite e alecrim.
E então os olhos da garçonete encontraram os de Hela.
Foi um segundo a mais. Um olhar que hesitou. Não por estranhamento, mas por intuição. Hela ainda não havia se mexido. Estava curvada sobre si mesma, como se o peso do próprio nome a puxasse para baixo. O cobertor a envolvia até a cintura, o capuz do Olaf já havia caído, revelando o rosto levemente suado, pálido sob a penumbra.
Suas unhas, curtas e mal cuidadas, desenhavam círculos lentos sobre o guardanapo de papel. Um gesto quase infantil. Quase hipnótico.
Quando falou, sua voz saiu rouca, engasgada, como se tivesse que escavar o som dentro de si.
— Dois sanduíches com queijo derretido… limão… e pimenta caiena. Um achocolatado quente, se tiver... e... um pão doce com calda de frutas vermelhas.
As palavras caíram sobre a mesa como moedas em um poço — pequenas, mas carregadas de desejo. De memória. De proteção. Era um pedido modesto. Mas soou como um risco. Como uma ousadia perigosa.
O silêncio que se seguiu não foi neutro.
Foi pontiagudo.
Cibele enrijeceu. A espinha mais reta. O queixo mais alto. O olhar, agora afiado como gelo em taça de cristal, moveu-se lentamente em direção a Hela. Como uma lâmina atravessando o espaço.
— O dela pode ser colocado separado. Em outra bandeja.
Fez uma pausa.
— É... bastante específico. E... infantil.
A palavra final veio como sentença. Como um veredicto vestido de boas maneiras.
A garçonete não reagiu. Não arqueou sobrancelhas. Não suspirou. Mas houve uma mudança imperceptível no ritmo dos dedos — o lápis parou um segundo antes de voltar a escrever.
Hela sentiu o rosto queimar. Pensou, por um breve instante, em explicar. Que o achocolatado era memória da avó que morrera em um inverno como aquele. Que a pimenta caiena era uma mania antiga, ritual íntimo para acalmar os estômagos ansiosos e os dias que doíam. Que aquilo não era frescura — era sobrevivência.
Mas nada saiu.
Porque o corpo já conhecia essa resposta: retração. Silêncio. Ceder antes de se apagar de vez.
Ela apenas assentiu. Devagar. Um gesto de rendição.
— Claro. Separado. Não tem problema.
A garçonete anotou. Os olhos ainda gentis, mas agora tingidos de algo mais velho. De uma tristeza familiar. E se afastou sem ruído.
Atrás do balcão, A’Lars a observava. Não com pressa. Não com julgamento. Apenas via. Como sempre via.
Seus olhos escuros pousaram brevemente sobre Hela. Ele não precisava ouvir palavras. Já vira muitas histórias terminarem assim: não em gritos — mas em pequenas desistências diárias. Em sorrisos forçados. Em pedidos feitos como desculpas.
Zuras limpou a garganta com um pigarro curto. Mas havia ali, no som, uma culpa subterrânea. Uma vergonha que ainda não sabia nomear.
Thena, então, fez o que fazia quando o mundo falhava em proteger o que era precioso.
Pousou a mão sobre a coxa de Hela. Apertou com firmeza, mas sem urgência. E se aproximou. Seu ombro encostou ao dela. Corpo contra corpo. Como um lembrete: estou aqui. ainda estou.
E Hela... ficou.
Ficou pequena. Ficou curvada. Mas ficou.
O coração batia baixo. O rosto ainda quente. A vergonha ainda viva.
Mas Thena não largou sua mão.
Nem por um instante.
E, talvez por isso, Hela ainda não tivesse ido embora — mesmo que uma parte dela já estivesse, há muito, tentando sumir.
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Zuras tentou quebrar o peso do silêncio. Descruzou lentamente as mãos com um estalo sutil de dedos e ajeitou-se na cadeira com a serenidade de quem aprendeu, ao longo da vida, que certas dores não se enfrentam — se testemunham.
Os olhos, marcados por rugas brandas, buscaram Hela. Mas não como quem tenta corrigir o clima — e sim como alguém que conhece o preço emocional de atravessar a vida sendo mal compreendido. Seu olhar trazia o calor silencioso dos que acolhem com presença, não com discursos.
— Então, Hela... — disse, a voz grave mas terrosa, pousando suave no ar espesso. — A Thena me contou que você tá pensando em aumentar sua coleção de canecas. Tem alguma favorita?
O sorriso que lhe escapou era discreto, sim, mas inteiro. Esperava, com aquele gesto simples, acender algo no espaço vazio entre eles. Como quem oferece um marcador de página entre duas almas interrompidas.
Mas ele não teve tempo de ouvir a resposta.
— Falando em coleções... — Cibele interrompeu.
O tom era doce demais para ser espontâneo. Precisão demais para ser ternura. A mudança de assunto era uma manobra tática — um bisturi passado sobre um tecido ainda cicatrizando.
Ela virou-se levemente para a filha, os olhos brilhando com algo entre lembrança e crueldade. Havia, em sua voz, o charme dos algozes elegantes.
— E aquela caixa de cartas que você guardava? As do Gilgamesh. Você ainda tem?
Thena ergueu os olhos, pega desprevenida. A voz da mãe trazia de volta uma adolescência que ela jamais escolheu revisitar.
— Mãe...
— Ou as do Ikaris. Aquelas eram mais intensas, não eram? — insistiu Cibele, sorrindo sem mostrar os dentes. — Me lembro de você chorando dias quando ele foi pra Escócia. Gilgamesh era mais… confiável, talvez. Mas você nunca foi de preferir o fácil, não é, filha?
A sentença foi entregue com uma delicadeza envenenada. Como quem descreve memórias — mas mira jugulares. As palavras deslizavam como veludo sobre vidro rachado. Por trás da aparente nostalgia, havia uma exposição cruel. Uma mensagem disfarçada de lembrança: “Olha quem você era. Olha com quem está agora.”
Thena enrijeceu. Recuou o corpo, os lábios entreabertos, mas sem som. Seus olhos deslizaram na direção de Hela — rápido demais. E tarde demais.
Porque Hela já não estava ali.
Não no gesto, não no olhar.
O afastar da cadeira foi quase imperceptível. Um deslocamento mínimo. Mas cheio de significado. O corpo dela negava o espaço. Como quem sente, com precisão cirúrgica, o momento exato em que se torna inconveniente. A respiração já havia mudado. Mais curta. Mais baixa. Um prenúncio.
Na mesa ao lado, uma garçonete recolhia xícaras com o tilintar abafado da porcelana. O som foi engolido pelo silêncio que ninguém ousava nomear.
Hela se ergueu.
Sem barulho. Sem protesto. Sem cena. Só um movimento limpo, treinado, domesticado por anos de contenção. A mochila deslizou pelo ombro com a fluidez de um gesto repetido muitas vezes em despedidas silenciosas. A mala pequena foi puxada com um único toque, revelando ainda vestígios de glitter prateado no zíper — sobras da viagem a Olímpia. A primeira. Aquela em que Thena prometera: “você nunca mais vai dormir sozinha.”
Ela contornou a mesa com discrição. Como uma sombra que sabe a hora exata de não perturbar. Como quem aprendeu, com o tempo, a deixar o ambiente melhor ao sair do que quando entrou.
Cibele não se virou.
Thena sim.
Mas não encontrou as palavras.
E no balcão, A’Lars ergueu uma taça vazia como quem percebe o estalo de um momento se quebrando. O som da taça ecoou como uma nota de cristal. Não como aviso. Mas como reconhecimento.
Quando os olhos dele encontraram os de Hela, havia neles uma paciência antiga. Um saber quieto. Como quem já vira mulheres assim saírem de cenas assim. Muitas vezes.
Ela parou diante dele. As duas malas no chão. Os dedos apoiados no tampo de madeira antiga como quem segura um corpo por dentro.
— Senhor A’Lars? — murmurou.
A voz saiu baixa. Mas não fraca. Havia nela uma tentativa sincera de manter a dignidade inteira.
Ele a encarou com ternura. Mas não com pena. O rosto, marcado pelo tempo, se suavizou num sorriso sem dentes. Não era conforto. Era reconhecimento mútuo.
— Sim, minha filha?
Ela pigarreou. Engoliu o que não cabia. A mão esquerda tremia levemente. A mesma que ainda exibia uma leve mancha rosada de corante — memória recente de um doce partilhado no colo de Thena, horas antes.
— O senhor teria... um banheiro? Um onde eu pudesse tomar banho. Eu... eu não quero embarcar assim. Ao lado dela.
O "dela" não veio com ódio. Veio com cansaço. Com aquele tipo de lucidez que não precisa de testemunhas.
A’Lars não perguntou nada.
Apenas se abaixou com lentidão. Pegou um molho de chaves presas a um chaveiro antigo — uma estrela de seis pontas feita de cerâmica azulada, com rachaduras visíveis no centro. Estendeu a ela com o cuidado de quem oferece algo sagrado.
— Segunda escada à esquerda. Última porta. Tem toalhas limpas no armário de ferro. O espelho não é gentil... mas a água é quente. Fica o tempo que precisar.
Ela assentiu. O meio sorriso que surgiu foi como porcelana trincada — frágil, mas inteiro. Agradeceu com o olhar, pegou as malas e subiu. Devagar. Cada degrau rangia sob seu peso, como se a madeira sussurrasse: “Eu te vejo. Vai com calma.”
Quando ela desapareceu no alto da escada, o salão afundou em um silêncio que não era ausência de som.
Era um tipo de silêncio que sabia demais.
Zuras levou a mão ao rosto. Escondeu os olhos. Não por vergonha dela — mas por saber que falhou em impedir o que estava prestes a acontecer.
Thena permaneceu imóvel.
O espelho oval à frente devolvia seu reflexo em partes: a moldura dourada descascada, a luz quente do teto fragmentando a imagem. A cadeira vazia ao lado ainda guardava o calor de um corpo que partiu sem gritar.
Cibele mexia o chá com a colher de metal. Movimentos circulares, suaves, como se não tivesse dito nada. Como se tudo estivesse no lugar certo. Como se a ausência de Hela fosse apenas um alívio discreto.
Mas não era.
Porque agora, todos sabiam.
Agora, a ausência pesava mais que a presença.
E a noite, que prometia abrigo, escurecia por dentro.
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Mas Cibele ainda não havia terminado seu ritual — aquele mesmo que repetia há anos, com a delicadeza implacável de quem destrói sem elevar o tom. Criticar Hela pelas costas — ou pior, com palavras aparentemente genéricas ditas alto o bastante para que ecoassem até os ouvidos dela — era mais do que um hábito: era uma forma de manter intacta sua posição invisível de controle. Não precisava levantar a voz, nem chamar atenção. O que fazia era mais antigo. Mais refinado. Uma espécie de caça social feita com porcelana fina e pontas de diamante.
— É impressionante — disse Cibele, com aquele tom de voz que era ao mesmo tempo brando e cortante, como o gume de uma faca resfriada — como alguém pode ser tão volátil... e ainda assim esperar ser levada a sério.
Silêncio.
Uma pausa.
— Não me surpreende que essa situação toda esteja desmoronando. — Ela girava a colher dentro da xícara de chá como se mexesse um caldeirão de venenos suaves. — Não por falta de amor, claro — acrescentou com um fiapo de ironia, a única ruga emocional em seu rosto contido. — Mas porque a base não é sólida. Quem constrói castelos na areia, cedo ou tarde, tem que encarar o mar.
Thena fechou os olhos. Apenas por um instante. Mas foi o suficiente para conter a represa que ameaçava ceder. Inspirou pelo nariz, com o maxilar trincado e os punhos cerrados sob a mesa. Aprendeu, ao longo da vida, que o silêncio pode ser mais mortal do que qualquer réplica. Mas naquela noite, o silêncio pesava como um mundo inteiro sobre seus ombros.
E Cibele continuava. Como uma atriz solitária encenando seu monólogo amargo diante de uma plateia que se recusava a aplaudir.
O ar ao redor parecia ter perdido temperatura. Até o calor do café esfriava.
Foi então que A’Lars, que até aquele momento permanecia atrás do balcão — uma figura sólida e discreta como um pilar antigo — fez algo sutil. E definitivo.
Sem pressa, com a reverência dos que conhecem o valor do gesto, ele deixou a toalha dobrada sobre o mármore e atravessou o salão com a lentidão deliberada de quem carrega uma oferenda. Cada passo ressoava na madeira como o badalar de um sino abafado, chamando não à oração, mas à escuta.
Quando se sentou, não o fez como quem invade uma mesa. Mas como um velho amigo que reconhece o instante exato em que o cuidado precisa romper o cerco.
Sua presença era sólida, mas serena. Os ombros largos se curvaram com gentileza. Suas mãos, nodosas e largas como raízes, tocaram a superfície da madeira com intimidade — como quem lê a memória invisível dos encontros.
O olhar descansou primeiro sobre Thena.
E depois, mesmo sem vê-la, sobre Hela. Como se a calor ausente da cadeira ao lado fosse suficiente para mapear a dor deixada ali.
A voz de A'Lars, quando veio, não representa espaço. Ocuparam-no naturalmente.
— Nervosa pela mudança?
A pergunta era simples. Mas vinda dele, era quase um salmo. Uma tentativa de limpar a névoa, de abrir uma fresta de ar desafiador entre destroços.
Thena extravasa os olhos. Encontrou os dele. E por um instante, foi como tocar em pedra morna ao fim do dia.
— Pelo contrário. — disse, firme, mas sem dureza. — Não vejo a hora de deixar este lugar. Este ambiente é tóxico.
A pausa que se acalmou não foi hesitação, mas escolha.
— Não só por mim. - contínuo. — Mas por todos nós. Pela minha família.
As palavras soaram limpas. Precisa. Não havia mágoa no tom. Apenas lucidez. Era uma despedida que já acontecia de dentro para fora.
A clara de Thena cortava a fumaça densa do ambiente como vento de inverno. Pela primeira vez naquela noite, a sombra lançada por Cibele recuava. A frase não foi uma resposta — foi um novo ponto de partida.
Thena se atraiu. Sem teatralidade. Apenas se solicitou. O corpo se move com contenção, mas também com determinação. Puxou a mala e a mochila com gestos calculados. Cada dobra de tecido parecia conter memórias demais.
— Vou usar o banheiro. Volto já. — disse, com a voz limpa, como quem não pediu permissão a ninguém.
Não olhei para a mãe. Não pedi nada a ela. Apenas deixei uma promessa implícita: eu volto. Mas não pra trás.
Cibele acompanhou o gesto com o olhar. O rosto imóvel. Os olhos refinados. Não houve surpresa. Apenas um pouco de quem se recusa a aceitar qualquer ato que fuja ao roteiro que ela escreveu sozinha, anos antes.
A'Lars está ali, sentado. As mãos se relacionando sobre a mesa. O silêncio que voltou à sala era diferente. Não vazio. Mas cúmplice. Um silêncio de partilha entre sobreviventes.
E então, uma colher de Cibele voltou a rodar o chá.
Girando.
Devagar.
Como se ainda pudesse controlar algo.
Mas não podia.
A cadeira de Hela estava vazia.
E agora, também, a de Thena.
E mesmo o espelho oval na parede — outrara cúmplice das aparências — parecia retornar a imagem da mãe sozinha à mesa, cercada apenas pelo som do metal e do que nunca foi aqui.
E A'Lars, com o corpo imóvel e o coração atento, sábio.
Sabia que ali, entre pães rústicos, achocolatados rejeitados e castelos desfeitos, uma decisão havia sido tomada.
E que dali em diante…
ninguém mais voltaria o mesmo.
Chapter 14: Κεφάλαιο 06
Chapter Text
O banheiro no andar de cima parecia um relicário esquecido — um cômodo suspenso no tempo, onde os dias não passavam, apenas se acumulavam como poeira nas frestas dos azulejos verdes-acinzentados. As bordas estavam gastas, o rejunte escurecido em linhas frágeis, como se até a cerâmica carregasse cansaço. O teto exibe manchas de umidade que parecem mapas celestes de um mundo antigo. E o espelho, oval, de moldura dourada lascada, sustentava rachaduras tão finas e longas que mais compensavam veias de um corpo prestes a romper.
Era um lugar esquecido. Mas era abrigo.
O vapor começou a se espalhar no ar assim que Hela girou o registro de metal, rugoso ao toque. A água jorrou com um som contínuo e grave — quase uma sugestão constante — preenchendo o ambiente com um calor tênue. O espelho logo começou a embaçar, mas não o suficiente para esconder o essencial.
Ela fechou a porta com cuidado. Trancou com a lentidão cerimonial de quem, enfim, poderia estar sozinho — sem precisar de sua existência. Ali, naquele espaço pequeno, sem olhos a julgá-la, sem vozes atravessando suas escolhas, ela poderia respirar inteira.
A mochila caiu dos ombros com um som oco, abafado pelo chão frio. A jaqueta, o moletom, a regata e a calça seguiram o mesmo destino, deslizando em camadas como pele velha abandonada. As roupas formavam pequenas ilhas ao redor de seus pés descalços — vestígios de uma armadura que, por ora, não precisei.
Nua, diante do espelho embaçado, Hela não fugiu da própria imagem.
Ali estava ela.
Inteira.
Despida.
Cruz.
A pele pálida desenhada em sombras pela luz amarelada e trêmula da lâmpada presa por um fio no teto. O vapor começou a abraçá-la pelos tornozelos, subindo com ternura. Mas o espelho… o espelho não mentia.
As tatuagens surgiam sob a névoa como orações encarnadas. Cada uma era uma história que o corpo decidiu guardar quando o mundo se recusava a ouvir.
No braço esquerdo, uma espinha de peixe enlaçada em linhas finas de mar. Na clavícula, flores secas que compensam em silêncio. Nas costelas, em inglês, uma inscrição em caligrafia manuscrita:
“Mundu að brenna.”
Lembra-te de arder.
No lado interno da coxa, um coração costurado com linha preta, os pontos grosseiros, propositalmente irregulares. No ombro, um abraço desesperado em pó. Ao longo da espinha, runas escandinavas fundidas a uma constelação que formava um lobo de olhos vazados. E no pulso, uma cicatriz camuflada por tinta: olhos que choravam fogo. Lá, perto da nuca, um nome borrado. E no centro do peito, invertida e costurada em tinta fina, uma frase que parecia atravessar ossos:
“Eu sou a porta e o abismo.”
Ela fechou os olhos.
Cada símbolo ali era uma dor processada. Uma verdade inaceitável escrita com agulha. Um mapa de onde esteve, sim. Mas também de quem sobreviveu sendo.
A água começou a escorrer.
E com ela, vieram como lembranças.
Lavou os cabelos com os dedos firmes demais. Quase como se quisesse arrancar, junto com a espuma, as dúvidas, os olhares, os silêncios engolidos. Os fios grudavam no rosto, descendo com a água como raízes molhadas. O couro cabeludo ardia sob a pressão dos dedos, mas ela continuava — como quem tenta arrancar a dor pela raiz.
Desceu pelos ombros.
Braços.
Seios.
Coxas.
Pés.
Como se lavasse também os dias em que foi invisível para Thena. Os dias em que falou alto demais porque ninguém escutava. Em que foi chamada de "intensa" quando só queria existir. Os momentos em que seu amor foi confundido com desequilíbrio. Em que sua fome de presença foi rotulada como carência. Em que o simples fato de pedir carinho foi tratado como um ruído.
As lágrimas vinham. Mas a água quente as dissolvia antes que tivessem nome. O vapor era o único testemunho da dor que escorria por dentro. E a água — constante, envolvente, quase maternal — não fazia perguntas. Apenas recebia.
No silêncio daquele banho, Hela pensou.
Não em Cibele. Nem na mesa. Nem no chá de rosa-moscada.
Mas em Thena.
Pensou no modo como Thena a olhava meses atrás — como se cada gesto seu fosse uma estrela nova. E em como, agora, havia hesitação nos olhos da esposa. Não desamor. Mas cansaço. Como se o amor estivesse sendo empurrado contra as bordas da exaustão.
“Será que sou exagerada? Ou só estou tentando existir sem pedir desculpa por isso?”, pensou.
O som da água era tudo o que a respondia.
Levantou a mão até o ombro esquerdo. Lá repousava a tatuagem em braile — uma fileira de pontos que formava uma frase secreta. Thena foi a única pessoa que algum dia a decifrou.
Ela se lembrava.
Era em Olímpia.
Um quarto simples.
Uma noite em que o medo tomava conta.
E Thena, deitada ao seu lado, traçava os dedos lentamente por sua pele, lendo os pontos como se fosse uma carta esquecida. E dissera, com a voz tão baixa que só podia ser escutada com o coração:
“Você é um mapa. Mas não de onde esteve. De onde quer chegar.”
Aquilo a desmontara. De amor. De reconhecimento. De pertencimento.
E agora, no vapor, no silêncio, no calor das lembranças… a frase voltava como um mantra. Uma âncora. Uma promessa esquecida.
O chuveiro continuava ligado, mas o som agora era outro.
Não mais uma fuga.
Não mais um esconderijo.
Era um abraço.
Silencioso.
Contínuo.
Quente.
E pela primeira vez naquela noite, Hela respirou com o peito inteiro.
Não por alívio.
Mas por reconexão.
E soube, ainda nua, ainda cansada, ainda em pedaços, que não precisava sair daquele banheiro curada.
Só precisava sair sentindo que ainda era ela.
E que Thena — onde quer que estivesse naquele momento — talvez ainda soubesse decifrar os pontos da sua pele.
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Na mesa, o vazio deixado por Hela ao subir as escadas e por Thena ao se retirar para o banheiro não era apenas ausência física. Era uma rachadura no tecido da noite. Um corte aberto por onde o silêncio escorria espesso, lento, feito porcelana trincada — prestes a romper com um toque em falso.
Mas Cibele não sabia habitar o silêncio. Nunca soubera. Silêncio, para ela, era espelho. Era eco. Era um sussurro inconveniente da própria consciência, e ela jamais foi mulher de escutar o que a incomodava. O silêncio era o lugar onde se escondia tudo o que ela insistia em controlar — e nada a deixava mais vulnerável do que não estar no controle.
Com um gesto medido, ajustou a xícara diante de si. Não bebeu. Apenas a girou levemente, os dedos frios deslizando sobre a cerâmica como quem afaga uma arma. O rosto continuava composto, polido. Mas o desdém era visível nos olhos — aquele tipo de frieza que não precisa se anunciar. Ela não atacava. Ela desossava.
E então, com a suavidade de uma lâmina embainhada, começou.
— A Thena sempre teve esse hábito… — disse, quase com ternura, como se descrevesse uma excentricidade antiga de uma filha querida. — De se apegar ao que é barulhento. Ao que precisa ser consertado.
A pausa foi breve. Precisa. O suficiente para que cada palavra se assentasse como poeira tóxica.
— Desde criança. Sempre foi assim. Tudo que era instável, que ameaçava cair... chamava a atenção dela. Como se amar fosse... resgatar. Como se ela tivesse que provar algo ao mundo.
A’Lars permanecia sentado à frente. Postura firme, mãos sobre a mesa, as veias sob a pele como rios antigos, tranquilos mas poderosos. Ele não a interrompia. Sabia que certas falas precisam seguir até se envenenarem por si mesmas.
Cibele suspirou. Um som quase bonito, se não fosse tão vazio.
Olhou para a escada que Hela subira.
O desprezo em seus olhos era límpido. Polido como uma taça de cristal. Inquebrável por fora. Tóxico por dentro.
— Essa menina… Hela. Essa mulher, se é que posso chamá-la assim — disse com a calma de quem já sentenciou — é uma criança mimada com tatuagens demais e maturidade de menos. Vive como se o mundo devesse a ela um palco. Como se bastasse estar viva para ser aplaudida.
A voz não subia. Mas o peso das palavras crescia como lama no estômago.
— Como se fosse especial só por ser ferida. Como se fosse revolucionário sentir demais. Como se gritar fosse poesia.
Ela passou o dedo sobre a borda da xícara. Um movimento circular, contínuo. Como se provocasse redemoinhos em chá — ou em vidas.
— E não é só a aparência. É o comportamento. Aquela instabilidade emocional disfarçada de intensidade. Aquela sede por atenção que beira o patético. Como se fosse encantadora. Mas não é. É apenas... ruidosa.
A’Lars continuava ali. Inflexível como a montanha. Respirando devagar. O olhar fixo nela, mas sem ataque. Sem pressa. Só presença.
— Ela puxa a Thena pra baixo. E Thena não vê. Ou pior: vê, mas aceita. Porque quer ser necessária. Porque precisa sentir que está salvando alguém.
E então, inclinou-se levemente para frente, como quem confidencia um segredo que sabe que será guardado — mesmo quando não deveria.
— Mas sabe o que me incomoda, A’Lars? — sussurrou. — É que essa… garota… não conhece seu lugar. Senta-se à mesa como se pertencesse. Como se fosse família. Como se tivesse conquistado algo. Mas tudo que faz é se derramar. Ser excessiva. Sentir demais. Falar demais. Viver demais. E espera que todos a considerem preciosa por isso.
Ela se recostou, o corpo deslizando de volta ao encosto da cadeira. Um gesto fluido, como se a conversa tivesse chegado ao fim. Como se tivesse vencido, outra vez, sem precisar levantar a voz.
Mas A’Lars, então, respirou fundo. Não como quem se prepara para responder — mas como quem se prepara para colocar o mundo de volta nos trilhos.
E quando falou, sua voz era grave. Densa. Parecia vir do chão de pedra, das paredes antigas do café, do tempo. Ecoava com o peso de tudo que é simples e verdadeiro demais para ser negado.
— Sabe, Cibele...
Ela ergueu os olhos. Levemente.
— Já vi muitas pessoas como você. Gente que confunde controle com elegância. Que acha que silenciar os outros é uma forma de autoridade. Que vê sentimento como fraqueza, e vulnerabilidade como falha de caráter.
Ele não gritava. Não acusava. Mas cada palavra entrava como raiz em terra rachada.
— Vi lares onde ninguém chorava alto — mas onde as feridas jamais cicatrizavam. Onde amor era algo medido, pesado, fiscalizado. Onde se confundia educação com obediência, e afeto com submissão. E sabe o que acontece nesses lares?
A pausa foi longa.
— As pessoas aprendem a não existir por inteiro. Aprendem a sentar-se à mesa com a espinha dobrada, pedindo desculpas por respirar. E gente como você envelhece sem entender por que, no fim, ninguém escolhe ficar.
Cibele não moveu nada. Nem os cílios. Mas algo ali congelou.
— Hela é imperfeita. Sim. Caótica. Intensa. Mas ama a sua filha com uma força que você nunca conhecerá. Porque o amor dela não pede licença. Não precisa se desculpar. Ele não é controlado. Ele é real.
Ele se ergueu.
Devagar. Como se cada osso também dissesse o que ele não dizia em voz alta.
— Você não precisa gostar dela, Cibele. Mas vai ter que aceitar que o mundo não gira no ritmo da sua aprovação.
E então, virou-se.
Olhou para a escada. Para onde Hela se escondera. Para onde Thena desaparecera.
E, com a serenidade de quem sabe que há palavras que são portas, disse:
— Porque quem sabe amar... não pede desculpa por existir.
E foi embora. Deixando Cibele sozinha à mesa. Com sua xícara fria. Com o próprio reflexo estilhaçado no fundo do chá.
Com o som do silêncio — finalmente — a cobrindo por inteiro.
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Zuras voltou à mesa em silêncio.
Mas não era um silêncio leve. Era um silêncio com cheiro de toalha úmida, com gosto de aço antigo, com o peso de quem carregava não apenas a água do banheiro nas mãos, mas as palavras que ouvira há pouco — e as que ainda se recusava a dizer.
A blusa azul-marinho que usava agora lhe parecia justa demais. Não por causa do tecido, mas da tensão que colava à pele. Ele secava as mãos devagar na barra, em gestos automáticos que tinham mais de ritual do que de higiene — como se, ao repetir o movimento, pudesse tirar de si o gosto amargo do que tinha testemunhado. A umidade do tecido não evaporava — era absorvida, como se quisesse arrastar para dentro da roupa um pouco do que estava grudado nos ombros dele: a exaustão, a inquietude, o desalento.
Sentou-se ao lado da esposa com uma lentidão medida. Não era cansaço. Era prudência. Era como alguém que retorna a um lar tomado por ferrugem e reconhece cada rangido da cadeira como um lembrete de que, mesmo o familiar, pode se tornar hostil.
A cadeira gemeu sob seu peso. Um som agudo, breve, mas cortante. Como se o móvel, cúmplice daquele cenário, não quisesse mais fingir que estava tudo em ordem.
Cibele não ergueu os olhos.
Estava com o celular na mão — mas não o usava de verdade. O polegar passava pela tela com movimentos curtos, precisos, desatentos. Havia um jogo ali. Não de distração, mas de negação. Ela digitava nada. Respondia a ninguém. Mantinha os olhos na luz fria do visor para não precisar encarar o calor do que Zuras trazia nos olhos.
Mas o corpo dela a traía. O maxilar travado. Os ombros mais altos do que deveriam. Os lábios comprimidos. O ar em volta dela parecia ter se transformado em vidro. Um vidro belíssimo à primeira vista — translúcido, elegante —, mas que bastava um toque errado para se estilhaçar e ferir.
Zuras passou as mãos pelo rosto. Devagar. Como se limpasse poeira invisível. Como se tentasse empurrar para fora algo que insistia em habitar por dentro. Seus olhos, fundos, vagaram brevemente pela escada. Depois, encontraram o espelho lascado acima do balcão — aquele que, mesmo torto e falhado, refletia o mundo com uma honestidade que doía.
As mãos então repousaram sobre a mesa. Os dedos se entrelaçaram com delicadeza. E ele girou, com o polegar, o velho sinete da família — aquele anel herdado do pai, da tradição, da retidão. O gesto era quase infantil. Mas nele havia algo de ancestral. Como se a moral de séculos precisasse se lembrar de respirar.
Só então, com a voz baixa, rouca do tempo, Zuras falou:
— Você foi dura demais.
A frase não caiu como acusação. Foi dita com a delicadeza com que se coloca uma pedra sobre o caixão de uma ideia. Era sóbria. Inegável.
Cibele não respondeu de imediato. Continuou com os olhos no celular, como se aquela fala tivesse vindo de outra dimensão. Como se fosse uma notificação irrelevante que não merecia sua atenção.
Mas havia algo em sua respiração que denunciava. O ar saía mais curto. A postura estava rígida demais para o conforto que fingia.
Quando enfim respondeu, a voz era seca. Uma navalha embainhada em verniz.
— Eu só disse o que ninguém tem coragem de dizer.
Zuras virou o rosto lentamente. Encarou a mulher como se a visse, de verdade, pela primeira vez em semanas. Seus olhos não estavam bravos. Estavam tristes. Profundamente tristes. Como os olhos de quem vê um muro crescer no lugar onde esperava um jardim.
— Não é coragem, Cibele. — disse, com uma firmeza que não precisava de volume. — É crueldade. Travestida de franqueza.
Cibele riu pelo nariz. Um som baixo. Breve. Um sopro de desprezo — desses que cortam mais que palavras.
— Ah, Zuras… você sempre tão sensível. Sempre tentando ver poesia onde só tem caos.
Ele inclinou-se levemente para frente. Não em ameaça — mas em verdade. Em presença.
— E você sempre com medo de tudo que escapa ao controle. — murmurou, com uma doçura amarga. — Sempre preferiu o silêncio ao grito. O cálculo ao risco. A máscara à emoção.
— Isso se chama maturidade. — ela respondeu, seca.
— Não. Isso se chama medo.
O silêncio que se seguiu doeu nos ouvidos. Zuras não recuou. Só piscou devagar, antes de continuar:
— A Thena não é mais uma criança. E a Hela… a Hela está tentando. Do único jeito que conhece. Do jeito que aprendeu. Porque ninguém a ensinou outro.
— Tentando?! — Cibele ergueu o rosto. E os olhos, frios, brilharam por um instante com a falsa compaixão de quem acredita, sinceramente, estar vendo com clareza. — Tentando o quê? Ser uma provocação viva? Uma anarquia emocional com pernas? Aquela mulher é uma bomba-relógio. E a Thena está deitada no colo dela.
Zuras recostou-se na cadeira. O corpo inteiro pareceu pesar, mas sua voz manteve a mesma firmeza quase serena:
— Às vezes, é nas mãos mais trêmulas que o amor aprende a ser delicado.
Ela bufou. Cruzou os braços com um estrondo seco. Como se estivesse selando a própria razão.
— Isso não é delicadeza, Zuras. É ilusão. Você acha bonito porque não é você quem tem que conviver com a instabilidade. Com os olhares. Com a vergonha. Com a cena. Mas eu vejo. Eu sinto. E mais que tudo: eu me recuso a aplaudir.
Ele a olhou com intensidade. Mas não havia dureza em seus olhos. Havia luto.
— Você não precisa aplaudir, Cibele. — disse, enfim. — Mas precisava ter respeito. Pelo menos o mínimo. Pelo que a Thena escolheu amar.
Ela desviou o olhar. Fixou os olhos na vitrine embaçada, onde as luzes do lado de fora começavam a refletir os faróis da rua. O mundo seguia, impassível, alheio. Mas ali dentro, a realidade era outra.
Zuras não falou mais. Pegou a xícara, agora morna, e levou à boca com cuidado cerimonial. O gesto era pequeno, mas carregava o peso de um casamento que envelhecia mal — não pela falta de amor, mas pela recusa em deixar o amor crescer.
Seu olhar, porém, não se afastava da mulher ao lado. Olhava para ela como quem observa um muro antigo. Um que já abrigou coisas belas. Um que agora trinca sob o próprio peso.
E então…
Do andar de cima, ouviram passos.
O fluxo de água cessara.
E com ele, talvez, a parte mais difícil daquela noite estivesse prestes a emergir — ainda molhada, ainda vulnerável, ainda doendo. Mas viva.
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Thena desceu as escadas com a postura ainda ereta — mas os ombros, que antes sustentavam a retidão com elegância militar, agora cederam alguns milímetros. Uma curvatura quase imperceptível, mas que denunciava o peso do que havia escutado: um peso sem volume, mas com densidade. Invisível aos olhos, mas insuportável para a alma.
Seu rosto mantinha a firmeza de sempre, mas não era estoicismo. Era contenção. Havia uma rigidez diferente nos músculos da face — não o tipo que denuncia raiva ou frieza, mas o tipo que revela um esforço tremendo para não transbordar. Como uma taça de cristal cheia até a borda, equilibrando-se num tremor sutil. Ali havia dor. Camadas espessas de dor, dobradas e encaixotadas com exatidão, como se fossem roupas de inverno que nunca se pode expor ao sol. Lençóis dobrados com perfeição milimétrica para esconder, por baixo, o colchão rasgado de memórias e cansaços.
Ao cruzar o salão, seus olhos passaram pela mesa — por Cibele, por Zuras — sem se deter em nenhum dos dois. Não por orgulho. Não por desdém. Mas porque olhar seria reconhecer, e reconhecer exigia uma força que ainda não estava pronta para oferecer.
Havia algo em seu caminhar que destoava do ambiente. Uma marcha serena, quase ritualística, como quem carrega um vaso trincado com as próprias mãos e sabe que qualquer gesto brusco será uma fratura irreversível. Ela andava com a lentidão dos que já não esperam ser interrompidos — e nem desejam.
A verdade era simples, cruel e sem floreios: o banheiro não ficava no andar de cima. Ficava ali mesmo, na lateral esquerda do salão, meio escondido por um biombo de madeira escura, entre a escada e a cristaleira. Um cômodo esquecido, antigo, com um espelho rachado e o cheiro persistente de sabonete de lavanda.
E foi dali que ela escutou tudo.
Cada palavra escorregou pela fresta da porta como veneno quente. E ela as recebeu como se merecesse — não por culpa, mas por hábito. Porque, desde criança, aprendera que palavras de julgamento vestem o tom da verdade quando ditas com voz firme. E Cibele era mestre nisso.
Ela parou ao lado da mesa por um breve instante. O tempo suficiente para que seus dedos passassem sobre o tampo de madeira, varrendo farelos que não existiam. Um gesto mecânico, automático — mas que, na ausência de migalhas, buscava varrer de si a poeira invisível das humilhações herdadas. Um gesto de limpeza íntima. Quase um exorcismo doméstico.
Puxou a cadeira. Com cuidado. Sem pressa. Como quem sabe que até o som do móvel pode doer em certos silêncios.
Sentou-se.
As mãos repousaram sobre o colo. Os dedos entrelaçaram-se, soltaram-se, voltaram a se tocar. Como se conversassem entre si. Como se dissessem: “espera só mais um pouco, eu estou aqui”.
Nenhuma palavra foi dita.
Thena pegou o garfo.
Não havia fome. Havia ordem. Havia método. Uma lógica ancestral, adquirida em anos de disciplina emocional: comer, mastigar, manter a cadência. Porque quem mastiga, respira. E quem respira, ainda está no controle.
O prato já estava de manhã. O peixe perde o brilho. O arroz começava a ressecar nas bordas. Mas ela levou o garfo à boca com precisão de cirurgia — como se o gesto, por si só, fosse uma forma de resistência.
Ao lado, Cibele mantinha-se calada. A xícara entre as mãos, o olhar turvo, o maxilar rígido. Havia algo em seu silêncio que parecia ensaiado demais para ser natural. Talvez eu tenha ouvido que Thena havia sido escutada. Talvez não se importe. Ou, pior: talvez esperesse que ela tivesse ouvido — como quem planta espinhos de propósito no caminho da filha.
Zuras trocou o peso de uma perna para outra. Um movimento sutil, mas carregado de incômodos. Ajeitou-se na cadeira como quem gostaria de levantar, de escapar — mas estava preso à madeira, às circunstâncias, ao casamento. Olhou de soslaio para a filha. Os olhos carregavam uma tristeza antiga, pesada, acumulada. Quero dizer algo. Qualquer coisa. Mas parou. Porque o silêncio de Thena era uma muralha de vidro grosso. E ele sabia: quando ela construiu esses muros, eram melhores conformidades. Eram os únicos lugares onde ela ainda se sentisse segura.
Na outra ponta do salão, um garçonete passou recolhendo pratos vazios. O som da louça toca ecoou pelo ambiente como sinos de um luto particular — pequenos, metálicos, delicados. Mas funebres. Cada tilintar parecia anunciar a morte de alguma coisa invisível. A confiança, talvez. O laço, talvez. A filha que Cibele descobriu que conhecia.
Thena mastigava devagar. Lentamente. Como se cada pedaço de comida tivesse atravessado uma garganta estreita de emoções represadas. Como se engolir fosse o único jeito de não chorar. Cada mordida era uma tradução silenciosa da decepção. Uma frase não dita, mastigada e engolida com dignidade. Não com a mãe. Não apenas com ela. Mas com tudo. Com todos. Com o vazio que cresce como mofo no canto do peito quando aqueles que mais deveriam acolher viram testemunhas mornas da crueldade.
Zuras olhou para a mulher ao lado. Cibele agora soprava o vapor que já não existia sobre a xícara — um gesto inútil, como quem finge que ainda há calor quando tudo já está frio há muito tempo.
Então respirou fundo. Mas por dentro.
E, naquele instante, mais do que tudo, ela desejou que Hela não voltasse tão cedo da ducha.
Não por medo.
Não por vergonha.
Mas porque ainda não tinha forças para carregar o coração da esposa junto ao seu. Não agora. Ainda não.
Chapter 15: Κεφάλαιο 07
Chapter Text
O tempo dentro do café parecia ter sido cortado em tiras finas — finíssimas — sequências entre o silêncio e a tensão como fios de seda prestes a romper. As palavras ditas — as certezas afiadas, as acusações vestidas de franqueza — não foram suprimidas. Pareavam. Entranhadas nas dobras da cortina, no verniz gasto das cadeiras, nos grãos ressequidos da madeira. Era como se o ar estivesse mais denso, como se cada partícula do ambiente tivesse consumido o veneno.
E cada gole de café que Thena tentava engolir carregava o gosto amargo de um erro que não era seu — mas que, por algum motivo, todos os inconvenientes eram depositar em seu colo. Um gosto que descia rasgando, como algo impronunciável, mas já assimilado. Um gosto que não esteja passando.
Então os passos seguintes.
Lentos.
Arrastados. Molhados ainda.
O tipo de passo que não anuncia retorno — mas fim.
Thena extravasa os olhos por puro instinto, como se a alma tivesse se antecipado ao corpo. Não havia esperança ali. Havia um reconhecimento ancestral. A certeza súbita, visceral, de que algo previu que o acontecimento já estava selado. Uma sensação que não vinha do cérebro, mas do estômago, dos ossos — daquelas partes do corpo que sabem antes da mente entender.
Hela apareceu no topo da escada como uma romântica e dilacerante.
Desceu com a lentidão de quem carrega nos pés o cansaço de uma década — ou mais. Cada degrau foi vencido com uma solenidade muda. O vapor do banho ainda subia de seus ombros como uma névoa íntima, carregando não frescor, mas luto. A pele brilhava, mas não por vitalidade — e sim porque o corpo não sabia o que fazer com tanta exaustão. O cabelo preto, úmido, preso às pressões em um coque torto, deixava à mostra a tatuagem já meio desbotada de Sullivan, o monstruoso azul com olhos doces. A ironia não passou despercebida: era sempre nos monstros que Hela via ternura. Nos que não pertencem. Nos assustamos à primeira vista, mas cuidamos quando ninguém olha.
Os ombros não sob a regata preta revelaram cicatrizes discretas: pequenas queimaduras, marcas antigas de quedas, de ferros de solda, de garras de cachorro, de coisas que Thena conhecia e que ninguém ali teria coragem de perguntar. Marcas que falam mais sobre vida do que sobre trauma.
Mas foi no rosto que o golpe veio.
Não havia raiva.
Nem o olhar cortante, nem a ironia de defesa que ela costumava vestir como armadura.
O que havia ali era o cansaço de quem tentou ser amado numa sala onde todos sabiam seu nome — mas fingiam esquecê-lo toda vez que ela abriu a boca. O tipo de cansaço que não derruba, mas que lentamente vai apagando a chama dos olhos.
Ela se moveu da mesa com um silêncio que falava alto. Não como quem volta. Mas como quem fecha um capítulo. Como quem já entendeu que não há mais nada a ser escutado.
Parou ali, em pé, os olhos fixos na madeira da mesa — como se olhasse para uma lápide sem nome. O vapor ainda se agarrava à pele, e o cheiro de sabonete de cardamomo subia sutil, como um perfume íntimo que Thena reconheceria mesmo em meio a uma multidão.
Hela levou a mão ao bolso da calça de moletom — preta, antiga, puída no cós — e de lá tirou uma nota dobrada. Era só papel. Mas em suas mãos, parecia um gesto cerimonial. Como quem sela um pacto com o adeus.
— Queria estar digna o suficiente pra atravessar o continente ao seu lado. — disse. A voz não vacilava. Era limpa, clara, sem ornamento. Mas por trás da firmeza, havia uma implosão.
Ela não olhou para ninguém. Apenas colocou a nota entre o guardanapo e o saleiro. Um gesto contido, quase delicado, de quem já aprendeu a sair sem empurrar a cadeira. De quem aprendeu a não ocupar espaço. Nem mesmo quando está partindo.
— Nem que fosse por um banho.
E então recuou um passo.
O mundo, ao redor, seguiu em câmera lenta.
Zuras cerrou os olhos, a respiração presa no peito, como se tentar conter algo que já escapava. Quando os abriu, Hela já estava se afastando. E a forma como ela se afastava era pior do que qualquer grito.
Não houve cena.
Não houve apelo.
Hela não quebrou pratos, não falou alto, não pediu amor.
Só virou as costas.
E foi.
O sininho da porta soou com um lamento metálico. Um som breve, mas que cortou. A brisa que entrou era fria — estranhamente fria para junho — e trouxe com ela aquele cheiro: cardamomo, pele molhada, algo doce que resistia. A mistura que Thena havia aprendido a amar. A mistura que agora a feria como faca.
Thena se levantou.
Ou quase.
O movimento morreu na metade.
Uma mão ainda agarrada ao encosto da cadeira. A outra no ar. Os olhos fixos na porta. A alma inteira esticada como um músculo prestes a se rasgar. A respiração se perdeu em algum ponto entre o peito e a garganta. E a âncora que sempre a mantinha centrada… agora a prendia num chão que já não era porto.
Do lado de fora, Hela atravessava a rua. Mochila no ombro esquerdo, mala pequena na mão direita — a mesma mala que, discretamente, ainda guardava os restos de glitter da primeira vez em Olímpia. Os cantos da bagagem estavam puídos, e a alça tinha um nó improvisado com uma fita roxa — símbolo de que ela consertava o que podia, mas nem sempre conseguia disfarçar as rachaduras.
Ela não olhou para trás.
E isso foi o que mais doeu.
A ausência não se faz só de distância.
Faz-se também da certeza de que alguém já não espera ser chamado de volta.
Zuras limpou a garganta. Os olhos ardiam. A dor, no entanto, não cabia na voz. E ele não disse nada. Porque às vezes o silêncio é tudo o que resta aos que assistem uma perda acontecer — sabendo que podiam ter feito mais.
Cibele apenas bufou. Um som pequeno, mas pesado. Cruzou os braços, empurrou a xícara com um leve empurrão de desdém. Voltou os olhos para a filha com o mesmo olhar de sempre — o de quem acredita ter previsto a tragédia, e por isso se sente redimida por ela.
“Está vendo?”, parecia dizer. “Eu avisei.”
E foi exatamente nesse instante que A’Lars deixou o balcão.
O avental manchado de café pendia sobre a barriga, e seus passos, ainda que lentos, traziam uma firmeza ancestral. Parou ao lado de Thena, respeitoso. Com ternura embutida até na maneira como não encostava.
— Às vezes, a gente finge que não escuta. — disse, num tom tão baixo que só os culpados entenderiam. — Mas quando o amor vai embora desse jeito… a alma grita. E quem tem ouvidos, ouve.
Thena não respondeu.
Mas seus olhos se encheram.
Não de lágrimas ainda.
Mas de ausência.
Hela.
Não como esposa.
Não como “o problema”.
Não como o fardo que sua mãe sempre dizia.
Mas como ausência.
Como algo que não se recupera.
E de todas as versões que já conhecera daquela mulher — a engraçada, a escandalosa, a insuportavelmente teimosa, a apaixonante — nenhuma doía tanto quanto essa:
A que partia sem fazer barulho.
A que já não implorava.
A que amava — mas não esperava mais ser chamada de volta.
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Hela parou a poucos passos da caminhonete.
A sombra projetada pela lataria desenhava no chão um retângulo de alívio — uma ilha temporária no calor crescente da aurora. O céu acima ainda não era dia nem noite: tingia-se em tons de azul-pálido e rosa queimado, como se o mundo ensaiasse uma poesia que só os que carregam milênios nos ossos poderiam decifrar. O chão de pedra sob seus tênis ainda guardava a friagem da madrugada, e uma brisa vinda do leste trazia o cheiro salgado do Egeu misturado ao aroma seco dos ciprestes e ao pó ancestral de histórias que nunca encontraram uma boca segura para contá-las.
Ela estava limpa.
Mas não leve.
Seca, mas longe da paz.
Casada, mas preenchida de um mar em revolta — cada onda uma pergunta sem nome, cada corrente um desejo de se desfazer em espuma e recomeçar.
O rabo de cavalo frouxo escorregava devagar, como se até os fios de cabelo desistissem de sustentar a própria presença. A jaqueta preta, resistente como ela costumava ser, agora parecia um abraço que apertava demais. Os ombros nus por baixo dela carregavam marcas — algumas cicatrizadas, outras recentes. Todas visíveis.
Ela parou.
Inspirou fundo. Puxou o ar como quem tenta preencher o próprio vazio. Como se pudesse encher os pulmões de algo que lembrasse esperança.
A mão direita mergulhou no bolso interno da jaqueta, com um tremor contido.
Tirou de lá uma pequena caixa metálica, retangular, fina, com as bordas levemente riscadas. O brilho era discreto, como uma lembrança. Inscrições em élfico-nórdico atravessavam a superfície: runas que Loki gravara pessoalmente, com magia antiga e sarcasmo eterno — “Para quando quiser se lembrar de quem você tentou ser.”
A tampa se abriu com um estalo seco. Frágil. Irrevogável.
O cheiro do tabaco escapou denso, adormecido por séculos. Era uma mistura de folhas esquecidas, secas à sombra de árvores malditas que nunca mais brotaram em lugar algum. A fumaça parecia ter alma — carregava sussurros de batalhas, gemidos de pactos quebrados, confissões nunca ditas.
Ela ficou ali, imóvel, o cigarro entre os dedos.
Dois mil cento e quarenta e seis anos. O tempo exato desde que Hela encostara um filtro nos lábios.
E lembrou-se.
Com a precisão implacável de uma deusa condenada a nunca esquecer.
Lembrou-se da primeira vez que viu Thena.
Sob um olival sagrado, em Olímpia, no fim de um entardecer tão quente que até os corvos se calavam. Thena estava de branco. Não o branco da pureza — mas o da fúria contida. A luz do sol fazia a bainha da espada cintilar como promessa. E ela caminhava como se o chão se curvasse para não ousar impedi-la.
Thena não a olhou. Não precisou.
Hela congelou. Ela, a deusa da morte, que já devorara reinos e calara multidões. Diante daquela mulher, sentiu-se pequena. Humana. Ridícula.
Ali soube: “Nunca mais.”
Nunca mais fumaça.
Nunca mais nada que a tornasse indigna daquele olhar — mesmo que jamais fosse para ela.
E cumpriu.
Mesmo quando caiu em guerras que nem os deuses lembram.
Mesmo nas prisões cósmicas, nos exílios psíquicos.
Mesmo quando Thena desapareceu por séculos, sem aviso.
Mesmo quando quis desaparecer.
Mas agora estava ali.
A caixa aberta. A decisão à flor da pele.
Ela levou o cigarro aos lábios. Não acendeu. Não tragou. Só sentiu o peso da memória — e o gosto agridoce daquilo que poderia ter sido.
E então, com lentidão cerimonial, abaixou a mão.
Pisou a caixa.
O metal rangeu sob a sola como um grito antigo sendo silenciado. Depois se curvou, juntou os pedaços com a ponta dos dedos e os levou até uma lixeira de ferro fundido, do outro lado da calçada.
A tampa bateu.
E na luz oblíqua da aurora, a inscrição gravada brilhou como sentença:
“Kάθε πράξη έχει σημασία.”
“Cada ato tem significado.”
Ela permaneceu ali. Imóvel. O corpo inteiro dizendo “fica”, mas a alma já preparando partida.
O celular vibrou na palma da mão. Frio. Urgente. Familiar.
Desbloqueou a tela com dedos hesitantes. Abriu o grupo salvo com os dois nomes mais fiéis do seu mundo:
🐺🪓🖤❤️🩹 & 🧔🏼♂️💪🏻🤎❤️🩹
Fenrir. O pai-lobo.
Eirik. O pai-caçador.
Ela apertou o botão de chamada.
Dois toques. Três.
A voz que atendeu foi a de Eirik — grave, levemente rouca, um pouco debochada, muito amorosa:
— Isso é ou não é uma chamada de socorro com sabor de cinzas e o silêncio de quem ainda quer lutar?
Hela soltou um riso curto. Quase um soluço disfarçado.
— Mais ou menos. Eu... desmoronei no café do irmão do meu sogro. Saí. Fugi. Tomei banho. Quase fumei. Não fumei. Agora tô aqui fora. Esperando a mulher da minha vida sair e fingir que ainda me ama.
Eirik suspirou.
— Parabéns por não fumar. Já é mais do que metade dos imortais fariam.
E depois:
— Desmoronou como? Com estardalhaço ou... no silêncio que engole tudo?
— No segundo. Engasgado. Sem plateia.
— O banho?
— Foi ritual. Não limpeza. Queimou. Depois aliviou.
Uma pausa.
Então veio Fenrir, tomando o celular do outro lado:
— E você, filha? Sabe quem é quando não tá tentando caber na expectativa de alguém? Quando não tá usando armadura pra parecer menos intensa, menos caótica, menos você?
Ela respirou fundo, escorando a testa contra a lataria da caminhonete. O metal estava morno.
— Eu tô tentando me lembrar.
O silêncio que se seguiu doeu.
E então, Eirik voltou:
— Hela. Você já se perdoou?
— De quê?
— De tudo. De sentir demais. De precisar. De falhar. De não ser uma deusa de vitrine. De existir como você é. Você vive se amassando pra caber no formato das pessoas que nunca se moldaram por você.
— Eu não quero perdão.
— Não é querer. É precisar. Pra respirar. Pra parar de se culpar por não ser compreendida por quem só ama no idioma do controle.
Hela engoliu seco.
— Eu só queria caber.
Fenrir riu. Um som bruto e doce. Como trovão no colo.
— Você nasceu pra explodir estruturas. Pra ser vento em janela fechada. Pra transformar o desconforto em verdade.
E Eirik completou:
— Quem te ama de verdade... constrói janelas novas. E fica. Mesmo com o vendaval.
Nesse momento, a porta do café se abriu atrás dela.
Um som tão pequeno.
Mas o impacto foi tectônico.
Thena estava ali.
Na soleira da porta.
E Hela nem precisou virar pra sentir. O coração fez isso por ela.
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Hela inspirou. Longa e silenciosamente.
O ar entrou por suas narinas como um sopro de pedra antiga, queimando levemente por dentro, e ainda assim… necessário. Era o tipo de respiração que não se faz para se acalmar, mas para permanecer em pé. Para não se dissolver por dentro. Para não desabar diante do que se ama.
A rua diante do café estava estranhamente quieta. As lojas vizinhas ainda mantinham suas fachadas adormecidas, persianas apenas entreabertas, como pálpebras preguiçosas diante da aurora. O céu atrás de Thena já não pertencia à noite — nem ao dia. Era um mundo entre. Um limiar suspenso. Ouro pálido, sangue diluído, azul-acinzentado, tudo esmaecido por uma luz que parecia ter atravessado séculos para chegar ali. O silêncio pairava, espesso. Como se até o universo prendesse a respiração diante daquelas duas figuras em suspensão.
Thena, parada na soleira do café, recortava-se contra a luz nascente com a precisão de uma pintura renascentista. O contorno do seu corpo firme, imóvel, os braços relaxados ao lado do corpo, e os olhos — os olhos de um azul tão vasto que poderiam conter marés — cravados em Hela. Não como se esperasse explicações. Mas como quem vê algo que enfim se revela inteiro.
Hela não se moveu. O telefone ainda em mãos, como se fosse uma relíquia ou uma arma. A voz dela, quando surgiu, foi baixa. Rouca. Mas havia algo de aço sob a bruma:
— Depois ligo pra vocês.
Do outro lado da linha, Fenrir e Eirik não pediram explicações. Era lobo demais para perguntar. Era caçador demais para não perceber. Homens o bastante para entender que há despedidas que só doem mais se forem longas.
— Vai com tudo, filha — disse Fenrir. A voz carregava a firmeza de uma floresta ancestral.
Hela desligou. O visor escureceu. Mas a última frase dos pais ecoou em sua pele como um feitiço protetor. Guardou o celular no bolso da jaqueta e, junto com ele, as mãos. Escondeu os dedos. Como quem esconde o que treme.
E então ficou.
A luz que banhava Thena agora também alcançava Hela, tingindo-lhe o rosto com um dourado gentil que não combinava com o cansaço sob seus olhos. A tatuagem na nuca — o contorno do Sullivan — brilhava sutilmente sob os cabelos encharcados de vapor e água seca. As cicatrizes nos ombros, ressecadas e reais, pareciam histórias escritas em pele. Hela estava limpa. Mas não leve. O corpo tenso, o maxilar cerrado, os pés firmes no chão como se estivessem tentando resistir a um vendaval que só ela sentia.
— Oi… — disse ela.
Foi um sussurro. Quase um pedido. Quase um perdão. Uma palavra que parecia implorar: me veja. Me reconheça. Me permita existir de novo.
Thena não respondeu. Não com palavras.
O som abafado do sino do café atrás dela marcava um ponto e vírgula entre a vida de antes e o instante presente. As conversas no interior do café diminuíam, tornando-se murmúrios indistintos, como se o mundo decidisse silenciar para ouvir o que não era dito ali fora.
A brisa que passava entre as duas era fina, cortante, como uma lâmina de lembranças. As folhas de uma árvore próxima estremeciam devagar, e um passarinho pousou no parapeito do poste mais próximo — mas nem ele ousou cantar.
Elas se encararam.
Não era confronto. Era reconhecimento. Era exaustão. Era amor que sobreviveu ao fogo e à ausência, e ainda assim estava ali, inteiro — mesmo que manco.
Thena vestia uma blusa branca simples, de algodão fino, com a gola levemente desalinhada. Um colar com pingente em forma de asa repousava sobre o peito — discreto, mas carregado de simbolismo. Calçava sandálias claras, e a calça cáqui dobrada no tornozelo deixava à mostra os ossos finos de seus pés. Era uma imagem de sobriedade e delicadeza. Mas o olhar… o olhar era de quem lutou a noite inteira com memórias, e perdeu.
Hela mexeu nas mangas da jaqueta. O gesto nervoso denunciava o quanto ela se continha. As unhas pintadas em tons desbotados da bandeira lésbica estavam lascadas nas pontas. A maquiagem dos olhos havia desaparecido com o vapor do banho, mas os cílios ainda pesavam com sal.
— Eu não… — tentou dizer.
Mas a frase se partiu no meio, como um galho velho.
Ela respirou de novo. Forçou-se a continuar.
— Eu só queria parecer alguém digna de sentar ao seu lado no avião.
Thena não piscou de imediato. Quando o fez, foi como se cada batida de pálpebra trouxesse uma lembrança: a primeira viagem, o primeiro toque, a primeira promessa não dita.
— Você acha que eu tenho vergonha de você? — a pergunta saiu simples, mas tinha a densidade de um trovão emocional.
— Acho. — disse Hela. Sem vacilar. Como quem joga a última carta sabendo que já perdeu a partida.
O silêncio entre elas era tão espesso que parecia ocupar espaço físico.
Thena abaixou os olhos, depois voltou a erguê-los. E, nesse movimento, uma lágrima escapou sem escorrer — ficou ali, presa no canto, como tudo o que nunca foi dito.
— Eu não tenho vergonha de você. — sua voz saiu baixa. Mas era verdade pura. — Tenho medo.
Hela arregalou os olhos, apenas um pouco.
— Medo de quê?
— De te perder. — respondeu Thena. — De que essa distância que começou entre quartos diferentes vire um continente. E que a gente nunca mais saiba voltar.
Hela sentiu o ar sumir do peito. Uma dor silenciosa se abriu entre as costelas, do tipo que não explode, mas corrói.
— Eu tô cansada, Thena. — murmurou. — Cansada de tentar não incomodar. Cansada de ser forte. Cansada de andar na ponta dos pés dentro da minha própria casa. Como se amar você exigisse me dobrar inteira.
Thena deu um passo. Depois outro.
Aproximou-se sem pressa. Mas com certeza. O sol agora lambia os cabelos platinados dela, fazendo-os parecer quase etéreos.
— Eu sei que você tenta. Eu vejo. Mas às vezes… tentar não basta.
Ela parou diante de Hela.
Estendeu a mão.
Tocou o ombro dela com os dedos inteiros.
— Eu sou sua casa, Hela. Mesmo quando tá tudo bagunçado.
Os olhos de Hela marejaram.
— E se eu quebrar tudo?
Thena sorriu, triste.
— Então a gente reconstrói. Com o que sobrar. Com o que for verdadeiro.
E então, sem que nenhuma delas dissesse mais nada, Thena a puxou.
Devagar. Com as duas mãos. Como quem segura o passado, o presente e a possibilidade de um futuro.
O abraço foi demorado. Tenso. Mas vivo.
E ali, naquele espaço apertado entre os dois peitos colados, nenhuma palavra seria suficiente. Nem necessária.
Ali, elas eram só silêncio, pulsação… e amor.
E era o bastante. Por enquanto.
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Do outro lado do vidro, encoberta pelas sombras do interior do café e com a xícara ainda intocada à frente, Cibele observava.
Não como mãe.
Não como alguém que compreende.
Observava como quem julga.
Como quem vê um acidente se desenrolar em câmera lenta e sente repulsa por cada segundo — mas se recusa a desviar o olhar.
Como quem não permite que o desprezo se transforme em pena, mesmo quando o mundo inteiro parece prestes a desabar diante de si.
A brisa da manhã ainda não havia alcançado aquele lado do salão. O vidro da janela, levemente embaçado pela diferença de temperatura entre o interior aquecido e o frescor matinal, criava uma tênue película entre mundos. Mas não o bastante para impedir a visão nítida do que acontecia lá fora.
Ali estavam elas:
Hela, descomposta, molhada, com a alma escorrendo pelos olhos.
Thena, impecável até na vulnerabilidade, abraçando-a como se houvesse o próprio coração nas mãos.
E aquilo… aquilo, para Cibele, era uma afronta.
Não só pelo gesto, mas pelo que ele representava: fraqueza.
Fraqueza exposta. Pública. Tão dolorosamente humano que beirava o indecente.
Seu maxilar se contraiu. A mandíbula oscilava de um lado para o outro, como se mordesse por dentro as palavras que não se atrevia a lançar. A mão relacionadava sobre a mesa, os dedos batendo um ritmo sutil — quase inaudível — contra a cerâmica do pires. Um compasso de inquietação disfarçada. Um tambor de guerra em miniatura.
A figura de Hela, com aquela jaqueta escura, o cabelo preso de qualquer jeito e as tatuagens visíveis no pescoço, era tudo que Cibele havia passado a vida evitando. Ela era a materialização daquilo que escapa à disciplina, ao controle, à ordem.
A interrupção do legado.
E Thena… sua filha perfeita, racional, a mente brilhante, o nome que pesava como medalha no seio da família… agora se deixa cair no colo de uma mulher que era, para Cibele, a tradução mais precisa de caos envolto em perfume.
Dois corpos femininos entrelaçados, no meio da rua, diante de todos, em plena luz do dia.
Mas não era o amor que a feria.
Era o que o amor revelava:
O abandono de tudo o que ela havia construído.
Thena, aos olhos de Cibele, havia se perdido.
E o que Cibele via naquela cena não era uma reconciliação. Era uma rendição.
A rendição da filha a algo que ela, com toda sua dificuldade, nunca conseguiu controlar.
Seu rosto está impassível. Mas por dentro, havia ruína.
O beijo que não veio.
O toque que durou demais.
O silêncio entre elas.
Para Cibele, cada detalhe era uma prova.
De desequilíbrio.
Decadência.
De vulnerabilidade perigosa.
— Fraqueza… — murmurou, mal percebendo que falava em voz alta.
Zuras a ouviu. Não respondi.
Apenas desviou o olhar, como quem já aprendeu que o silêncio é a única trincheira possível diante de um coração trancado.
O sino da porta tilintou.
Alguém entrou.
Um sopro de ar fresco deslizou pelo salão e esbarrou em Cibele, mas ela nem piscou.
Os olhos seguiram fixos nas duas lá fora.
O abraço entre Hela e Thena perdurava.
Firme.
Inconveniente.
Real.
E para Cibele, realidade demais era vulgar.
Verdade demais era perigosa.
Sentimento demais… era inaceitável.
Ela tomou a xícara aos lábios.
O chá estava frio.
Mas não é tão frio quanto ela.
Chapter 16: Κεφάλαιο 08
Chapter Text
Zuras se retiram da cadeira com um movimento sóbrio, quase cerimonial. O pano escorregou do seu colo e tombou sobre o chão de madeira encerado, como um lenço abandonado após um duelo. Ele não se abaixou para pegá-lo. Não por desatenção — mas porque, naquele momento, tudo que caiu era deixado onde estava.
Algumas quedas não merecem resgate.
Seus olhos procuraram o irmão atrás do balcão. A'Lars retribuiu o olhar à distância, sem sorriso, sem gesto, apenas um leve aceno de cabeça — breve, contido, ancestral. Um cumprimento entre soldados cansados demais para palavras. Dois homens que, por dentro, sabiam que estavam em lados diferentes de um mesmo campo minado.
— Vamos. Temos que continuar. — disse Zuras, baixo, para que apenas a esposa ouvisse.
A voz dele era como pedra coberta de musgo: firme, mas gasta.
Seu olhar, porém, hesitou no vidro diante deles.
Do outro lado, Thena e Hela ainda estavam entrelaçadas — duas silhuetas fundidas na luz de um novo dia. Um abraço que, para ele, não era desafio. Era esperança. Era coragem de existir apesar do medo. Havia naquela cena uma dor silenciosa que ele não ousava explicar, mas que escolhera as conformidades. E para um homem como ele, que cresceu entre fronteiras de império e deveria, respeito era o gesto mais íntimo que poderia oferecer.
Cibele, ao seu lado, não se moveu.
Permanência sentada como uma estátua de sal: o corpo rígido, os braços cruzados diante do peito, o semblante erguido como muralha.
Então ela falou.
Com a boca apertada e os dentes rangendo por trás da voz:
— Não temos. Elas têm.
Por mim? Eu dava meia volta agora mesmo.
Deixava elas se virarem.
Melhor ainda: deixava aquela coisa se virar.
“Aquela coisa.”
As palavras caíram pesadas na mesa.
Não como insulto passageiro. Mas como sentença.
Zuras fecharam os olhos.
O ar escapou por entre seus lábios como quem solta o último suspiro de uma discussão que não quer mais continuar.
Não foi a primeira vez que ela fez aquilo.
Mas, como sempre, faça como se fosse.
— Cibele… — murmurou ele, voltando-se levemente em sua direção. — Chega.
Ela soltou uma risada curta. Rasa.
Sem humor. Sem compaixão.
Só ferro.
— Não me venha com esse olhar de mártir. - sibilou.
E então se inclinou, o corpo curvado como uma serpente tentou a picar.
A voz, agora baixa e venenosa, atravessou a distância entre eles como um fio de lâmina.
— Você pode fingir que é tudo normal. Que eles são um casal como qualquer outro.
Mas me desculpe, Zuras…
Aquilo ali?
Aquilo é desequilíbrio.
É bagunça embalada em afeto torto.
É fragilidade disfarçada de força.
Você realmente acha que isso vai durar? Que nossa filha vai conseguir manter a cabeça erguida vivendo no olho desse furacão?
Zuras permaneceu imóvel.
Mas por dentro, o coração latejava como um tambor abafado.
Quando respondeu, sua voz era fria como pedra lavada pela neve.
Não havia ódio nela.
Só a exaustão de quem já lutou demais para defender o óbvio.
— Eu não me importo se vai durar, Cibele.
Me importa que agora… é amor.
E eu não vou ser o tipo de pai que nega amor pra filha porque a verdade dela me desconcerta.
Cibele apertou os olhos. Um vinco profundo se desenhou entre suas sobrancelhas.
— Você nunca teve estômago pra impor limites, Zuras.
Ele não rebateu.
Pegou o casaco do encosto da cadeira. Vestiu-o com calma.
Como um homem que se recusa a correr mesmo dentro do incêndio.
E então, antes de partir, voltou o olhar para a vidraça.
Lá fora, Hela e Thena começavam a se afastar uma da outra.
Mas a luz que as banhava agora era dourada, quente, uma luz que não iluminava — abençoava.
Como se o mundo, hesitante, ainda tentasse decidir se aquilo era o fim de uma guerra ou o começo de uma promessa.
— E você… — disse ele, num tom quase gentil, mas letal — …nunca soube amar sem medir.
E é por isso que está sozinha, mesmo cercada de gente.
Ele caminhou até a porta.
Cada passo era um adeus contido.
Parou apenas uma vez, a mão na maçaneta, e olhou para trás.
Para ela? Talvez.
Para Thena? Com certeza.
Um último olhar, não de julgamento.
Mas de chão.
Um olhar que dizia: “Vai, filha. Se dói, é porque é verdadeiro.”
A porta se abriu.
O sino soou.
Zuras desapareceu sob o mesmo céu onde duas mulheres ainda tentavam costurar, com dedos trêmulos, o que valia a pena manter inteiro.
Cibele ficou.
Sozinha.
Fria.
Um império arruinado sem terremoto — só rachado por dentro.
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Cibele permaneceu sentada. Os braços cruzados como armadura. O queixo erguido como estandarte.
Ela parecia estar no comando de uma trincheira invisível — a última sentinela de um império que já havia caído, mas que ela, por orgulho, se recusava a declarar vencido.
Seus olhos vasculharam o salão com o desdém de quem busca confirmar que está sozinha — e que isso, de alguma forma, a torna superior.
Até pousarem no balcão.
A’Lars estava ali.
Metódico. Tranquilo.
Como sempre.
Limpava a madeira como quem organiza o próprio coração: com gestos firmes, ritmados, deliberadamente silenciosos.
A luz do amanhecer filtrava-se pela vitrine lateral e tocava seus cabelos grisalhos com uma delicadeza que beirava o sagrado. Havia em seu rosto a paz de quem há muito desistira de vencer — e por isso, talvez, já tivesse vencido.
Cibele apertou os olhos. A raiva fermentava por dentro.
A voz escapou antes que o juízo conseguisse contê-la:
— Vai dizer que concorda com ele?!
A’Lars não respondeu de imediato.
Alinhou dois copos com exatidão matemática.
Só então ergueu o rosto.
Seus olhos, castanhos como madeira antiga molhada pela chuva, encontraram os dela com uma firmeza que não desafiava — sustentava.
Não havia rancor ali.
Só presença.
— Concordo.
— disse ele, com a voz baixa, grave e límpida, como uma nota tocada em piano velho.
— E muito.
Não porque ele é meu irmão.
Mas porque ele está certo.
Cibele recuou ligeiramente na cadeira, como se a resposta tivesse peso físico. O queixo se projetou para a frente, o olhar fustigado.
— Certo?! Você acha certo o que ela faz?
O espetáculo? A desordem?
Esse... circo emocional que ela monta pra arrastar minha filha pra dentro do caos?
A’Lars largou o pano com calma sobre o balcão.
Depois se inclinou levemente à frente, apoiando os antebraços na madeira.
A luz do sol, agora mais forte, desenhava linhas douradas nos vincos de sua pele. Os sulcos das rugas diziam mais do que qualquer discurso.
— Eu vejo duas mulheres tentando sobreviver àquilo que a maioria das pessoas nem tem coragem de sentir.
Você vê bagunça?
Eu vejo coragem.
Você enxerga ruína?
Eu vejo tentativa.
Cibele bufou. Bateu a mão sobre a mesa, com raiva contida, como quem tenta manter a própria estrutura em pé através da força do som.
— Ela não é estável, A’Lars!
Ela vive num mundo de impulsos!
Um dia ama, no outro surta, no outro se veste de Olaf pra fazer mala!
Não é assim que se constrói um futuro!
É palhaçada emocional!
— E você acha que Thena é feita de vidro? — rebateu ele, firme, mas sem elevar o tom. —
Que ela foi capturada por alguma miragem, que não sabe o que está fazendo?
Thena não é refém, Cibele.
Ela é uma mulher adulta.
Escolheu com os dois pés no chão — e com o coração inteiro no risco.
— Ela tem uma carreira, A’Lars.
Um nome.
Uma reputação.
Um legado!
A’Lars soltou uma risada curta.
Baixa.
Sem deboche, mas cheia de ironia.
— E desde quando amor impede legado?
Ou você acha que amor só serve quando cabe no figurino social?
Cibele se levantou. A cadeira arrastou com um rangido seco no piso.
Ela estava trêmula — mas não de fragilidade.
Era o tipo de tremor que vem do orgulho sendo corroído por dentro.
— Eu só quero o melhor pra ela!
— Não, Cibele. — disse ele, agora olhando direto, e mais fundo.
As palavras saíram medidas, como pregos sendo cravados com precisão:
— Você quer o que VOCÊ entende como melhor.
Mas, às vezes, o melhor pra quem a gente ama… é exatamente aquilo que a gente não escolheria.
O silêncio que se seguiu foi denso.
Como se cada molécula de ar entre eles estivesse tentando conter um incêndio.
— Você ama Thena?
Então ama também as escolhas dela.
Ou, no mínimo, respeita.
Cibele abriu a boca. Mas não veio som algum.
O olhar dela oscilava — entre incredulidade e uma tristeza que jamais se permitiria nomear.
A’Lars a encarava com a calma de quem não está tentando vencer uma briga, mas salvar uma alma.
Mesmo que a alma em questão lute para se manter perdida.
Ele voltou aos copos. Pegou um último cálice e começou a limpá-lo, como se a conversa tivesse terminado ali — ou como se já não houvesse mais nada que pudesse ser dito com palavras.
Mas, antes que ela saísse, falou sem levantar o rosto:
— A diferença entre nós, Cibele…
é que eu prefiro uma filha feliz do que uma filha obediente.
Cibele permaneceu imóvel por um segundo. Um segundo que durou uma eternidade interna.
As palavras pareciam ter cravado raízes em seus pés.
Mas, finalmente, ela se virou.
Sem responder.
Sem ruído.
Passou pelo salão como quem atravessa os destroços da própria rigidez.
E saiu pela porta dos fundos, que se fechou devagar, com um estalo abafado — como se a casa inteira tivesse acabado de respirar aliviada.
A’Lars não olhou.
Apenas respirou fundo.
O reflexo do sol nas garrafas tremulava em tons dourados e âmbar, dançando sobre o balcão como se dissesse que a manhã — apesar de tudo — ainda não havia terminado.
Nem o amor.
Nem a luta.
Nem a possibilidade de recomeço.
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Do lado de fora do café, o céu já estava completamente escuro, exceto por um fiapo de luz dourada resistindo no horizonte — uma cicatriz tênue no ventre da noite. A caminhonete aguardava com os faróis apagados, sob a copa de uma oliveira que balançava como uma sentinela sonolenta. Ao lado dela, os dois táxis contratados também estavam de prontidão, motores ainda desligados, o cansaço dos motoristas escorrendo pelos rostos impassíveis e mãos largadas no volante.
Zuras já estava no banco do carona da caminhonete, o corpo levemente inclinado, como se carregasse o peso silencioso de todas as palavras que não disse naquela noite. Mantinha os olhos voltados para a estrada à frente — não como quem espera, mas como quem vigia o próprio futuro.
No banco de trás, Hela e Thena já estavam acomodadas, cada uma imersa em seus próprios mundos de papel.
Hela, com o corpo encolhido num moletom cinza claro, lia "Percy Jackson e o Ladrão de Raios" pela enésima vez, os olhos fixos nas páginas com uma atenção quase infantil — não por inocência, mas por necessidade. Cada parágrafo era uma âncora, cada frase conhecida um lugar seguro onde ninguém a julgava. O livro estava gasto, com as bordas das páginas levemente onduladas, algumas com manchas de chocolate quente ou lágrimas secas que ela fingia não lembrar. Os dedos — ainda um pouco úmidos do banho recente — deslizavam pelas palavras como quem apalpa as paredes internas da própria alma.
Ao lado dela, Thena lia "Os Sete Maridos de Evelyn Hugo". A edição de capa verde-escura estava com as orelhas dobradas em múltiplos pontos, os trechos sublinhados em lápis e alguns trechos destacados com marca-texto cor-de-rosa, da época em que Evelyn ainda era mais fuga do que espelho. Thena mantinha os joelhos cruzados, o livro apoiado sobre a coxa, os olhos atentos, mas a mente em algum lugar entre a ficção e a mulher sentada ao lado.
Cibele chegou por último. A porta do café ainda rangia atrás dela quando se aproximou da caminhonete, passos duros, firmes, quase impacientes. Carregava sua bolsa como um escudo — o couro tenso, as alças apertadas em punhos que não sabiam descansar.
Ao ver as duas mulheres no banco traseiro, leu as capas dos livros com desdém explícito.
Franziu o nariz diante do título de Hela. Um suspiro abafado escapou dos lábios pintados de um batom já parcialmente desfeito.
— Por favor… — murmurou, com a voz baixa, mas suficiente para cortar o ar — um livro sobre um adolescente impulsivo com problemas paternos? Combina. O olhar dela então deslizou até o colo de Thena. — E você, minha filha… Evelyn Hugo? De novo?
Ninguém respondeu. Não por covardia. Mas porque a resposta já estava nos olhos de ambas: não era sobre livros. Era sobre distâncias que Cibele não conseguia — ou não queria — atravessar.
Ela revirou os olhos com a teatralidade de quem acredita ainda ter razão mesmo diante do naufrágio. Abriu a porta com força contida e entrou na caminhonete, sentando-se ao lado de Zuras com um estalo seco da porta fechando. Prendeu o cinto com gestos rápidos e impacientes, como se o ato de permanecer fosse, por si só, um fardo.
— Vamos acabar logo com isso. — disse sem olhar para ninguém, como se fosse a única adulta num carro cheio de delírios.
Zuras não comentou. Apenas assentiu com um único movimento de cabeça e girou ligeiramente o corpo para verificar os dois táxis. Os motoristas já haviam ligado os motores.
A caminhonete deu partida com um ronco baixo, os pneus girando devagar sobre a estrada de paralelepípedo desgastada. Os faróis acenderam como olhos cansados, e assim, às 21:36 daquela noite longa demais, o pequeno comboio retomou o caminho rumo a Pyrgos.
Dentro do veículo, o silêncio era espesso, costurado de mágoas mal processadas e amor ainda em sobrevivência.
Lá fora, o vento grego varria a estrada com a delicadeza dos deuses que ainda escutam — mesmo quando ninguém mais se atreve a falar.
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22:05
A estação de trem de Pyrgos erguia-se sob a luz rarefeita da madrugada como um relicário enferrujado de despedidas. Seus arcos de ferro arqueavam-se sobre os trilhos como costelas de uma criatura adormecida há séculos. As lâmpadas mortiças pendiam dos postes como olhos gastos de um velho que já viu demais. E os trilhos... os trilhos cortavam o solo em linhas cravadas, cicatrizes metálicas que reluziam sob o primeiro toque tímido da aurora — um ouro pálido, difuso, como se o próprio tempo hesitasse em nascer ali.
O ar tinha gosto. Um gosto seco de ferrugem, graxa e folhas queimadas. Um gosto de espera.
O comboio de carros parou rente à plataforma lateral, onde as sombras eram longas demais e os sons tinham eco demais. O motor da caminhonete emudeceu com um último suspiro — e, junto com ele, calou-se também o resquício da conversa na estrada, engolido por um silêncio espesso, tecido com tudo o que ficou por dizer.
Zuras saiu primeiro. Seus passos firmes ressoaram sobre as pedras com a solenidade de um rito antigo. A postura permanecia ereta, mas havia algo no contorno dos ombros — um cansaço ancestral, como se carregasse não uma noite longa, mas séculos de repetições inúteis. Dirigiu-se aos taxistas com a precisão de quem já conhece a coreografia das partidas. Os homens abriram os porta-malas com gestos automáticos, e logo os carregadores da estação se aproximaram, fundindo-se à cena como peças de um maquinário habitual.
Thena assumiu o controle da caçamba com a frieza de um general fatigado. Os cabelos, presos num coque alto e apressado, deixavam à mostra a tensão do maxilar. As mangas arregaçadas denunciavam urgência, mas cada movimento que fazia — cada gesto de apontar, cada mala designada com um olhar, cada sacola resgatada por um aceno — carregava um domínio discreto, quase austero. Era como se ela soubesse que a única maneira de sobreviver àquela noite era se agarrar à logística.
Já Hela se afastou.
Deixou o grupo com uma naturalidade treinada, como quem sabe que, às vezes, o amor também exige silêncio. Na mão esquerda, conduzia Garm com uma guia reforçada, e na direita equilibrava a gaiola de Argus, cujos olhos escuros espiavam o mundo pelas grades com a calma de quem já aprendeu a não se assustar com humanos. O cão caminhava ao lado dela como um guarda ancestral: focinheira colocada não por violência, mas por prevenção. Por convivência. Por medo do medo alheio.
Sabia o que provocava. Sabia o que murmuravam. Sabia.
Segui com passos lentos até a parte posterior da estação — um quadrado de grama artificial que fingia ser um parque para animais. O espaço, miseravelmente delimitado por correntes enferrujadas e arbustos que mais compensam espantalhos verdes, era onde Garm se agachou. Olá também. Agachou-se com ele, apoiando uma mão no chão e a outra sobre a gaiola, como se quisesse ancorar todos os seus afetos em um único gesto. De vez em quando, murmurava palavras inaudíveis. Palavras densas, roucas, que são razoáveis vir de um idioma antigo demais para a madrugada compreender.
Enquanto isso, Cibele observava.
Imóvel. À sombra do táxi, de braços cruzados como se defendesse um território invisível. Os olhos semicerrados. O nariz levemente erguido. Ela não ajuda — funcionava. Cada movimento de Hela parecia passar por um scanner moral em sua mente. E será reprovado.
Quando ajudava com alguma bagagem, era apenas com as de Thena — as de couro claro, os zíperes dourados, as etiquetas com nomes compostos e brasões antigos. Sabia identificar cada uma. Sabia como organizá-las no trem. Era sua forma de reafirmar que ainda herdou a algum lugar na vida da filha. Já as malas de Hela — coloridas, desalinhadas, marcadas por símbolos islandeses, autocolantes desbotados de bandas, bordados em runas e linhas metálicas —essas ela ignorava como se carregassem radioatividade. Não por desatenção, mas por escolha.
Passou por uma delas — uma mochila deformada, com rodinhas emperradas e o tecido do canto rasgado — e desviou com o asco de quem evita uma latrina pública. Seus olhos disseram o que a boca não precisou: "Essa fase vai passar. Essa mulher vai passar. E Thena, enfim, vai acordar.”
Do outro lado, Garm terminou. Hela, com a proteção silenciosa dos que já se acostumaram a limpar as sujeiras do mundo, coletau os detritos em um saco biodegradável, descartando-o em um contêiner apropriado. Depois, com Argus no braço e a guia firme, retornou ao grupo.
Passou por Cibele sem olhar. Mas viu.
Viu o batom intacto. O perfume que você gosta. O salto que não combinava com aquele solo. Viu o desdém que vestia como segunda pele. E sentindo — senti com a nuca, com a espinha, com os ossos. Porque a hostilidade de certas pessoas é como radiação: mesmo invisível, fere.
Cibele, por sua vez, virou o rosto com elegância ensaiada. Nem para fingir cortesia. Nem para fingir humanidade.
Do banco de madeira à frente da plataforma, Zuras presenciava a cena. Não interveio. Apenas baixou o olhar, como quem anota mentalmente mais um lamento para jamais esquecer.
Thena viu também.
Quando Hela se mudou, Thena ensaiou um movimento. Um passo. Uma ponte. Mas não foi. Ainda não. Mordeu os lábios inferiores, ajeitou o coque com um elástico frouxo e virou-se para os carregadores, entregando as últimas instruções com a firmeza de quem precisa agir para não sentir.
Quando todas as malas foram finalmente embarcadas, as etiquetas confirmadas, os bilhetes lidos e os animais autorizados a entrar, o apito da estação cortada o ar.
Breve.
Cortante.
Final.
Era hora de partir.
Mas o que realmente precisava ser deixado para trás — orgulho, rancor, ausências, silêncios — não cabia nas malas. Nem nos vagões. Nem nos olhos de quem estava enterrado.
Cabia apenas em quem sobrevivia. E escolhia, mesmo assim, continuar.
Chapter 17: Κεφάλαιο 09
Chapter Text
Eram exatamente 23:25 quando Hela acordou.
Não foi por barulho. Nem por luz. Não houve qualquer ruído que a interrompesse, tampouco lampejos que atravessassem as cerradas temporárias. Foi o próprio corpo que a chamou de volta. Uma vigília antiga, esculpida em sua carne. Como uma sentinela silenciosa que nunca dormia, como se o passado — aquela que nunca a deixou inteira — tivesse roçado de leve o ombro dela com dedos de memória.
Era hora de estar alerta.
De novo.
Os olhos abriram-se lentamente, como quem atravessa um pântano de vidro. O vagão continuava na penumbra, mas não estava escuro: a janela ao lado deixava entrar uma luz pálida, tímida, que parecia não saber se era luar ou lamento. O vidro estava frio. Embaçado pela respiração da noite. Do lado de fora, o céu era um vinho aguado, diluído em sombras que não se dissolviam. A neblina era baixa, quase respeitosa, como se temesse interromper alguma coisa sagrada. Ou quebrada.
Sentou-se.
Não com pressa, mas com cuidado.
Não era o cuidado físico de quem se protege da dor. Ritual da época. Um gesto quase cerimonial. Como se houvesse uma liturgia silenciosa para cada retorno: abrir os olhos, sentir o peso do corpo, alongar os dedos. Preparar os ossos para receber o peso do que viria — mesmo que não viesse nada. As costas protestaram. Como sempre. Mas cederam. Como sempre.
Garm se remexeu no chão, espreguiçando-se sem abrir os olhos. A cauda bateu uma vez no tapete estreito. Hela passou a mão pela cabeça do cão com um carinho que era antigo demais para ter nome. Era instinto. Fé. Promessa. Memória. O gesto de quem já sobreviveu tanto com tão pouco, que agora fazia do toque um abrigo.
Depois, virou-se.
Então dormia.
O perfil banhado pela luz escassa, o cabelo solto como um véu de ouro pálido sobre o ombro, os escolhidos contra a pele como se nem soubessem que existem dor no mundo. Dormia profundamente. Dormia como alguém que foi poupado — não pela sorte, mas pelo amor de alguém que entregou contra o mundo inteiro para lhe dar um pedaço de sossego.
Olá a escolher como quem reza.
Aquela paz alheia doía.
Como se, por uma noite apenas, o universo tivesse suspenso a crueldade. E Hela… Hela conseguiu. Tivesse vencido. Tivesse segurado o escudo alto o bastante. Tivesse matado todos os monstros que vieram.
Mas aquele silêncio não era paz.
Era outro tipo de silêncio.
Era o silêncio denso de uma sala que parou de respirar.
Dentro do vagão, tudo parecia saturado. O ar era espesso, quase uma bruma invisível feita de tudo o que não se dizia. Um silêncio que latejava, que fazia os ouvidos doerem. Como se as palavras não ditas fizeram peso, fizeram bordas, fizeram uma.
Ela sabia.
Sabia o que estava ali.
Porque já vivi aquilo mil vezes.
Não era vazio.
Era cheio.
Cheio de omissões.
Cheio de cortes suaves demais para sangrar, mas profundos o bastante para cicatrizar torto.
Cheio de julgamentos disfarçados de boas intenções.
De amor mal disfarçado de controle.
De carinho que vinha com alça e fivela.
Hela não os culpava.
Não mais.
Já culpou. Já odiou. Já quis sumir do mapa, cavar um buraco no mundo e se enterrar até que ninguém mais se lembrasse de que ela havia existido. Quis apagar o próprio nome da memória dos outros. Só para que os olhos deles não precisassem procurá-la.
Mas hoje…
Hoje só queria seguir.
Só queria parar de viver como uma desculpa.
Parar de pedir licença para ocupar espaço.
Parar de medir o volume da própria existência com medo de incomodar.
Queria caber dentro de si.
Inteira.
Mesmo que ainda estivesse cheia de estilhaços.
Fechou os olhos por um momento.
Escutou o mundo ao redor.
O som das rodas nos trilhos — um lamento contínuo, metálico, como uma corda de aço sendo puxada no fundo da terra. O resfolegar do motor, como uma besta cansada. A respiração ritmada e funda de Thena, quase no mesmo compasso da respiração de Garm. Tudo pulsava em torno dela como um pulmão velho demais para correr, mas teimoso demais para parar.
E então, escutou outro silêncio.
Mais à frente.
O deles.
Zuras.
Cibele.
Dois nomes que, naquele momento, pesavam como âncoras no porão do trem.
Era um silêncio com armadura.
Um silêncio que se preparava para o ataque.
Um silêncio que, por si só, já era ofensivo.
Não era esquecimento.
Não era calma.
Era o tipo de silêncio que cresce nas paredes quando alguém morde o que queria dizer e sorri por cima.
Hela escorou os cotovelos nos joelhos e respirou fundo, tentando achar um pouco de ar entre tudo aquilo. O pijama estava amarrotado, o cabelo desalinhado preso num coque frouxo. As mãos apertaram os próprios tornozelos com a força de quem segura o próprio corpo para que ele não se desmanche.
Ela queria dormir de novo.
Mas mais do que isso…
Ela queria existir sem se encolher.
Queria que a próxima parada fosse um lugar onde pudesse respirar fundo, e não um campo de batalha educada.
Queria que Thena continuasse dormindo.
Que não precisasse se levantar e vestir o escudo.
Que o aniversário que se aproximava fosse realmente leve.
Mas, no fundo, sabia.
Sabia que a madrugada já havia posto o uniforme.
E que os fantasmas estavam sentados nos assentos ao lado.
Esperando.
Como sempre.
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💭 Zuras pensava em comida.
Sim, comida.
Mas não como fome.
Como metáfora.
Pensava no jantar.
Dois anos atrás.
Uma noite fresca de outono em Olímpia, quando ele e Cibele aceitaram o convite de Thena — após semanas de insistência contida, telefonemas breves e promessas de que “seria só uma noite”.
E então, estavam lá.
Na casa das duas.
No território de Hela.
E ela — como uma sacerdotisa do exagero, uma deusa sem altar, mas com espátula em punho — havia transformado a cozinha num templo barroco de sabores. Cozinhava como se o apocalipse estivesse previsto para meia-noite e aquele fosse o último banquete digno de lembrança.
Três pratos principais.
Quatro tipos de pão, cada um com fermentação natural diferente.
Ervas colhidas do próprio quintal.
Guardanapos dobrados como dragões chineses, com olhos de pimenta-biquinho e línguas de manjericão.
E o riso dela.
Solto. Alto. Desarmado.
Quase ridículo.
Ele se lembrava.
Tinha resmungado baixo, enquanto passava manteiga:
— Não precisava de tanto.
Ela, sem se abalar, respondeu com uma expressão de quem sorri com o corpo todo:
— Sou dramática até no cardápio.
E riu.
Um riso de alma nua.
Na época, Zuras achou que era afetação.
Hoje… revia tudo com olhos cansados. Olhos queimados de retrospectiva.
Não era teatro.
Era oferta.
Era o gesto ancestral de quem nunca foi convidada para a mesa e, por isso, aprendeu a preparar a própria festa.
Era o pão sendo partido não para ser notado, mas para ser aceito.
Era o tempero tentando virar pertencimento.
Era um banquete como pedido de desculpas por ter ousado amar Thena.
Ele se lembrava do sabor do assado.
Um toque de defumado, algo terroso… como madeira molhada, como chão de floresta depois da chuva. Ele comeu em silêncio. Achando que aquele silêncio era elegância. Diplomacia.
Mas agora…
Agora entendia.
Aquele silêncio era navalha.
Era negação.
Era o som de alguém dizendo “isso não muda nada”, mesmo com a boca cheia.
Um silêncio que invalidava o esforço.
Que sufocava a tentativa.
Que sussurrava: “você ainda não é uma de nós.”
Ele também pensava no telhado.
No dia em que chegaram sem avisar — ele e Cibele — e encontraram Hela pintando as telhas.
Pintando.
Com tinta no rosto, no cabelo, nas mãos. Equilibrada sobre a madeira como uma ginasta nórdica com alma de criança.
Zuras, atônito, perguntara:
— O que você tá fazendo aí?
Ela respondeu com a maior naturalidade do mundo, como se estivesse regando margaridas:
— Tô deixando o mundo mais bonito pra quando vocês chegarem.
Na hora, ele riu.
Achou que era cena.
Hoje…
Hoje doía.
Doía saber que ela falava sério.
E que ele, com toda sua maturidade e compostura, não soube escutar.
Também se lembrava do artigo.
No jornal local.
Sobre o orfanato da região que foi reformado.
O nome de Hela estava nos agradecimentos, lá no fim da página, perdido entre tantos outros. Ela nunca comentou.
Nunca buscou crédito.
Ela só fazia.
E ele…
Ele nunca elogiava.
Só observava, comparava, julgava.
Pensava na vez em que Thena torceu o tornozelo.
Na pressa, na tensão.
E Hela, que estava de pijama e meias de listras, a carregou no colo como quem carrega um relicário.
Sem fazer escândalo.
Sem palavras heróicas.
Com gelo pronto, cobertor fofo, xícara com chá, playlist de jazz.
Zuras observou.
E pensou: “é demais.”
Demais.
Palavra que usava como escudo.
Hoje, entendia.
Sim.
Ela era demais.
Porque ninguém nunca ofereceu menos.
Porque ela vinha do nada.
Do abandono.
Da rejeição que ensina a virar circo inteiro para ser notada.
Porque ela amava com excesso.
Com intensidade desgovernada.
Com o desespero manso de quem sabe que o amor pode acabar sem aviso.
E ele, que sempre quis “o necessário”, agora se sentia faminto.
Porque o essencial, ele não soube digerir.
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💭 Cibele, por sua vez, também se lembrava.
Mas não se comovia.
As lembranças vinham, sim — vívidas, nítidas como as bordas de uma cicatriz mal curada. Mas não traziam doçura. Nem dor.
Apenas incômodo.
Ela segurava no colo a manta que Hela havia tecido anos antes, um trabalho minucioso demais para ser casual. Fios comprados em Tel Aviv, tingidos com extrato de sálvia — “por causa do cheiro de casa nova,” Hela dissera — e bordados com linhas que mudavam de cor conforme a luz. Um capricho. Um símbolo. Uma oferenda.
— Para suas costas e suas saudades.
Foi o que Hela disse.
Com aquele sorriso torto, aquele jeito sem freio de ocupar tudo.
Cibele usa até hoje.
Mas não porque ama.
Porque é boa.
Nunca agradeceu.
Nem com palavras, nem com gestos.
E agora, mesmo rememorando cada detalhe daquela entrega silenciosa, não sentia gratidão.
Sentia raiva.
Raiva de ter permitido que aquela mulher cruzasse a soleira de sua casa.
Raiva por ter cedido espaço no sofá, à mesa, no cotidiano — a alguém que tomava espaço demais.
Raiva de si mesma por ter, por um instante que fosse, acreditado que poderia aceitá-la.
E pior.
Por quase tê-la admirado.
Quase.
Lembrava-se do dia do filhote atropelado.
Um cão de rua que Thena tentara socorrer e Hela acolhera como um membro da família antes mesmo de saber seu nome.
Quando ele morreu, Hela chorou como se o mundo tivesse parado de girar.
Cibele observou à distância, inexpressiva.
Não entendeu.
Não entende até hoje.
Acha um desperdício de lágrimas.
Uma pieguice.
Lembrava da sopa.
Da caneca colocada no colo dela num dia de enxaqueca, com gengibre, mel e hortelã fresca.
Lembrava do chá no jardim.
Do cinema feito com lençóis pendurados entre as árvores.
Da pipoca aromatizada com lavanda e açúcar de baunilha.
Tudo isso…
Invasivo.
Exagerado.
Desnecessário.
A Hela que Thena amava parecia para ela uma caricatura — um borrão ruidoso de gestos grandes, cores intensas, e emoções sem filtro.
Não via delicadeza.
Via teatralidade.
Não via empatia.
Via desequilíbrio.
Não enxergava esforço.
Enxergava carência disfarçada de generosidade.
Hela era tudo o que Cibele não respeitava em alguém.
Ruidosa.
Intensa.
Espalhafatosa.
Mesmo nos gestos doces havia algo que a incomodava profundamente: um excesso de alma.
Uma fome emocional.
Uma urgência que parecia gritar, mesmo no silêncio.
Para Cibele, aquilo beirava o grotesco.
Lembrava-se da aquarela.
O retrato que Hela pintou de Thena ainda criança, adormecida no colo de Cibele.
Um momento que nunca existiu.
— Pintei como imagino que foi, disse Hela, oferecendo o quadro como quem oferece flores colhidas com as mãos.
Cibele congelou.
Achou aquilo invasivo.
Quase violento.
Como se alguém tivesse roubado uma lembrança.
Como se tivesse posto as mãos sujas de tinta num pedaço de tempo que não lhe pertencia.
Ela nunca pendurou o quadro.
Mas também nunca jogou fora.
Guardou.
Como quem guarda um espinho dentro da gaveta.
Cibele não se deixava tocar.
Não se deixava ceder.
Não agora.
Não com aquela mulher.
Mesmo agora, com o trem rolando pelos trilhos e as lembranças batendo como ondas frias no casco do peito, ainda era o desprezo que reinava.
Um desprezo limpo.
Orgulhoso.
Defensivo.
Um desprezo que ela usava como armadura contra a ternura insistente de quem, por anos, só quis ser aceita.
Porque, no fundo — no lugar mais escuro, mais secreto e mais inconfessável de si — Cibele sabia.
Sabia que Hela amava Thena melhor do que qualquer um jamais amou.
Com mais coragem.
Com mais entrega.
Com mais desespero, talvez.
Mas também com mais constância.
E isso…
Ela não perdoava.
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Hela recostou-se no banco do vagão, sem sono.
A cabeça apoiada no encosto gasto, o olhar perdido no vidro que tremia com a respiração metálica da locomotiva.
O mundo lá fora passava em contornos escuros, colinas dissolvidas na névoa tênue da madrugada. Ainda era cedo demais para o dia nascer por completo, mas já não era mais noite. O céu, entre tons de chumbo e violeta, parecia conter a respiração — como se hesitasse antes de se tornar amanhã.
Ela se virou devagar.
Seus olhos buscaram o perfil de Thena.
Dormia.
E dormia como só dormia quando se sentia a salvo.
Os lábios entreabertos, os cílios longos lançando sombras finas sobre a pele alva, quase azulada pela luz fraca. Um brilho úmido no canto da boca denunciava o abandono total do corpo ao sono. Hela conhecia aquele estado. Era raro. Era precioso. Era um milagre de todas as noites em que Thena havia dormido com o corpo tenso, preparado para o impacto de um mundo que exige postura mesmo nos sonhos.
Ela a olhou.
E o peito doeu.
Mas não por mágoa.
Por ternura.
Era isso que restava depois de tudo.
Depois das feridas que não sangram mais, mas ainda ardem quando tocadas.
Depois das palavras caladas, das portas entreabertas e dos olhares que se desviam tarde demais.
Ainda a amava.
Com o mesmo espanto do primeiro dia.
Com a mesma entrega silenciosa, sem cálculo, sem armadura.
Não havia mais ressentimento ali.
Não para ela.
Só vontade de ficar. De seguir.
De merecer.
Mas havia também um desejo antigo.
Um desejo que não era orgulho — era raiz.
Desejo de ser vista.
Vista de verdade.
Não como as vozes por trás das cortinas a definiam.
Não como “a caótica”, “a barulhenta”, “a que fala demais, ri alto demais, sente tudo demais.”
Mas como a mulher que ama demais.
Que decora datas com flores de papel.
Que aprende receitas em seis idiomas só para agradar.
Que dobra guardanapos como monstros mitológicos só para ver Thena rir.
Que cozinha como se cada refeição fosse uma oferenda.
Me veja, pedia seu coração.
Me reconheça.
O trem avançava numa lentidão decidida.
Cortava a madrugada como uma oração de ferro.
Lá dentro, as luzes criavam sombras douradas sobre os rostos adormecidos.
Garm remexeu-se aos pés das duas. Hela o acariciou com naturalidade — os dedos deslizando sobre o pelo grosso com uma delicadeza que era mais instinto do que gesto.
À frente, no segundo banco, Cibele se moveu.
Virou levemente o corpo.
Não buscava nada.
Apenas ajustava a postura.
E então viu.
Não por vontade.
Não por curiosidade.
Mas porque o olhar caiu ali — sobre aquela figura.
Viu a silhueta contida de Hela.
A postura ereta demais para uma madrugada.
O maxilar apertado sem tensão — só polidez.
As mãos pousadas no colo, os dedos juntos, treinados a não expressar nervosismo.
Os olhos fixos em algum ponto entre o teto e a ausência.
Viu o cão calmo aos pés dela.
Viu o silêncio em torno.
E por um instante — um instante nu, cru, cruel — Cibele percebeu.
Percebeu que aquilo não era tranquilidade.
Era controle.
Não o autocontrole dos disciplinados.
Mas o dos rejeitados.
Dos que sabem que o menor gesto em falso será interpretado como ameaça.
Dos que aprenderam a se domesticar para caber na moldura estreita do afeto alheio.
Mas mesmo assim — mesmo naquele vislumbre silencioso de algo quase espiritual — ela não se comoveu.
O que sentiu não foi empatia.
Foi repulsa.
Uma repulsa gelada, sofisticada, quase elegante.
Do tipo que não ergue a voz, mas contamina o ar.
Para Cibele, tudo em Hela era encenação.
Até o silêncio.
Até a doçura com os animais.
Até o modo como não dormia — como se quisesse aplausos por vigiar a noite enquanto os outros descansavam.
Aquela dignidade contida parecia uma máscara.
Mais uma.
Como se Hela fosse uma personagem cuidadosamente encenada por alguém que não sabia como ser de outro jeito.
Cibele imaginou, com desprezo, a voz de Hela em uma entrevista:
— “Eu sou intensa, mas é porque amo.”
E aquilo a enojava.
Porque era fácil amar no exagero.
Difícil era amar no ordinário.
No silêncio.
Na rotina.
Na ausência de plateia.
E então, contra a própria vontade, ela repassou memórias.
A sopa deixada em silêncio no aparador.
O cinema improvisado com lençóis no quintal.
A aquarela de Thena bebê em seu colo — um momento inventado, mas comovente.
As flores nos pratos.
Os guardanapos dobrados com cuidado ridículo.
E tudo isso —
Tudo isso que poderia ter sido bonito —
Ela viu como forçado.
Porque se visse como belo, teria que ceder.
Teria que admitir que aquela mulher — espalhafatosa, exagerada, dramática — amava sua filha melhor do que ela jamais conseguiu amar.
E isso, Cibele não perdoava.
Não por causa de Hela.
Mas por causa de si.
Porque se reconhecesse isso, teria que encarar a verdade que mais temia:
Que passou a vida inteira olhando para o lado errado.
Cultivando frieza como virtude.
Chamando afeto de fraqueza.
Chamando doçura de desequilíbrio.
Então, engoliu seco.
Engoliu a pedra que crescia em sua garganta.
Virou o rosto para a janela.
E decidiu, mais uma vez, não ceder.
Nem um centímetro.
Mesmo que, no fundo, soubesse.
Mesmo que visse.
Mesmo que doesse.
Para ela, Hela continuaria sendo apenas isso:
Uma mulher que fala demais.
Que ama demais.
Como se isso fosse crime.
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23:40 — Estação Rodoviária de Patras
O ônibus da Hellenic Train já estava estacionado quando o grupo chegou.
Brilhava sob os refletores da plataforma como uma criatura metálica em repouso tenso — moderno, silencioso, impessoal.
As portas estavam fechadas, mas havia algo em sua presença que parecia observar.
Como se soubesse quem vinha. Como se esperasse por eles.
O motor, já desligado, ainda exalava um calor morno pelas grelhas laterais — um tipo de exaustão mecânica que imitava cansaço humano.
A carroceria branca refletia os tons azulados da madrugada grega com uma beleza quase clínica, e os letreiros digitais piscavam o destino final com a precisão arrogante de quem nunca se atrasa.
Atenas.
00:10.
Apesar da pontualidade que pulsava ao redor, ninguém do grupo correu para o embarque.
Não ainda.
Foram primeiro aos banheiros.
Thena atravessou as portas metálicas sem hesitar, os passos firmes, a mochila apoiada sobre um ombro e a mão livre puxando o casaco para dentro da gola. Zuras a acompanhava de perto, as mãos nos bolsos, o olhar calmo, mas disperso.
Hela ficou para trás.
Ajoelhada, finalizava o encaixe da focinheira de Garm, que se mantinha inquieto — os olhos atentos a cada sombra da estação.
Ao lado, a gaiola de Argus estava presa entre duas mochilas, e Hela conferia a trava pela terceira vez.
Cada movimento dela era calculado.
Mas não de forma metódica.
Era o cálculo de quem sabe que está sendo observada.
Porque estava.
A alguns metros, Cibele assistia tudo com os braços cruzados.
Os olhos semicerrados, o corpo inclinado levemente para frente, como uma juíza não convocada.
Ela observava.
Pesava.
E, acima de tudo, julgava.
Medindo Hela com o olhar.
Como quem avalia uma trégua à qual jamais consentiu.
Quando percebeu que estavam a sós — que Thena e Zuras haviam sumido pelos corredores do sanitário público e os funcionários estavam ocupados com as malas — ela se aproximou.
Sem pressa.
Sem hesitação.
O salto dos sapatos de couro reverberava no concreto com uma precisão cirúrgica.
Tac. Tac. Tac.
Hela não se virou.
Continuou ajoelhada ao lado de Garm, prendendo as tiras com cuidado. As mãos trêmulas — mas exatas.
Treinadas para não falhar diante da plateia errada.
Cibele parou perto.
Muito perto.
O tipo de perto que não permite escapatória.
A voz saiu baixa. Mas densa.
Como algo cortando vidro.
— Impressionante como você sempre arruma alguma coisa pra fazer quando está errada.
— Finge ocupação.
— Finge utilidade.
Hela não respondeu.
Levantou-se devagar.
Não com altivez.
Mas com a dignidade cansada de quem aprendeu a levantar tantas vezes que já não precisa justificar o gesto.
Os olhos encontraram os de Cibele por um instante breve — tão breve quanto a coragem de permanecer ali seria permitida.
Mas ainda assim, nada disse.
O silêncio da outra só dava mais espaço para Cibele cavar.
E ela cavava com gosto.
— Você fala demais. Sempre falou.
Um espetáculo constante. Sempre tentando mostrar que é boa, que é necessária.
Mas ninguém precisa de tanto barulho pra amar alguém de verdade.
E você parece nunca ter entendido isso.
Hela não desviou o olhar.
Mas não revidou.
Era como se estivesse presente só pelo corpo.
Como se o resto dela estivesse longe, longe demais pra se ferir agora.
— Você se pendura na minha filha como uma sombra — a voz de Cibele desceu em volume, mas subiu em veneno.
— E o pior é que ela deixa. Porque Thena tem essa mania de consertar tudo o que sangra.
— Mas você não quer cura.
— Você quer plateia.
Garm rosnou.
Baixo.
Instintivo.
Como se o instinto dele soubesse o que a dignidade de Hela ainda segurava.
Hela tocou sua cabeça sem desviar os olhos da noite.
Um gesto automático. Mas cheio de significado.
Um freio gentil.
Cibele recuou um passo.
Não por medo.
Mas por puro nojo do gesto.
— Você tem cheiro de exagero. Sabor de excesso.
— E olha que nem abri a boca pra falar do que causou nessa família.
Silêncio.
Um silêncio espesso como vapor de trem parado.
Hela então respirou.
Um som quebrado.
Um puxar de ar que parecia doer.
Olhou para o céu, brevemente.
Como quem busca algo maior.
Algo que explique.
Algo que ampare.
Depois, de volta para o cão.
Acariciou-o com a mão esquerda.
A mesma com que pintava aquarelas e lavava pratos.
A mesma com que teceu a manta que agora cobria as pernas de Cibele.
Não respondeu.
Porque já sabia.
Ali, qualquer palavra viraria veneno.
Qualquer lágrima, chantagem.
Qualquer defesa, mais uma cena.
Cibele continuava esperando.
Esperando que ela explodisse.
Que gritasse.
Que se justificasse.
Mas Hela permaneceu.
Em pé.
Calada.
Apenas o maxilar levemente contraído.
Apenas os olhos úmidos, mas firmes.
Então Cibele virou.
Sem pedir desculpas.
Sem olhar para trás.
E foi.
Hela permaneceu imóvel por mais alguns segundos.
O trem ainda não havia partido.
Mas o julgamento sim.
E mesmo assim, ela não cedeu.
Não pediu.
Não implorou.
Apenas soltou o ar com cuidado.
Como quem aprende, mais uma vez, a existir em silêncio.
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00:05 – Plataforma de embarque
O grupo já estava reunido na baía indicada.
O ônibus da Hellenic Train iniciava o embarque final. A placa digital piscava o horário e o destino com insistência quase autoritária — 00:10 – Atenas. A estrutura metálica da plataforma refletia os últimos resíduos da madrugada, e o chão de cimento exalava um frio úmido que se agarrava aos ossos.
Zuras estava à frente, conferindo os bilhetes com um funcionário de colete azul e feições impenetráveis. A troca era silenciosa, objetiva, burocrática — um ritual de passagem que não permitia hesitações.
Atrás dele, os carregadores trabalhavam em sincronia, revezando-se ao empilhar as malas no compartimento inferior do ônibus.
Havia uma estranha coreografia naquilo — um balé logístico de gestos seguros, braços fortes, rodinhas que giravam com obediência.
As malas de Thena, organizadas em pares, eram empilhadas com precisão quase reverente.
As de Hela, poucas e marcadas por adesivos excêntricos — uma caveira sorridente, um gato que parecia flutuar, um adesivo escrito “fragile but ferocious” — foram conferidas três vezes por ela mesma. Sozinha. Sem auxílio.
Apenas o motorista, um senhor grego de bigode espesso e mãos calejadas, ofereceu ajuda com a caixa de Garm.
A movimentou com cuidado, respeitando o peso, como quem lida com algo mais que um animal — como quem entende que há um pedaço da alma de alguém ali dentro.
Tudo sob o olhar atento de Hela, que acompanhava cada gesto como uma sentinela silenciosa.
E então, o momento chegou.
Antes de o compartimento ser selado, Hela ajoelhou-se.
Os joelhos tocaram o cimento frio, sem hesitação. A barra do casaco longo encostou no chão, escurecendo com a umidade da plataforma.
Garm a observava de dentro da caixa.
Os olhos dele — fundos, calmos, leais — encontraram os dela com um reconhecimento que não precisava de idioma.
Ela encostou a testa na grade.
Fechou os olhos por um segundo.
Como uma prece.
Depois sussurrou:
— Volto logo, lobo meu. Segura pra mim.
A voz era baixa, íntima.
Mais parecida com uma lembrança do que com um som.
Beijou sua testa através das barras, com a precisão de quem já fez isso muitas vezes antes.
Fechou a portinhola com as mãos firmes, mas ternas.
E apareceu ali, ajoelhada por um segundo a mais, como quem se despede não de um animal — mas de um guardião.
Argus, por sua vez, já dormia.
Encolhido dentro de sua pequena gaiola de pano, envolto em uma manta com cheiro de jasmim e orégano — uma combinação que Thena escolheu por ser calmante, e Hela aprovava por lembrar infância.
O ronronar baixo e constante preenchia o canto esquerdo do bagageiro com uma vibração quase encantatória.
Do lado de fora, a madrugada estava em seus minutos finais.
Logo, o motor rugiria novamente.
Logo, a estrada chamaria.
Mas por agora, por esse instante suspenso entre o embarque e a partida, o mundo ainda pertence a eles.
Aos pequenos gestos.
Às vezes despedidas sem plateia.
Às promessas silenciosas.
Hela se clamou.
Respirou fundo.
E caminhou para o ônibus, carregando consigo tudo o que não cabia na bagagem.
Chapter 18: Κεφάλαιο 10
Chapter Text
Dentro do ônibus, as luzes mantinham-se num tom âmbar tênue — um dourado sussurrado, quase triste, como se o veículo avisasse que era madrugada demais para qualquer claridade brusca.
O ar condicionado suspirava um intervalo constante, perfumado com algo entre pinho e lavanda industrial. Os assentos de couro escuro moldavam-se aos corpos cansados com a maciez resignada dos casulos — acolhedores, mas provisórios.
Thena foi enviada junto à janela.
Puxou o casaco até a altura do ombro e o dobrou com precisão sobre o vidro gelado, transformando-o num travesseiro improvisado.
A cabeça recostou-se com um peso contido.
Os olhos abertos por um tempo, fitando o nada. Ou talvez o próprio reflexo. Depois fechei. Mas não para dormir.
Era o fechar dos olhos de quem precisa se proteger de mais alguma coisa.
Mesmo que tudo já estivesse silencioso.
Hela sentou-se ao lado.
As pernas juntas. As mãos entrelaçadas no colo, os olhos fixos num ponto que não existia. Um ponto que talvez estivesse dentro dela mesma.
Não havia conversa.
Nenhuma palavra entre as duas.
A pausa não era hostil.
Era o tipo de silêncio que não precisava ser preenchido.
Mas que, ainda assim, pesava.
Cibele escolheu um assento diagonal, um pouco à frente.
Distante.
Mas perto o suficiente para observar — sem parecer que observava.
Sentiu-se com a dor de quem não quer se contaminar pelo cansaço dos outros.
O corpo levemente virado para a janela, o queixo erguido, os braços cruzados.
Zuras ao seu lado.
O olhar perdido em alguma linha invisível no encosto à frente.
A cabeça levemente inclinada, como quem revivia um álbum antigo que ninguém mais viu.
Nenhum dos dois falou nada.
O ônibus partiu às 00h12, com dois minutos de atraso e sem explicação.
O motor soltou um ronco breve, como se espreguiçasse antes de assumir o peso da estrada.
A cidade começou a ficar para trás, enquanto as luzes se dissolviam em faíscas distantes.
As colinas erguiam-se aos extremos nas bordas do horizonte, como sombras vigilantes, recortadas contra o céu espesso de chumbo.
Era um mundo de aço e neblina.
De passado e velocidade.
E ali dentro, onde todos dividiam o mesmo destino mas não o mesmo silêncio, restava apenas um som:
Ó motor constante.
O asfalto deslizando por baixo das rodas.
E o eco surdo de palavras que, uma vez ditas,
nunca voltam para o lugar certo.
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Estação de Kiato – 02:00
A estação de Kiato não exibia a apressada de uma metrópole.
Ali, tudo acontecia em tom baixo.
Como se cada passo fosse medido por algum tipo de respeito invisível.
As plataformas estavam quase vazias, mas havia nelas uma quietude cerimonial, como se o lugar compreendesse a solenidade da hora.
O céu acima, limpo e escuro, era atravessado pelas luzes amareladas dos postes — aquelas que mais escondem do que revelam.
As sombras projetadas no cimento pareciam criaturas alongadas e retorcidas, feitas de lembrança e exaustão.
Algumas estrelas tentavam brilhar. Tímidas.
Como pequenos fantasmas no firmamento.
A brisa marítima chegava lenta, quase respeitosa.
Carregava o cheiro salgado e úmido do mar, que atravessava a estação como um suspiro frio contra a pele cansada.
Thena permanecia ao lado de Hela.
Não dizia nada.
As mãos enfiadas nos bolsos do casaco, o olhar atento, mas discreto — como quem vigia sem parecer vigiar.
Seus olhos se moviam com naturalidade, mas em cada mínimo gesto havia um cuidado deliberado, guardado como um segredo.
Hela segurava os documentos contra o peito.
Com força silenciosa.
Os dedos deixavam marcas finas na capa plastificada.
Ela fitava os trilhos à frente — não como quem espera um trem, mas como quem observa uma linha divisória, um limite invisível entre o que ficou para trás e o que poderia, talvez, se tornar futuro.
Havia nela uma mistura tensa de determinação e receio, como se o próximo passo fosse tão sagrado quanto perigoso.
Zuras e Cibele não trocavam palavras.
O silêncio entre eles era quase material — grosso, antigo, cheio de camadas.
Mas suas mãos se moviam com precisão prática, sem hesitações.
Auxiliavam os funcionários a retirar os pertences do bagageiro, transferindo caixas e mochilas com eficiência.
Garm permanecia quieto em sua caixa de transporte.
Observava tudo.
Seu olhar — firme, vigilante, sereno — era o reflexo de uma confiança absoluta, exclusiva de quem escolheu amar Hela com lealdade irrestrita.
Já Argus, aninhado em sua gaiola de pano forrada por uma manta perfumada com jasmim e orégano, deixava escapar um miado quase inaudível.
O tipo de som que é pedido e afirmação ao mesmo tempo.
Hela se abaixou.
Abriu uma pequena fresta da caixa.
Deslizou o dedo pela lateral da cabeça do gato, atrás da orelha — um gesto exato, conhecido, íntimo.
Era como dizer:
— “Estamos juntos.”
Cada compartimento foi cuidadosamente acomodado nos vagões.
Havia nisso uma solenidade silenciosa — como se a organização da bagagem fosse um ritual de fé, onde nada podia ser negligenciado.
O trem suburbano Proastiakos era moderno, funcional, pontual.
Os assentos acolchoados, as sinalizações bilíngues, o ar-condicionado em suspiro constante — tudo nele era sóbrio, quase impessoal.
Mas naquela madrugada, os vagões vazios amplificavam o peso do que cada passageiro trazia consigo.
O grupo se acomodou junto.
Uma fileira dupla, próxima à porta de emergência.
Mas não havia conforto.
Porque as malas, mochilas e caixas carregavam mais do que objetos.
Carregavam histórias não ditas.
Mágoas não confessadas.
Tensões caladas que pareciam tomar assento junto deles.
O trem partiu às 02:40.
Um ronco surdo preencheu o ar.
Não era som de partida — era som de ruptura.
Pela janela, as paisagens passavam como fragmentos de um sonho escuro:
Pequenas cidades ainda engolidas pelo sono do inverno.
Campos de terra cerrada.
Sombras alongadas entre árvores nuas.
Estações desertas iluminadas por lâmpadas que tremeluziam, como lanternas cansadas tentando resistir ao tempo.
Thena encostou a cabeça no vidro.
Fechou os olhos devagar.
Os dedos ainda entrelaçados aos de Hela, em busca de apoio — não por necessidade, mas por fidelidade emocional.
Um gesto que dizia: estou aqui, mesmo em silêncio.
Hela, porém, não dormia.
Não era insônia.
Era vigília ritualística.
Como se acompanhar cada ruído da viagem fosse seu modo de proteger quem amava.
Como se velar aquela travessia fosse uma oferenda à incerteza do que viria.
Zuras cedeu ao sono.
O corpo relaxado em demasia para o espaço estreito.
Um homem que carregava memória demais para caber no próprio peito.
Cibele, no entanto, mantinha os olhos abertos.
E não olhava para a janela.
O olhar estava em Hela.
Fixado nela.
Frio, clínico, exausto.
Não era simples desprezo.
Era algo mais denso.
Mais amargo.
Um desprezo que precisava se justificar a cada respiração.
Cada detalhe de Hela parecia lhe ofender.
O modo como sentava.
O silêncio que mantinha.
A forma como ainda segurava a mão de Thena.
Como se aquilo fosse um ultraje pessoal.
Cibele tentava organizar dentro de si as palavras que nunca disse — aquelas que coagulam no peito como veneno antigo.
Rancor.
Frustração.
Arrependimento.
Mas ali, dentro daquele vagão com cheiro de couro frio e jasmim morno, as palavras jamais encontrariam caminho.
Jamais seriam ditas.
E mesmo caladas, machucavam como lâminas invisíveis.
O trem seguia.
Corinto.
Magoula.
Ano Liosia.
Cada parada fazia as luzes piscarem.
Como se o mundo estivesse tentando acordar.
Mas não era o dia que nascia.
Era apenas o acúmulo de expectativas que ninguém sabia como nomear.
Às 03:00, as luzes internas aumentaram discretamente.
Uma claridade suave e amarelada preencheu o vagão, como se o futuro tivesse dado um passo tímido em direção a eles.
Mas mesmo com mais luz,
o ambiente continuava carregado.
Cada suspiro.
Cada gesto.
Cada olhar.
Era um mundo inteiro de coisas não ditas,
de feridas antigas em pele nova,
de laços frágeis feitos de silêncio e resistência.
E enquanto o trem cortava a madrugada grega,
ninguém ousava dizer o que realmente precisava ser dito.
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04:15 – Estação Larissa, Atenas
O trem deslizou vagarosamente até a estação Larissa, cortando a madrugada com um som amortecido, quase respeitoso.
Era o coração de Atenas, ainda palpitando devagar, como se a cidade — mesmo nunca dormindo por completo — ainda estivesse em transe.
A plataforma, funcional em sua essência, exibia uma sobriedade quase religiosa.
A iluminação fria dos postes lançava um brilho pálido, sem calor, revelando cada fissura no concreto, cada mancha de ferrugem nos trilhos.
Era como se o lugar respirasse por conta própria — um organismo silencioso feito de aço, cansaço e destino.
A movimentação era esparsa, mas pontual.
Poucos viajantes caminhavam por ali, e os que o faziam pareciam surgir das sombras, apressados, com os olhos fundos e passos leves demais para ecoar.
Silhuetas humanas que mais pareciam fantasmas tardios da noite, atravessando a estação como se temessem ser vistos pela própria manhã.
A segurança circulava com atenção de palco, os olhos varrendo o ambiente como faróis — não buscando ameaça, mas vigilantes das histórias ocultas que aquela hora sempre carrega.
Caminhavam como quem escuta o silêncio.
E, talvez, os segredos.
Ao longe, poucas barracas de café se mantinham acesas.
A fumaça do café quente subia como um pedido de clemência, e o cheiro de pão recém-assado espalhava-se com timidez, tentando oferecer alento a quem ainda não sabia se estava chegando ou partindo.
As luzes tremeluziam, refletindo sobre o chão úmido — uma dança silenciosa entre o concreto frio e a brisa salgada que vinha do mar.
Zuras já havia antecipado tudo.
Com precisão quase militar, organizou o transporte final: duas vans utilitárias, adaptadas para carga, para bichos, para o volume emocional e físico que aquele grupo carregava.
Compartimentos acolchoados para Garm e Argus, isolamento térmico, bancos amplos para malas que pareciam conter muito mais do que roupas ou livros.
O motorista aguardava ao lado.
Homem de poucas palavras.
Postura reta, rosto fechado.
Um tipo de presença que não exigia confiança, mas impunha segurança.
Seu olhar não julgava.
Mas também não se misturava.
Era uma peça silenciosa — como se soubesse que fazia parte de algo importante, mas sem permissão para perguntar o quê.
Cibele estava imóvel ao lado.
Impecável. Intocável.
Os olhos, no entanto, feriam.
Lançavam julgamentos como lâminas frias, cada um embebido em veneno antigo.
Observava Hela com meticulosidade cruel.
Não havia diálogo.
Nem expectativa.
Só o desprezo — espesso, invisível e insuportavelmente presente.
Um muro sem palavras que ocupava mais espaço do que qualquer bagagem.
Hela permanecia firme.
Os ombros retos.
O queixo elevado na medida exata que não se confunde com arrogância — mas com resistência antiga.
Segurava a caixa de Argus contra o peito, como quem segura um relicário.
A manta dentro da caixa exalava o perfume de orégano seco e jasmim morno, uma âncora emocional contra o frio que começava a roer a pele e os nervos.
O olhar dela estava longe.
Fixo na rua escura além da estação.
Como se o horizonte prometesse alguma coisa —
ou cobrasse.
Ela não desviava o olhar.
Mesmo sentindo o julgamento.
Mesmo sabendo que, ali, qualquer gesto seria excesso.
Qualquer cansaço, visto como fraqueza.
Mas ela não pedia trégua.
Carregava tudo.
Sozinha.
Como sempre fez.
O destino final era o Aeroporto Internacional de Atenas.
A última etapa.
O último trecho antes de decolar para outro país, outra terra, outra chance.
Um recomeço mascarado de viagem.
O trajeto levaria cerca de 40 minutos.
Quarenta minutos em que o grupo dividiria o mesmo espaço — mas não o mesmo silêncio.
Porque o silêncio ali não era neutro.
Era feito de:
O desprezo de Cibele
A vigilância constante de Hela
A proteção latente de Thena
E o cansaço resignado de Zuras
Havia silêncio entre eles, sim.
Mas não era paz.
Era contenção.
Era sobrevivência emocional.
Quando os veículos começaram a se mover, deslizando para fora da estação sob a luz pálida e o cheiro salgado do amanhecer, o mundo lá fora ainda dormia.
Mas ali dentro, ninguém mais dormia.
Nem mesmo os que tinham os olhos fechados.
Porque, naquele momento,
eles não cruzavam apenas as ruas de Atenas —
cruzavam a si mesmos.
E o ar carregava, sem piedade, a promessa de dias difíceis
e escolhas irrevogáveis.
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04:30 – Estação Larissa, Atenas – Última Etapa
As duas vans aguardavam em silêncio, posicionadas discretamente nas faixas laterais da estação Larissa.
Eram como sombras imóveis, prontas para se mover no instante exato. Não antes. Não depois.
O motorista — o mesmo homem de poucas palavras e expressão indecifrável — organizava as caixas de transporte com uma precisão quase cerimonial.
Cada compartimento parecia um pequeno santuário, com ventilação controlada, isolamento térmico e cintos robustos que abraçavam as estruturas com a firmeza de quem sabia: ali dentro não havia só animais, mas afetos inteiros.
Garm, imponente e silencioso, observava de dentro da caixa com a serenidade dos que confiam.
Argus, pequeno e encolhido, emitia apenas um leve ronronar, como se sua respiração tentasse acompanhar a frequência do mundo lá fora.
Ambos — em silêncio, como todos ali — esperavam.
O ar-condicionado foi ajustado com uma atenção quase afetiva: nem frio o bastante para causar desconforto, nem quente o suficiente para alimentar a ansiedade.
O silêncio reinava dentro dos veículos, quebrado apenas pelo motor abafado, que vibrava como um latido distante de rotina.
As malas eram muitas.
Pesadas.
Volumosas.
Não apenas por tudo o que continham, mas por tudo o que representavam.
Zuras supervisionava cada item com a severidade de um general gentil. Conferia etiquetas, redistribuía pesos, fechava zíperes esquecidos.
Ele não dirigia apenas a van.
Dirigia um rito de passagem.
Ao lado dele, Cibele permanecia com o rosto travado em sua máscara habitual: o desdém.
Uma postura ereta, como se o assento a queimasse.
Os olhos frios, escaneando cada movimento de Hela — sem buscar falhas, mas assumindo que elas existiam.
Para ela, cada gesto de cuidado com Hela parecia uma heresia.
Um incômodo.
Uma afronta.
Como se o mundo estivesse aplaudindo alguém que, em seu julgamento íntimo, não merecia sequer estar no palco.
Na outra van, Hela sentava-se ao lado de Thena.
O corpo ainda tenso, como se qualquer flexão de músculos pudesse quebrar o frágil equilíbrio do momento.
Mas tentava aparentar calma.
Tentava ser o que prometeu que seria.
Garm deitou aos seus pés.
A cabeça macia pousada entre as pernas dela.
E Hela passava os dedos por seu pelo grosso com a constância de um mantra silencioso — um gesto de cuidado mútuo, mas também de sobrevivência.
Era como dizer: estamos indo juntos.
Não importa pra onde.
Argus, mesmo envolto por manta macia e cheiro conhecido, continuava atento.
Os olhos grandes e desconfiados varriam as grades da caixa, tentando entender a geometria do desconhecido.
Zuras conduzia a van com a calma de quem conhece os caminhos.
Mas também com a solenidade de quem carrega uma carga sagrada.
Cada curva era feita com o respeito de um homem que sabia: ali dentro havia muito mais do que corpos cansados — havia histórias inteiras em processo de exílio voluntário.
Cibele, ao lado, não relaxava.
Segurava a mochila com os documentos como quem segura a própria moral.
O rosto fixo à frente.
Mas os olhos…
Os olhos ardiam no retrovisor.
Sobre Hela.
O desprezo nela não era um evento.
Era uma residência fixa.
Uma presença contínua que não precisava de som para ferir.
Do lado de fora, Atenas começava a acordar.
As ruas estavam vazias, mas já não pareciam mortas.
Luzes amarelas escorriam sobre as fachadas dos prédios, tremeluzindo como se o amanhecer estivesse testando sua coragem.
O céu era um mural silencioso de rosa e azul pálido, pintado com dedos tímidos.
Era o tipo de beleza que prometia nada concreto — apenas possibilidade.
A conversa dentro dos veículos era mínima.
Quase inexistente.
Mas havia uma coreografia de gestos:
– Uma mão que tocava o ombro em silêncio.
– Um suspiro contido.
– Um olhar firme entre mãe e filha, como um fio tenso e invisível que não ousava se romper.
Nada ali era leve.
Nem mesmo a esperança.
Mas ainda assim, a esperança estava presente.
Baixa. Ferida. Mas real.
Ao longe, as luzes do Aeroporto Internacional de Atenas surgiram.
Altas. Claras. Imponentes.
Como o portão de um castelo — ou de um limbo.
Zuras desacelerou.
Entrou na área de desembarque com a precisão de um mestre de cerimônias.
O motorista estacionou próximo à entrada, como planejado.
Hela inspirou profundamente.
A mão firme nas pastas com os documentos.
Ela os conhecia de cor.
Mas, agora, o papel pesava diferente.
Era papel com cheiro de recomeço.
Com textura de despedida.
Cibele a observava.
Com o mesmo desprezo.
Com a mesma frieza.
Com o mesmo julgamento de sempre.
Nos olhos dela, nenhum perdão.
Nenhum reconhecimento.
Nenhuma possibilidade de redenção.
Para ela, Hela continuaria sendo uma presença intrusa,
uma mulher que ousou amar onde não foi convidada,
e que, para piorar, foi amada de volta.
Mas Hela não recuou.
Não pediu desculpas.
Não abaixou os olhos.
Ficou de pé.
Não com a arrogância dos invictos,
mas com a dignidade silenciosa dos sobreviventes.
Porque, às vezes, a coragem não é gritar.
É seguir andando.
Mesmo quando o amor é negado.
Mesmo quando o respeito é sonegado.
Mesmo quando o caminho à frente é o único lugar onde ainda se pode respirar.
E Hela escolheu respirar.
Com o peito aberto.
Mesmo ferido.
Mesmo julgado.
Porque o recomeço pode doer.
Mas ficar parada…
dói mais.
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O motor da van zumbia constante, embalando a madrugada com sua monotonia metálica, como se a própria cidade respirasse através dele — lenta, profunda, indiferente.
Garm dormia outra vez, enroscado no chão aos pés de Hela, com a cabeça pesada sobre as patas dianteiras, o peito subindo e descendo num compasso tranquilo, fiel.
Thena cochilava ao lado, a cabeça tombada levemente sobre o ombro da esposa, como uma flor exausta que encontrava apoio no único caule que confiava.
E entre elas, as mãos entrelaçadas — uma ponte frágil, silenciosa, mas inquebrável entre o que descansa e o que vigia.
No banco da frente, Zuras dirigia.
Com serenidade.
Mas uma serenidade tensa, quase insuportável de tão contida.
O silêncio dele era o de quem guarda a estrada como um escudo, e as palavras como lâminas embainhadas.
Cibele, ao lado, não olhava para trás.
Mas falava.
Baixo.
Como quem não queria acordar ninguém —
mas fazia questão de ferir quem estava acordada.
— Sempre achei curioso... essa sua necessidade de enfeitar tudo. — começou, a voz seca como papel antigo. — Cozinha com flor na borda do prato. Carta com perfume. Mala com laço.
Havia aço em cada palavra.
Deliberado.
Polido.
E cortante.
— Como se estivesse sempre tentando ser aceita num lugar que não é seu.
Hela não respondeu de imediato.
Virou o rosto para a janela.
Atenas começava a surgir, azulada e fria, com seus contornos ancestrais misturados aos fios modernos de concreto e vidro.
Um céu neutro, sem juízo.
Um céu que não tomava partido.
— Talvez eu estivesse, sim. — disse por fim, a voz baixa, mas firme. — Tentando ser aceita.
Cibele esboçou um sorriso — mas não era um sorriso.
Era uma contração do rosto, um espasmo de quem acabara de ganhar um ponto no jogo de humilhação.
Um troféu de desprezo.
— E você acha que conseguiu?
Hela virou levemente o rosto.
No espelho retrovisor, via o reflexo fragmentado do rosto da sogra — metade sombra, metade julgamento.
Mas os olhos dela… não tinham ódio.
Tinham cansaço.
Um cansaço tão antigo que parecia ter se instalado ali antes mesmo das palavras.
— Não sei. — disse. — Mas tentei. Como pude.
Enquanto vocês achavam que eu exagerava… eu só estava tentando pedir espaço.
Do meu jeito.
Cibele bufou.
Mas não foi ironia.
Foi impaciência. Sincero. Quase cansada.
— Seu jeito cansa.
Seu jeito se espalha.
Você invade.
Ocupa tudo como se o afeto tivesse sido realizado.
Até a sua dor é barulhenta.
Hela abaixo dos olhos.
A mão pousou com leveza sobre a cabeça de Garm.
Os dedos se moveram devagar, com a delicadeza de quem tenta rir a própria alma através do pelo de outro ser.
— E o seu silêncio nunca machuca, não é?
Cibele virou-se. Pela primeira vez.
Só o suficiente para olhar diretamente —
Com olhos que nunca souberam pedir,
apenas julgue.
— A diferença é que eu nunca preciso de aplauso pra existir.
Ela olhou por um instante.
Sem desafio.
Sem rendição.
— E eu nunca quis aplauso.
Só queria… não ser descartado.
Fundo inspirador.
Ó ardeu no nariz.
Mas não piscou.
Não agora.
Não na frente dela.
— Queria que quando eu fizesse algo pela sua filha… isso fosse visto.
Queria que quando eu tentasse cuidar da família dela… alguém cuidasse de mim também.
Cibele voltou a encarar a estrada.
O pescoço retesado.
Ó trabalho maxilar.
Como se fosse a única coisa que lhe restava: a negação.
— Você não faz parte da minha família.
Nunca foi.
Silêncio.
Zuras não disse nada.
Mas as mãos no volante resistiram.
Os nós dos dedos estavam brancos.
Ela engoliu em seco.
Não retrucou.
Não significativo.
Não corteja.
Apenas abriu a mão de Thena um pouco mais forte.
Como quem diz: eu ainda estou aqui.
E por um instante —
só um —
fechados os olhos.
Como quem recolheu o coração,
para que ele não sangre diante de quem não saberia o que fazer com isso.
Chapter 19: Κεφάλαιο 11
Chapter Text
Aquilo doeu.
Não como um choque.
Não como um grito.
Mas como uma lâmina lenta, fria, atravessando o que ainda restava inteiro —
sem pressa, sem escândalo, com a precisão cruel de quem sabe exatamente onde cortar.
As palavras de Cibele apoiaram todos, suspensas no ar rarefeito da van.
Não eram só som.
Era peso.
Peso que se misturava à brisa do ar condicionado,
ao zumbido do motor,
à respiração calma de Thena,
ao cheiro matinal do pelo de Garm.
> — “Você não faz parte da minha família.”
Ela fechou os olhos.
Não por rendição.
Mas como quem puxa uma cortina sobre uma cena que não quer mais assistir.
E então, não vi Atenas.
Nem o banco de couro sintético.
Nem o espelho que reflete o desdém.
Veja outra cena.
Um terraço iluminado por luzes amarelas, meses atrás.
Uma mesa postada com cuidado.
Flores colhidas com os próprios dedos.
Guardanapos dobrados como pássaros.
Pão fresco — amassado com as mãos ainda manchadas de tinta.
Viu o esforço.
Viu a esperança.
Viu o amor derramado nos pequenos gestos,
na tentativa de ser vista,
de pertencer.
Viu a mulher que tentou ser.
Por Thena.
E por todos aqueles que Thena amava.
Mas então, outro vulto tomou a cena.
Mais antigo.
Mais frio.
Mais fundo.
Lilith.
Sentada no sofá de linho escuro.
Os dedos longos seguram uma taça de vinho branco.
O olhar lânguido e cortante atravessando a filha como se ela fosse vento.
> — "Não, Hela. Eu não vou. Você pode se casar com quem quiser. Só não me peça para fingir que faz parte de mim. Você não é minha filha. E nunca será minha família."
Pela primeira vez.
Uma mãe negando uma filha.
Agora, a segunda.
Uma sogra repetindo o gesto com palavras diferentes — mas a mesma faca.
Olá, feliz.
Ó trabalho maxilar.
Os ombros erguidos.
A coluna ereta.
Uma dignidade intacta.
Por fora.
Mas dos olhos…
Apenas um traço.
Uma única lágrima.
Silenciosa.
Densa.
Salgada.
Ela não está entediada.
Não se permitiu o gesto.
Deixou escorrer.
Deixou queimar a pele em silêncio.
Deslizando pela face até encontrar a linha do queixo e cair sem testemunha.
Mas Garm veja.
Como sempre.
Ergueu levemente a cabeça.
Empurrou o focinho contra a perna de Hela.
Sem som.
Sem exigência.
Apenas presença.
Ela apoiou a mão sobre o dorso dele com importância.
Com reverência.
Como quem agradece por não estar completamente sozinho.
Respirou fundo.
Engoliu em segundo.
E não respondeu nada.
Porque não havia mais nada a ser dito a quem nunca quis escutar.
Porque às vezes, a única forma de sobrevivência é não reagir.
Porque amar Thena também era saber não ferir a mãe dela de volta.
Mesmo podendo.
Mesmo com razão.
Porque aquela lágrima —
aquela uma —
era a última que ela permitiria cair por quem escolheu rejeitá-la,
mesmo após todas as entregas,
todas as tentativas,
todos os silêncios que gritaram amor.
Thena ainda dorme.
Serena.
Inocente da dor plantada ali, no meio da van, como uma semente amarga.
E lá fora…
O céu começava a mudar.
Do preto ao azul.
Do azul ao cinza.
Como se pressentisse que, mesmo sem gritos,
algo havia se quebrado.
De novo.
E dessa vez…
ninguém ajudou a juntar os cacos.
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🕰FLASHBACK — MILÊNIOS ATRÁS🕰
(Antes dos homens contarem o tempo. Antes dos deuses se escondem em templos. Antes das promessas tiveram nome.)
O mundo era jovem — ainda em brasa, ainda em sopro.
As árvores falavam em murmúrios antigos, e os ventos atravessavam os vales sem pressa, como histórias sagradas levadas nos ombros do silêncio.
Hela não tinha ainda os cabelos que hoje arrastaram eras, mas já trazia nos olhos o peso de quem nasceu rejeitado.
Usava túnicas de linho grosso tingidas com o barro da aurora. A pele, pálida como a lua nova, contrastava com os dedos manchados por tintas minerais e óleos de mirra.
Suas mãos — sempre inquietas — seguravam, naquele dia, um rolo de papiro. Nele, escrito com extremo cuidado, estava o convite.
O convite.
Para o casamento.
Com Thena.
A mulher que lhe dera o chão.
Fronteira.
Refúgio.
Desejo.
E, acima de tudo, escolha.
Apesar dos séculos de feridas, apesar dos não velados e dos olhares desviados — Hela ainda queria sua mãe presente.
Não como vitória.
Mas como testemunha.
Naquele dia, passava até a margem sul do Nilo, onde Lilith vivia entre cortinas de linho, taças de ônix e juncos que murmuravam segredos dos desertos.
Chegou a pé, sozinho, sob o sol que caiu como lâmina dourada sobre as pedras.
Os guardiões, serpentes gêmeas com olhos de âmbar, abriram passagem sem uma palavra — talvez por respeito, talvez por medo.
Lilith estava reclinada sobre uma divã de couro escuro, cercada por incensos e espelhos de bronze.
Os cabelos negros caíram como véu sobre os ombros nus.
O cálice entre os dedos estava cheio de vinho pálido.
E os olhos, assim que se levantaram, não brilharam — apenas mediram.
— Você veio. — disse, sem emoção.
Hela assentiu, segurando o papiro com força.
— Eu vim... porque, mesmo depois de tudo, ainda quero que esteja lá.
Lilith arqueou uma sobrancelha.
Não houve sorriso. Nem sombra dele.
Apenas o erguer do queixo, como quem se prepara para a crueldade desnecessária.
— Lá onde, exatamente?
— Não meu casamento. — respondeu Hela, com voz firme.
Não tente.
Mas sem dobra.
Sem súplica.
Lilith pousou o cálice.
Seu olhar percorreu o corpo da filha — das cobertas de poeira aos olhos carregados demais para a juventude de milênios.
— Então você vai mesmo fazer isso. Unir-se a ela. À olímpica. À filha da dor.
— À mulher que eu escolhi.
O que eu vejo.
Lilith cruzou as pernas, com a lentidão de uma deusa que nunca conheceu pressa.
— Você ainda insiste em brincar de ser humana, Hela. De achar que amor basta. Que convite cura.
— Eu nunca pedi cura. — disse Hela, baixando os olhos para o papiro. — Só pedi presença.
Estendeu o convite.
Com cuidado.
Com reverência.
Com o tremor da esperança que, mesmo enfraquecida, ainda se move.
Lilith não pegou.
Apenas olhei.
Como se o gesto fosse um insulto.
— Já recusei o jantar de noivo. Já recusei conhecer sua companheira. Achei que, com o tempo, você entenderia o que não precisa ser dito.
Silêncio.
Hela não chorou.
Nem esclarece.
Apenas fechei a mão sobre o papiro, dobrando-o com o estelo seco de algo que se parte.
– Entendido. — disse, por fim. — Mas preciso ouvir de novo. Porque parte de mim ainda queria acreditar que...
Parou.
Engoliu a frase como um espinho.
Lilith se declarou.
A túnica escorrendo pelo corpo como marfim vivo.
— Você pode se casar com quem quiser. Levar flores, pintar paredes, escrever poemas em sangue. Mas não me peça para fingir.
Pausou.
— Você não é minha filha, Hela.
E nunca será minha família.
O ar ficou espesso.
Pesado como mirra queimada.
Olá, concordo.
Uma única vez.
E virou as costas.
Não por orgulho.
Mas por combustão.
Por fim.
Quando saí do templo, o vento havia mudado.
O sol já se punha.
E nas mãos dela, o papiro se dissolve entre os dedos, manchado de suor, poeira e algo mais antigo que a tristeza:
a constatação de que há mães que nunca amam.
E há filhas que, mesmo assim, continuam tentando.
Mas aquela foi a última vez.
Naquele dia, Hela deixou de buscar amor onde só havia ausência.
E começou a construir o seu mundo com as mãos manchadas —
mas suas.
fim do fashblack
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Zuras viu pelo retrovisor.
Não o gesto em si —
não o movimento da lágrima em queda,
mas o brilho traiçoeiro, tênue e relutante,
que escorreu pela lateral do rosto de Hela como uma rachadura líquida
na armadura que ela sempre vestia com perfeição quase ritual.
Ele não comentou.
Não suspirou.
Não mova os lábios.
Mas desviou os olhos da estrada por meio segundo a mais do que deveria.
E foi o suficiente.
Foi o bastante para compreender.
Aquilo não era uma lágrima qualquer.
Não era fruto de um instante.
Não era uma resposta emocional de quem se deixa ferir com facilidade.
Era o tipo de lágrima que só brota de acúmulo.
De todas as vezes em que o afeto foi substituído por crítica.
De todas as mesas em que ela se sentou tentando pertencer e escolheu, no subtexto, que jamais seria suficiente.
De todos os olhares que reduziram o exagero, o ruído, o erro.
De todas as vezes em que foi julgado não por suas falhas,
mas por seu modo de amar.
Zuras abriu o volante.
Não com raiva.
Mas com impotência.
Porque ele sabia.
Sabia que, mesmo se dissesse algo agora —
qualquer coisa bonita, justa ou solidária —
já seria tarde demais.
A ferida foi feita.
De novo.
E o pior foi que, dessa vez,
a mão que empunhou a lâmina
ficou ao lado dele.
Cibele.
Ela também viu.
Não a lágrima.
Mas o silêncio modificado.
A densidade do ar.
O modo como Garm pressionou o foco contra a perna de Hela com mais firmeza, como quem tenta estancar uma dor invisível.
O jeito como Thena, mesmo dormindo, se inclinou ainda mais para a esposa —
como se o corpo soubesse o que a mente ainda não captava.
E então, Cibele vamos.
A lágrima havia saído.
Por culpa dela.
Por palavras lançadas com precisão cirúrgica,
revestidas de moral,
cortadas em forma de julgamento.
Mas o que senti…
não foi arrependimento.
Foi desconforto.
Incômodo diante da fragilidade alheia.
Porque ver a dor de Hela, ali, silencioso, exposto,
escancarava — por reflexo — o próprio erro.
E Cibele não era mulher de erros.
Pelo menos, não dos que suportam.
Preferiria as muralhas.
Como verdades absolutas.
Os silêncios que sufocam sem deixar marcas.
Desviou o rosto para a janela.
Cruzou os braços.
Abriu a mandíbula.
Mas não conseguiu evitar o pensamento de que, como um inseto, rastejou pela mente antes que ela conseguisse esmagá-lo:
> “Ela não chorou quando eu a humilhei pela primeira vez.”
“Por que agora?”
Porque agora, talvez…
tivesse esperança.
Porque agora…
ela acreditava que poderia ser diferente.
Porque agora…
ela amava a filha dela com a profundidade de quem queria ser aceita, não apenas suportada.
E Cibele, por um momento —
um instante cruel e vulnerável —
quase sentiu pena de si mesma.
Mas então, como sempre, esmagou o pensamento.
Com o peso de uma vida inteira de superioridade bem sustentada.
Recolheu-se em sua verdade como uma fera velha em sua toca de pedra.
Mas dentro do peito,
algo se partiu.
Baixo.
Sem estardalhaço.
Como um galo seco.
Zuras pigarreou.
Um pouco breve. Quase tímido.
Como se a garganta o traísse, tentando falar.
Mas não saiu nada.
Ela não se mexe.
De olhos abertos,
encarava o horizonte com a firmeza de quem atravessa campo minado
e sabe exatamente onde pisa.
A lágrima, agora,
era só um traço seco na pele.
Mas o silêncio…
Ah, o silêncio.
Isso ficaria.
Por muito mais tempo.
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05h17 — Aeroporto Internacional de Atenas
O céu ainda era um gradiente tímido de cinza e azul, como se o mundo hesitasse em acordar por completo.
As luzes frias do terminal internacional cortavam a madrugada com a precisão exata de bisturis — não havia calor, apenas eficiência impessoal.
Refletiam nas janelas das vans, nas placas metálicas com nomes de companhias aéreas escritos em grego e inglês, nos rostos que já não tinham mais sono, apenas cansaço.
O motorista desligou o motor.
E por um segundo, ninguém se moveu.
O tempo ficou suspenso —
como se até o próximo passo exigisse aprovação do destino.
Thena foi a primeira a se mexer.
Abriu a porta da van com um estelo suave, o casaco jogado sobre os ombros, os olhos fundos de uma noite insone.
O coque preso às pressas deixava fios soltos que tocavam o rosto pálido.
Mesmo assim, seus pés tocaram o chão com a firmeza de quem decide, não de quem duvida.
Olhou ao redor —
os guichês começando a abrir,
os poucos viajantes de passos arrastados,
o hálito úmido da manhã colado ao concreto.
E respirou fundo,
como quem sabe que aquela chegada era, também,
uma partida disfarçada.
Ao abrir a porta traseira da van, os funcionários se aproximaram.
Colete com faixas refletivas.
Gorros cinza.
Luvas nos bolsos.
Cordiais, mas rápidos.
A coordenação da madrugada era ágil, sem espaço para sentimentalismos.
Começaram a descarregar as caixas.
As de Garm e Argus, com etiquetas plastificadas e códigos de barras perfeitamente alinhados.
As malas pesadas, com fitas de identificação e anotações de Hela escritas à mão em tinta preta.
Cada detalhe revisado três vezes na noite anterior.
Hela desceu logo atrás.
Não falei.
Não titubeou.
Já trazia a pasta transparente nas mãos, os documentos organizados por ordem de uso — como uma bibliotecária de sua própria sobrevivência.
Conferiu zíperes.
Reorganizou alçadas.
Ajustou o cinto da calça.
Prendeu uma mecha de cabelo rebelde atrás da orelha.
Havia nela uma urgência meticulosa.
Como quem entende que, se falhar um único passo,
tudo desmorona.
Zuras retirava as malas da segunda van ao lado de um carregador.
Mas observe.
Observava Hela.
Os olhos fixos demais.
Os lábios duros demais.
O silêncio… gritando demais.
Aquela não era a mesma Hela.
Aquela não era a mulher que gargalhava alto,
que falava com as mãos,
que ria antes de terminar as frases.
Aquela era uma versão contida, compactada, domesticada —
a que surgia quando ela estava ferida demais para ser quem era.
Cibele está distante.
Ajudou apenas com as malas de Thena.
Não cruzou o olhar com Hela.
Não estenda a mão.
Não procurei nenhuma chance de remendo.
E Hela…
ou não viu,
ou fingiu não perceber.
Mas Thena viu tudo.
Ela viu a esposa conferir o cadeado da caixa de Garm pela quarta vez.
Viu quando dobrou a manta de Argus com uma precisão absurda.
Quando alinhava o carrinho como se isso fosse proteger o mundo de mais uma queda.
Ela viu.
E eu sabia.
Naquele breve segundo entre a respiração contida de Hela e o silêncio da mãe,
eu soube.
> Foi Cibele.
Foi ela quem a cortes de novo.
Mas Thena não disse nada.
Nem tudo.
Ainda não.
Porque o foco não era sua mãe.
Era Hela.
E garantir que tudo fosse perfeito para ela —
mesmo que ela mesma já não saiba como existir sem se contrair.
— Tudo certo com o check-in? — perguntou Thena, baixo, como quem oferece abrigo.
— Tudo certo. — respondeu Hela, rápido demais.
Com o celular em mãos, cruzando horários, verificando códigos, fazendo o que Thena normalmente faria.
A resposta foi um reflexo.
Um escudo.
Não há presença.
Como se Hela já não pudesse mais se dar ao luxo de ser apenas… amada.
O grupo se reuniu em torno dos carrinhos.
Tudo conferido.
Tudo pronto.
Mas ninguém disse nada.
Nem um "vamos".
Nem um "está tudo certo".
O silêncio se instalou como uma ponte sobre um abismo —
e ninguém quis ser o primeiro a atravessar.
Thena passou a mão pelas costas de Hela.
Com leveza.
Com intimidação.
Um gesto que dizia:
> “Eu te vejo.”
“Ainda vejo você.”
Hela privilegiada.
Quase imperceptível.
E então, sem hesitar,
empurrou o carrinho mais pesado e médio a adiantado.
Sem drama.
Sem explicações.
Apenas com o tipo de força
que não precisa de voz para ser reconhecido.
Como quem sabe que, às vezes…
é preciso continuar andando
mesmo quando o peito inteiro sangra.
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05h30 — Entrada do Aeroporto Internacional de Atenas
As portas de vidro automáticas deslizaram com um chiado contido, como se abrissem não para acolher, mas para permitir a travessia.
O grupo foi engolido por um sopro de ar artificial — frio, exato, desprovido de cheiro, sem identidade.
Não era o tipo de ar que convida.
Nem o tipo que repele.
Era o tipo que existe apenas para cumprir função,
como tudo ali:
eficiência, neutralidade, ausência.
Do lado de fora, ainda pairava o resto da madrugada mediterrânea.
A umidade doce, quente, pegajosa,
era um lembrete sutil de que o mundo lá fora tinha textura.
Ali dentro,
tudo era liso.
O chão, os filhos, os rostos.
A limpeza reluzente do mármore claro intimidava até os passos.
As luzes pendiam do teto altíssimo, vigilantes adormecidas, lançando sombras longas que esticavam o cansaço de quem estava sentado.
Reflexos e mais reflexos nas paredes espelhadas —
uma galeria de versões desbotadas,
malas, carrinhos, corpos, gestos imprecisos.
Painéis de LED trocavam horários com calma quase cruel.
Nada ali se apressava.
Nada disso foi importante.
O aeroporto não era feito para quem fica.
Era feito para quem parte.
E o grupo sabia:
eles não estavam sendo recuperados.
Estávamos sendo empurrados para fora.
Zuras converteu o primeiro carrinho com soluções militares.
Sabia onde eu preciso chegar —
mas não por que.
Caminhava com a resignação de quem aprendeu, ao longo da vida,
que há dores que não se resolvem com palavras.
Ao lado dele, Cibele.
A postura ereta, rígida, o olhar fixo no horizonte, como se olhar de lado fosse supor que ainda houvesse sentimentos.
Seu corpo era uma armadura.
E a expressão no rosto…
não era neutra.
Era estrategicamente impenetrável.
Como quem disse:
> "Estou aqui.
Mas não estou com vocês."
Ela evitou olhar para Hela.
Mas a presença da nora era como uma luz nos olhos de quem insiste em não enxergar.
Incomodava.
Fermentava.
E o que mais a incomodava…
era o silêncio.
Porque Cibele pediu de conflito para especificar o desprezo.
E o silêncio irrepreensível de Hela
— respeitoso, colaborativo, discreto —
era um espelho que não quebrava.
Então via tudo.
Mas não com raiva.
Com algo mais sólido:
uma serenidade forjada sob pressão.
Era o olhar de quem já esteve em guerra.
E reconhecia, no corpo da esposa,
o mesmo tipo de contenção que os soldados usam para não morrer.
Autocontrole como última defesa.
Eficiência como escudo.
Precisão como forma de evitar ruir.
Hela não disse nada.
Mas seu silêncio era escutável.
Ecoava entre os passos.
Respingava nos gestos.
Ela empurrou o segundo carrinho —
as caixas de Garm e Argus.
Confira etiquetas com o inquérito.
Checava documentos.
Organizava a posição das malas.
Tocava os volumes como quem segura o mundo inteiro nas mãos.
Porque era isso:
se ela soltasse… tudo cairia.
Caminhava à frente.
Olhos baixos.
Postura irretocável.
Alerta demais.
Como se alguém estivesse julgando.
Como se um único erro confirmasse tudo o que os outros queriam acreditar sobre ela.
Argus miava baixo dentro da caixa ventilada,
como quem pede colo num idioma que ninguém fala.
Garm, quieto, com os olhos sempre nela,
sabia —
sabia que ela necessariamente dele mais do que nunca.
E mesmo sem palavras,
Hela passou os dedos pela nota da caixa com uma delicadeza que só os animais percebem.
Um afago sussurrado.
Um pedido mudo.
Passaram por uma família com crianças sonolentas de pijama,
por um casal que se abraçou como quem resistia à separação,
por um homem debruçado sobre a mochila, entre o sonho e a fuga.
Mas o grupo…
não transferiu esse terminal.
Não era sobre partir.
Era sobre sobreviver.
Quando pararam junto à fileira de carrinhos metálicos antes do check-in,
Thena estendeu a mão e segurou o braço de Hela.
Suavemente.
Sem dizer nada.
Foi o primeiro toque genuinamente humano
naquela madrugada estéril.
E Hela, que até então
não havia choro,
não havia tremido,
não havia se permitido nenhum desvio —
piscou devagar.
Como se seu corpo precisasse ser lembrado
de que ainda era digno de afeto.
Cibele não olhou.
Mas viu.
E aguentei ainda mais.
Como pode Thena…
ainda…
Depois de tudo?
Mas “tudo” era uma palavra vazia,
quando só quem a pronuncia
é quem quer se fazer de vítima da própria intolerância.
Na fila, Hela tirou os documentos da pasta.
Entregou com firmeza.
Confira os números.
Pediu com educação a liberação do transporte animal.
Tudo exato.
Tudo no tom certo.
Era como se, naquela postura sem falhas,
ela estava tentando provar — a si mesma —
que merecia existir.
Thena, ao lado, ajeitou uma mecha solta do cabelo de Hela atrás da orelha.
Não falei nada.
Mas o gesto disse:
> "Você está aqui.
Comigo.
E isso é suficiente."
Tudo estava em ordem.
Mas por dentro,
em cada uma delas —
e especialmente em Hela —
o que havia era um continente rachado.
Algo entre ruína e resistência.
Entre “não posso mais” e “vou assim mesmo”.
Entre a vontade de gritar
e o esforço de seguir.
Um mundo inteiro…
que não caiu.
Mas quase.
Chapter 20: Κεφάλαιο 12
Chapter Text
Hela caminhava um passo atrás de Thena, os olhos vasculhando o ambiente como os de uma sentinela que já viu guerra demais para confiar no silêncio. Seus ombros eram erguidos, rígidos, como se carregassem mais do que a mochila presa ao corpo. A mão direita segurava com firmeza a alça da caixa de Garm, os nós dos dedos brancos sob a tensão controlada. A pulseira de couro, desbotada e gasta pelo tempo, tilintava com a classe metálica a cada passo — não por acaso, mas como um compasso de sua inquietação, um sussurro constante que dizia: ainda estou aqui.
A outra mão, tremula sob o verniz da eficiência, segurava a mochila. Dentro dela, comprimidos como segredos, havia pequenos fragmentos do que restava de seu mundo: uma camisa com o cheiro de Thena, dois remédios que ela nunca usava mas carregava “por precaução”, um porta-retrato de bolso com os quadrigêmeos ainda crianças, uma carta que nunca chegou a entregar a Lilith, e um broche antigo que Fenrir colocou em seu cabelo quando ela tinha quatro anos. Tudo ali pesava mais do que o tecido podia suportar. Mas ela não largou.
A cada nova placa azul com letras em grego e inglês, a cada nova câmera no teto, a cada funcionário que passa rápido demais ou olha por tempo demais, o corpo de Hela reagia em silêncio. Pupilas dilatadas. Mandíbula cerrada. Costas arqueadas para proteger, para vigiar, para resistir.
Ela não estava em um aeroporto. Estava em território inimigo.
Atrás dela, Cibele caminhava com a altivez de quem acredita que nunca precisará se curvar. Os passos dela eram firmes, quase militares, mas desprovidos de calor. A frieza que exalava não era acidental — era cultivada. Cada centímetro de distância entre ela e Hela foi escolhido. Cada silêncio, uma sentença. Cada olhar evitado, uma referência. Ela não queria vê-la. Mas ver o amor entre Hela e Thena a enfurecia mais do que qualquer confronto direto.
Cibele não precisava dizer que não a aceitava. Sua presença já era o veredicto: ela estava ali por Zuras. Não por empatia. Não por família. Não por perdão.
À frente, Thena parou.
Foram escolhidos um ponto estratégico do saguão: um espaço levemente afastado do fluxo principal, onde as luzes vinham de cima em tons alvos e o vidro revelava a pista, já acordando com as luzes das aeronaves. O cheiro de querosene atravessava as frestas como uma promessa de distância.
Ali, naquele espaço suspenso entre o embarque e o adeus, Hela baixou a caixa de Garm com reverência.
Ela destravou o fecho devagar. O clique foi suave, mas em sua mente ressoou como o destravar de algo mais profundo — talvez uma brecha para respirar.
— Vem cá, grandão… — sussurrou, quase numa prece. A voz era grave, embargada de ternura primitiva.
Garm saiu da caixa sem pressa. Espreguiçou-se como um velho espírito guardião, os músculos desenhando movimentos lentos sob o pelo escuro. Seus olhos, inteligentes e escuros, encontraram os de Hela com reconhecimento. A cabeça encostou-se ao corpo dela com um peso exato. Um gesto que não pedia nada, mas oferecia tudo.
Ela se abaixou. Abraçou-o com os dois braços, a cabeça repousada contra o flanco quente do animal. Seu nariz afundou no pelo espesso e o cheiro conhecido invadiu seus sentidos: mato, fumaça, pedra molhada, sangue seco, vento. Cheiro de casa. De infância. De resistência.
— Você é meu lar, sabe disso, né? — murmurou em norueguês ancestral, com a cadência antiga das canções que Fenrir cantava nos dias de neve.
A resposta veio na forma de uma cauda que batia preguiçosamente no chão, e olhos que se fecharam devagar, como quem sabia. Como quem sempre soube.
Thena assistia à cena com as mãos pousadas nos joelhos e os olhos marejando em silêncio. Ela conhecia aquela Hela. Aquela que se encolhia para caber em um mundo que a rejeitava. Aquela que resistia até mesmo à ternura. Aquela que não pedia socorro — mas agradecia por cada gesto.
Ela queria dizer algo. Mas não era o momento.
E talvez, só talvez, o silêncio fosse o maior gesto de amor ali.
Ao fundo, Cibele desviou o olhar. Como se ver aquele laço entre mulher e animal, entre amor e sobrevivência, fosse ofensivo. Havia algo nos olhos dela — algo entre rancor e fragilidade. Como se não soubesse nomear o que sentia, e por isso o atacasse.
Ela se virou para Zuras, que ainda organizava o resto da bagagem, e sussurrou algo inaudível. Ele apenas assentiu. Mas seu olhar voltou para Hela, fixo, preocupado, como se quisesse tocá-la e não soubesse como.
Ao lado de Garm, Hela respirou fundo. Seus olhos, fechados por alguns segundos, se abriram devagar. Olhou para Thena. Depois para o teto alto do aeroporto. Depois para nada.
Mas havia firmeza em sua postura. Uma decisão silenciosa.
Ela não ia desmoronar ali. Não por Cibele. Não naquele chão frio. Não com Garm do seu lado.
Ela levantou-se. Puxou a alça da mochila. Alisou o suéter com as palmas abertas, como quem sacode fantasmas presos ao tecido. Ajeitou a caixa de Argus no carrinho com um cuidado quase maternal.
E então, com o que restava de dignidade erguida sobre ruínas internas, caminhou de novo.
Porque às vezes, tudo que se pode fazer… é caminhar.
Mesmo que seja sob o peso do que nunca foi dito.
Mesmo que o chão seja liso demais para quem carrega tantas rachaduras por dentro.
E Hela caminhava. Porque era tudo o que ainda sabia fazer.
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Hela permanecia imóvel.
Como uma estátua esculpida não em mármore, mas em contenção. Os braços envolviam Garm com uma firmeza silenciosa — um gesto que era ao mesmo tempo abrigo, âncora e barricada contra o mundo. O rottweiler dormia pesado sobre seu torso, os músculos relaxados como se o próprio instinto soubesse que ali, naquele colo de sombras e cicatrizes, nada poderia atingi-lo.
Ela, no entanto, não dormia. Nem descansava.
Por dentro, sua mente sussurrava em múltiplos idiomas — ansiedade, exaustão, controle, sobrevivência. Cada pensamento era um dardo veloz atravessando a escuridão interna, tentando se agarrar a algo que a impedisse de cair. E ainda assim, havia uma estranha serenidade naquela quietude: uma pausa suspensa, um suspiro antigo que o corpo dela insistia em conter há anos.
Foi nesse instante que Thena se aproximou.
Havia algo cerimonial em seus passos — um respeito silencioso pela dor que não se nomeia, um cuidado quase reverente com a arquitetura invisível daquela mulher que amava. Não se tratava de invadir, corrigir ou retomar o controle. Tratava-se de reconhecer. Estar presente. Ser testemunha.
Hela não se mexeu quando a sentiu chegar, mas seus ombros suavizaram, imperceptivelmente. Como se a simples presença de Thena dissolvesse parte da rigidez que o mundo forçava nela.
A guerreira fitou a pequena poltrona ao lado, onde repousava uma coleção meticulosa de documentos e objetos. Não havia desordem ali — pelo contrário. Tudo estava disposto com a precisão de quem tentava desesperadamente organizar a própria vida como se fosse um dossiê diplomático. Como se, ao manter os papéis impecáveis, o futuro também se mantivesse sob controle.
— Deixe-me dar mais uma olhada — disse Thena, e sua voz parecia um véu de seda atravessando o ar espesso do aeroporto. Não havia dúvida ali. Nem comando. Apenas ternura contida.
Com gestos delicados, ela se ajoelhou diante do altar improvisado de burocracias e esperanças. Tocou os papéis com a mesma delicadeza com que se toca o ventre de alguém prestes a dar à luz um novo destino. Um por um, alinhou os itens — não por necessidade prática, mas por um tipo de amor que sabia se expressar nos detalhes.
⤿ Dois passaportes válidos, um com a capa azul-escura do país de origem, outro em tom vinho profundo, como se até nas cores carregassem histórias distintas. Os chips brilhavam sob a luz do terminal, lembrando escamas de um dragão adormecido. As páginas internas, intactas ou quase, eram um convite para o desconhecido — ou talvez para, finalmente, pertencer a algum lugar.
⤿ Cartões de embarque, impressos com precisão quase obsessiva. Dobrados no centro com simetria, como se fossem pergaminhos mágicos a serem apresentados em portais. Cada número de assento, cada horário, cada terminal, marcado à caneta com pequenos círculos pretos por Hela — uma tentativa de conter o caos através do método.
⤿ O visto Schengen, grampeado com um clipe prateado junto à autorização de residência islandesa. A tinta oficial ainda fresca. O brasão timbrado, a assinatura digital. E mesmo ali, entre selos e registros, havia uma fragilidade comovente: o papel dizia "você pode ficar", mas o coração de Hela ainda duvidava se merecia.
⤿ O comprovante de hospedagem, redigido em islandês e inglês, trazia o endereço exato da casa comprada em Mosfellsbær — uma vila montanhosa a 15 minutos de Reykjavík. Uma casa com janelas largas, lareira central, e espaço para tudo o que elas haviam perdido e tudo o que desejavam reconstruir. A impressão em papel comum escondia o que, para elas, era sagrado: um lar possível.
⤿ A apólice de seguro internacional, com anexos grifados. Cobertura médica 24h. Assistência odontológica. E ali, destacado em amarelo, o que fez Thena apertar os lábios com carinho: “atendimento veterinário em trânsito para cães de grande porte”. Ela soube imediatamente que aquilo era obra de Hela. Uma cláusula por amor. Um lembrete de que, para ela, Garm era tão parte da família quanto qualquer nome nos documentos.
⤿ Por fim, os comprovantes de vacinação contra COVID-19, impressos em três idiomas — grego, inglês e francês. Um retrato do tempo em que o mundo parou, em que fronteiras físicas e emocionais se dissolveram. Os QR codes impressos ao lado pareciam olhos eletrônicos, vigiando a memória de um trauma coletivo que moldou aquela nova versão delas.
Thena permaneceu em silêncio por um longo momento.
Depois, ergueu o olhar para Hela.
Ela ainda estava ali. Firme. Mas a firmeza agora parecia menos uma armadura e mais uma ponte — algo que resistia, sim, mas que também podia ser atravessado.
Com os olhos úmidos, mas sem lágrimas, Thena sussurrou:
— Você pensou em tudo.
Hela não respondeu de imediato. O rosto sereno, mas os olhos traiam cansaço. Um cansaço antigo, com camadas de outras vidas.
— Eu só… — começou, e sua voz saiu mais grave, mais humana. — …não queria que nada desse errado.
— Nada vai dar — Thena respondeu, com a firmeza doce de quem sela pactos.
Ela se aproximou então, tocando de leve o braço da esposa, respeitando o cão que dormia pesado entre elas. O toque foi curto, mas profundo. E naquele instante, algo se moveu dentro de Hela. Um músculo invisível relaxou. Um medo cedeu.
Garm resmungou no sono, como se aprovasse.
E pela primeira vez em muitas horas, Hela fechou os olhos. Não para fugir.
Mas para confiar.
Porque, ali, naquela sala fria de aeroporto, entre passaportes, comprovantes e promessas dobradas ao meio… ela sentia, de forma simples e devastadora, que estava indo pra casa.
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Logo atrás, em uma pasta separada — preta por fora, forrada de veludo cinza por dentro, com um zíper que deslizava como quem abria um relicário — estavam os documentos de Garm. Nenhum deles era mero papel. Eram registros de cuidado, fidelidade e resistência. Cada folha carregava não apenas dados, mas pequenas histórias, como se fossem capítulos silenciosos da biografia de um cão que sempre esteve presente.
E Thena, ao abrir a pasta, entendeu que ali também havia amor. Um amor que Hela raramente nomeava, mas que materializava com uma precisão quase obsessiva.
› Passaporte veterinário atualizado — o livreto azul-marinho estava gasto nas bordas, mas robusto como o próprio Garm. As páginas internas exibiam carimbos multicoloridos, registros de clínicas em diversos idiomas, como tatuagens de viagem. Cada um marcava um país, um aeroporto, uma espera no saguão, uma consulta rápida com o olhar protetor de Hela acompanhando tudo ao lado. Era um diário sem palavras, com selos no lugar de memórias.
› Certificado sanitário internacional, assinado com caneta de ponta fina e tinta azul-marinho pelo veterinário de confiança de Hela — o mesmo que cuidava dele desde filhote. O papel, levemente perfumado com álcool de clínica, estava impresso em duas vias, dobrado com exatidão e guardado dentro de um plástico protetor. Era mais do que um requisito: era um atestado de cuidado constante, um escudo contra qualquer suspeita do mundo externo.
› Prova da inserção do microchip ISO 11784/11785, o número de série redigido à mão e depois impresso abaixo em letras pequenas. Era, de certa forma, a certidão de existência de Garm — sua identidade invisível, lida apenas por máquinas, mas que atestava: ele é único. Ele é nosso. A data de implantação estava destacada em negrito, com o selo holográfico da clínica ainda intacto.
› Etiqueta da vacinação antirrábica, presa com grampeador duplo à página interna do dossiê. O adesivo alaranjado vibrava contra o fundo branco como uma pequena sentinela, indicando a proteção ainda válida por mais dez meses. Um tempo suficiente, pensou Thena, para viverem muitas novas memórias em solo islandês.
› Confirmação do tratamento contra Echinococcus multilocularis, registrada com precisão milimétrica: administrado às 14h47 de quarta-feira, exatamente 96 horas antes do embarque. A farmacêutica utilizada, a dose ajustada ao peso, a rubrica ao lado. Era o tipo de detalhe que passaria despercebido por muitos — mas não por Hela. Era ela quem anotava cada minuto, cada protocolo, como quem monta um ritual de passagem.
› Atestado de boa saúde, datado do dia anterior, com o carimbo oficial da União Europeia e a assinatura de um veterinário credenciado. O texto dizia o óbvio — "ausência de sinais clínicos observáveis no momento da avaliação", mas o que ele realmente dizia, entre as linhas, era: ele está bem. Ele está forte. Ele está pronto. E isso, para Hela, era tudo.
› Declaração de transporte não comercial, assinada por ambas, anexada com cópias de RGs e comprovantes. Era o documento mais simples, mas talvez o mais simbólico: dizia que Garm era família, não carga. Que viajaria não por venda, mas por amor. Que cruzaria fronteiras não como mercadoria, mas como parte de um lar.
› Por fim, o mais trabalhoso de todos: a autorização especial para raças restritas. Um formulário de sete páginas, obtido após dois meses de apelos, consultas jurídicas e, sim, uma ligação chorosa de Hela ao consulado — voz embargada, mas firme, dizendo: “Ele não é perigoso. Ele é meu filho.” O papel agora descansava ali, impresso em papel timbrado, como um troféu invisível de sua insistência.
Thena deslizou os dedos por cada item como quem passa a mão em relíquias sagradas. Não havia nada ali que tivesse sido feito pela metade. Nenhum erro, nenhum rasgo, nenhuma dobra impensada.
— Ele também tem um lugar com a gente — murmurou Thena, quase sem perceber.
E, mesmo dormindo, Garm soltou um suspiro profundo, como se soubesse.
Ao lado, Hela apenas assentiu com um movimento imperceptível da cabeça. Os olhos ainda fechados, mas os lábios ligeiramente curvados num sorriso que não pedia alarde.
Porque, naquele momento, entre pastas, carimbos e promessas impressas, ela sentia que, pela primeira vez em muito tempo… tudo estava certo.
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Logo ao lado da pasta de Garm, Thena deslizou o zíper de um segundo compartimento — mais estreito, forrado com plástico transparente e reforçado nas laterais com costura cinza-prateada — onde repousavam, meticulosamente dispostos, os documentos de Argus. A organização era simétrica, quase cerimonial. E embora o corpo do gato fosse pequeno e o temperamento mais contido, seu dossiê exalava a mesma solenidade silenciosa que ele carregava nos ombros miúdos.
Ali, cada folha era como uma extensão de sua personalidade: firme, precisa, elegante. Um arquivo silencioso que atestava a existência de um ser que raramente se deixava capturar — nem por câmeras, nem por toques, nem por afetos fáceis.
› O passaporte veterinário de Argus, em versão compacta, com lombada flexível e capa bege com símbolo da União Europeia em relevo. Ao abri-lo, as páginas formavam uma galeria silenciosa de carimbos e registros: vacinas aplicadas com pontualidade espartana, exames marcados com letras firmes, anotações feitas por mãos que tremiam menos diante de bisturis do que diante dos olhos dourados do felino. A trajetória clínica de Argus era também a sua biografia — escrita com tintas oficiais, mas guiada por um carinho velado e atento.
› O certificado sanitário internacional, datado com rigor cirúrgico e assinado em tinta preta pela veterinária especializada em felinos — a mesma que, ao vê-lo pela primeira vez, sussurrou um “ele parece entender tudo” antes de iniciar o exame. O texto, redigido à mão, era límpido e impessoal, mas na margem havia um pequeno traço em forma de coração — deixado discretamente por ela, como se uma parte sua não quisesse apagar o encantamento daquele olhar altivo e silencioso.
› O comprovante da inserção do microchip ISO 11784/11785, com número de série gravado em fonte sans serif, legível e sem margem para erro. Um código que dizia: este ser tem identidade. Porque nomes podiam ser alterados, ignorados ou esquecidos — mas aquele número era eterno. Era a assinatura invisível de Argus no mundo dos homens.
› A etiqueta da vacinação antirrábica, colada em uma página exclusiva, protegida por laminação transparente e com a data de validade destacada com marcador amarelo fluorescente. O gesto chamava atenção — não apenas das autoridades, mas de quem se importava o bastante para garantir que Argus jamais fosse posto em risco.
› A comprovação do tratamento antiparasitário, administrado, como o de Garm, 96 horas antes do embarque, estava registrada em dois idiomas, impressa em duplicata e firmada por duas testemunhas: a médica e a auxiliar. Não era excesso. Era zelo — o mesmo que Hela empregava em tudo que dizia respeito àqueles que amava sem palavras.
› O atestado de boa saúde, emitido no dia anterior por um especialista em comportamento felino, vinha com um detalhe raro: uma margem escrita à mão. Nela, em letra elegante, lia-se: “Temperamento reservado, mas estável. Peso ideal. Olhos atentos. Excelente condicionamento físico. Extremamente sensível ao ambiente.” Era o tipo de observação que não cabia nas tabelas. Mas dizia tudo.
› A declaração de transporte não comercial, redigida em grego e francês, com os campos específicos para felinos preenchidos com letra minúscula e estável, sem nenhuma rasura. No canto superior direito, a rubrica de Thena, cuidadosamente posicionada ao lado da de Hela — uma coreografia silenciosa de responsabilidade compartilhada.
› E, por fim, a autorização de embarque para animais de pequeno porte em cabine — uma conquista que custara três ligações, dois formulários distintos, e uma peregrinação até o consulado grego em Atenas. Um deles, curiosamente, fora impresso em papel reciclado com selo holográfico do governo helênico. Era um papel bonito, com textura áspera e cheiro de celulose natural. Um detalhe irrelevante para o mundo — mas não para quem entendia que até a textura podia carregar significado.
Thena passou o polegar suavemente por cada folha, como se acariciasse o próprio Argus. Lá fora, a noite seguia imóvel, mas dentro do ônibus, entre documentos e respirações contidas, o futuro já tomava forma. Um futuro onde ninguém ficaria para trás.
E embora Argus estivesse recolhido dentro de sua caixa com estampas de constelações e orifícios redondos, seus olhos brilhavam no escuro, atentos ao movimento das mãos de Thena. Como se soubesse que, mesmo no silêncio, estava sendo defendido.
Como se soubesse que sua passagem, também, havia sido garantida.
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Por fim, com a precisão silenciosa de quem aprendeu a amar também pelo zelo, Thena passou os olhos e os dedos por cada item espalhado ao redor da mochila e das malas. Era a última verificação — não uma checagem por dúvida, mas um ritual de cuidado, quase sagrado. Como se ao confirmar cada objeto, ela reafirmasse: “nada será deixado para trás.”
⇢ A caixa de transporte IATA de Garm, ampla, robusta, com etiquetas adesivas brilhantes em três idiomas e o lacre plástico reforçado — um detalhe mínimo, mas que garantira a segurança do cão em qualquer inspeção. Ao toque, a estrutura firme dizia: proteção. E as marcas de dente na lateral, como cicatrizes, diziam: pertencimento.
⇢ A caixa menor de Argus, leve e engenhosamente montada, com grelha lateral para ventilação e uma almofada térmica de algodão orgânico no fundo — um toque de luxo discreto, feito para acalmar até o felino mais desconfiado. Thena ajeitou o zíper e sorriu com os cantos dos olhos: Argus sempre preferia lugares estreitos e silenciosos. Aquela caixa era quase um altar.
⇢ A ração em embalagens originais, seladas com adesivos personalizados por Hela — cada um com o nome do animal, peso exato, datas de validade e instruções de uso. As letras eram pequenas, mas caprichadas, como se tivessem sido escritas para alguém muito exigente. Talvez porque fossem. Aquilo não era só alimento. Era continuidade.
⇢ O bebedouro portátil, dobrável, com copo embutido em silicone translúcido e válvula antiderramamento, parecia quase banal à primeira vista. Mas Thena sabia o quanto já havia sido útil em caminhadas longas e viagens imprevistas. Era uma engenhosidade mínima, quase invisível, que revelava o quanto pensavam adiante.
⇢ Os tapetes higiênicos, enrolados com precisão e presos com fitas ecológicas, lembravam pergaminhos antigos — não só por sua forma cilíndrica, mas pelo valor que carregavam. Em trânsito, eles significavam dignidade, ordem e conforto. A familiaridade de um chão conhecido, mesmo num lugar estrangeiro.
⇢ Os remédios, dispostos em frascos translúcidos, com tampas coloridas que indicavam o horário de uso: azul para a manhã, verde para o meio-dia, âmbar para a noite. As etiquetas tinham códigos QR e anotações manuais feitas por Hela. A farmácia portátil era um lembrete terno de que o cuidado com os vulneráveis exigia método — e amor vigilante.
⇢ As coleiras com identificação dupla — uma tradicional, em couro preto fosco com argola dourada, e outra de silicone com QR code gravado a laser. Nelas, o nome de cada animal, telefone de contato e frase simples em três idiomas: “Por favor, devolva-me a quem me ama.”
⇢ Os sacos para objetos, organizados em rolinhos minimalistas, eram guardados dentro de um estojo com zíper em formato de osso. Pequenos pacotes essenciais, discretos, mas indispensáveis — afinal, até os deuses precisam cuidar da higiene dos seus.
⇢ Os cobertores familiares, dobrados em quadrados perfeitos, exalavam um cheiro inconfundível: casa. O tecido, impregnado com os aromas de lenha, de pele, de cães dormindo perto da lareira. Garm teria seu chão invisível. Argus teria sua caverna de tecido. E nenhum aeroporto, por mais clínico e impessoal, poderia tirar isso deles.
⇢ Os brinquedos usados, um osso de borracha desbotado, um ratinho de feltro rasgado e uma bolinha que já não quicava — todos guardados com o cuidado que se dá a relíquias. Foram gastos, mastigados, manchados pelo tempo e pelas emoções que os cercaram. Mas eram amuletos. Contra o medo. Contra a ausência. Contra o desconhecido.
Thena respirou fundo, como quem finaliza uma oração muda. Organizou tudo de novo. Um a um, os objetos voltaram às malas com a delicadeza de quem lembras guardas, não apenas importados. Porque, naquele pequeno arsenal de afeto e previsão, morava uma certeza inabalável:
Eles partiriam juntas.
E partiriam inteiras.
Chapter 21: Κεφάλαιο 13
Chapter Text
Cibele permanência de pé, uma figura talhada em mármore claro sob a luz azulada do terminal. Os braços cruzados como notas, o queixo rígido como sentença. Observava de soslaio — nunca diretamente — a filha ajoelhada junto ao cão. A cena à sua frente era, para ela, um desfile grotesco de fragilidades e tentativas patéticas de controle. E ainda assim, havia algo de inquietante ali. A forma como Hela acariciava Garm com precisão ritmada. A maneira como sua atenção parecia afundada em cada dobra de pelo, como se o mundo se desenrolasse ali — e não à volta.
A voz de Cibele, quando surgiu, foi como uma navalha deslizando sobre o gelo fino. Fria. Contida. Sem nenhuma hesitação ou compaixão:
— Nunca pensei que você fosse tão metódico. Sempre imaginei que essa sua “caótica” fosse só pose. Mas… parece que finalmente encontrei um jeito de se organizar. Ou será que é só para impressionar?
Hela atrai os olhos lentamente, como quem emerge de um mergulho profundo. A expressão era calma, mas densa, como uma superfície de água que esconde correntes. Absorveu cada sílaba como se fosse aço batendo contra o peito, mas não cedeu. O silêncio inicial era mais eloquente do que qualquer resposta imediata.
— Isso não tem nada a ver com impressionar — respondi por fim, com uma tranquilidade que ardia. — É só... necessário.
Naquela pausa, morava um mundo inteiro.
Cibele avançou um passo. O som do salto ecoou como um prego cravado no chão. Ela não baixou a guarda, nem a voz. — Necessário, é? Ou só uma disfarce para fugir de quem você realmente é? Sempre achei que sua desordem fosse apenas reflexo de sua alma — incontrolável, indomada. Agora parece que você está tentando controlar tudo para não se despedaçar.
Hela piscou devagar. A respiração desceu pelo peito como uma maré que resistia à força da lua. Sua mão ainda se move no dorso de Garm, como se aquele toque a mantivesse inteira. A resposta que eu queria dar — crua, amarga, explosiva — foi engolida como veneno. E depois decantada em algo mais puro.
— Talvez eu esteja cansada de me perder — disse, com honestidade nua. — Cansada de ser definida pelo que os outros veem, e não pelo que eu sou.
O que Cibele fez em seguida não foi sorrir. Foi mostrar os dentes. Um esgar frio, um traço fino de desprezo decorando o rosto feito uma assinatura de escárnio.
— Você sempre será a mesma aos olhos deles. A caótica. Um exagero. A que fala demais. O resto é só verniz.
Silêncio.
Então Hela se clamou. Devagar. Sem pressa, sem hesitação. Carregava a caixa de transporte com firmeza serena, o peso da fala da mãe já não alterando o eixo de seu corpo.
— Pode continuar achando o que quiser. Eu não vivo para ser a sua aprovação.
As palavras caíram com o peso exato. E a ausência de raiva nelas doeu mais do que gritos.
Cibele virou o rosto, o nariz levemente empinado, como quem desdenha até o chão onde pisa.
— Veremos quanto tempo essa sua "nova postura" vai durar — murmurou, já de costas, como quem cospe por sobre o ombro. E foi. Rígida, elegante, amarga como ferro sob a língua. Ao lado de Zuras, mas a anos-luz de qualquer empatia.
Hela permaneceu. Parada. Firme. Respirava como quem puxa ar de outra dimensão.
Foi então que Garm, até então imóvel, ergueu a cabeça. Orelhas voltadas para frente, olhos atentos como lâminas verdes. O rosnado que veio de sua garganta foi contido, grave, ancestral. Não era ameaça — era justiça. Não foi raiva. Foi princípio.
Aquele som fez o ar vibrar.
Cibele parou. O corpo girou rápido, quase ofendida. Olhou direto para Thena, buscando nela algum tipo de reprovação, de reparo. Queria vê-la assumir o papel que sempre esperou que ela cumprisse: o de mediadora. A deusa serena. A mulher responsável. A esposa que apazigua.
Mas Thena não ergueu os olhos. Continuou com os documentos, imperturbável, as mãos firmes como se estivesse dissecando a anatomia de uma guerra. Os olhos fixos no papel. Os lábios cerrados num traço reto. O silêncio dela foi mais afiado do que qualquer resposta: que seja assim. Que doa nela como doeu em nós.
Hela não disse uma palavra. Nem uma sílaba.
Em vez disso, ajoelhou-se novamente, abrindo os braços para Garm, que se encaixou contra ela com a docilidade de um lobo domesticado pelo amor. As patas subiram até seu colo. O peito largo pressionou o corpo dela como se pudesse conter as rachaduras invisíveis. E o rosto de Hela se afundou naquele pelo denso como quem se abriga de uma tempestade.
Ali estavam os dois. Alma e escudo. Ferida e sentinela. Um pacto formado em silêncio.
E foi nesse instante — com o terminal iluminado por uma madrugada pálida, o ar ainda pesado de tensão e ternura soterrada — que algo inesperado aconteceu.
Zuras sorriu.
Não um sorriso pleno. Não um sorriso de alívio. Mas um traço torto, cansado, resignado. Um reconhecimento silencioso. Os olhos abaixaram-se como quem vê a filha da filha e percebe: ela não se perdeu. Ela não foi apagada. Apenas mudou o modo de incendiar o mundo.
Thena viu.
E por um breve momento, os documentos cessaram. O olhar dela encontrou o do pai, e ali houve um pacto. Um acordo ancestral sem palavras:
Ela vai aguentar.
Ela está pronta.
E o dia — aquele que carregava nos ombros o peso de uma despedida, o frio de uma travessia, o eco de uma ruptura — ainda nem havia começado.
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05:45
Thena olhou o relógio: faltavam exatas 4 horas e 15 minutos para o voo. O tempo, naquele instante, parecia elástico — esticando-se preguiçosamente entre os segundos, como se o universo respirasse em câmera lenta — mas ela sabia, com a precisão adquirida por quem atravessou fusos horários suficientes para entender o que é ilusão e o que é urgência, que aquilo não duraria. O tempo não respeita contemplações. Ele engole as pausas.
Ela se ergueu com fluidez, como quem recoloca o eixo interno no lugar depois de se permitir fraquejar por um instante. Ajustou o peso do casaco nos ombros e caminhou até Hela com passos firmes, mas silenciosos, como se não quisesse interromper, apenas chegar perto. Quando parou ao lado dela, ainda ajoelhada com Garm, apoiou a mão com leveza no ombro da companheira. Um gesto pequeno. Sutil. Mas cheio de intimidade — o toque de quem chama de volta alguém que está metade dentro de um sonho, metade dentro de si.
— Precisamos começar. — disse, com aquela voz que não precisava se impor para ser ouvida. Sem pressa, sem urgência, mas com firmeza suficiente para ancorar. Era o tom que Thena reservava para as situações em que o amor precisava sair da esfera do sentimento e atuar no mundo real: coordenar, guiar, cumprir horários, proteger.
Hela não respondeu de imediato. Permaneceu por alguns segundos com a testa repousada no pelo de Garm, olhos fechados, os braços envoltos em silêncio. Era como se estivesse absorvendo tudo: o cheiro morno do cão, a textura irregular do pelo, o calor que se desprendia daquele corpo que conhecia seu cheiro mais do que qualquer outro. Era um momento de transcrição: ela gravava tudo na memória sensorial — como quem tenta estocar consolo para os dias em que tudo faltar.
Quando finalmente ergueu o rosto, os olhos estavam mais calmos. Mas mais brilhantes também. Havia algo ali que beirava o choro, mas sem escorrer. Não era tristeza — era reverência. Uma reverência muda por tudo que tinham vivido até aquele minuto. O passado recente ainda grudava nelas como pólen.
Ela se levantou com lentidão. Os joelhos estalaram num som seco que ecoou suave no saguão ainda meio vazio. Não se incomodou. Estava velha. Estava viva. Estava cansada — mas inteira. Acariciou a testa de Garm mais uma vez, os dedos arrastando-se devagar entre os olhos dele e depois ficando suspensos no ar por um segundo, como se hesitassem em deixar ir.
— Vamos mostrar que você é o cachorro mais civilizado da Grécia. — sussurrou, com um sorriso torto que misturava ternura, sarcasmo e um fundo de cansaço melancólico.
Garm se levantou com dignidade quase ritual. Esticou o pescoço, bocejou longamente, e abanou o rabo em movimentos amplos, porém preguiçosos. Era como se seu corpo soubesse: a pausa acabou. Era hora de ceder à contenção. De ser apenas mais um passageiro obediente.
Do outro lado da poltrona, de dentro da caixa de transporte rígida, Argus soltou um miado longo, lamurioso e deliciosamente afetado — o som ofendido de um ser noturno que fora arrancado de seu trono invisível. Sua voz felina cortou o ar com leveza e ironia, como quem protesta por dever estético, não necessidade.
Thena se abaixou diante da caixa sem pressa. Abriu uma pequena fresta com os dedos e murmurou:
— Você também vai aguentar, meu pequeno príncipe.
Ela disse isso com o tom exato que guardava só para os felinos: uma frequência íntima, baixa, ritmada, feita para atravessar grades e alcançar alma. Argus, com olhos semicerrados de prazer, aproximou o focinho das frestas e roçou contra os dedos dela. Um ronronar discreto se espalhou, quente e sincero. O tipo de som que lembrava manhãs preguiçosas, janelas embaçadas, cobertores pesados e um lar onde tudo era morno e controlado.
Enquanto isso, Hela se aproximou da mochila. Seus dedos encontraram com precisão o zíper certo. Tirou de lá o bebedouro dobrável azul-marinho, puxou o copo embutido e despejou uma pequena quantidade de água fresca. Ajoelhou-se novamente e colocou o recipiente diante de Garm. Ele bebeu com lambidas medidas, constantes. O som úmido das lambidas enchia o silêncio como um metrônomo animal, marcando aquele tempo dilatado.
Cada gota que respingava no chão de pedra reluzia sob a luz do saguão como pequenos cristais. E por um instante, o mundo parecia girar ao redor daquele som — úmido, sereno, presente. O som da vida funcionando.
Depois de beber, Garm ergueu os olhos para Hela. Um olhar inteiro. Presente. Sem distrações. Era como se dissesse: “Estou com você. Ainda estou com você.” Ela respondeu com um leve toque na testa dele e, então, deu início ao ritual do retorno à caixa.
Abriu a portinhola. Primeiro, encaixou o cobertor velho e roído, já moldado pelo corpo do cão, como uma concha moldada à forma de sua pérola. Depois, o brinquedo amarelo de borracha, velho conhecido, que ainda rangia quando apertado. Por fim, tirou de um bolso interno um pano de algodão umedecido com lavanda. Passou com cuidado pelas patas de Garm, uma a uma, com movimentos circulares, quase reverenciais. O cheiro se espalhou com delicadeza — um aroma de jardim doméstico, de varanda ao entardecer. Um cheiro que, naquele lugar asséptico, parecia um fragmento de casa resgatado à força.
Não era só higiene. Era cuidado. Era amor traduzido em gesto.
E então, com o pano ainda na mão, Hela falou:
— Fala.
A palavra veio sem enfeites. Era uma pedra colocada no centro da conversa. Não gritou. Não endureceu a voz. Mas o ar ao redor pareceu mudar de densidade. Era o tom que ela usava só em duas situações: quando julgava almas. Ou quando estava profundamente ferida. E agora, não havia ninguém para julgar.
Thena parou.
Ela soube imediatamente. Aquilo não era só uma pergunta. Era um chamado. Ou talvez, um último aviso. Um espaço entre elas se abriu — não físico, mas emocional. Um silêncio cheio de passado, de intenções não ditas, de dias em que o amor precisou esperar atrás da porta.
— Se não for dizer nada, podemos prosseguir? — Hela continuou, o tom ainda firme, quase brando. Mas havia um novo peso em cada palavra, como pedras colocadas sobre a mesa uma a uma, para ver se alguém as reconhecia. Não era acusação. Era constatação.
Ela não olhou diretamente. Nem precisou. A postura estava reta, mas os ombros levemente tensionados. O maxilar firme. O olhar fixo em algum ponto adiante, como se não confiar no próprio rosto fosse mais seguro que enfrentá-lo.
O que doía ali não era a dureza da frase, mas o esforço imenso que ela vinha contendo há dias para não pronunciá-la.
Thena, ainda ao lado da caixa de Argus, apoiou a mão no joelho e se ergueu devagar, como quem carrega nas articulações não apenas o peso do corpo, mas da ausência de palavras. Ajustou a blusa de lã sob o sobretudo, respirou fundo, olhou nos olhos de Hela.
— Eu… não queria que começasse assim. — disse, por fim, com honestidade nua. — Com essa distância. Com esse muro. Como se a gente tivesse virado… logística.
A confissão caiu entre elas como algo quente sobre mármore gelado.
Hela desviou o olhar por um instante. Observou a poça d'água onde Garm havia bebido. O reflexo da lâmpada oscilava ali como um coração batendo em líquido.
— Eu não tô cobrando nada, Azura. — disse com secura controlada. — Tô perguntando se você ainda tá aqui. Comigo. Ou se já se mudou pra onde a gente nem chegou. E esqueceu de me avisar. Porque acha que eu só vou atrasar você.
Era só isso. Mas o mundo pareceu fazer silêncio.
O que havia ali não era mágoa apenas. Era medo. Medo de não caber mais. Medo de ser só mais uma bagagem no embarque de alguém que ama o depois mais do que o agora.
— Vamos. — ela completou. — Quero despachar o Garm e entrar naquele avião o quanto antes.
E então virou o corpo com lentidão, como quem termina de fechar uma porta — não com raiva. Mas com dor.
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Thena não respondeu de imediato. Ficou ali, imóvel, como quem havia acabado de ouvir o som de um vidro se partindo em algum cômodo da casa — um estalo pequeno, mas que reverberava em todas as paredes internas. A dor de Hela não era uma surpresa. Era uma presença que ela vinha tentando não encarar de frente, ocupada demais com reservas, escalas, rotas, previsões meteorológicas, protocolos de transporte animal. Era mais fácil agir do que sentir. Mais fácil controlar do que abrir espaço.
Mas agora, com Garm já acomodado, com o cheiro de lavanda ainda suspenso no ar e o mundo despertando lá fora em silêncio de pedra, já não havia onde esconder.
Ela foi atrás de Hela. Um passo. Depois outro. Cada um atravessando não o chão polido do aeroporto, mas o espaço entre duas vulnerabilidades antigas.
— Ei. — disse baixo. — Não faz isso.
Hela não parou. Mas também não acelerou.
Thena aproximou-se o suficiente para que sua voz não precisasse vencer distância.
— Eu não me mudei. Não me afastei. Eu... só estou tentando manter tudo de pé. Mas às vezes, no meio disso, esqueço de sentar no chão com você. De me sujar com o que você sente. E você tem razão: isso machuca. Você não é bagagem. Você é o motivo da viagem. Sempre foi.
Aquelas palavras, ditas com a voz rouca de quem já não tinha armaduras, fizeram Hela parar. Lentamente. Os ombros ainda tensos. O rosto ainda virado. Mas o passo suspenso — e isso, para Thena, já era um início.
Ela se aproximou mais. Estavam quase encostadas.
— Você me conhece. Sabe que quando as coisas apertam, eu viro um sistema. Um plano. Um escudo. — Thena falou num fio de voz. — Mas não é porque deixei de te amar. É porque eu tenho pânico de te perder no caos. Então eu tento segurar tudo. Só que, no processo… acabo soltando você.
Hela fechou os olhos. A respiração vacilou, como uma onda que hesita antes de quebrar.
— Você não precisa me salvar do caos, Thena. — disse por fim. — Eu sou o caos. Eu só queria... que você estivesse nele comigo. Não do lado de fora. Não no controle. Aqui. Comigo. Com medo, talvez. Mas junto.
Thena assentiu. Não disse nada por alguns segundos. Depois estendeu a mão. Tocou a ponta dos dedos nas costas de Hela, entre as omoplatas.
— Vamos logo despachar o Garm. — o tom de Hela deixava evidente para Thena que ela não queria conversar, pelo menos não ali.
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Zuras e Cibele permaneciam ali, cada um segurando uma mala — não por necessidade prática, mas como se o peso físico lhes servisse de contrapeso ao desconforto invisível que vibrava ao redor. O ambiente parecia espesso, como se o próprio ar carregasse vestígios de mágoas mal resolvidas e verdades suspensas. Eles estavam próximos o suficiente para assistir, mas longe demais para participar — e isso era exatamente como deveria ser.
Zuras, com os olhos semicerrados, observava em silêncio. O corpo ereto, mas a mão direita crispada na alça da mala, revelava uma tensão que ele não permitiria se manifestar no rosto. Havia algo de resignado em sua postura — não cansaço, mas lucidez. Ele compreendia, com o tipo de compreensão que vem tarde demais, que algumas feridas não cicatrizam com a simples presença de um pai. Era tarde para desfazer o que o silêncio cultivou. E, agora, tudo o que lhe restava era assistir — com um orgulho discreto por Hela, e um arrependimento calado por nunca tê-la defendido o suficiente.
Cibele, por outro lado, exalava outra temperatura. A mala ao lado do corpo era apenas um disfarce para o que lhe fervia internamente. O maxilar tenso, os braços cruzados e os olhos semicerrados deixavam claro: o que ela sentia não era culpa. Era incômodo. Desprezo, talvez — não pelo que acontecia diante dela, mas pela forma como as coisas haviam se deslocado do seu controle.
Ela assiste à cena entre Hela e Thena com um desprezo contido, quase elegante, mas impossível de disfarçar. O olhar que lançou à filha não era de ternura, nem mesmo de censura: era um aviso silencioso, como quem disse “escolhas têm consequências”. E quando Garm rosnou mais cedo para ela, como se tivesse farejado o que nem os deuses ousam dizer em voz alta, Cibele apenas recuou um passo — não por medo do cão, mas pelos incômodos de se ver desmascarado por algo tão visceral.
O que a irritava profundamente era perceber que Hela havia mudado. Não se curvava mais. Era sóbria, metódica, eficiente. Estava… maduro. Forte. Em silêncio, Cibele sentiu o terreno escorregadio sob os próprios pés. A mulher que ela sempre tratou como um erro persistente agora parecia uma fortaleza — e o pior, era uma fortaleza que Thena amava com cada gesto. Isso, para Cibele, era intolerável.
Ela abriu os braços ao redor do próprio corpo. Seus olhos correram pelos documentos que Thena organizou, pelas caixas dos animais, pelas malas etiquetadas. Cada detalhe gritava que aquela viagem era séria. Que era real. Que era definitivo.
Do lado, Zuras soltou um leve suspiro. Era quase imperceptível, mas Cibele o pegou. E lançou um olhar duro ao marido, como se dissesse “não comece”. Zuras apenas abaixo dos olhos. Ele conhecia aquele olhar. E já não queria discutir. O que foi feito, foi feito.
O terminal seguiu vivo, mas à sua volta tudo parecia suspenso no tempo. Passageiros passavam apressados, arrastando malas com rodas ruidosas, alto-falantes anunciavam embarques em diversos idiomas, crianças choravam ao fundo. Mas para aquele pequeno grupo, tudo parecia congelado. Uma moldura invisível contornava as duas mulheres ao centro — Hela e Thena — e o cão que as unia como elo silencioso.
Cibele sentiu-se aquela imagem. E odiava isso.
Ela não tinha lugar ali. Não como queria. E mesmo se tivesse, não saberia mais o que dizer.
Zuras, em silêncio, observava Hela. Vê-la ajoelhada diante do cão, vê-la firme mesmo ferida, organizada mesmo cansada, calada mesmo com o coração em ruínas... tudo isso lhe despertava um orgulho seco. Um orgulho que vinha misturado com vergonha: ele sabia que poderia ter sido o pai que ela precisava. Mas escolhi o conforto do silêncio. Agora, olhei para a filha que resistiu a tudo — inclusive a eles — e compreendeu o preço da omissão.
Por fim, Cibele virou o rosto. Não por cansaço, mas por orgulho. Recusava-se a ver aquela mulher — que tantas vezes desdenhou — algo que agora se aproximava perigosamente do respeito. E isso, ela não estava pronta para conceder.
Chapter 22: Κεφάλαιο 14
Chapter Text
Hela mudou à frente com a expressão de quem já decidiu que, dali em diante, não olharia mais para trás. Cada passo ecoava alto no saguão ainda meio vazio, ritmado, meticuloso, quase militar — como se a firmeza dos calcanhares no chão polido fosse o único modo de conter o que não podia machucar dentro dela. A alça da mochila escorregava pelo ombro, mas ela não a reajustava; o desconforto físico era pequeno diante da maré de silêncio emocional que atravessava.
Na mão direita, a caixa de Garm — rígida, segura, pesada. O som seco e repetido do plástico sendo arrastado no piso era uma batida surda que marcava sua marcha: não a marcha da partida, mas a da contenção. Aquilo não era pressa. Era disciplina.
Atrás dela, um funcionário do aeroporto, trajando colete azul e crachá suspenso ao pescoço, caminhava com a eficiência silenciosa de quem já lidou com centenas de rostos angustiados. Ele falou em inglês rápido, bem treinado, com sotaque denso de Atenas e um tom automatizado:
— O despacho de animais com mais de oito quilos é feito no terminal de carga viva. — disse, sem alterar o tom. — Após a verificação de peso e raio-x, ele será encaminhado para climatização e acomodação. Fica em compartimento pressurizado, com temperatura e oxigênio controlados. Absolutamente seguro.
Hela não respondeu. Nem assentiu. Continuou andando.
Thena vem atrás, a alguns passos de distância. Um abismo. Sentia os pés mais pesados a cada metro percorrido. O impulso de chamar por Hela a atravessava como um espasmo, mas ela se calou. Sentia a garganta apertada com o tipo de nó que não se desfaz com palavras. Era uma angústia gelada — e, agora, constante. Notou que seus dedos estavam dormentes. A mão que segurava a pasta de documentos de Argus estava quase branca. A outra, fechada num punho miúdo, tremia como se contivesse o peso de algo muito mais fundo que um mal-estar passageiro.
Ao cruzar a divisória de vidro, a atmosfera mudou.
O corredor seguinte tinha um cheiro estranho: ozônio e tinta acrílica, misturados ao ar seco e gelado que saía por difusores escondidos. Era um lugar sem cor definido — tudo branco, prata, azul-claro. Um limbo.
Do outro lado da pequena sala, um segundo funcionário os esperava com um tablet nas mãos, sem levantar os olhos.
— Nome do animal? — Disse, seco.
– Garm. — respondeu Hela, com voz firme, mas baixa. - GARM.
— Raça?
— Rottweiler.
Sem comentar, o homem digitou rapidamente e apontou para a balança, onde uma esteira curta esperava imóvel.
Hela abaixou a caixa com cuidado. Garm, lá dentro, dorme em silêncio absoluto. Seu olhar a sons o tempo todo — olhos profundos, escuros como minerais polidos, cheios de uma compreensão ancestral. Ele sabia. Sabia que era uma separação. Sabia que ela estava se despedindo sem dizer adeus.
Quando a caixa tocou o piso metálico da balança, ela emitiu um clique baixo. A viseira brilhou.
Peso aceito. Caixa aprovou. Temperatura ideal.
— Quer incluir algum objeto pessoal dentro? — perguntou o funcionário, já pegando as etiquetas fluorescentes.
Hela abriu o zíper da mochila e retirou uma camisa. Era uma das suas mais antigas — algodão cinza, já esgarçado, com a gola ligeiramente torta. Tinha o cheiro dela: madeira, suor, lavanda, sangue e chuva. Era o tipo de cheiro que só quem ama reconhece com o coração.
Ela dobrou a peça com lentidão. Passou os dedos sobre a estampa desbotada do tecido — um símbolo viking quase invisível de tanto uso. Depois, empurrou-a com cuidado pelas grades da caixa. Garm cheirou, deitou-se sobre ela e então pousou o focinho sobre as patas. Seu suspiro foi tão audível quanto um lamento. Um pedido. Uma promessa.
Thena, que havia parado perto da parede, só se aproximou quando viu que o funcionário se afastava.
— Vai querer que eu fique até o último segundo? — perguntou em voz baixa.
Hela não respondeu. Nem se virou. Mas Thena viu, mesmo de lado, o brilho nos olhos da esposa — um brilho espesso, pesado, feito de raiva contida, afeto esmagado, e um tipo de dor que não fazia barulho. Ela conhecia aquele olhar. E saber que Hela o usava com ela era uma dor em si.
— Ele vai ficar bem. Eu prometo. — disse Thena, mas sua voz não carregava mais a segurança de sempre. A promessa soou tênue, pálida. Porque no fundo, ela não sabia mais o que podia garantir.
Garm moveu a cabeça, encostando o focinho na grade. Esperava algo. Qualquer coisa.
Hela se agachou. Os joelhos estalaram. Os ossos, cansados. Mas ela manteve a postura firme. Encostou os lábios na parte metálica da caixa, como se beijasse um altar sagrado, e murmurou em norueguês antigo, quase inaudível:
— Du er min sønn. Min vokter. Mitt hjem i mørket. Jeg kommer. Jeg lover.
(Você é meu filho. Meu guardião. Meu lar na escuridão. Eu vou te encontrar. Eu prometo.)
E então a esteira começou a andar.
A caixa deslizou devagar, depois sumiu por uma abertura retangular no fundo da sala, engolida pela engrenagem do aeroporto.
E o mundo pareceu parar de respirar.
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O silêncio que se seguiu era espesso, quase sólido — um tipo de vazio que não vinha da ausência de som, mas da saturação de tudo o que não fora dito.
Hela permaneceu ajoelhada por mais um instante, mesmo depois que a caixa desapareceu. Os olhos fixos no vão por onde Garm sumira, como se o mundo pudesse rebobiná-lo se ela olhasse o suficiente. O corpo inteiro parecia travado — não por dor, mas por reverência. Era como se algo sagrado tivesse sido arrancado, e o chão à sua frente fosse agora um campo de luto silencioso.
Thena a observava com o peito colapsando por dentro. Cada gesto de Hela era um reflexo de tudo que ela tentava conter: o abandono ancestral, o medo infantil, a raiva adulta e a exaustão divina. E ao vê-la ali, ajoelhada como quem reza num templo que ninguém mais reconhece, Thena entendeu — com um nó engasgado e irreversível — que nada que ela dissesse traria alívio. Hela estava sozinha naquele tipo de dor.
Quando finalmente se levantou, Hela moveu-se com uma solenidade quase ritual. As mãos deslizaram pelas coxas, retirando fiapos imaginários da calça escura. Endireitou os ombros, inspirou fundo, e virou-se lentamente. O rosto não exibia lágrimas, mas os olhos… os olhos eram um campo de batalha depois da guerra.
— Vamos. — disse, seca. Como se cada letra pesasse mais do que conseguia carregar.
Thena assentiu, quase imperceptivelmente, e começou a acompanhá-la sem tentar tocá-la. Caminhavam juntas, mas separadas por uma parede invisível — aquela que só os desentendimentos silenciosos constroem.
Ao sair da sala, o mundo voltou a girar. Alto-falantes gritavam embarques, carrinhos de bebê zumbiam como abelhas errantes, vozes misturadas falavam grego, inglês, francês. Mas elas estavam isoladas — como se o luto tivesse erguido ao redor delas uma cúpula transparente onde o tempo desacelerava.
Do outro lado do saguão, Zuras e Cibele ainda estavam no mesmo lugar. O primeiro, rígido; a segunda, agora com os braços abaixados, mas os punhos fechados com força. Ambos observaram a aproximação das duas mulheres como quem assiste a algo inevitável — não por curiosidade, mas por obrigação emocional.
Hela passou por eles sem parar. A postura reta, a cabeça erguida, mas os olhos… os olhos não se moveram em direção alguma além da porta à frente. Era a marcha de quem só reconhece o que vem adiante porque atrás já não há nada a buscar.
Zuras deu um passo à frente, hesitou. As palavras subiram pela garganta e morreram atrás dos dentes. Cibele apertou a mala com mais força. O maxilar travado, os olhos duros. Nenhum deles disse uma palavra.
Até que, ao passarem por eles, algo aconteceu.
Argus, que até então estava quieto em sua caixa transparente, emitiu um som — um trinado baixo, choroso, como um pássaro que sente a ausência do cão. Era uma saudade ancestral, simples e devastadora. Um lamento curto, mas que cortou o ar como um estilete.
Hela parou.
Não virou-se. Não falou.
Mas o corpo inteiro reagiu com um pequeno tremor. Os ombros oscilaram. A respiração falhou.
Thena pousou a mão em suas costas. Era um gesto delicado, quase invisível, mas não neutro. Era toque de quem não tenta consolar, mas apenas lembrar: “eu estou aqui”.
E Hela, por fim, deixou a cabeça pender por um segundo. Um único segundo. Como se abrisse uma brecha no escudo. Um instante humano demais para ser ignorado. Pequeno, mas monumental.
Então voltou a andar.
Com passos firmes.
Mas agora... um pouco menos sozinha.
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— Eu vou ao banheiro. — disse Hela, de súbito, com a voz seca como pedra rachando ao meio.
Não esperou resposta.
Virou-se com brusquidão contida, os passos firmes demais para quem carregava o peito despedaçado. Cruzou a sala de despacho sem olhar para trás, deixando Thena ao lado da esteira já silenciosa, onde Garm desaparecera como um segredo enterrado. Ao fundo, os alto-falantes sussurravam em diversos idiomas, anunciando embarques e partidas, mas para ela tudo soava como ruído branco, distante, irrelevante.
Tinha visto. Viu perfeitamente. À esquerda, surgindo com uma lentidão ofensiva, estavam Zuras — em seu eterno esforço de parecer sereno, com as mãos no bolso do sobretudo — e Cibele, com a boca levemente repuxada e os olhos varrendo o saguão à procura da filha, como quem busca uma chave esquecida, e não uma pessoa com alma. Era sempre assim: Cibele jamais olhava para Hela primeiro. Nem quando a via chorar. Nem quando ela chegava sozinha às festas. Nem agora.
Hela não queria enfrentá-los. Não com os olhos ainda marejados do adeus que dera a Garm. Não com o rosto quente pela raiva que carregava presa entre as costelas havia meses. Anos.
O banheiro feminino parecia um refúgio, mas não oferecia abrigo. Os azulejos bege refletiam a luz fria e morta, e o zumbido do exaustor soava como uma lembrança do cansaço que ela sentia por dentro. Havia ali uma mulher mais velha secando o rosto com lenços de papel, outra limpando uma pia com movimentos automáticos. Ninguém a olhou. E isso era um alívio.
Hela caminhou até o canto mais afastado, encostou-se na parede fria e fechou os olhos.
O tremor tomou os dedos primeiro. Depois os ombros. O maxilar estava contraído, como se mastigasse a própria língua para não gritar. Encostou a testa no azulejo úmido, quase com fúria, e prendeu a respiração. Sentia-se à beira do colapso. E ainda assim, intacta. Porque sabia: não podia cair. Não diante deles.
Ela se obrigou a sussurrar algo só para ouvir sua própria voz. Um som qualquer que quebrasse aquele silêncio:
— Merda.
Abriu os olhos devagar e encarou o próprio reflexo no espelho de aço escovado. A imagem que viu não a surpreendia: olheiras fundas, o olhar denso de quem dormiu mal por mais do que uma noite, e os lábios trincados. A pele estava pálida sob a luz fluorescente, mas havia um brilho nos olhos — não de choro iminente, mas de alguém que suportou demais por tempo demais.
Ela ajeitou o casaco com dedos trêmulos. Respirou fundo. E então saiu, como se tivesse acabado de colocar uma armadura sobre os ossos.
Do lado de fora, Thena permanecia imóvel. A esteira por onde Garm partira estava agora vazia, fria, esquecida. O vazio do lugar parecia refletir o vazio entre elas — não o tipo de espaço que pode ser preenchido com um abraço, mas sim o tipo que exige reconstrução centímetro a centímetro, dia após dia.
Ela não fora atrás de Hela. Não por negligência. Mas porque, pela primeira vez, soube que seu toque talvez não fosse mais bem-vindo.
Ouviu os passos de Zuras antes mesmo de vê-lo. Reconhecia o ritmo contido, o esforço para não parecer hesitante. Mas foi a voz de Cibele que a atingiu como um sopro gelado:
— Ela não perdeu tempo, né? Já se afastou.
Thena virou o rosto lentamente.
Cibele estava ali, com o queixo erguido e a expressão impassível. Seus olhos eram duros. O tipo de dureza que se disfarça de civilidade, mas que nunca foi neutra. Não havia tristeza, nem arrependimento em seu olhar. Só desprezo. Um desprezo elegante, cultivado com cuidado, e perfeitamente articulado nos silêncios de anos.
Zuras permaneceu quieto. Como sempre fazia quando Cibele decidia falar.
— Vim só pra me despedir de você, Thena. — ela continuou, com a voz baixa, mas com o veneno bem dosado. — Dela, não precisa.
Thena apertou os lábios. Sentiu algo se partir dentro do estômago.
— Ela foi respirar. — respondeu, por fim, com a calma forçada de quem não queria começar uma guerra ali. — É o mínimo que vocês deviam permitir.
— Nós sempre permitimos tudo. — Cibele rebateu, rindo com escárnio. — A questão é: quando ela vai permitir que os outros também existam?
Zuras pigarreou. Desviou os olhos.
Mas Thena manteve-se firme. Os dedos apertavam com força a pasta de documentos contra o peito. Era quase um gesto de contenção: uma tentativa de não voar na jugular da própria mãe.
— Ela não precisa permitir que vocês existam. — disse, então, sem elevar a voz. — Vocês sempre existiram. O problema é que nunca permitiram que ela existisse.
O silêncio que se seguiu foi absoluto.
Cibele franziu os lábios. Os olhos semicerraram. Por um instante, pareceu prestes a rebater — mas algo em Thena a deteve. Talvez o tom. Talvez a firmeza. Ou talvez a verdade crua, indigerível, daquela frase.
Thena olhou para os dois — a mãe ereta demais, rígida demais; o pai desconfortável e calado. Sentia-se cansada de ocupar esse lugar entre eles, como uma ponte sobre um abismo que ninguém queria atravessar.
— Ela tá indo embora comigo. — continuou, a voz embargada. — Mas hoje... hoje parece que ela vai sozinha.
Cibele apertou a bolsa contra o corpo, como se contivesse uma resposta agressiva. Mas Thena não esperou.
— Eu preciso consertar o que destruí. — murmurou. — Vocês deviam tentar fazer o mesmo.
E então se virou. O casaco voando em torno das pernas com o movimento decidido.
Zuras permaneceu ali, cabisbaixo.
Cibele cruzou os braços, o rosto rígido.
Mas Thena já não olhava para trás.
Ela caminhava rápido, determinada a reencontrar Hela.
Determinada a provar que, mesmo tarde, ainda podia aprender a amar do jeito certo.
E foi nesse instante — nesse exato instante em que Thena sumia corredor adentro, engolida pela luz azulada do saguão — que Zuras, pela primeira vez em muitos anos, pareceu mais velho do que era.
A postura que sempre fora ereta pela nobreza agora dobrava sob um peso que não vinha dos ombros, mas do que não disse. Cibele, ao seu lado, ainda sustentava o queixo alto, o olhar fixo em nada, como quem segura um castelo nos dentes. Mas a rigidez de sua mandíbula não era mais elegância: era defesa. Era pânico disfarçado.
— Isso foi desnecessário. — murmurou Zuras, por fim.
— Não. — respondeu Cibele, a voz baixa, mas gélida. — Foi verdadeiro.
Mas até ela sabia que não era.
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Hela estava sentada no chão frio da cabine adaptada para pessoas com deficiência, com as costas escoradas na divisória metálica, o corpo curvado numa concha defensiva. Os joelhos trazidos junto ao peito, braços envolvendo-os com uma força trêmula, como se quisesse se proteger do próprio peso. A luz branca da luminária central pingava pelas frestas estreitas do batente da porta, formando um feixe incisivo — quase acusatório — que atravessava o espaço reduzido, iluminando partículas de poeira suspensas no ar, o reflexo da respiração pesada e do silêncio sufocante.
O piso de cerâmica era cruelmente frio, aquela espécie de frieza hospitalar que parecia querer afastar qualquer vestígio de calor humano. Hela deixava que o frio subisse pela calça jeans, aos poucos, como um punhal gélido que distraía, ainda que pouco, o turbilhão que se debatia dentro dela. Aquele gelo era quase um aliado — uma dor tangível, palpável, para competir com as dores invisíveis que a consumiam.
Lágrimas formavam-se, estagnadas nas bordas dos olhos. Não escorriam, não caíam. Presas como soldados que aguardam uma ordem que nunca virá. Aquele choro represado doía mais que o desabafo, porque o que sufoca não liberta — apenas aprisiona.
Hela apertava as mãos contra o tecido áspero da calça, os dedos segurando o polegar que girava compulsivamente um anel de prata no dedo médio. Um movimento automático, repetido vezes demais, como se o ato de girar o anel fosse um mantra para lembrar a si mesma quem ainda era. Para não desaparecer por completo sob o peso do silêncio e da ausência.
Ela queria sumir, se fosse possível. Mergulhar naquele frio, naquela escuridão branca da cabine, e ficar invisível. Mas não podia. Não ainda.
Foi então que a voz veio, vinda do lado de fora.
— Hela… — chamou Thena, num tom tão baixo, tão cuidadoso, que parecia um sussurro depositado no ar, uma presença delicada aliada àquela dor que ainda não tinha nome.
O som não era invasivo, não batia à porta como uma ordem, não exigia resposta imediata. Apenas existia, como quem oferece companhia para o silêncio.
Hela encolheu-se ainda mais, um animal indefeso diante do som da voz do dono, mas sem saber se seria acolhida ou rejeitada. Puxou os joelhos para mais perto, apoiou o queixo, e respirou fundo, forçando o ar pelas narinas como se tentasse dissolver um peso sólido dentro do peito — uma mistura densa de mágoa, exaustão, e anos de palavras engolidas.
O ar dentro da cabine parecia quase vibrar com o silêncio, e o eco tênue da respiração de Hela.
— Eu sei que você está aí. — continuou Thena, agora com um pouco mais de doçura, se aproximando da porta, quase como se estivesse falando para uma criança assustada. — Não precisa abrir. Não precisa me responder ainda. Só me deixa dizer uma coisa.
O silêncio se prolongou. Hela não se mexeu, mas sua respiração se tornou mais pesada, mais audível.
— Eu errei com você. — a voz de Thena vacilou, quebrando a barreira costumeira da precisão. — Não só hoje, não só agora, mas tantas vezes… e da forma mais cruel: calada.
Hela apertou os olhos, e uma única lágrima escapou, deslizando silenciosa pela face.
— Eu te amo, Hela. — a voz de Thena soou quase como uma confissão, despida da habitual segurança. — E eu sei que isso não basta. Que não reconstrói o que foi quebrado. Eu sei que o amor, às vezes, foi só um escudo frágil, que não te protegeu. Talvez desde o começo.
Cada palavra de Thena era uma faca, cortando o ar frio da cabine, perfurando camadas antigas de dor.
— Você carregou o peso das duas — continuou, a voz embargada, um fio tênue entre a sinceridade e a culpa. — E isso não é justo. Não foi justo nunca.
Hela engoliu em seco, sentindo a garganta apertar como se fosse uma corda sendo esticada ao limite. Encostou a cabeça na parede, as palavras de Thena caindo em sua alma como gotas lentas sobre ferida aberta.
— Eu te deixei sozinha. — confessou Thena, a voz baixando ainda mais, um sussurro quase inaudível. — Quando você foi excluída, silenciada, mal recebida — por pessoas que me viram crescer e que eu devia ter enfrentado por você. Mas eu não tive coragem. Fiquei parada. Com medo. Com preguiça. Com o egoísmo de quem não sabe como romper sem se despedaçar junto. No final, quem quebrou foi você.
O silêncio entre as palavras era tão pesado que poderia ser tocado, um vácuo cheio de arrependimento e mágoa.
Thena encostou a testa na porta da cabine, o metal frio se tornando uma âncora para sua fragilidade.
— Eu não te peço perdão. Não ainda. — disse, num sussurro rouco, carregado de verdade nua. — Só quero que saiba que eu vejo você. Finalmente vejo. Tudo o que você aguentou. Tudo o que tentou, mesmo quando eu fingia que era exagero seu.
Lá dentro, Hela apertou os olhos com força, e dessa vez duas lágrimas fugiram, deslizando juntas como rios silenciosos. O anel de prata continuava a girar, mas os dedos já tremiam.
— Eu não quero mais ser uma visitante na nossa vida. — continuou Thena, a voz agora quase um fio de esperança. — Não quero que você se sinta uma hóspede do meu amor. Você é meu lar, Hela. Mesmo quando eu sou uma dona ruim, que não sabe cuidar direito.
O ar ficou denso, vivo, carregado como a quietude antes da tempestade.
E então veio o som delicado: o clique da maçaneta girando por dentro.
A porta se abriu, só o suficiente para que Thena pudesse ver.
Um par de olhos marejados, um rosto pálido e trêmulo, o orgulho tentando se erguer nas linhas tensas daquele semblante que ela amava como nenhum outro.
— Eu tô cansada. — Hela sussurrou, a voz rouca, baixa, mas cheia de firmeza. — E hoje… só queria que alguém tivesse me protegido.
Thena não respondeu de imediato. Assentiu lentamente, o peito apertado por uma mistura de dor e esperança.
Encostou a mão na lateral da porta, num gesto leve e firme, e falou, com uma calma resoluta:
— Então deixa eu começar agora.
Hela hesitou, o corpo inteiro um campo de batalha entre a vontade de se fechar e o desejo de se entregar.
Finalmente, ela abriu a porta completamente.
O rosto de Hela relaxou, mesmo que só um pouco. O peso no olhar ainda estava ali, a respiração carregada, mas entre elas, uma trégua silenciosa começava a florescer — um pacto invisível feito de ironia e cansaço compartilhado.
Thena estendeu a mão, a palma aberta, um convite sem pressa, sem exigência, mas carregado de significado.
Hela olhou para aquela mão longa, de dedos delicados e pele macia, que parecia dizer sem palavras: “Ainda estamos aqui. Ainda podemos tentar.”
Depois, lentamente, entrelaçou seus dedos nos de Thena.
Saíram juntas do banheiro, passos lentos, compassados, um silêncio que já não era vazio — agora, era companhia.
Enquanto caminhavam de volta ao saguão, Thena desviou ligeiramente para a área dos restaurantes. As luzes amareladas dos letreiros ainda estavam acesas, guardando o calor artificial contra o frio cortante da madrugada.
Com um leve gesto do queixo, Thena apontou para uma lanchonete quase vazia no canto esquerdo.
— Vem. Vamos comer uma moussaká antes do embarque.
Hela parou no meio do corredor, olhando-a com o cenho franzido, a voz rouca pelo choro contido:
— Você comendo moussaká às 6:34 da manhã? Quem é você e o que fez com a minha Thena que me obriga a comer saudável no café da manhã?! Aquela que reclama se eu ponho uma fatia extra de queijo no pão?!
Thena soltou um riso abafado, pequeno e verdadeiro — o tipo de riso que só nasce depois do alívio, depois da tempestade.
Pôs a mão nas costas de Hela, guiando-a com leveza para o balcão.
— Eu sou uma mulher arrependida tentando reconquistar a esposa que quase perdi. — disse com simplicidade, um toque de vulnerabilidade na voz. — E reconheço que, às vezes, você precisa de berinjela gratinada às seis e meia da manhã para não desistir de mim no portão de embarque.
Hela não sorriu de imediato, mas os cantos dos lábios se ergueram devagar, como se seu corpo inteiro, pouco a pouco, decidisse confiar novamente.
Ela encostou o ombro no de Thena enquanto caminhavam, o toque silencioso de uma promessa renovada.
— Mas só se não tiver canela. Se tiver, eu assino o divórcio aqui mesmo.
— Justo. — Thena respondeu, com a sobriedade de quem aceita o castigo. — Mas só depois de comer comigo. Eu pago.
— Você pagando? — Hela brincou, o riso voltando com força.
Thena deu de ombros, com a serenidade tranquila de sempre.
E naquela manhã fria, no meio de aeroportos e despedidas, um novo capítulo começava a ser escrito — delicado, frágil, mas real.
Chapter 23: Κεφάλαιο 15
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Zuras ajustou a alçada da mala mais pesada no carrinho com a calma científica de quem precisa, mais do que qualquer coisa, de uma tarefa física para manter os pensamentos à margem. A couro cedeu sob seus dedos largos, emitindo um estalido abafado, e o rangido do metal reverberou breve, seco, como um sussurro de coisa velha — ou coisa não dita — no saguão espelhado do terminal.
Ao lado dele, Cibele repetiu — pela terceira vez — o movimento de operar as etiquetas coladas nas bagagens. Os nomes estavam todos, impressos em letras designadas, frias e funcionais, como se a formalidade dos dados pudesse encobrir a informalidade dos afetos.
Ela não precisa conferir de novo. Sabia. Sabia os nomes, os destinos, os horários. Mas seus olhos voltavam como quem busca, em vão, alguma rachadura no concreto — uma abertura, um remendo, um eco de pertencimento. Como se, ao ler essas etiquetas, você pudesse encontrar um modo de pertencer à história da qual se decidiu, por tanto tempo, a fazer parte.
Cada gesto que fez — alinhar o carrinho, dobrar o corpo para empurrar, aguardar o bip digital da esteira — era carregado de uma precisão zelosa, mas tardia. Era isso que sabiam oferecer: eficiência. Cuidados logísticos, objetivos. Ó prático. O concreto. Ó protocolar.
Nada lavava o sangue invisível que havia escorrido por anos entre eles. Mas ao menos os ocupava. Ocupava os olhos, as mãos, o corpo — para que a alma permanecesse imóvel, estéril, distante.
Despacharam as malas maiores com a mesma coisa que usavam para evitar assuntos desconfortáveis durante os jantares de família.
Os casacos grossos de inverno, dobrados com exatidão.
Os livros técnicos de Hela, separados por ordem alfabética e amarrados com uma fita bege.
As botas de couro de Thena, resistentes, gastas em lugares frios e terrenos difíceis.
A cafeteira de Oslo, com a qual Hela se recusava a se separar — não pela utilidade, mas pela persistência ritual de manter o mesmo gosto amargo na boca, todos os dias, em qualquer lugar do mundo.
Cada item que deslizava pela esteira era também um retrato involuntário: um traço de vida que tinha ignorado, julgado ou apoiado à distância.
Cuidaram do que estava ao alcance deles.
O que cabe em malas.
O que cabe em regras.
O que poderia ser pesado, escaneado, etiquetado.
O resto — Argus, os documentos, as mochilas de lona desgastadas, a pasta azul de Thena com autorizações, remédios e laudos, a caixa com o cobertor de Garm dobrado e cheirando a lavanda e pêlo velho — sabiam que elas mesmas carregariam. Como sempre.
Porque nunca pediram que fosse diferente.
Porque sabiam que, se pedissem, o máximo que ouviriam seria o som educado do silêncio.
Zuras ainda segurava o carrinho vazio quando se virou. Foi o primeiro a vê-las.
Saíam do corredor lateral que levava aos banheiros. Lentamente. De mãos dadas.
Hela vinha à frente, com o rosto lavado — mas ainda marcada. A pele ao redor dos olhos levemente inchada, o cabelo desalinhado em mechas escuras sobre o casaco, os ombros um pouco curvados, mas a coluna firme. Havia um tipo de cansaço que não implorava por compreensão, mas também nela não se escondeu. Era o cansaço de quem se arrasta pelas bordas do afeto há anos — e ainda assim insiste em seguir.
Não grite por espaço. Ocupava.
Não é pedida acessível. Existia.
Sua presença naquele momento era, por si só, uma declaração.
Thena vinha logo ao lado. O corpo orientado em direção à companheira — um gesto de proteção espontâneo, quase animal. A mão entrelaçada na de Hela não era um ato performático. Era presença. Era pacto. Era resposta.
O silêncio entre as duas era espesso. Mas não era vazio. Era o silêncio das casas compartilhadas, das camas divididas, dos choros enfrentados. Era o tipo de silêncio que só existe entre quem já atravessou o olho do furacão juntas e voltou — não intactas, mas juntas.
Zuras expirou com força contida. O som do ar entre os dentes é como um engasgo velho. Seus olhos seguiram o casal por longos segundos, mas não ousaram buscar o olhar da filha. Nem o da mulher que, por mais que tentasse, jamais conseguiu entender.
O que havia entre ele e Hela não era ódio.
Era do fracasso.
Mas um arrependimento que não encontrei por onde escapar.
Cibele, por outro lado, demorou mais a desviar os olhos.
Sua boca permanente cerrada, com os lábios comprimidos como quem sustenta uma represa por orgulho. Os olhos, que antes se demoravam sobre etiquetas de mala, agora percorriam Hela da cabeça aos pés com o mesmo tipo de repulsa que se tem por uma rachadura estética no chão polido de casa.
Ou então estava ali.
Não gritava. Mas sangrava.
Não foi modo como seu maxilar se mantinha trincado.
Na orientação do corpo na direção direcionada.
Na forma meticulosa com que seus olhos não pousavam, nem por um segundo, sobre as mãos entrelaçadas.
Zuras viu.
Veja tudo.
E mesmo assim, não a tocou.
Nem a corrigiu.
Porque ele sabia.
Sabia que, agora, qualquer interferência seria um atraso de décadas. Seria tentar pintar sobre um quadro já seco — e ainda assim feio.
— A gente pediu que a Hela pediu da nossa filha… — murmurou, mais para si que para ela.
Cibele apareceu com os olhos fixos à frente.
Mas sua resposta veio, pontiaguda, destilada, limpa.
— …e eu continuo achando que ela é um erro que Thena insiste em levar consigo.
A frase caiu entre eles como uma lâmina em meio ao porcelanato. Fria, fina, e consequente.
Zuras virou o rosto. Lento. Silencioso.
Mas o silêncio dele, agora, tinha outra textura.
Não era mais omissão.
Era de ruptura.
As palavras de Cibele ficaram suspensas no ar como fumaça densa de vela apagada.
Hela, do outro lado do saguão, parou diante do painel de embarque. Não vira. Não ouvi. Mas algo nela resistiu.
Talvez o corpo saiba antes do coração.
Talvez a alma aprenda a respeito, com o tempo, o momento exato em que uma ponte desmorona.
Zuras se recostou no corrimão. Não chamou. Não acenou.
Apenas liberado. Pela primeira vez, sem a menor intenção de comprometer-se.
Cibele cruzou os braços. Com firmeza. As mãos coletadas sob os cotovelos, como se até os dedos precisassem estar sob controle.
Ela não mudaria.
O que havia nela não era falha.
Era fundação.
Hela e Thena seguiram até a praça de alimentação. Passos firmes. Ombro a ombro.
O silêncio entre elas era idioma.
Era abrigo.
Era resistência.
Zuras, ao vê-las desaparecer entre as colunas de concreto e vidro, sentindo algo se desfazer no peito.
Mas não era perda.
Era consciência.
E então não disseram mais nada. Nem ele. Nem Cibele.
Porque o tempo da palavra havia passado.
E o que restava agora era apenas o que cada um havia escolhido ser.
E Hela, naquela manhã gelada, não se virou nem uma vez.
E talvez, só talvez, esse tenha sido o maior adeus de sua vida.
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Thena soprou a segunda garfada da moussaká com delicadeza, como se o vapor quente fosse um véu entre ela e o mundo. A fumaça subia, ondulante, dispersando-se no ar rarefeito do aeroporto com a lentidão dos minutos sem pressa — daquelas que só existem entre voos e despedidas. As luzes fluorescentes do terminal banhavam tudo com uma palidez clínica, como se o tempo ali estivesse suspenso em um eterno amanhecer artificial.
— Não é querendo puxar saco, amor… — começou, a voz rouca, esbarrando entre o cansaço e a ternura. — Mas a sua moussaká é infinitamente melhor.
A frase caiu entre elas como um cobertor leve — sem grandes interesses, mas cheia de cuidado. Hela, do outro lado da mesa de fórmica, aparente uma sobrancelha. O cabelo escuro ainda colava em algumas partes do rosto, resquício das lágrimas secas no banheiro. A jaqueta entreaberta revelou a camiseta amassada por baixo, e seus cotovelos descansavam sobre a mesa como quem já não se preocupava em manter as aparências. Os olhos, no entanto, mostraram a brilhar — não com alegria, mas com aquela ironia reconfortante que precedeu os sorrisos sinceros.
— Tá dizendo isso porque você mal frita um ovo.
A resposta foi seca, mas não dura. Um retorno de quem ainda sabia o caminho de volta. A frase arrancou de Thena um suspiro escandalizado, teatral.
—Injusta. Eu frito ovos. Muito bem, inclusive. De forma…estratégica.
Hela inclinou a cabeça, os olhos estreitos indo com o canto da boca curvado em deboche. A voz veio baixa, arrastada, carregando o tom de alguém que observa tudo de cima de uma nuvem de sarcasmo carinhoso.
— Você me entrega a frigideira como quem entrega um artefato sagrado. Depois fica do meu lado em pé, em silêncio, eu observando como se eu estivesse desarmando uma bomba. O fim do mundo versão alho dourado.
Thena soltou uma risada curta, abafada na garganta, os ombros tremendos. Cruzou os braços sobre a mesa, os olhos ainda fixos na esposa.
— Você já reparou no jeito que cozinha?
– Sim. Eu cozinho como um ser humano normal. Com colher de pau, um pouco de sal… e, às vezes, o desespero de estar com fome.
— Hela, você é uma pessoa específica na cozinha. Tipo… bruxaria com azeite e alho.
— Eu só não deixo as coisas queimadas. Isso não me transforma em mestre alquimista.
Mas Thena não recuou. Inclinou-se para a frente, como se cada palavra agora fosse parte de uma coreografia ensaiada pelo coração.
— Quando você está calmo, os legumes saem cortados como em revista de culinária. Quando tristes, eles ficam tão pequenos que parece que você quer fazer o mundo caber numa colher. E quando tá com raiva… eu já considerei esconder as facas.
Hela arqueou uma sobrancelha, mas a boca tremeu no início do sorriso. Respirou fundo, desviando os olhos como quem tenta fugir de um espelho.
— Isso é coisa da sua cabeça analítica.
— Não. É coisa da minha cabeça apaixonada. Que repare em você o tempo todo.
Hela fica em silêncio por um instante, os dedos brincando com o garfo na borda da bandeja. Thena esperou. Sabia que havia algo ali, prestes a se revelar — algo que só surgia quando o mundo parava de julgar.
— É só o que me resta. —disse Hela, por fim. A voz saiu baixa, sem ornamentos. — Eu não sei falar com as pessoas. Não como você. Não sei me fazer caber em salas, em jantares, em famílias. Eu sou… esquisita. Bagunçada. Complicado.
Ela respirou fundo, como se cada frase tirasse um pouco do peso preso nos pulmões.
— Eu gosto de teatro, de moda, de desenhar, de cozinhar… mas isso não serve pra nada. Não sustenta ninguém. Não é prático. É...excesso. Bonito, talvez. Mas inútil. Eu sou um adorno. Uma distração. Uma bagunça que você insiste em arrastar pela vida.
Então ela continua tudo. Intacta, firme, com os olhos marejados e o corpo inclinado para a frente.
— Você é a alma da minha bagagem. —disse ela.
Olá, piscou.
— Você é o que dá sentido à minha ordem. Sem você, tudo que eu faço vira tarefa. Você transforma rotina em ritual. Você transforma função em afeto. Você me desacelera. Me obriga a olhar. Sentir.
Ela abriu a mão sobre a de Hela, os dedos quentes, presentes.
— Quando você ri, meu mundo muda de temperatura. Quando você cozinha, minha casa vira lar. Quando você chora… eu sinto que falhei. E quando você acha que não tem valor, o mundo inteiro perde um pouco de cor.
Ela trabalhou discretamente. O vapor da comida já se dissipou. Mas algo mais quente preenchia agora aquele espaço entre eles.
— Você não merece uma esposa esquecida, desorganizada, que não sabe nem onde enfiou o passaporte… — murmurou ela.
— Eu mereço exatamente você. — interrompeu Thena, firme. — Com seus papéis dobrados ao meio, a camisa torta, as mãos sujas de tinta, o cheiro de lavanda e alho. Eu mereço você errando as horas e acertando meu coração todo dia.
— Você decorou isso?
— Cada palavra. — Thena sorriu. — E posso repetir em inglês. Ou em grego. Ou em silêncio. Como você quiser.
Olá, riu. Baixinho. E chorou. Baixinho.
E por longos segundos, ninguém disse nada. Porque não era mais necessário.
As mãos unidas sobre uma mesa de plástico. A luz branca sobre os cabelos desalinhados. A bandeja esquecida. As lágrimas contidas. Os corações, ainda intactos.
Não era um final.
Era uma promessa.
E as promessas, entre elas, sabiam-se vivas mesmo quando tudo ao redor parecia estar de partida.
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Quando se deram conta, já eram 07:25.
O terminal começou a ganhar vida com lentidão quase poética, como um corpo gigante despertando a contragosto. O ar se encheu de camadas: os primeiros anúncios ecoavam entre colunas de concreto e vidro com suas vozes metálicas e impessoais, arrastando vogais como se estivessem bocejando. O som das malas de rodinha riscava o chão encerado com precisão mecânica, misturando-se ao tilintar de chaveiros, aos suspiros dos viajantes que não dormiram e aos goles apressados de café ruim.
Era o início de mais um dia. Mas para Hela, o mundo ainda estava preso entre dois fusos: o da dor recente e a decisão irrevogável.
A lanchonete ainda resistia em calmaria. Um pequeno santuário entre a pressa. Uma ilha breve no oceano de despedidas. A mesa que ela e Thena ocupavam continuava a mesma desde uma hora atrás — plástica, branca, fria, marcada por manchas de molho e pequenos cicatrizes de talheres impacientes. Duas bandejas, um copo pela metade com chá preto e um silêncio confortável que havia, enfim, se instaurado entre elas depois de tanto ruído.
Thena consultou o relógio com um gesto breve, quase involuntário. O olhar, no entanto, ficou preso em Hela por um segundo a mais do que o necessário.
— Eu vou validar nossos cartões. Ver se o balcão já foi aberto. — disse, ajeitando a gola da blusa sob o sobretudo azul-acinzentado. A voz era prática, mas o tom baixo, como se ainda não quisesse deixar o momento. — Volto em dois minutos.
Hela feliz com o queixo. Continuou sentado, a moussaká agora fria diante dela, mas ainda sagrado. O prato estava pela metade — não por falta de fome, mas por respeito ao silêncio que ela havia precisou tanto. Comida era, afinal, o idioma mais fluente que conhecia. Mesmo que ninguém mais entenda.
Ela continua vindo devagar, o garfo girando nos dedos com uma cadência quase meditativa. Cortava o pedaço com precisão, mastigava com lentidão estratégica. Era isso: a comida como tática de contenção. Um escudo contra a memória recente. Contra o excesso.
Foi então que senti.
Primeiro, pelos passos. Um par de botas masculinas, sólidas, ritmadas — como sempre — e um salto feminino que hesitava. A hesitação não era física. Era moral.
Depois, pelas sombras sobre a mesa. As duas silhuetas projetadas no chão eram familiares e incômodas como cheiro de perfume antigo.
E por fim, a voz. Grave, ainda seguro demais para um homem em dívida.
— Podemos? — disse Zuras, com a cabeça progressivamente inclinada, como quem pede passagem para dentro de um território que já não lhe pertence.
Hela detecta os olhos sem urgência.
Zuras e Cibele estavam ali, lado a lado. O casal heróico. O orgulho encarnado. Mas havia desgaste. Sem semelhança. No modo contido com que seguravam os próprios pulsos. No modo como Cibele mantinha os braços cruzados demais, como quem prefere a própria presença à possibilidade de tocar alguém com quem não sabe o que dizer.
Ela não os encontrou com palavras. Mas olhei para as cadeiras vazias como quem sugere: “sejam rápidos”.
Zuras teve inveja primeiro. Cauteloso. Pousou as mãos sobre os joelhos com um gesto que parecia ensaiado, como se temesse que qualquer movimento em falso quebrasse o pouco que ainda havia entre eles.
Cibele demorou mais. Sentou-se com o queixo levemente erguido, como quem não se curva. Como quem está ali não por arrependimento, mas porque acha que deve. Os olhos dela eram pesados, mas não marejados. Havia orgulho demais, ainda. E a frieza habitual que tentava disfarçar com o verniz da educação.
– Desculpa. — disse Zuras primeiro, o olhar fixo nas bordas da mesa.
– Desculpa. — repetiu Cibele logo depois, seca, sem ênfase, como se cumprisse uma linha de protocolo social que não merecia vírgula.
Hela encostou nas costas no encosto da cadeira, empurrando o prato para frente. O garfo pousou na bandeja com um som metálico breve, como o toque de um sino mal humorado
Ela encarou os dois por longos segundos. Depois de preenchido, a voz saiu calma — mas não branda:
— Vocês sabem que isso não é suficiente, né?
Cibele olhou para o lado. Zuras ocorreu levemente.
— Eu sei. — disse ele. — A gente devia ter... feito diferente. Com você. Com a Thena. Como o que vocês construíram.
Hela cruzou os braços.
— Vocês não “deveriam”. Vocês poderiam. Tiveram todas as chances. Todos os natais. Todos os aniversários. Todas as vezes que a Thena tentou mostrar pra vocês que eu era parte da vida dela. E vocês preferiram fingir que era uma fase. Uma distração.
Ela se inclinou levemente para frente, os olhos cravados nos deles.
— Querem saber quantas vezes vocês me chamaram para jantar? Não junto com ela. Só um mim. Como alguém que faz parte da família de vocês?
Silêncio.
— Não. — ela completou. — Porque pra vocês eu nunca estive lá. Só atrapalhei uma foto. E mesmo quando eu fiz o possível pra agradar — pra não incomodar, pra ser conveniente — vocês olharam por cima. Nunca para mim. Sempre através de mim.
Zuras fecharam os olhos por um instante. Cibele confortável.
— No aniversário de casamento de vocês, fui eu quem cuidou do cardápio. Eu quem arrumei a mesa, escolhi o vinho, cozinhei tudo. Vocês elogiaram a decoração, o sabor da comida. Mas não me olharei uma única vez. Nem um “obrigado”. Nem um “que bom que você veio”. Porque, no fundo, vocês prefeririam que eu não tivesse tido.
Ela se declarou. Pegou a bandeja com calma, os movimentos lentos demais para alguém em fúria. Era contenção. Era método.
— Vocês acham que têm direito de opinar na felicidade de sua filha, mas não se responsabilizam pelo que fizeram com a minha.
Zuras abriu a boca, mas não disse nada. Cibele respondeu:
— Eu não gosto de você, Hela. Só respeitos.
Hela a encarou. Um segundo inteiro de puro gelo.
— E falhou nos dois.
Ela girou nos calcanhares. Andou até o lixo, descartou a bandeja com firmeza. Voltou os olhos uma última vez para os dois — tão pequenos naquela mesa cheia de ausências — e disse, sem elevar o tom:
— Eu não guardo rancor. Mas também não guarda espaço.
Virou-se. Caminhou até onde Thena estava: de pé, ao lado do painel de embarque, conferindo o horário como quem desejava garantir um último pedaço de normalidade.
Quando Hela se mudou, Thena olhou os olhos e, ao vê-la, estendeu a mão sem pensar. Olá, segurou. Sem palavras. Ó gesto bastava.
Enquanto o portão de embarque começava a chamar os passageiros do grupo três, as duas caminharam lado a lado, com os casacos fechados até o queixo e os dedos entrelaçados como se a travessia dali em fosse diante não apenas geográfica — mas emocional. Existencial.
E atrás delas, a mesa vazia. E fria.
Como certas relações que chegam atrasadas demais para o voo.
Chapter 24: Κεφάλαιο 16
Chapter Text
— Amor? — A voz de Thena chegou como brisa morna em meio ao concreto frio. Era baixa, firme, mas sem pretensão de atravessar muros. Não era um chamado. Era uma âncora lançada com suavidade. — Hela... tá tudo bem?
A pergunta pousou sobre ela sem ruído, mas teve peso. Hela demorou um segundo longo demais para responder. Como se estivesse terminando de costurar um pensamento por dentro antes de abri-lo para o mundo. Seus olhos permaneceram baixos, fixos no chão do terminal — aquele chão cinza, liso, brilhoso, onde o reflexo das luzes artificiais se espalhava em faixas metálicas. Um chão que parecia ter absorvido todas as palavras não ditas da última meia hora.
Quando enfim ergueu os olhos, não havia colapso. Mas havia algo mais perigoso: contenção. Um tipo de calma que beira a rigidez. Um autocontrole que ameaça trincar. Os olhos secos — mas avermelhados nas bordas, marejados por dentro como vidro antes de quebrar. A expressão era quase neutra, quase — mas o corpo a traía.
O maxilar tensionado. A mão fechada em punho ao lado da perna. O ombro levemente arqueado como quem ainda carrega o peso de palavras que preferia ter deixado no lixo, junto com a bandeja.
— Tá. — respondeu Hela, por fim. Foi uma palavra só, mas veio como uma caixa lacrada. Dentro, havia exaustão. Havia cansaço de ser vista tarde demais. Havia o gosto amargo da compostura imposta. E um pedido mudo, embutido entre as sílabas: fica aqui. Não desmonta meu silêncio. Só fica.
Thena não respondeu com frases. Assentiu. Um gesto de queixo quase imperceptível. E recuou meio passo. Não por recuo, mas por respeito. Ela sabia: amar Hela era saber não pressionar. Era criar espaço. Era permanecer sem invadir.
Hela respirou fundo. O tipo de respiração que tenta reorganizar o que está desordenado por dentro. Ajeitou a alça da mochila no ombro com um gesto mecânico, como quem procura no corpo um ponto fixo para se segurar. Os dedos tremeram levemente ao fechar o zíper frontal, e Thena viu — viu tudo. Mas não comentou.
— Onde é o nosso portão? — perguntou Hela, com um tom prático demais para alguém tão visivelmente no limite. Era um truque. Um desvio. Um pedido de script: me dá uma tarefa, um número, um caminho, qualquer coisa que eu possa controlar.
Thena pegou o cartão de embarque dobrado no bolso do sobretudo. Estava um pouco amassado. Uma leve umidade marcava a borda inferior, talvez suor, talvez lágrima. Ela leu devagar, mesmo já sabendo.
— C28. — disse, apontando com a cabeça para o corredor lateral. O letreiro eletrônico piscava com dignidade artificial: “C28 — Embarque em breve.”
Hela olhou. Não se moveu.
Seus olhos fixaram-se no letreiro por tempo demais, como quem observa uma sentença e calcula os riscos de cumpri-la. Aquele corredor curto parecia, de repente, longo demais. Um corredor entre dois mundos. Um onde ela era presença desconfortável. Outro onde ainda não sabia quem seria.
Thena não forçou.
Aproximou-se devagar, com a delicadeza de quem ampara cacos invisíveis. Encostou a mão na base da lombar de Hela. Não empurrou. Não guiou. Só tocou. Um ponto de contato — calor contra músculo. Estabilidade contra fragilidade mal disfarçada.
— A gente tem tempo. — disse, com a voz macia, vibrando com leve ironia na tentativa de aliviar. — Quer passar na livraria? Ver se acha uma edição com corte dourado e cheiro de biblioteca francesa?
Hela quase sorriu. Quase. Mas não. Apenas murmurou:
— Só quero sair daqui sem doer tanto.
Thena permaneceu. Ali. No tempo exato entre o consolo e o silêncio. A dor da esposa era dela também, mas ela sabia que dividir não significava invadir.
— A gente vai sair. — respondeu. — E se doer… então vai doer comigo. No meu colo, no meu casaco, na minha mão. Mas não sozinha.
Ela parou por um instante. Deixou a frase existir no ar antes de continuar.
— Eu não espero que você seja forte agora. Nem funcional. Nem polida. Eu só quero estar. Mesmo que só pra segurar o Argus. Ou te lembrar que a gente já passou por coisas piores. Ou só pra ficar muda do teu lado. Eu sirvo pra isso também.
Hela virou o rosto em sua direção.
A luz do teto se refletia na íris escura, salpicando brilhos que não chegavam a virar lágrima. Ela mordeu o lábio inferior, depois o soltou com leveza, como quem testa a firmeza da própria boca.
— Me segura se eu fraquejar, tá?
Thena não hesitou.
— Até o fim.
E então começaram a caminhar.
Passaram pelo casal que continuava sentado na mesa da lanchonete — os pais de Thena — agora mergulhados em um silêncio amargo, feito lama fria. Cibele mantinha o olhar fixo no painel de voos, as mãos cruzadas sobre o colo, o queixo erguido num orgulho que já não fazia sentido. Zuras, ao lado, não disfarçava o peso da cena. Observava as duas com o olhar de quem percebe, tarde demais, o valor do que perdeu enquanto tentava controlar o que não era seu.
Mas elas não olharam para trás.
Seguiram pelo corredor do portão C28. Um passo de cada vez. Casacos fechados até o pescoço. As mochilas nas costas. Argus nos braços de Thena. As mãos entrelaçadas com força sutil — não como quem aperta, mas como quem ancora.
O mundo ao redor seguia: vozes, malas, anúncios, chegadas e partidas. Mas entre elas, só havia o ritmo conjunto de dois corações que escolheram continuar mesmo sangrando. Uma travessia. Uma resistência.
E a certeza: não importa o destino.
Elas iriam juntas.
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Livraria do Terminal C – 07:48
O terminal ainda parecia vibrar em ondas de tensão não dissolvidas. Mas, ao atravessar o limiar da pequena livraria envidraçada, tudo desacelerou. Era como entrar num mundo que não sabia que o resto estava doendo. Um lugar onde o tempo parecia engasgar entre estantes, suspenso no cheiro denso de papel novo, tinta fresca e café já morno demais. As luzes amareladas, o piso acarpetado e os sinos suaves na porta criavam uma espécie de refúgio — um microcosmo de silêncio entre o ruído da despedida.
Thena entrou logo atrás de Hela, mas não a chamou. Preferiu apenas observá-la.
A esposa caminhava à frente com passos curtos e rápidos, mas não apressados — quase metódicos, como se cada metro vencido fosse uma forma de lembrar ao corpo que ainda havia beleza acessível. Hela não olhava ao redor. Seus olhos iam direto ao fundo da loja, onde a seção de papelaria esperava como um altar pessoal.
Ela tirou do bolso interno da jaqueta um papel dobrado muitas vezes, já desbotado, com marcas de dedos nas pontas e uma pequena mancha de café em uma das bordas.
Thena reconheceu o papel na hora e inclinou a cabeça, sorrindo de leve.
— Ainda com essa lista, amor?
Hela não respondeu de imediato. Alisou o papel com a palma da mão, como quem tenta recuperar um mapa antigo, e então apontou uma linha rabiscada com o entusiasmo de quem descobre um tesouro.
— Lápis grafite 2B com acabamento fosco azul-marinho. Dois. — disse, como se recitasse um verso sagrado.
Thena cruzou os braços. Estava encostada numa estante de clássicos universais em edições bilíngues, mas não olhava para livro algum. Seus olhos estavam inteiramente fixos na figura magra e obstinada de Hela — a jaqueta ligeiramente torta, a franja desalinhada, os olhos ainda marcados pelas horas anteriores, mas brilhando agora de outro jeito. Um jeito mais antigo. Um jeito dela.
— Você sabe que terminou essa lista quatro anos atrás, né? — disse Thena, com um tom de exasperação cômica.
— E daí? — Hela respondeu com naturalidade, já se ajoelhando diante da prateleira inferior onde repousavam caixas de lápis em degradês. — Algumas listas não foram feitas pra terminar. Elas servem pra lembrar que ainda tem espaço. Que ainda cabe mais coisa.
Thena observava. Com um carinho silencioso e um certo espanto. Como se visse uma flor insistindo em crescer no concreto.
— Você tem duas mochilas. Cheias. Chegando a transbordar. Precisa mesmo disso?
Hela virou-se em câmera lenta. Os olhos semicerrados, a expressão de quem acabara de ouvir uma blasfêmia.
— Você precisa mesmo disso? — repetiu, como se saboreasse a ofensa. — Azura Callas, por favor. Não me peça pra justificar o essencial.
Thena soltou uma risada abafada, enterrando o rosto nas mãos por um segundo.
— Você é um absurdo.
— Um absurdo útil. — Hela respondeu, com três canetas novas entre os dedos, uma delas com corpo de vidro e tinta holográfica. — E eu ainda nem cheguei nos post-its. Tem um novo que é transparente e reposicionável. Isso muda a vida, Thena. Muda a forma de ler, de estudar, de respirar.
— Hela...
— E tem caderno com gramatura ideal pra aquarela, caderno com capa que vira descanso de copo, caderno com relevo sensorial pra crises de ansiedade... — ela virou-se com um bloco decorado com frutas zen e piscou. — Olha esse. “Mindfulness para frutas maduras”. Isso é arte.
Thena pegou o caderno. Leu a frase. Respirou fundo. Sorriu. Um sorriso pequeno, mas cheio de rendição.
— Eu juro, Hela. Tem dias que eu me pergunto como a ONU sobreviveu sem você.
Hela deu de ombros, fingindo humildade.
— Em colapso, provavelmente.
A conversa prosseguiu entre estantes, empilhamentos de absurdos e descobertas ridículas. Hela segurava um marca-texto que mudava de cor conforme a temperatura da tinta com a reverência de quem manuseia um artefato mágico. Thena andava atrás, recolhendo os rastros: um caderno que Hela deixara escapar, um estojo caído, uma tampa de caneta esquecida no chão.
Mas então Hela parou. Sem aviso. No meio do corredor de gramaturas, entre papéis importados e caixas de adesivos temáticos. Apenas parou.
O olhar ainda estava voltado aos objetos, mas o corpo não acompanhava. Era como se algo tivesse voltado a doer. Um lembrete de que aquilo era uma pausa, e não um fim.
— É ridículo… — disse ela, sem emoção na voz. — Mas isso me ajuda. Sabe? Essas pequenas besteiras. Elas me seguram. Quando o resto começa a escorregar por dentro, eu venho pra cá. Não literalmente, claro. Mas aqui, ó. — Ela apontou para o próprio peito. — Eu venho pra cá. Pros lápis, pros cadernos, pras cores idiotas. Me ajuda a não virar só mágoa. Me ajuda a continuar sendo eu.
Thena não respondeu de imediato. Aproximou-se. Tocou de leve a mão da esposa — a mesma que segurava o marca-texto. Tocou só o necessário.
— Então a gente leva tudo. — disse com doçura. — E se não couber, eu deixo meu casaco e você leva seus papéis.
— Você ama aquele casaco.
— Mas amo mais você.
Hela a olhou. Os olhos úmidos de novo — não de choro, mas de memória. E carinho.
— Às vezes você me salva só me deixando ser besta.
— E você me salva quando enche a casa de clipes em forma de baleia.
Foram ao caixa juntas. Hela ajeitava os itens com precisão obsessiva — canetas enfileiradas, cadernos alinhados, o marca-texto no topo, como uma assinatura pessoal. A atendente passava os códigos de barras com a paciência de quem já viu muitos tipos de amor silencioso naquele pequeno templo de papel e cor.
Thena permaneceu quieta. De braços cruzados, apenas observando.
Observando sua esposa recuperar a própria identidade com uma caixa de lápis e um estojo lilás. Observando o corpo ainda cansado, mas o espírito — o espírito voltando, centímetro por centímetro, como a luz que atravessa uma fresta.
E pensou, com a certeza que sempre a alcançava nesses instantes em que Hela era plena:
Onde ela estiver, com ou sem mapa, com ou sem rumo, com ou sem espaço na mala… é o meu lugar.
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07:50 – Corredor lateral da livraria, bancos próximos ao portão C28
O terminal parecia ter diminuído o volume, mas não o peso. Mesmo com os anúncios constantes ecoando entre colunas e o som dos passos apressados, havia ali, naquele corredor mais estreito ao lado da livraria, uma espécie de sombra emocional que não se dissipava com a claridade artificial.
Zuras estava sentado num dos bancos frios de metal revestido, as pernas afastadas, os cotovelos apoiados nos joelhos. Entre as mãos, um copo de papel amassado com café morno. Não bebia. Só o segurava. Como se o calor fraco que escapava pela tampa de plástico pudesse, de algum modo, aquecer a parte de si que ele começava a perceber como falha. Seu olhar estava fixo na caixa de transporte de Argus, posicionada ao lado da poltrona onde Hela e Thena tinham estado minutos antes.
O animal dormia, enroscado como uma vírgula, indiferente à tensão humana ao redor.
Cibele estava ao lado dele. Sentada com uma postura impecável — coluna reta, joelhos juntos, tornozelos cruzados. Ajustava o cachecol cinza-claro com dedos precisos, quase rígidos. Mas não era o frio que os movia. Era o incômodo. Era o esforço de manter intacta a fachada sob a qual sempre viveu: compostura, elegância, controle.
Ela lançou um olhar lateral a Zuras, mas sua voz não saiu de imediato. Quando enfim falou, parecia que as palavras lhe escorriam da garganta por obrigação, não por sentimento.
— E agora? Vai ficar calado o resto do dia?
Zuras não respondeu de imediato. Apenas inspirou fundo. O café tremulou entre os dedos, e ele percebeu o quanto suas mãos estavam suadas.
— Não é hora pra falar só por falar. — murmurou, por fim.
Cibele franziu os lábios, irritada. Observava ao longe Hela rindo de algo que Thena havia dito. A mulher de preto gesticulava com a caneta recém-comprada nas mãos, encantada com algo trivial. Ridículo, na opinião dela. Papelaria. Adesivos. Frufrus.
— É impressionante a facilidade com que ela transforma qualquer coisa em espetáculo. — disse, entredentes. — Um lápis novo vira drama, uma caneta colorida, poesia. Acha mesmo que isso é... genuíno?
Zuras a olhou. Com cansaço. Com algo que se aproximava de repulsa contida — mas não por Hela.
— Sim. Acho. E mesmo se não fosse, ela não te deve nada.
Cibele suspirou com escárnio. Desviou o olhar.
— Não é o tipo de pessoa que eu escolheria pra minha filha.
— Mas não é você quem vive com ela. — disse ele, a voz baixa, mas firme. — E Thena… Thena está diferente com ela. Eu vejo. Não mais instável. Não mais oscilando entre o silêncio e o colapso. Ela está… inteira.
Cibele soltou uma risada seca, mas contida, como um sopro irônico.
— Inteira? Você quer dizer influenciada. Moldada. Eu vejo sim: vejo minha filha se perder num universo que não é dela. E tudo por causa de uma mulher que precisa de plateia pra existir.
Zuras ficou em silêncio. Seu maxilar travado. Os olhos agora acompanhavam Hela se afastando com Thena em direção ao portão. Caminhavam juntas, tão sincronizadas que pareciam treinadas. Mas havia algo mais: uma calma feroz. Como se mesmo feridas, ambas tivessem decidido sobreviver juntas.
— Você não sabe o que está dizendo. — ele falou, após longos segundos.
— Claro que sei. — Cibele rebateu, agora ajeitando a alça da bolsa com elegância estudada. — Eu vejo tudo. Vejo como ela manipula. Como se faz de mártir. E o pior? Você cai. Porque ela fala bonito, porque tem uma pose de dor legítima… Mas é só performance. É só excesso de ego. Ela quer ser mais importante do que a filha que eu criei com tanto critério. Ela quer ser protagonista.
Zuras fechou os olhos por um momento. A cabeça abaixada. Respirou fundo.
— Não. Ela não quer ser protagonista. — disse, por fim. — Ela quer só ser vista. Só isso. E a gente não fez isso. A gente fingiu que ela era uma nota de rodapé, quando era quem mais amava a Thena, quando sustentava aquilo tudo por baixo — a casa, a rotina, a memória, o cuidado. E mesmo assim… a gente ignorou.
— Eu não a ignoro. — Cibele rebateu, com a frieza de quem já congelou a empatia há muito tempo. — Eu apenas não acho que ela mereça esse espaço todo.
Zuras finalmente virou-se de corpo para ela. O olhar agora não era mais só exausto — era cortante. Triste.
— Você fala como se o amor da Thena fosse um erro. Como se amar alguém intenso fosse um desvio. Mas não é. Ela não está se perdendo com a Hela. Ela está se encontrando.
— Ela está se confundindo. — disse Cibele, sem hesitar. — Você sabe disso. Só não quer admitir.
Zuras não respondeu. Voltou o olhar para a caixa de Argus. O gato espreguiçava-se dentro dela, os olhos meio abertos agora. Havia algo hipnótico naquele animal: uma paz insolente. Um corpo confortável onde quer que estivesse.
— Eu só sei que doeu ver o que vimos hoje. — disse ele, por fim, a voz rouca. — Ouvir aquilo tudo. De frente. Sem escudo. E eu vi a dor dela. Não aquela que se mostra pra causar pena. A dor que silencia. A que impede até de olhar pra cima. Eu vi. E não sei se vou conseguir esquecer.
Cibele ajeitou a franja com os dedos, como quem se irrita com o vento.
— Ela falou como se nunca tivéssemos tentado.
— E a gente tentou? — ele rebateu, sem elevar a voz. — Ou só comparecemos aos eventos, vestidos de formalidade e orgulho?
Ela não respondeu. Talvez porque soubesse a resposta. Talvez porque não aceitasse.
Zuras olhou em direção ao portão C28, onde as luzes de embarque já começavam a piscar.
— Eu não espero perdão. Nem acesso. Só espero que um dia ela possa lembrar da gente sem doer tanto. E se não lembrar, que pelo menos saiba… que eu vi. Que enfim eu vi.
Cibele permaneceu imóvel. Mas os olhos estavam mais duros do que antes. Não havia brecha ali. Nenhum arrependimento verdadeiro. Nenhuma humildade.
Apenas controle. Apenas postura. E a raiva surda de ter sido desafiada por alguém que, segundo ela, nunca deveria ter ocupado espaço algum.
Zuras, porém, parecia menor agora. Mas não por fraqueza. Por honestidade. Como quem havia deixado cair, por fim, a armadura que nunca o protegeu do que importava de verdade.
E ali ficaram. Silenciosos. Distantes. Observando as duas mulheres caminharem para o embarque.
Hela, com sua mochila pesada, sua postura reta e seus olhos firmes. Thena, com os ombros soltos, uma calma nova, um toque constante na base das costas da esposa — não guiando, não pressionando, apenas presente.
Cibele não viu amor. Viu exagero.
Zuras, porém, viu o que só vê quem já amou tarde demais: uma chance que não se pode mais controlar. Só testemunhar.
E, pela primeira vez, não quis ter razão.
Quis apenas que não fosse tarde demais.
Chapter 25: Κεφάλαιο 17
Chapter Text
08h10 — Dentro da papelaria do terminal, corredor lateral próximo ao portão C28
O ar dentro da papelaria parecia mais denso do que o comum, como se cada partícula de poeira suspensa carregasse um peso invisível — o peso da espera, da pressa frustrada e da urgência velada que apenas quem já perdeu alguém para o tempo entende. O cheiro de papel novo misturado a um café frio exalava aquele espaço apertado e iluminado por luzes fluorescentes que insistiam em transformar tudo em uma cena de filme antigo, onde o ritmo da vida se esgarça.
Thena estava imóvel, os braços arqueados sob o peso das duas cestas transportando. O papel e o plástico formavam uma armadura precária contra o caos que sentia no peito — a corda invisível que a mantinha no limite entre a paciência e a exaustão.
— Hela, você tá com duas cestas cheias. — a voz de Thena saiu baixa, quase um sussurro carregado de tensão, como uma corda de violino testa a se romper. Ela falou para si mesma tanto quanto para a esposa, enquanto a funcionária da loja os observava com um sorriso forçado, parecia treinada — uma simpatia mecânica que quase se tornava um sarcasmo involuntário.
Então afaste o ar devagar, tentando manter a compostura.
— Se você pretende comprar mais coisas durante uma viagem... leva só isso. Só isso.
O silêncio que se som não era mero silêncio: era o silêncio pesado de um precipício invisível, de um abismo entre o que quer dizer e o que consegue articular.
— Olá? Amor?
Nada.
O ambiente parecia prender o fôlego junto. O tilintar metálico dos estojos, o ranger abafado das rodas dos carrinhos de reposição, tudo silenciava diante do vazio que a ausência dela causava tudo.
Thena chamou os olhos devagar. Viu as cestas — suspensas em ambos os braços como se fossem escudos frágeis feitos de papel, plástico e tinta — e confirmou a verdade que já sabia: Hela havia evaporado. Como um fantasma inquieto que não pertencesse ao chão, à urgência do tempo, à lógica do embarque.
O corredor onde estavam exalava o perfume quase sagrado de marcadores novos, papel reciclado e promessas coloridas de tinta — aquele era o pequeno templo de Hela, seu refúgio e sua armadilha.
–Merda. — Thena murmurou com voz baixa, os olhos vasculhando com precisão quase militar o espaço à procura da esposa. — Perdi ela de novo.
Ajeitou as cestas, sentindo as alças finas cortarem a pele do antebraço, marcas que começavam a latejar. Respirou fundo, decidiu agir. Virou-se em direção à saída da papelaria como quem se prepara para uma batalha que não quer, mas sabe que precisa enfrentar.
— Olá?! A gente tem um voo!! — a voz carregava uma mistura de urgência e uma exasperação contida, sem limite do amor e do cansaço.
Nenhuma resposta. Nem o som de botas sobre o piso frio, nem o murmúrio apaixonado por gramaturas ou texturas.
Thena soltou um suspiro longo, carregado de tudo que não se diz em palavras — de amor, de fadiga, de uma resignação que doía na alma, misturada com um sarcasmo quase filosófico.
— Eu devia ter prendido uma coleira nela. — murmurou para si, o olhar distante, como se já imaginasse um GPS grudado na jaqueta, um alarme sonoro para avisar quando ela se aproximasse demais dos cadernos de capa dura. — Talvez uma mini sirene que disparasse toda vez que ela visse canetas aquareláveis.
Um jovem funcionário passou com um carrinho carregado de planners e agendas, pegou a última frase, piscou lentamente, e decidiu que o melhor era não se envolver.
Então ignorou a presença dele como uma calejada profissional. Dobrou o corredor dos estojos, nada. Passou pela seção de planners artesanais e quase teve o foco adquirido por um modelo com estampa de constelações douradas em hot stamping — uma obra de arte que combinou perfeitamente com a paixão obsessiva de Hela por detalhes.
— Não. Concentre-se, Thena. Concentre-se. — resmungou, balançando a cabeça como para espantar a distração.
Uma voz interior, firme e prática, ecoou: Sua esposa é uma fugitiva profissional. Especialista em desaparecer assim que percebe um conjunto novo de canetas aquareláveis. Você sabe disso. Você se casou com isso.
Seguindo esse mantra, avançou com postura de quem vai caçar seu prêmio. As cestas balançavam em sincronia com seus passos determinados.
Passou por uma moça de cabelo preto encostada na prateleira de moleskines. Faça uma chamada rápida:
— Hel, por Odin, para de se escond...
A mulher virou o rosto.
Não era Hela.
Thena quase perdeu o equilíbrio, quase derrubou uma pilha de livros de autoajuda e produtividade, o “milagre da manhã” escorregando quase entre os dedos.
A estranha era mais baixa, pele mais quente, olhos castanhos comuns, sem tatuagens, sem piercings — trajava um vestido florido, meias grossas e um cardigan bege que exalava conforto materno. Definitivamente não era a Hela dela.
– Desculpa. — murmurou Thena, um sorriso envergonhado e sem graça tingindo seus lábios, acenando em um pedido mudo para que a confundida senhora perdoasse sua invasão.
Virando-se para continuar a busca, resmungou para si mesma:
— Thena, sua idiota. A Hela tem tatuagens do pescoço ao calcanhar. Piercing em cada canto do rosto. Um olho verde e um vermelho. É literalmente impossível confundir essa mulher com qualquer outra. Precisa dormir mais.
Contínuo. Agora em modo caçadora de recompensas emocionais.
Passou pela ala de réguas, esquadros e compassos — por um instante, imaginou Hela analisando aqueles instrumentos como se fossem obras-primas renascentistas. Ela faria isso. Ela já fez.
E então, finalmente, senti.
Um vulto. Ombros largos.
Cabelos escuros, soltos, bagunçados com aquele jeito exato e treinado que só Hela conseguiu.
Virou o corredor com cuidado, como quem sabe que vai reencontrar o epicentro de toda sua ansiedade, de toda sua ternura, de todo o caos que era amar aquela mulher.
Lá estava ela.
Sentada no chão entre duas prateleiras de cadernos de capa dura, com três unidades abertas no colo. Comparava a espessura do papel com o toque dos dedos, num ritual quase religioso. Ao lado, um caderno de couro com costura exposta, outro com estampa de constelações e um terceiro com uma caveira vitoriana rodeada de rosas vermelhas.
Hela estava em paz. Concentrada. Intocada pelo relógio que corri lá fora, pelo avião que esperava.
Thena encostou na lateral da estante, cruzou os braços, sentindo o peso da fadiga se dissolver por um instante sob uma onda de ternura profunda.
— Você fugiu de novo. — disse com voz baixa, sem raiva, apenas com aquela exasperação amorosa que só quem ama sabe equilibrar entre o cansaço e o cuidado.
Hela declarou os olhos, os lábios se curvando num sorriso triste — o suficiente para ser sincero, mas não para demonstrar lamentação.
— Tinha que decidir qual deles iria ser o diário de bordo da viagem. Isso é crucial, Azura.
— Você tem doze diários de bordo. Em casa.
— Todos terminados contra todas as chances. Mas não tem a vibração que eu quero pra esse momento específico de nossa existência. — respondeu, erguendo o caderno com a caveira. — Olha isso. Gótico, mas elegante.
Thena fechou os olhos, contando até três, depois falou:
— Você sabe que temos um voo em menos de duas horas, né?
— Você sabe que esse papel aceita nanquim sem manchar? — Hela rebateu, triunfante.
Thena suspirou, resignada, mas ajoelhou-se ao lado dela.
Pegou o caderno, folheou as páginas delicadamente.
— Esse aqui é lindo. Mas se você escolher ele, promete que não vai se perder de novo até o embarque?
Ela dedo pensa.
O silêncio entre elas ficou profundo — e, por um instante, o terminal inteiro parecia parar para ouvir.
O aroma cálido e predominante ácido do café morno, misturado ao perfume inconfundível de papel novo, preencheu o ar com uma sensação quase palpável de refúgio e conforto. As luzes fluorescentes lançavam um brilho branco e um pouco frio sobre as fileiras meticulosamente organizadas de cadernos, estojos, canetas e planners — um universo em miniatura onde o tempo parecia respirar mais devagar.
Thena comentou Hela com os braços arqueados, as duas cestas pesando em seus antebraços como pequenas fortalezas feitas de papel, tinta e possibilidades. A tensão por trás da calma aparente era quase um fio vibrante entre elas.
— Hela, você tem a aparência de uma mulher de cinquenta e seis anos. — Thena disse com uma voz baixa, quase um tom de repreensão cúmplice, marcado pela exasperação doce que só um amor antigo sabe carregar. — Já passou da idade que você foge da sua esposa!
Hela arqueou uma sobrancelha com uma leveza que contrariava a gravidade do momento. O canto da boca se atrai em um sorriso divertido, daquele tipo que parece desafiar o mundo e a razão, enquanto puxava o caderno de volta com a delicadeza de quem afaga uma lembrança que insiste em não querer ser esquecido. O papel de gramatura acima de 120g/m² deslizou por entre seus dedos como uma carícia silenciosa.
— Querida, se aos cinquenta e seis anos eu ainda não pude fugir discretamente para me emocionar com papel texturizado... — Hela falou, passando o dedo pelas linhas internas do caderno como se percorresse o contorno de uma memória antiga, quase sagrada — ...então, qual seria o sentido de envelhecer?
O riso de Thena escapou contido pelo nariz, uma risada breve, quase um segredo dividido entre a impaciência e a paixão.
— A sensação é que você será um ser imortal. Uma divindade! — respondeu Thena, como se dissesse uma verdade absurda demais para ser levada a sério — Acha mesmo que esse comportamento é o que espera da deusa da morte?
— Não. — Hela retrucou, o sorriso se aprofundando, como se a resposta fosse um segredo guardado só para elas — E é exatamente por isso que eu sou assim.
Thena ficou a encará-la, uma mistura delicada de rendição e admiração nos olhos. Ali, entre as prateleiras de papelaria e o ar saturado de tinta e sonhos, ela estava rendida ao caos encantador da mulher que amava — um caos que transbordava muito além dos cadernos e canetas.
— Você tem ideia do quanto é difícil explicar isso pras pessoas normais? — murmurou Thena, ainda ajoelhada no chão frio, o joelho já protestando contra a posição — “Desculpa o atraso, minha esposa se perdeu entre os cadernos góticos e as canetas japonesas com ponta 0.3.”
Hela atraiu os olhos, aqueles olhos que agora brilhavam com um misto de provocação e ternura, o tipo de olhar que só se dá a quem se sente compreendido na sua mais deliciosa estranheza.
— Ah, mas qual é, Thena. Você também ama esse universo. — disse ela, a voz macia, cheia de lembranças. — Foi você quem me deu minha primeira caneta pincel profissional. Lembra? Um azul-cobalto. Eu chorei.
Thena assentiu devagar, o suspiro saindo como uma brisa morna que carregava afeto e memórias.
— Eu lembro. — disse ela, o sorriso se alargando levemente — Depois você decorou três páginas com instruções do Saramago que nem tinham relação entre si.
— Arte é liberdade. — Hela rebateu, dando de ombros com teatralidade — Inclusive de coerência.
Thena se acomodou ao lado dela no chão frio, as cestas entre elas como pequenas fortalezas coloridas. O silêncio que caiu foi confortável, um cobertor invisível, uma pausa no ritmo acelerado do mundo ao redor.
Por um momento, só existiram aquelas duas, a tinta e o papel.
Então Thena esticou a mão, pegou o caderno de couro com costura exposta, e abriu a capa com cuidado reverente, como se estivesse desvendando um segredo.
— Então vai ser esse?
— É, esse. — Hela respondeu, a voz mais suave agora, quase tingida de gratidão por ser vista e entendida não como uma excentricidade, mas como a mulher completa, cheia de camadas que Thena via com nitidez.
Os dedos de Thena traçaram a capa, acertando a textura do couro liso, o peso dos sonhos embalados em cada folha.
— Você já sabe a primeira coisa que vai escrever?
Hela pensou por um instante. Olhou para os lados, sentiu o ar frio do terminal e a quietude daquele refúgio.
— Surpresa.
Thena inteligente, um sorriso cheio de ternura e divertimento.
— Não faz ideia do que vai escrever, não é?
— Não faço. — Hela deu um sorriso que misturava leve ansiedade e liberdade, aquela mistura deliciosa que só o desconhecido pode provocar — Mas quer saber? Acho que é o melhor começo.
A risada de Thena escapou baixa, vibrante e intimidante naquele momento.
— É. O melhor começo sempre é o mistério. Mas te conhecendo, aposto que vai ser poesia disfarçada de diário de bordo.
Hela inclinou a cabeça, o olhar encontrando o de Thena com uma doçura que desarmava qualquer resistência.
— Poesia... ou talvez um pouco de caos organizado. Porque eu sou isso, Azura. Sou caos, e você é a calma que me equilibra.
— Então me promete que, mesmo quando o caos te chama para esses rituais de papel e tinta, você não vai me deixar sozinho aqui com as cestas, tá? — Thena pediu, em voz suave como um sussurro, comunicado de uma vulnerabilidade que só o amor verdadeiro permite.
– Prometo. — Hela estendeu a mão e tocou a de Thena com firmeza e sinceridade. — Mas só se você promete que vai me deixar ser exatamente quem eu sou, com todos esses caprichos e distrações.
— Com certeza. — Thena abriu a mão dela com carinho. — A gente é uma equipe, lembra? Você me dá o caos, eu te dou a calmaria.
— E juntas, a gente segue. — Hela concluiu, levantando-se devagar, guardando o caderno com cuidado na cesta, como quem sela uma promessa silenciosa.
Elas trocaram um olhar cúmplice, conscientes do tempo correndo contra elas, mas saboreando aquele instante de cumplicidade — um oásis feito de papel, tinta e amor.
— Vamos, minha deusa da morte. — Thena disse, estendendo o braço para ajudar Hela a levantar. — Nosso voo não espera, e o mundo lá fora também quer conhecer nossas histórias.
Hela brilho, um brilho de determinação e ternura nos olhos.
— Que visite a próxima página.
E, de mãos dadas, caminharam para a caixa, pagaram os cadernos e saíram, deixando para trás os santuários de papel, mas levando consigo o peso dos diários e a certeza inabalável de um amor que nem o tempo nem as distrações mais encantadoras poderiam apagar.
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08h30 — Terminal internacional, corredor lateral próximo ao portão C28
O terminal internacional já despertava em um murmúrio constante — um ritmo irregular de malas que deslizam, rodinhas rangendo suavemente no chão liso, vozes entrecortadas por diferentes idiomas misturando-se numa cacofonia quase poética. Baristas apressados preenchiam copos de papel com cafés mornos, rabiscando nomes com letras apressadas, como se o tempo fosse um inimigo a ser vencido a cada segundo. Os alto-falantes entoavam avisos que se espalhavam pelo espaço, insistentes lembretes de que ninguém ali realmente tinha aquele lugar — viajantes à deriva entre destinos e memórias.
Mas ali, no canto mais isolado perto do portão C28, havia uma ilha de silêncio, um bolsão quase sagrado onde o tempo parecia conter a respiração. Um refúgio precário onde a urgência desacelerava, permitindo que pedaços de histórias se entrelaçassem sem pressa.
Zuras estava sentado, ajeitando-se na poltrona de couro gasto com um gesto que carregava o peso de décadas — não só os anos marcados na barba grisalha, mas também os fardos invisíveis: os silêncios não ditos, as palavras que não encontraram momento para nascer, e aquela mistura amarga de orgulho e arrependimento que ainda o agarrava como uma sombra teimosa.
Nos poucos assentos dali, Hela estava em seu próprio universo. Argus, o gato de pelo negro e brilhante, aninhava-se tranquilo em seu colo, o contraste entre a pelagem do animal e o tecido claro da calça dela criando um pequeno quadro de calma. As mãos de Hela, delicadas mas firmes, desenhavam círculos inspirados na cabeça do gato — um gesto instintivo e ritualístico, transferido daquelas palavras que não precisaram ser ditas. Seus dedos curtos tocavam cada fio com cuidado quase reverente, como quem tenta conjurar uma paz que o mundo insiste em negar.
Na outra mão, relatadova o livro: uma edição surrada, envelhecida por releituras incontáveis, de Um Corpo na Biblioteca. A lombada mostrava vincos profundos e as bordas das páginas eram marcadas por post-its de vários núcleos, cada um anotado com letras pequenas e precisas em caneta preta. Hela não usava fones de ouvido, mas seu mundo interior parecia totalmente apartado do burburinho à sua volta — sua mente mergulhada nas tramas intrincadas e no universo silencioso de St. Mary Mead, entre as observações afiadas de Miss Marple, a quietude aparente da vila inglesa e a crueldade elegante escondida nos pequenos detalhes da vida.
Zuras a observar, com uma atenção quase dolorosa, compartilhada de uma hesitação antiga que parecia pesar mais do que o tempo todo que já passaram juntos. Aquela mulher — tão cheia de tatuagens que reflexões histórias gravadas na pele, os olhos de cores diferentes, a alma profunda e, por vezes, enigmática — era um enigma que ele nunca decifrou. Talvez o problema maior fosse que ele nunca quis tentar o suficiente.
Um pigarro seco escapou de sua garganta, quase um convite para a aproximação, um teste para atravessar a barreira silenciosa entre eles.
— Você sempre gostou da Agatha, não é? — sua voz saiu baixa, carregada da hesitação de quem não sabe se é o momento certo, mas sente que precisa tentar.
Hela virou a página devagar, os olhos nunca deixando o texto, mas o polegar deslizando com mais lentidão sobre o papel como se ponderasse algo além das palavras.
Confirmou, silenciosa — um pequeno aceno de que ouvira, que registrara.
O tempo se esticou, preenchido apenas pelo leve toque do rabo de Argus, que batia suave no tecido do vestido de Hela, um ritmo sereno em meio à quietude suspensa.
Zuras, com um tom ainda mais baixo, prosseguiu, explorando cuidadosamente o terreno:
— Thena me disse uma vez — a voz dele vacilou por um instante, como se repassasse na mente o que falaria antes — que você lê esses livros pra entender melhor os outros.
Um silêncio denso caiu, como uma nuvem pesada que pareceu fechar o espaço entre eles. Hela respirou fundo, quase imperceptivelmente — como se dissesse, sem precisar pronunciar: e talvez para me entender também.
— Eu mesmo... — Zuras hesitou, passando a mão pela barba rala de forma nervosa — nunca consegui gostar de histórias de crime. Sempre me incomodou a ideia de que o pior das pessoas está escondido nos detalhes. Nos gestos mais sutis, naquilo que é dito entre as linhas.
Hela fechou o livro com cuidado, sem pressa, colocando o marcador entre as páginas. O livro repousou sobre seu colo, ao lado de Argus, que se espreguiçava como se também sentisse o peso daquela conversa.
— E o melhor delas também, Zuras. — sua voz soou firme, desprovida de amargura ou indulgência, como uma verdade crua que não exige suavização. — O melhor das pessoas também está escondido nos detalhes.
Zuras assentiu lentamente, como se aquela verdade tivesse sido dita antes, mas só agora ele realmente a escutasse.
— É. Acho que eu nunca prestei atenção direito.
Hela afagou o queixo de Argus com delicadeza. O gato ronronou baixo, entrelaçando-se ainda mais no abraço dela. E então, pela primeira vez, seus olhos encontraram os dele diretamente. Eram verdes e vermelhos — vivos, intensos, indomáveis.
— E agora está tentando? — ela perguntou, sem ironia. Só uma curiosidade genuína, uma abertura tênue para algo que até então estava guardado.
Os olhos de Zuras encontraram os dela, buscando ali alguma resposta, alguma possibilidade.
— Estou tentando. — respondeu ele, com uma honestidade que parecia custar cada palavra. — Um pouco tarde, talvez... mas estou tentando.
Hela manteve o olhar por mais um instante antes de desviar para o livro em seu colo, passando os dedos pela capa com um gesto que misturava respeito e afeto.
— A Agatha sempre me pareceu uma mulher com raiva. — murmurou, como quem fala para si mesma — Mas uma raiva elegante, contida, canalizada para entender como o mundo falha. Ainda assim... ela continuava amando a humanidade o suficiente para tentar consertar o que podia.
Zuras engoliu em seco, sentindo o peso daquelas palavras.
— Parece familiar.
Hela arqueou uma sobrancelha, cética.
— Se você está me comparando com Miss Marple... você claramente não tem direito.
Zuras sinceras, um sorriso cansado, mas sincero.
— Não. Estou dizendo que talvez... você também tenha a sua forma de amar o mundo. Mesmo que ele não mereça.
Argus miou baixo, como se aprovasse a afirmação.
Ela respirou fundo. Não sorriu, mas seus olhos suavizaram por um breve instante, como se uma porta tivesse sido solicitada.
— Essa foi boa.
Zuras falou com as mãos em rendição silenciosa.
— Estou tentando, lembra?
— Continua. — disse ela, pegando o livro de volta, voltando a abrir na última página marcada. — E quem sabe... um dia eu te perdoo.
O silêncio voltou, desta vez diferente — não um abismo entre eles, mas uma ponte tênue de entendimento e esperança.
Chapter 26: Κεφάλαιο 18
Chapter Text
08h31 – Banheiro do terminal internacional
O banheiro do terminal parecia existir em outra frequência. Ali dentro, o tempo se arrastava com uma lentidão estéril. As paredes frias, cobertas por azulejos brancos de brilho clínico, não oferecem aconchego. Só julgamento. Cada canto estava limpo demais, impecável demais — como se o espaço não fosse feito para acolher corpos humanos, mas para expô-los. Como se dissesse: aqui, não se esconde nada.
A iluminação fluorescente pingava do teto em tiras hostis, projetando sombras duras sob os olhos e maxilares. Thena, parada diante do espelho, observava o próprio reflexo como quem enfrenta uma adversária de igual força. Os dedos cravados sobre uma bancada de granito polido tremiam sutilmente. Não era medo. Era desgaste. Era o peso das últimas décadas colapsando em um instante.
Às suas costas, o som das torneiras é ativado automaticamente ao acaso. Um estalo de metal. O jato breve de água. Um gotejar teimoso em algum canto preenchia o ambiente como um metrônomo ansioso. E os saltos de Cibele — finos, altos, ritmados — reverberavam sobre o piso com uma autoridade que não pedia licença. Cada passo era um veredicto.
Ela parou atrás da filha sem se anunciar. O perfume era o de sempre — sândalo, lírio e controle. Os braços cruzados, como sempre. Mas havia uma tensão diferente nos ombros. Não há poder, mas há contenção.
— Quando foi… — Cibele começou, a voz grave, sem preâmbulo. Despida de doçura, mas ainda assim cheia de algo que queimava — …que você decidiu que a deusa da morte valia mais do que qualquer outra vida que você poderia ter construído?
Então piscou uma vez. Longo. O tipo de piscar que é quase um soco de dentro pra fora. Mas não se virou. Apenas encarou o espelho.
— Tantos Caminhos, Thena. — Cibele contínua, cada palavra cortando como navalha envolta em cetim. – Tantos nomes. Gilgamesh. Ikaris. Homens poderosos. Leais. Seres imortais com destinos traçados pelos deuses. E você escolheu ela. Aquela.
“Ela.” A palavra veio de desprezo. Não só julgamento — desdém. Como se Hela fosse uma escolha impronunciável. Como se nem fosse uma escolha, mas uma frente.
Thena girou lentamente. Seus olhos estavam calmos. Duros. Como aço frio que aguenta o impacto.
— Vai começar com isso? Aqui? Agora?
— Você é minha filha. — Cibele desconto. — E me deu uma vida pra entender. Pra aceitar. Mas veja bem, Thena... você era prometida a mundos. Um império. E agora se amarra à mulher mais perigosa que já pisou em qualquer plano de existência.
— E ainda assim... é com ela que eu encontrei paz.
Cibele bufou. Não riu. Nunca riria. O som que escapou foi o de impaciência — como se estivesse cercada de crianças insolentes e tivesse esgotado sua última migalha de tolerância.
—Paz? — ela repetiu, o olhar cravado no da filha como uma lâmina começa a girar. — Você chama de paz viver ao lado de uma criatura marcada por guerra, morte e delírio?
Thena deu um passo à frente. Ficaram frente a frente. O espelho refletia duas silhuetas tensas, femininas, colossais. Mãe e filha moldadas da mesma matéria — só que esculpidas com destinos distintos.
— A senhora... — Thena começou, com a voz baixa, como o estopim de uma tempestade — ...a senhora me criou pra pensar por mim. Me criou pra lutar com honra, amar com inteireza e nunca me dobrar a olhos alheios.
Um passo a mais. A distância entre elas agora era do tamanho de tudo o que foi calado por décadas.
— E mesmo assim… — Thena continuou, a voz embargando em fúria contida — é a senhora quem mais me cobra por ter seguido os princípios que me ensinou.
Cibele não recuou. Mas seus olhos — os olhos sempre altivos — vacilaram. Por um segundo. Um piscar. Uma fração de vulnerabilidade que ela odiaria reconhecer.
— Hela não me molda. — Thena disse, mais suave agora. — Não me exibe. Não quer um troféu ao lado. Ela me vê. Mesmo quando sou difícil de amar.
Ela respirou fundo. O banheiro parecia menor agora. Mais claustrofóbico.
— Ela me vê quando o mundo exige que eu seja pedra, e eu estou prestes a desmoronar em areia. E ela não tenta me colar com metáforas. Ela senta no chão comigo. Ria do caos. Me segura. E pergunta: o que ainda vale a pena reconstruir?
Cibele fechou os olhos. Como se cada palavra fosse uma lasca.
— A senhora quer saber por quê? — Thena disse, firme, direta. — Porque com ela... eu sou inteira. Até nos meus estilhaços.
Cibele descruzou os braços. Devagar. Cada movimento revelando o quanto aquela conversa custava.
— Isso é amor? — sussurrou, quase um fôlego. — Isso é amor... ou vício em intensidade? Você merece algo que te eleve, Thena. Algo mais... digno do que uma aberraç...
Estalo.
Seco. Preciso. Quente.
O tapa foi tão rápido que o tempo pareceu dar um passo atrás.
Cibele virou o rosto com o impacto. Não havia sangue. Nem escândalo. Mas o barulho ecoou nas paredes brancas como um trovão desobediente.
Ela não falou. Não reagiu. Só levou a mão ao rosto. Os olhos, arregalados. Não de dor — de incredulidade.
— Dobre a língua antes de falar da minha esposa de novo. — Thena sussurrou, a voz vibrando baixa, mas com o peso de séculos. — Eu sou a deusa da guerra. E você me ensinou a proteger o que é sagrado.
Silêncio. Total.
— A senhora me perdeu muito antes da Hela aparecer. — Thena continuou, passos lentos para trás, como um adeus que já nasceu vencido. — Me perdeu quando amou só a versão de mim que servia aos seus sonhos. A filha de branco. A guerreira de vitrine. A que casaria com alguém de toga ou glória.
Um último olhar.
— Mas eu casei com a morte. E renasci. Agora eu estou viva. Pela primeira vez, verdadeiramente viva.
E então virou. Os cabelos dourados como um cometa cortando o espaço frio do banheiro. Os saltos ecoando na cerâmica, cada passo carregado de autonomia.
Cibele ficou ali.
Sozinha.
O tapa não estava mais em seu rosto. Estava no tempo. Estava cravado entre as rachaduras de tudo o que nunca foi dito. Estava no espelho, que agora devolvia não a imagem de uma matriarca divina — mas a de uma mulher... profundamente sozinha.
E pela primeira vez, Cibele sentiu que talvez… o silêncio dela tivesse sido o gesto mais cruel de todos.
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08:37 – Retorno ao portão C28
Quando Thena surgiu do corredor que levava aos banheiros, nada em sua aparência parecia alterado. Os cabelos presos com precisão, o batom ainda intacto, o porte impecável. Mas os olhos... os olhos haviam endurecido. Havia uma tensão ali que nenhuma noite mal dormida explicaria. Era o tipo de expressão que se forma quando séculos de palavras entaladas finalmente encontram uma saída — não como confissão, mas como erupção.
Hela a viu de imediato. Mesmo entre o burburinho dos passageiros, os anúncios ritmados nos alto-falantes e as malas arrastadas como arranhões sonoros pelo piso polido, ela a viu. O livro de Agatha Christie ainda repousava aberto sobre a perna, mas a leitura já não fazia sentido. Argus ronronava em seu colo, alheio ao drama humano, mas atento à vibração da dona.
Ela não precisou perguntar. O modo como Thena caminhava — queixo erguido, ombros tensos, olhos sem brilho — já dizia tudo.
Hela fechou o livro sem marcar a página. Um gesto que, vindo dela, era quase heresia. Passou a mão suavemente sobre Argus, como quem sela um feitiço de calma.
— Hora de voltar pra toca, camarada — murmurou, encaixando o gato na caixa de transporte com um cuidado automático, mas ainda cheio de afeto. O felino soltou um miado breve, quase simbólico, e se acomodou.
Thena se aproximou. Hela levantou-se com a caixa nos braços. Os olhos delas se encontraram por um instante. Breve. Preciso. Absoluto.
— Vamos, amor. — Thena disse, a voz baixa, mas firme. Era a voz de quem havia colocado a dor no lugar certo, por enquanto.
Hela assentiu. Sem perguntas. Sem cobranças. Apenas presença.
Zuras se ergueu da poltrona. O gesto tinha a elegância dos imortais, mas o olhar era apenas de pai. Ele viu a filha à sua frente — a mulher inteira e frágil, ferida e implacável, que saíra do banheiro como quem acabara de atravessar uma batalha silenciosa. E não disse nada. Apenas abriu os braços.
Thena não hesitou. Afundou naquele abraço como alguém que encontra abrigo em território antigo. O peito contra o peito. O cheiro familiar do pai. O silêncio que dizia mais do que qualquer palavra ensaiada.
— Tchau, pai. Até logo. — ela disse, a voz mais suave agora, mas ainda contida. Como se segurasse algo que não queria mostrar ali.
— Até logo, minha estrela. — Zuras respondeu, murmurando contra o cabelo da filha, como fazia quando ela era pequena e acordava de pesadelos que já não conseguia lembrar.
Hela observava. E mesmo não sendo dada a afeto escancarado, se aproximou. A caixa de Argus nos braços a tornava um pouco desajeitada, mas não menos sincera.
— Senhor Zuras… — começou, hesitante.
Ele a interrompeu com um gesto simples. E com um sorriso breve, abriu os braços.
Ela quase riu. Mas não de deboche. Apenas de incredulidade. E, rendida, aceitou o abraço. Foi breve. Mas havia firmeza. Havia um reconhecimento ali — não de aprovação, mas de respeito. E de um início. Talvez até de aliança.
— Cuidem uma da outra. — Zuras disse, ao se afastarem. A mão ainda pousada em seu ombro.
— Sempre. — Hela respondeu, com seriedade. Não como promessa. Como princípio.
Então, as duas caminharam lado a lado até a fila que começava a se formar no portão de embarque. Os alto-falantes anunciavam o pré-embarque, e o terminal se movia em sua dança de voos e despedidas, com passageiros organizando documentos, sacudindo os casacos, verificando pela décima vez os bolsos. Mas Hela e Thena andavam em outro ritmo. Um compasso só delas.
O silêncio entre as duas não era pesado. Era necessário. Um silêncio que respeitava o que ainda estava decantando no coração de cada uma.
Zuras permaneceu ali. Por um tempo. Até que virou a cabeça, como se guiado por algo mais antigo que o instinto.
E então a viu.
Cibele.
Parada à porta do banheiro feminino, como uma estátua quebrada. O corpo ainda ereto, mas o rosto devastado. A maquiagem cedera. Os olhos estavam inchados, vermelhos, o contorno da boca tremia apesar do esforço para manter a pose. Havia algo cruel naquele silêncio — uma dor que não sabia se transformar em palavra, só em presença.
Ela não chorava. Não mais. As lágrimas tinham cessado. Mas o rastro delas permanecia. E o olhar… era um misto de raiva e perda. Um abismo escuro onde antes havia apenas orgulho.
Zuras caminhou até ela sem pressa. Como quem sabe que qualquer passo apressado poderia ser interpretado como pena — e pena, ele sabia, era algo que Cibele não suportava.
Parou ao lado da esposa. Ela não o olhou. Continuou com os olhos fixos no vazio. Como se, se olhasse, tudo desabaria.
Ele estendeu a mão. Encostou na dela. Um toque firme. Real. Como um lembrete de que ela ainda estava ali. Que alguém ainda a via.
— A gente conversa depois. — ele disse, com a voz baixa. Exatamente como ela suportaria ouvir.
Cibele fechou os olhos por um segundo. Mas não falou.
E enquanto isso, a poucos metros dali, Hela e Thena cruzavam a barreira do portão de embarque. Os documentos em mãos. A caixa de Argus entre elas. Os pés seguindo, lado a lado.
Duas mulheres atravessando o terminal não como passageiras apressadas, mas como sobreviventes. Carregando os escombros de uma história longa, torta, indestrutível. E uma à outra, no centro de tudo.
Às vezes, isso era o bastante. Outras vezes, era tudo.
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08:43 – Corredor para o embarque internacional, após o portão C28
O corredor que levava ao embarque estava silencioso demais para aquela hora da manhã, como se até o aeroporto — com toda sua pressa automatizada — respeitasse o que quer que estivesse se desenrolando entre Thena e Hela. O piso polido refletia a luz branca e fria dos painéis de LED no teto, enquanto o som das rodinhas da caixa de transporte de Argus soava como uma trilha acidental, quase dissonante naquele silêncio tenso. Ao redor, famílias apressadas, executivos com seus fones de realidade seletiva, mochileiros com olhos semicerrados — todos pareciam mover-se por um mundo paralelo. Um mundo humano. Distante.
Thena caminhava à frente com a elegância quase militar de sempre, mas a rigidez em sua postura era outra coisa. Era a rigidez da decepção não dita, do orgulho ferido, da dor engolida com a força de séculos. O queixo erguido como escudo, os ombros perfeitamente alinhados, a respiração medida. Mas Hela conhecia cada linha daquele corpo. Sentia, em cada passo um pouco mais rápido, em cada respiração travada, no leve tremor que passava pelo polegar que roçava o dorso de sua mão — que Thena estava lutando para não ruir.
E a batalha tinha nome. E cheiro. E lágrimas que ainda ardiam sob os olhos, mesmo depois de apagadas. Cibele. A ausência mais presente entre elas naquele instante.
— Amor?... — A voz de Hela cortou o silêncio como um sussurro depositado com ternura na beira de uma ferida. Suave, íntima, carregando mais cuidado do que pressa. Seus olhos — o verde e o vermelho — não pediam respostas, mas ofereciam abrigo. Refúgio.
Thena não respondeu. Por alguns passos, manteve o curso. Até que, subitamente, parou.
Ali, bem no meio do corredor, à beira de um retângulo de sol artificial filtrado pelas janelas altas do terminal, ela parou. Como quem precisa se ouvir antes de continuar.
Hela, distraída no fluxo de cuidado, quase colidiu contra ela.
A deusa da guerra virou-se devagar, o rosto ainda composto, impecável, mas os olhos... os olhos já haviam abandonado o teatro. Carregavam o cansaço de muitas vidas, a frieza que vem depois da raiva, o gelo que se instala quando o fogo se esgota. Como se ela tivesse se recolhido para dentro, não por covardia, mas por autopreservação. Como quem sabe que, se abrir demais, sangra. E se sangrar, mata.
— Tá tudo bem? — Hela perguntou, com voz baixa, mas firme. Mais uma oferta do que uma cobrança. O tipo de pergunta que não exige, só se propõe a ficar.
Thena abaixou os olhos. O chão à sua frente refletia as luzes em padrões geométricos exatos — tudo ali era limpo, calculado, asséptico. Exatamente o oposto do que ela sentia. Quando respondeu, a voz veio firme, mas cada palavra parecia carregada como pedra.
— Eu... depois eu te falo. — Não era negação. Era adiamento necessário. Era uma barragem prestes a ceder, mas que ainda precisava de um pouco mais de chão firme para não se perder inteira.
Hela não insistiu. Apenas apertou sua mão com mais força — um toque cálido contra o frio do terminal, contra o mundo de aço escovado e horários impessoais. Apertou como quem diz: eu seguro, se você quiser cair.
— Promete? — sussurrou, mais perto agora. Quase encostando. A caixa de Argus entre elas parecia encolher. O mundo também.
Thena não respondeu de imediato. O queixo tremeu, apenas por um segundo. Seus olhos se ergueram, molhados não de lágrimas, mas de cansaço e lealdade. E, por fim, assentiu.
— Prometo. — disse. E ali, mais do que uma promessa, era um rito. Um juramento silencioso de que, quando a dor encontrasse forma, Hela seria a primeira a ouvir. E talvez a única capaz de compreender.
Caminharam outra vez.
As mãos unidas, os passos sincronizados, os corpos próximos, as sombras mescladas sobre o chão brilhante. Como duas divindades atravessando um mundo que não lhes pertencia — rodeadas de vozes apressadas, de destinos traçados em bilhetes de avião, de pessoas que jamais entenderiam o peso de um silêncio entre duas eternas.
Ainda havia mágoa ali. Ainda havia palavras que sangravam em silêncio, e feridas que pulsavam sob a superfície. Mas também havia um amor que não pedia explicações. Um amor que sabia esperar. Que sabia existir mesmo quando doía.
E assim seguiram. Não apenas rumo ao portão de embarque, mas através de mais uma travessia onde amor e ferida andavam juntos — e onde, mesmo com séculos às costas, elas ainda escolhiam seguir.
Uma à outra.
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08:45 – Corredor de embarque internacional, portão C28
O anúncio irrompeu pelo terminal com a precisão de um metrônomo que dita o ritmo do mundo — uma voz feminina, cuidadosamente treinada, modulada para ser clara e acolhedora, mas implacável em sua autoridade. Cada palavra parecia desenhada para conter não só informação, mas expectativa, para ordenar o caos que se acumula antes do embarque.
> — Atenção, senhores passageiros. Daremos início ao embarque do voo com destino a Zurique. Solicitamos que fiquem atentos à ordem de embarque.
A sequência foi recitada com a cadência conhecida por quem já fazia do aeroporto sua segunda casa:
- Passageiros com necessidades especiais — a prioridade da vulnerabilidade.
- Primeira Classe — a elegância reservada.
- Classe Executiva — o prestígio refinado.
- Premium Economy — o equilíbrio entre conforto e acessibilidade.
- Passageiros com status elite — recompensados pela lealdade.
- Grupos e zonas específicas — o mosaico organizado.
- Por fim, a multidão da Classe Econômica — o coração pulsante da viagem.
Movimentos precisos começaram a se desdobrar como uma coreografia treinada: um agente empurrava lentamente uma cadeira de rodas, o toque gentil e cuidadoso; uma criança em pijamas de dinossauro, corpo pequeno aninhado no ombro materno, deslizando entre as pernas dos adultos como um pequeno segredo; carrinhos de bebê deslizavam silenciosos, conduzidos por mãos firmes e amorosas. Um homem idoso recebia apoio, passos lentos e firmes em direção ao finger, enquanto o fluxo dos demais passageiros aguardava sua vez, como se respeitassem um rito ancestral.
Thena e Hela, com bilhetes protegidos em um envelope de linho azul-acinzentado, o caligrafia de Thena em tinta preta, estavam entre as chamadas da Primeira Classe. Um espaço reservado no caos, um oásis de conforto e silêncio em meio à correria humana.
Mas para Thena, nem mesmo o brilho do vidro polido ou a promessa do silêncio acolchoado apagavam o peso que ainda carregava nos olhos.
Atravessaram a divisória que separava o comum do reservado. As mãos entrelaçadas não seguravam apenas papéis, mas a carga densa do último encontro — o silêncio do banheiro, as palavras não ditas, o rastro de mágoa em seu peito e a firme decisão de seguir juntas, mesmo quando as feridas ainda sangravam.
No balcão, um funcionário de terno cinza-claro as recebeu com a tranquilidade de quem sabe que lida com mais do que uma simples passagem. Seus cabelos penteados para o lado e a expressão serena foram um quadro de respeito e discrição. Ele conferiu os cartões, olhou nos olhos delas, e sorriu — um sorriso pequeno, quase um segredo compartilhado.
— Tudo certo, senhoras. Desejo uma excelente viagem.
— Obrigada. — Thena respondeu, com um leve aceno que continha mais do que educação; continha reconhecimento.
— Valeu. — Hela disse de forma breve, quase distraída, mas nem por isso menos sincera.
Ao dar o primeiro passo para a ponte de embarque, Thena hesitou. Girou o corpo lentamente, os olhos buscando algo que pesava no peito.
Ali estava Zuras. De pé, distante, mãos nos bolsos do casaco, rosto marcado por anos, olhos fixos nelas — silêncio eloquente. Era um olhar que dizia mais do que mil palavras: proteção, dor, aceitação e um amor pesado de memórias e expectativas.
Thena ergueu a mão num aceno simples, quase íntimo, e levou dois dedos aos lábios, soprando um beijo que viajou até ele, atravessando espaço e tempo. Zuras retribuiu com um sorriso curto, contido, mas carregado de significado. Um nó apertou sua garganta, mas ele não deixou transparecer — apenas assentiu, como um rei que se despede sabendo que a batalha agora é dela.
Afastando-se da figura do pai, Thena não buscou o olhar da mãe.
Cibele estava ali, encostada próxima à porta do banheiro feminino. O rosto, antes altivo e imperturbável, agora revelava as marcas de uma batalha interna: maquiagem manchada em linhas tortas, batom quase desaparecido, olhos vermelhos e inchados, vítreos pela luta contra lágrimas que a razão não permitia derramar. O corpo rígido, os braços cruzados numa defesa silenciosa, a postura dura como muralha.
Os olhos de Cibele encontraram os de Thena, uma chama de desprezo ardendo aquelas íris cansadas. Não houve pedido de perdão, nem súplica, só o frio julgamento de quem não consegue disfarçar a dor pela ausência de esperança — e a frieza calculada de quem sabe que foi ignorado, mas ainda resiste em sua resistência.
Mas Thena não olhou para trás. Nem uma vez. O gesto não foi apenas um recuo, mas uma exclusão definitiva daquele que está contido.
Hela, que foi um passo à frente, observe o momento e respeite o silêncio da esposa. Tocou-lhe as costas com delicadeza, um toque firme e silencioso, um lembrete: estou aqui. Não vou deixar você sozinho.
Quando Thena retomou a caminhada, Hela agitou sem hesitar, passos sincronizados, corações ligados em meio à vastidão fria do terminal.
Um aceno rápido, formal, quase protocolar, foi o único gesto dirigido à família que ficou para trás. Um último olhar que carregava o peso de tudo que fora dito e tudo que ficou não dito.
Juntas, avançamos pela ponte de embarque.
O eco suave dos saltos de Thena sobre o piso metálico era o som de uma decisão firme, de uma travessia real e simbólica. O casaco longo de Hela ondulava discretamente, moldado pelo sopro constante do sistema de ar, como se até o vento conspirasse para levar consigo o que ficou para trás.
Naquele corredor suspenso entre o terminal e o avião, não transitavam apenas passageiros rumo a destinos geográficos.
Transitavam mulheres que cruzavam os limiares entre feridas abertas e futuros reconstruídos.
Entre silêncios e pactos não verbais.
Entre a dor antiga e a força renovada.
E, acima de tudo, entre Thena e Hela — uma escolha que não precisau de palavras para ser reafirmada, que se faz apresentar a cada passo, a cada toque, a cada respirar compartilhado.
Um amor não só resiste, mas se reinventa no tempo.
Chapter 27: Κεφάλαιο 19
Chapter Text
08h55 – Corredor ao lado do banheiro feminino, terminal internacional
A luz fria do terminal mal toca a figura solitária de Cibele, que permanece imóvel diante da porta do banheiro feminino. A sombra projetada pelo batente acentuava a rigidez de sua postura, quase escultórica, mas seus olhos denunciavam uma batalha interna que nenhuma máscara poderia esconder. Vermelhos e marejados, refletiam uma chama feroz de orgulho ferido — um fogo que queimava mais pela ferida no ego do que pelas palavras cortantes da filha que havia partido para longe sem olhar para trás.
Os passos distantes de Thena e Hela, já longínquos na ponte de embarque, deixaram no ar o eco de uma despedida sem volta. Como se, naquele instante, o que quer que restasse entre mãe e filha tivesse se evaporado, dissolvido na ausência de qualquer tentativa espontânea de reconciliação.
Mais atrás, Zuras observava em silêncio, seu rosto marcado pela exaustão de quem carrega não só os anos, mas como cicatrizes invisíveis de convivências longas e dolorosas. Seus ombros não caíram sob o peso do corpo, mas sobre um fardo invisível: o desgaste emocional acumulado em camadas sutis, desgastando lentamente até o âmago de sua paciência.
Com passos lentos, ele se mudou de Cibele, parando a poucos metros dela, no limite tênue entre a reprovação e a ternura. Sua voz, quando finalmente rompeu o silêncio, sou baixo, mas firme — a força de quem escolheu não mais esconder o que precisava ser aqui.
— Sabe que sua atitude pode ter sido o estopim para nunca mais vermos nossa filha novamente, não sabe?
O tom era cortante, mas não vingativo. Era a constatação amarga de um homem que viu o abismo se abrir diante dos seus olhos e tentou, em vão, impedir a queda.
Cibele piscou lentamente, como se o silêncio fosse a única armadura possível naquele momento. Respirou fundo, tentando organizar as palavras que não queria dizer.
Mas a energia muda.
— Para ela, aquilo foi o fim — contínuo Zuras, a voz compartilhada de uma calma gélida, que parecia penetrar nos ossos — e, sinceramente, para mim também, Cibele.
Ela virou o rosto, os olhos desviando, mas a tensão na mandíbula denunciava a fissura crescente no muro que a própria vaidade erguera em volta de si. Como se cada palavra de Zuras fosse um golpe que ameaçava desmoronar anos de negação.
— Você realmente acredita que foi só uma discussão no banheiro do aeroporto? — sua voz baixou, quase sussurrada, para conter a dor e a vergonha em público — Eu vi o olhar dela. Não era raiva. Era decepção profunda, exaustão. Era o peso de tudo o que você já fez ela sentir, que ela tentava esconder sob o verniz da acessibilidade para seguir em frente. Ela disse que você aceitava, que você amava, mas mentia. E isso... isso faz mais do que qualquer ataque explícito.
Cibele demorou uma resposta. Quando o fez, a voz saiu rouca, quebrada, mas o tom ainda carregava o desprezo implacável da mulher que se recusa a ceder.
— Eu só queria que ela enxergasse o que merece mais. Muito mais do que essa escolha errada.
Zuras deu um passo à frente, a incredulidade tingindo cada palavra.
— Mais do que o quê? Mais do que ser amada de verdade? Mais do que alguém que vê, que aceita em toda a sua complexidade, que não tenta moldá-la para caber em um molde? Mais do que alguém que segurou a mão dela quando você virou as costas? Que ficou ao lado dela quando você quis apagar a essência de sua própria filha?
Ele balançou a cabeça, descrente e dolorido.
— Hela tempestade pode ser um caos, uma imprevisível, mas ela ama nossa filha como ninguém jamais amou. Nem você. Nem eu.
O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado de verdades não ditas e de uma sinceridade crua que parecia finalmente rasgar o véu da negação.
Cibele se virou por completo, olhando Zuras com olhos que ardiam de repulsa e orgulho ferido. O rosto ainda ostentava um altivez típico, mas um traço sutil de fragilidade começava a se infiltrar, como uma rachadura fina em uma parede de pedra.
— Você acha que ela me odeia? — a pergunta saiu baixa, quase solicitada, mas a dúvida parecia ressoar na própria voz.
— Não. — respondeu ele sem hesitar. — Mas ela está exausta de tentar ser amada por alguém que não sabe amar. Cansada de buscar em você uma facilidade que nunca aconteceu. Cansada de esperar mudar.
Zuras virou-se, dando as costas, preparando-se para deixar aquele lugar.
— Vamos pra casa. — disse, a voz firme, mas sem rancor.
Cibele hesitou por um instante, a respiração presa, as emoções um turbilhão incontrolável. Depois, num gesto quase automático, clamou-se e abafado o marido, ainda envolta em seu desprezo silencioso — não por falta de amor, mas pela resistência amarga de quem não consegue considerar que errou.
Enquanto caminhavam pelo corredor, o terminal continuava seu ritmo incessante — uma coreografia de despedidas e reencontros, de partidas e chegadas.
Mas ali, naquele momento, para Cibele e Zuras, restava apenas o peso de um silêncio que talvez, pela primeira vez, começasse a falar a verdade que antes ambos evitaram.
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09:58 — Dois minutos antes da decolagem
A voz do capitão Papadopoulos é tão clara, firme e envolvente pelos alto-falantes da cabine, passando o murmúrio abafado dos passageiros e o suave zumbido dos motores em prontidão.
— Atenção, senhores passageiros — anunciou ele com uma entonação calma e segura, capaz de infundir tranquilidade mesmo aos corações mais apreensivos. — Aqui é o capitão Papadopoulos falando.
Uma pausa breve, suficiente para que todos se ajustassem e prestassem atenção ao que viria em seguida.
— Pedimos, por gentileza, que verifiquem se seus cintos de segurança estão afivelados corretamente, preparando-se para o início da decolagem.
No corredor estreito, as luzes de aviso do cinto piscavam em vermelho, enquanto os comissários percorriam as fileiras com movimentos ensaiados, conferindo, corrigindo e tranquilizando. Alguns passageiros ajeitavam suas roupas, outros trocavam olhares ansiosos, alguns ainda se pegavam apertando os cintos com as mãos trêmulas — todos conscientes do instante que se aproximavam.
— Em nome de toda a equipe de bordo — contínuo o capitão, sua voz carregando uma gentileza quase paternal —, quero desejar a todos uma excelente viagem. Que seja seguro, tranquilo e, para muitos, o início de uma nova jornada inesquecível.
Na primeira fila, Thena respirou fundo, sentindo o contato firme de Hela segurando sua mão. Os olhos dela se voltaram em um instante silencioso, compartilhando mais do que palavras poderiam ser expressas. O burburinho ao redor parecia distante, como se o tempo tivesse desacelerado para aquele pequeno universo de duas almas entrelaçadas.
— É sempre um momento de expectativa, não é? — murmurou Hela, com um sorriso quase imperceptível, enquanto pressionava o questionamento contra a palma da esposa.
— Sim — respondeu Thena, o olhar fixo na pequena janela ao lado, onde as nuvens começavam a formar desenhos efêmeros. — Um misto de ansiedade e esperança.
O capitão retomou, com a voz agora mais técnica, porém sempre serena:
— Pedimos que permaneçamos sentados com os cintos afivelados até que as luzes sejam apagadas e o comandante sinalize que é seguro liberar os cintos.
O ronco dos motores começou a subir gradativamente, preenchendo a cabine com uma vibração sólida e constante — o prelúdio do movimento. As janelas externas exibiam o pátio do aeroporto iluminado pelo sol ainda baixo no horizonte, prometendo um dia claro e promissor.
— Aproveitem a viagem — concluiu Papadopoulos, com a autoridade tranquila de quem conhece cada curva do céu — e mais uma vez, obrigado por escolherem voar conosco.
Thena fechou os olhos por um breve instante, sentindo a mão quente de Hela apertar a sua.
— Estamos juntos — disse ela, quase para si mesma, mas alto o suficiente para que Hela escutasse, uma âncora suave contra o turbilhão de pensamentos.
E, enquanto a aeronave começava a deslizar pela pista, levando-os ao rumo desconhecido, naquele instante, nada mais importava além da certeza do laço que as unia.
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O caminho de volta para casa se arrastava com uma lentidão angustiante, como se cada metrô percorrido fosse um teste de resistência entre dois mundos presos no mesmo carro, obrigavam a coexistir em silêncio. Não havia música. Nem palavras. Nem fuga. Apenas o ronronar contido do motor, o som monótono dos limpadores varrendo a chuva fina do para-brisa e o silêncio — aquele tipo de silêncio que não é ausência, mas peso. Denso. Amargo. Impossível ignorar.
Lá fora, o céu parecia refletir o que se passava dentro do veículo: encoberto por nuvens que não se moviam, como se o próprio tempo tivesse congelado. A luz era difusa, pálida, filtrada por camadas de cinza que faziam o mundo parecer mais frio do que realmente era. Árvores esqueléticas passavam como sombras borradas pelas janelas, e cada poste aceso pela neblina projetava um reflexo fugidio que parecia tremer diante da tensão.
Zuras mantinha os olhos fixos na estrada, mas tudo nele denunciava a implosão contida: os nós dos dedos esbranquiçados agarrando o volante como se dele dependesse sua sanidade, o maxilar travado com violência, a respiração rasa. Uma tempestade se formava por dentro — mas não era o tipo que vem com raios e trovões. Era o tipo que se acumula como um mar de lava sob a crosta — fervendo em silêncio, prestes a transbordar.
Cibele, no banco do passageiro, tinha o corpo ereto demais, o pescoço rígido, os olhos escuros afiados como obsidiana. Cada batida de seus cílios parecia um julgamento. Sentia-se afrontada pelo silêncio dele. Pela ausência de resposta. Pela condenação não dita. Mexeu os dedos sobre o joelho com irritação contida, como se estivesse contando os segundos para o confronto inevitável.
— Vai continuar assim? — perguntou, virando-se devagar para ele. Sua voz era seca como madeira rachada. — Vai ficar em silêncio até quando?
A pergunta pairou no ar como uma lâmina suspensa, carregada de intenção. Era menos uma busca por resposta e mais uma provocação.
Zuras demorou a reagir. Sua mandíbula apenas enrijeceu ainda mais. Não desviou o olhar. Não piscou. Mas, quando finalmente falou, sua voz veio como um trovão abafado, grave, encharcado de mágoa:
— Até você entender o tamanho do estrago que fez.
A frase caiu no interior do carro como um bloco de concreto. Dura. Irremovível. Causando rachaduras invisíveis na superfície já trincada do que um dia foi parceria conjugal.
Cibele arqueou uma sobrancelha. O gesto foi sutil, quase preguiçoso, mas carregava desprezo. Um desprezo meticulosamente lapidado ao longo de anos. O tipo que sabe ferir sem levantar a voz.
— E você acha mesmo que eu estou errada? — disse, com uma calma que era veneno destilado. — Acha mesmo?
Zuras soltou uma risada curta, seca, que parecia ter nascido no fundo da garganta e morrido nos lábios. Uma risada de quem não achava graça há muito tempo.
— Estranho seria se você tivesse razão — respondeu. A voz era baixa, mas cortante como gelo sob pressão.
Ela se virou para a janela. Os braços cruzados com teatralidade silenciosa. O vidro mostrava o mundo lá fora em tons borrados — como se tudo fosse reflexo distorcido de algo que nunca foi real. Quando falou novamente, não o olhou. Mas cada palavra era uma faca lançada com precisão:
— Eu só queria abrir os olhos dela. Mostrar que aquela mulher que ela chama de esposa não passa de uma cela decorada. Que ela merece mais. Algo que não seja uma desordem emocional disfarçada de relacionamento. Algo decente. Algo que faça sentido.
Zuras inspirou fundo. Como se precisasse vasculhar o âmago para encontrar forças. Os olhos piscaram lentamente, como se queimassem.
— “Decente”? — repetiu, com uma ironia que sangrava. — Pra você, “decente” é vê-la negar quem é? Sufocar o que sente? Viver uma farsa pra caber no molde estreito do seu “normal”?
Cibele virou-se com lentidão cirúrgica. O rosto estava impassível. Olhos imóveis, sem nenhuma emoção aparente. Como se o que dissesse fosse uma verdade científica:
— Isso de “bissexualidade” é só uma fase. Uma confusão que vem e vai. Ela ainda sente atração por homens, não sente? Então ainda há esperança. Ela ainda não cruzou a linha do desespero. Ainda não se destruiu por completo. O que significa que ainda temos tempo. Tempo de consertar essa aberração que ela insiste em chamar de casamento.
E então, tudo se rompeu.
O carro estancou. Zuras pisou no freio com uma brutalidade animalesca. O veículo derrapou alguns centímetros, o som dos pneus sobre o asfalto molhado gritando como um corte rasgando carne. Os cintos os seguraram com firmeza, mas não impediram o impacto do choque emocional.
— TÁ LOUCO?! — ela gritou, pela primeira vez elevando o tom. — VAI NOS MATAR?!
Zuras se virou para ela com a expressão devastada. Havia algo nos olhos dele — uma mistura de incredulidade, fúria e exaustão. Mas o que mais doía era o amor. O amor que ainda sentia pela filha. O amor que ela, Cibele, parecia tentar arrancar como se fosse uma erva daninha.
— Louca tá você, Cibele! — rugiu, e a voz tremeu. — Louca por achar que amar alguém do mesmo sexo é doença! Por achar que pode “consertar” a filha que você teve a audácia de criar sem nunca enxergar de verdade!
Ela não piscou. Não vacilou. Apenas respondeu com a frieza que era sua marca:
— Eu a enxergo mais do que você. Por isso sei que ela está perdida. Dominada por uma mulher que a manipula e afasta da própria essência. Ela precisa ser resgatada. Antes que seja tarde demais.
Zuras riu. Um som curto, desesperado, um soluço travestido de riso. As mãos tremiam sobre o volante.
— Não. Você a vê como um espelho. E porque ela não reflete você, prefere destruir o que ela é. E chama isso de amor? De cuidado? Você não vê a filha que tem. Vê a filha que gostaria de ter. E isso... isso é monstruoso.
O silêncio seguinte era feito de vidro trincado. A chuva engrossava, pingando forte sobre o teto do carro, como se o mundo inteiro estivesse chorando pelo que acabara de acontecer.
Zuras apertou os olhos por um instante, como quem segura o grito dentro do peito. E então, encarando a estrada, murmurou a sentença final, com uma calma que cortava mais que qualquer grito:
— Você não quer salvá-la, Cibele. Você quer moldá-la. E isso... isso é o que me dá nojo.
Ele soltou o freio. O carro voltou a andar. Devagar. Arrastando os fantasmas que agora dividiam o banco traseiro com eles.
Na estrada encharcada, nenhuma palavra mais seria dita. Mas as marcas daquele diálogo — como rastros de pneu na chuva — jamais desapareceriam por completo.
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O carro seguia devagar, deslizando como um pensamento cansado pela estrada molhada. O asfalto encharcado refletia as luzes pálidas como se fossem cacos de céu partidos — distorcidos, frios, irreparáveis. Dentro do veículo, o ar estava denso, saturado de palavras não ditas, e a chuva tamborilando no para-brisa parecia o único som vivo, insistente, como se cada gota caísse com uma intenção: lembrar que ali dentro tudo estava afundando.
Zuras estava curvado sobre o volante com a rigidez de quem já não esperava chegar a lugar algum — como se dirigir fosse apenas o gesto automático de continuar, de não permitir que a dor o engolisse por completo. Havia algo de fraturado em seus ombros, uma resignação sem beleza. O tipo de cansaço que não vem das horas mal dormidas, mas das décadas mal vividas.
— Por mais que eu quisesse muito... — murmurou, como se confessasse a um fantasma — agradeço por elas não terem tido filhos.
A frase caiu entre eles como uma pedra atirada num lago de vidro: sem ruído, mas devastadora.
Cibele virou-se lentamente, como se cada vértebra do pescoço estalasse com a fúria que se acumulava. Seus olhos ardiam, não de emoção, mas de uma indignação cristalizada ao longo dos anos, talhada como mármore — fria, imutável, cega.
— Como é? — sibilou, sem precisar elevar a voz. — O que você acabou de dizer?
Zuras não respondeu de imediato. Seus olhos continuaram fixos no caminho à frente, mas já não viam a estrada — viam lembranças. Natalícios solitários. Conversas interrompidas. Portas batidas. O silêncio gotejando entre paredes. Viam Thena com os olhos marejados tentando sorrir. Viam Hela com o rosto machucado não por pancadas, mas por ausências. E então, por fim, ele respondeu — com a voz áspera de quem sangrou por dentro e nunca cicatrizou:
— Agradeço por não terem tido filhos. Porque nenhuma criança merece crescer ouvindo da própria avó que amar é errado. Que existe algo errado em ser quem se é.
A respiração de Cibele ficou irregular. Uma ruga profunda surgiu entre as sobrancelhas. Ela se virou para a janela, depois de novo para ele, como se buscasse uma forma de digerir aquela sentença — e falhasse.
— Você está me culpando por ser mãe? — rebateu com ironia venenosa. — Por querer o melhor pra minha filha?
Zuras bufou. Um som curto, seco, devastado.
— Isso não é amor, Cibele. Nunca foi. É obsessão por controle. Você não quer o melhor pra ela. Você quer o que você acredita que é o melhor pra você.
— Ah, claro — ela retrucou, rindo com escárnio. — E você, agora, é o bastião da liberdade afetiva. Aplaude essa palhaçada emocional como se fosse evolução. Mas não é. É desvio. É fraqueza emocional pintada de arco-íris.
Zuras apertou o volante com força. As veias saltaram em seus braços. Ele se virou lentamente, os olhos tão intensos que pareciam dois buracos de silêncio.
— Você queria que ela vivesse uma mentira. Queria vê-la com um homem que ela não ama, sufocada num casamento que a mataria por dentro, só pra que você pudesse sorrir pras vizinhos. E ainda chama isso de virtude.
Ela o encarou com o queixo elevado, como se cada palavra dele fosse um insulto contra a própria identidade.
— Eu chamo isso de ordem. Decência. De sanidade. Ela ainda é jovem. Ainda pode sair disso. Ainda pode reconstruir a própria vida.
Zuras inclinou-se progressivamente a cabeça, os olhos marejados — mas não choravam. Era como se ele tivesse chorado tanto por dentro que já não houvesse líquido suficiente. E quando falou, parecia exalar o próprio fim:
— Ela já reconstruiu a vida. Só que você se recusa a ver. Porque o que ela é agora... não serve pra você pendurar no porta-retrato.
Cibele rangeu os dentes, com raiva e impotência. E então, em um fio de voz que parecia um sussurro arrancado da garganta:
— Eu nunca vou aceitar isso.
Zuras assentiu, o rosto abatido e, ao mesmo tempo, estranhamente sereno. Como alguém que, ao tocar o fundo do poço, aceita que ali é o único lugar onde a verdade não pode mais ser negada.
— Eu sei — disse ele. — E por isso, pela primeira vez na vida... eu agradeço aos céus que Malory não permitiu que você fosse avó.
O carro continuava avançando.
Mas o que restava ali dentro não era mais um casamento.
Era um túmulo.
E o silêncio que se formou a seguir... não era ausência de palavras.
Era o som da última rachadura.
O colapso do que um dia foi amor — agora, apenas ecológico e ruína.
Chapter 28: Κεφάλαιο 20
Chapter Text
O trajeto segue como um corte contínuo na carne já aberta. O carro deslizava sem pressa, sem rumo emocional, como se a estrada fosse apenas uma desculpa para adiar o planejamento — o retorno a uma casa onde não existia mais lar. Lá fora, a chuva havia amainado, mas a névoa permanente, espessa como um segredo maldito, abafando sons, apagando contornos, diluindo tudo em cinza. Como se o mundo tivesse decidido acompanhar a morte silenciosa do que havia entre eles.
Dentro do veículo, a atmosfera era de um campo de batalha após o fim da guerra — não havia mais tiros, apenas escombros. Restos de palavras como corpos espalhados. Cibele mantinha-se imóvel, mas sua respiração estava descompassada, como se cada inspiração fosse um ato de resistência. O que mais a ferira não for a acusação. Mas a constatação — de que, em algum ponto do caminho, perdera o controle não apenas da filha, mas do homem ao lado. A figura que um dia fora seu cúmplice, seu aliado, agora era um estranho com olhos vazios e mãos que não a tocariam jamais.
Zuras não disse mais nada. Não preciso. Sua decisão se infiltrava em cada movimento, em cada silêncio, em cada tremor que percorria os ombros. E, quando virou à esquerda, saindo da estrada principal, seu gesto foi deliberado. Um desvio. Literal e simbólico. Cibele franziu o cenho, confusa.
— Essa não é a entrada pra casa.
— Eu sei — disse ele, sem olhar.
A resposta fez o estômago dela revirar. E, mesmo assim, manteve o queixo erguido, como quem se recusa a vacilar diante do abismo.
— Vai me deixar onde, então?
Ele demorou, lentamente, os olhos fixos à frente, como se qualquer desvio de atenção pudesse significar o colapso total do pouco que ainda segurava em si. E então, com uma serenidade assustadora:
— Num lugar onde você não possa mais confundir crueldade com zelo.
O carro continuou por mais alguns metros, como se fosse empurrado apenas pela força da decisão já tomada. A rua era estreita, margeada por arbustos baixos e muros altos. Poucos carros passando. Nenhum som além do motor abafado e da névoa sendo cortado pelos faróis. Até que Zuras virou novamente, entrando em um pequeno esconderijo onde um edifício discreto se erguia sob a luz pálida dos postes: fachada de concreto escura, janelas opacas, uma placa simples com letras metálicas: Pensão Lysistrata.
Era um lugar neutro. Sem história. Sem emoção. Sem futuro.
Ele estacionou com calma, desligou o carro. Não havia urgência em seus gestos — apenas firmeza. Quando saiu do veículo, o ar frio da noite pareceu se agarrar ao tecido de sua roupa como se quisesse impedi-lo. Mas ele contornou o carro e abriu a porta do lado de Cibele.
— Você está me expulsando? — ela disse, sem sair. A voz vinha com uma mistura estranha de incredulidade e desafio, como se esperasse que ele recuasse ao ouvir a própria brutalidade.
Mas Zuras não recuou.
— Estou libertando nossa filha — respondeu, com a delicadeza gasta de quem já não luta para convencer, apenas para proteger. — E a mim mesmo. Porque conviver com o seu desprezo travestido de amor... já matou coisas demais.
Ela não se moveu. Os dedos estavam tensos sobre a bolsa que descansava no colo, como garras tentavam agarrar algo que já não estava ali. Pela primeira vez, sua boca entreabriu-se sem que uma resposta saísse. Era como se tivesse percebido, enfim, que não havia mais espaço para ela naquela história — não como autora, não como editora. Apenas como consequência.
Zuras estendeu a mão com a chave da pequena suíte que havia reservado antes de sair para aquela noite. Não porque soube que o confronto aconteceu — mas porque, no fundo, sempre soube que era inevitável.
— Há uma cama limpa. Um banheiro quente. Café da manhã às sete. Fique o tempo que quiser. Ou o tempo que você precisa. Mas não volte enquanto sua presença significar dor.
Cibele pegou uma chave. Não por rendição, mas porque o gesto foi o último elo. Quando seus dedos tocaram os dele, não houve calor. Apenas a frieza do adeus.
Ela desceu do carro. Olhou para a fachada do prédio como se fosse uma sentença. Depois virou-se para ele, os olhos ainda escuros, mas sem brilho.
— E se eu não mudar? — Disse.
Zuras a encarou por um longo momento. A expressão era serena, devastada e definitiva.
— Então isso aqui... — enviado com o olhar para o espaço entre os dois — …foi o seu legado. Uma filha ferida. Um casamento morto. É a história de uma mulher que confunde a obediência com o amor.
Sem esperar resposta, ele voltou ao carro, fechou a porta com cuidado, ligou o motor e deu a ré. As luzes traseiras tingiram Cibele de vermelho por um instante antes de desaparecerem curva adentro, na direção oposta.
Ela ficou ali.
Sozinha, pela primeira vez em muito tempo.
E tudo ao redor parecia repetir, sem som, a frase que ele não dissera, mas deixara suspensa no ar:
"Você escolheu ter razão. Eu escolhi amar nossa filha."
E agora, era tarde para voltar.
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Cibele encarava o teto do quarto abafado da pensão como se ele tivesse algo a responder — alguma resposta escondida entre as trincas da tinta velha, entre o zumbido fraco da lâmpada fluorescente e o rangido da cama de molas que se recusava a silenciar o passado.
Respirou fundo. Pegou o celular da bolsa com mãos trêmulas, mas decididas. Procurou o nome que conhecia de cor — Iolanda — e abriu o botão de chamada.
O telefone tocou uma, duas, três vezes antes de ser atendido.
— Alô? — a voz de Iolanda veio alerta, mas não aflita. Quente, mas firme. Do tipo que já vira o suficiente da vida para saber quando alguém está ligando por orgulho ou por desespero.
Cibele não perdeu tempo.
— Não quero sermão, Iolanda — disse, direto ao ponto, com a frieza cansada de quem já estava à beira da rendição. — Só preciso que você vá até minha casa. Fala com o Zuras. Pede pra ele deixar você entrar e... me traz algumas das minhas coisas.
Do outro lado da linha, o silêncio durou pouco — mas o suficiente para Cibele saber que a irmã já havia compreendido o que estava acontecendo.
— Você quer me dizer o que houve? — Iolanda disse, sem elevar a voz, sem dramatizar. Apenas com aquela curiosidade contida de quem se recusa a ser cúmplice do silêncio destrutivo.
— Não agora — respondeu Cibele, a mão apertando o celular contra a orelha com mais força do que o necessário. — Só... faz isso por mim. Por favor.
— Vou levar suas coisas, — disse Iolanda, com uma pausa carregada no fim. — Mas não pense que não vou falar nada quando eu chegar aí. Porque se tem uma coisa que você precisa ouvir, é o que ninguém mais teve coragem de te dizer.
Cibele não respondeu. Nem privilegiadas. Nem desligou.
Ficou ali, com o aparelho encostado ao rosto e o eco do afeto indignado da irmã atravessando as paredes do quarto, como uma lembrança antiga aquilo que um dia foi laço. Ainda estava de pé — mesmo que trincado.
Ela fechou os olhos.
E espero.
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— Iolanda? O que faz aqui?
Zuras abriu a porta com a expressão marcada pela noite mal dormida e o peso das últimas palavras que ecoavam na casa vazia. Estava sem o paletó, a camisa meio amarrotada, e os olhos, embora atentos, traziam aquela exaustão de quem tinha enterrado mais que um casamento naquela madrugada.
Diante dele, parado sob a luz fria da varanda, estava Iolanda. Casaco escuro, cabelo preso de qualquer jeito, uma expressão que oscilava entre o desconforto e a firmeza. Na mão direita, uma chave reserva; à esquerda, uma mala vazia.
— Oi, Zuras — disse ela, simples. Sem rodeios. Sem hesitar.
Ele arqueou as sobrancelhas, confuso.
— Aconteceu alguma coisa?
Iolanda soltou um suspiro lento, como quem não queria estar ali — mas sabia que precisava.
— Cibele me ligou. Pediu que eu viesse pegar algumas das coisas dela.
Zuras baixou os olhos por um momento, assentindo em silêncio. Não parecia surpreso. Apenas... abatido.
— Deixei duas malas dela arrumadas. Estão na sala.
— Vai se divorciar?
Zuras discretamente os olhos lentamente ao ouvir a pergunta. O tom de Iolanda não foi acusador, nem curioso — foi apenas humano. Uma pergunta crua, nua, como a madrugada que os envolvia.
Ele demorou a responder.
Não porque não soubesse.
Mas porque, ao dizer em voz alta, sentiria o peso definitivo daquilo que já havia acontecido por dentro.
— Ainda não sei — respondeu, por fim, com a voz rouca, contida, marcada por um esgotamento que já não buscava defesa. — Talvez... talvez isso já tenha acontecido. Só falta o papel.
Iolanda entrou devagar, os passos silenciosos sobre o chão frio do corredor. Ela avistou as malas encostadas à parede da sala — discretas, mas incluídas. Como se todo o passado recente de Cibele ficou dobrado ali dentro, junto com os gritos não ditos, os silêncios que ferem e os afetos que apodreceram sem espaço pra florescer.
Zuras encontradas em pé, próximo à porta.
— A casa ficou... mais silenciosa. — ele disse, quase num sussurro. — Mas não de um jeito bom.
Iolanda o inspirou por alguns segundos antes de responder. E quando falou, a voz veio mais baixa. Mais doce.
— Às vezes, Zuras... é preciso um silêncio ruim pra quebrar o ruído doentio. Pra gente entender o que realmente precisa ser aqui — e o que precisa ser atrás.
Ele respirou fundo, mas não respondeu.
Ela se mudou das malas, abaixando-se com cuidado, deixou a primeira mala com facilidade.
— Vou levar isso até o carro. — disse, puxando uma das alças. — Depois voltei pra pegar a outra.
Zuras fez menção de ajudar, mas ela estendeu a mão pegando a segunda mala.
— Você está bem?
Zuras não mencionou. Mas também não dramatizou.
— Não. Mas vou ficar.
Ela assentiu, já com as mãos nos puxadores das malas.
— Não é sua culpa. O que aconteceu com a Cibele... ela já vem escolhendo há anos.
— Eu sei. E fui covarde de não por um basta isso antes.
— Se precisar de alguma coisa... qualquer coisa... me liga.
Ele forçou um sorriso leve, breve, do tipo que só serve para não deixar a dor transbordar pela porta.
— Obrigado.
Iolanda caminhou até a saída. Parou no batente.
— Zuras?
Elevou os olhos.
— Só me promete uma coisa.
Ele estava olhando, cansado, mas presente.
— Cuida da Thena. Ela vai sentir mais do que diz.
Zuras assentiu, e seus olhos marejaram — discretos, firmes. Não pela dor do fim. Mas pela lembrança do que ainda importava.
— Sempre cuidei. Mesmo quando não sabiam disso.
Iolanda transmitiu com ternura. Não disse mais nada. Apenas saiu, empurrando a mala com uma dignidade silenciosa, deixando para trás uma casa que agora era feita de pausas longas, espaços vazios e, quem sabe... um começo.
Mesmo que à custa de um fim.
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— Finalmente, Iolanda! Que demora!!
A porta do quarto da pensão se abriu num ímpeto ansioso, e Cibele surgiu no batente com o rosto abatido, mas ainda carregando aquele tom autoritário que nunca soube dosar. O cabelo preso às pressas, o pão fechado com força, como se a dignidade pudesse ser amarrada com um nó.
Iolanda nem se intimidou. Entrou devagar, puxando a mala dobrável e uma sacola com roupas suspensas sobre o ombro, o rosto firme como uma rocha antiga.
— Estou te ajudando a contragosto — disse, cruzando o quarto sem olhar diretamente para a irmã. — Não reclame. Você não merece.
Cibele arregalou os olhos, tomada de surpresa. Estava acostumada a ser confrontada por estranhos — não por Iolanda. Nunca por Iolanda.
— Como é que é?
— Você ouviu muito bem. — Iolanda largou a mala ao lado da cama com um baque seco. — Tô aqui porque ainda me importo. Porque, no fundo, eu acredito que você ainda pode mudar. Mas a cada palavra sua... você me lembra o quanto faz questão de não aprender nada.
Cibele se calou por um segundo. Depois cruzou os braços, tentando recuperar a pose.
— Eu só pedi que trouxesse minhas coisas.
— E eu trouxe — cortou Iolanda, ríspida. — E ainda ouvi o Zuras dizer que deixou tudo arrumado. Quieto. Digno. Com dor nos olhos, mas com a cabeça erguida. E você aqui, cobrando pontualidade como se estivesse num salão de beleza.
Ela então se virou, os olhos faiscando com raiva contida.
— Você destruiu uma ponte que ele passou anos tentando manter o pé. E o pior? Você ainda acha que está certo.
Cibele abriu os braços contra o peito. A postura era rígida, mas o rosto já não era tão firme.
— Eu sou a mãe dela, Iolanda! Tenho o direito de querer o melhor pra minha filha!
— O melhor pra ela ou o melhor pra você? — Iolanda rebateu, seca. — Porque são coisas diferentes. E você sempre confunde isso.
Cibele abriu os lábios. Respirou fundo.
— Eu só... só queria que ela tivesse uma vida estruturada. Normal. Tradicional.
Iolanda deu uma risada curta. Dolorida.
— Normal, Cibele? Você está ouvindo a mesma coisa? Você acha que o amor é anormal? Que alguém precisa se encaixar no seu molde estreito para ser digno de respeito? Pelo amor de Deus... você tratou o casamento de sua filha como se fosse uma falha de caráter.
— Não é um casamento, é um erro. Uma ilusão! Aquela mulher...
— Aquela mulher tem mais integridade e amor do que você conseguiu demonstrar em vinte anos de maternidade! — interrompeu Iolanda, agora elevando a voz. — A Hela cuida da Thena com um tipo de ternura que você não sabe considerar porque nunca soube dar. E mesmo assim, ela respeita você. Engoliu tanto desprezo em silêncio só pra manter a paz. E Thena... Thena passou a vida inteira tentando se encaixar nos seus padrões — até sangrar.
Cibele tremeu.
— Eu nunca quis machucá-la.
— Então por que vive fazendo isso?
A pergunta ficou suspensa no ar. Sem resposta.
O silêncio era tão pesado que parecia inclinar o teto do quarto.
Iolanda se mudou, mais calma agora, mas ainda firme. Seus olhos estavam marejados, mas ela os mantinha abertos, duros, claros.
— Você pode continuar vivendo nesse quarto como se fosse vítima. Você pode tentar se convencer de que todo o mundo está errado, menos você. Mas eu não vou fazer parte da sua ilusão. E se um dia quiser voltar... comece pedindo desculpas. Não pra mim. Não pro Zuras. Pra Thena. E principalmente... pra Hela.
Cibele desviou o olhar. O queixo tremia.
— Eu... eu dei tudo a ela. Dei educação, dei teto...
— Mas nunca deu escuta. Nunca deu liberdade. Nunca deu acolhimento.
Iolanda passou a mão pelo rosto, como quem tentava se conter.
— E você sabe o que é pior, Cibele? Eu te amarei. Na verdade. Eu sei que tem amor aí dentro. Mas você amar não significa que os outros sintam esse amor. E do jeito que você impõe, as pessoas acabam confundindo seu afeto com medo. Com vergonha. Com culpa.
Cibele então, por fim, murmurou com um fio de voz:
— Eu só... não queria perdê-la.
Iolanda suavizou o rosto. A primeira rachadura. A primeira confissão real.
— E perdeu. Porque tentei controlá-la, não amá-la. Mas talvez... talvez ainda dê tempo de reconquistar. Se você calar a voz do orgulho e deixar a filha falar.
A mais velha pegou a bolsa e eventualmente foi à porta.
— As roupas estão limpas. Já os laços... esses você vai ter que lavar sozinha.
Cibele proteína imobiliária.
E Iolanda saiu.
Mas, pela primeira vez... Cibele quis ir atrás. E não foi. Ainda. Mas quis.
E isso, em silêncio, era o começo de algo.
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O silêncio que se instalou depois da saída de Iolanda não era o mesmo que rondava Cibele há dias — aquele silêncio de frustração contido, de negação armada. Não foi feito de arrogância nem de orgulho.
Era feito de eco.
Um eco fundo, íntimo, feroz — que reverberava por cada canto da pequena pensão como se a verdade tivesse, finalmente, encontrado uma fresta para entrar. E o que antes eram paredes neutras, teto abafado e cama impessoal, agora espelhos trincados. Refletindo as rachaduras que ela sempre sabia que existiam, mas fingia não ver. Assim como Iolanda, com palavras cortantes e desoladamente amorosas, deixando-a exposta como nervos vivos.
Cibele ainda estava de pé, imóvel, com a porta do quarto entreaberta atrás de si, como se pudesse recuperar no tempo. Como se ainda fosse possível desfazer a última conversa, ou cancelar o que dissera — e o que não teve coragem de dizer.
O roupão grosso envolve seu corpo como uma couraça de rendição. Ela o apertava com força ao peito, como se quisesse conter as farpas que Iolanda havia cravado não com ódio, mas com amor. O pior tipo de amor: aquele que enfrenta, que empurra, que sangra para salvar.
As palavras continuavam girando dentro dela. Ressonando. Pousando em suas entranhas como pedras molhadas.
"Você sempre confunde o melhor pra ela com o melhor pra você."
"Você ama não significa que os outros sintam esse amor."
"Você vai ter que lavar os laços em privacidade."
Ela contribuiu com dificuldade, o ar entrando como se passasse por dentro de um funil estreito. Seus olhos vagaram pela penumbra do quarto e pararam na mala encostada ao lado da cama. Pequeno, simples. Mas nela cabia tudo o que restava de um casamento — ou melhor, tudo o que o marido havia deixado para trás com o cuidado de quem ainda se importava.
As alças estavam dobradas com perfeição. O tecido limpo. Os zíperes fechados com o tipo de proteção que só quem respeita o passado é capaz de realizar.
Ela se mudou. Cada passo parecia trair o orgulho. Como se andar até aquela mala fosse ceder. Mas havia algo que queimava por dentro — algo diferente do ressentimento habitual. Uma inquietação que não vem da certeza, mas da dúvida.
Cibele se agachou lentamente, sentindo os joelhos rangerem como portas velhas. As mãos tremiam levemente quando tocaram o zíper. Ela o afastou com cuidado.
O som do metal deslizando trilho pelo tão alto demais naquele silêncio denso. Como se abriu, não só a mala, mas um espaço adornado nela mesma.
Lá dentro, o mundo havia sido dobrado.
Roupas organizadas por cor. Uma nécessaire com seus cremes. Os sapatos envoltos em panos. E, por cima de tudo, como uma peça esquecida de memória, relacionadava a blusa azul-marinho que Thena lhe dera no último aniversário em que ficou sob o mesmo teto.
Ela levou a blusa até o rosto com um gesto quase instintivo. O perfume ainda estava ali. Suave. Puro. O mesmo cheiro da filha criança, quando se aninhava em seu colo, ainda com os cabelos trançados e os olhos brilhando por aprovação.
Agora, aqueles olhos já não a procuravam mais. Tinha aprendido a buscar refúgio em outro lugar. Noutro colo.
E foi então que viu o porta-retrato.
Estava envolto em uma blusa de lã clara. Como se Zuras tivesse querido conhecê-lo. Como se soubesse que ela, ao vê-lo, sentiria o peso do que havia se perdido.
Cibele desfez o tecido devagar, com uma reverência que nem percebe. E então, ali estava: a imagem.
Uma família.
Zuras com a mão no ombro de Thena, sorrindo cansado. Thena, de braços cruzados, tentando parecer firme, mas com aquele meio sorriso que sempre escapava quando Hela estava por perto. E Hela… um passo atrás, como quem sabe seu lugar na cena. Séria, elegante, o olhar voltado para a câmera — ou talvez para Thena.
E ela, Cibele, bem ao centro. Com o vestido verde-esmeralda, o colar de pérolas, e aquele sorriso solicitado que ela sempre usava em fotos. O tipo de sorriso que não mostra os dentes — mostra os limites.
Sentou-se na beirada da cama, sem conseguir largar a moldura. Os dedos tocaram o vidro com uma delicadeza que contrastava com tudo o que já havia aqui. Tudo o que havia feito.
Hela nunca a chamará de sogra. Nem de “dona Cibele”. Sempre vinha acompanhada de uma “senhora”. E agora, olhando aquela foto, ela entendeu — pela primeira vez — o quanto aquela palavra era um muro. O quanto ela mesma escolhera cada tijolo. E esperou, no alto, que todos a vissem como uma figura de autoridade… quando, na verdade, aprendido a temê-la. A evitar. A mentir para não decepcionar.
Passou os dedos pela imagem de Thena.
Filha.
Sua filha.
E pensei na última vez em que a olhava nos olhos e disse que a amava. Sem crítica. Sem “mas”. Sem ajuste.
Não consigo lembrar.
A garganta aberta. Os olhos arderam. Mas ela não chorou. Ainda não.
Chorar exigiria um tipo de permissão emocional que ela sempre negou a si mesma.
Mas algo tremeu por dentro.
E, pela primeira vez em muito, muito tempo… não era raiva. Não era vaiidade ferida. Não era a certeza fria e duradoura.
Era uma dúvida.
Pequena. Sincero. Lenta como semente em terra árida. Mas tudo.
Aquela que sempre sufocou. Aquela que agora voltava com a voz de Iolanda, clara como um espelho limpo:
"Você ainda pode mudar."
E, no fundo, pela primeira vez, Cibele não sabia dizer se queria continuar sendo quem era.
Nem se conseguiria.
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Ela manteve os olhos fixos na foto como se fosse possível atravessá-la. Como se, olhando o suficiente, pudesse voltar naquele dia. Refazer uma pose. Repita as palavras. Respirar diferente. Dizer o que não disse.
Quis lembrar o que se passou logo depois do clique — mas não veio alguma memória de carinho, só do incômodo. Da blusa que apertava. A crítica que fez ao cabelo de Thena. Do olhar torto que lançou quando Hela, com naturalidade quase insolente, tocou as costas da filha com a ponta dos dedos. Um gesto tão leve e respeitoso — mas que ela, Cibele, viu como provocação.
Como ameaça.
Como um lembrete vivo de tudo que ela não controlava.
Agora, aquilo tudo voltava com o peso do que poderia ter sido. Da mãe que não foi. Da sogra que se escolheu a ser. Da mulher que confundiu severidade com virtude — e acabou colecionando obediência ao invés de afeto.
O silêncio do quarto começava a tomar outra forma. Deixava de ser apenas o vazio depois de uma visita dura. Era agora um espaço suspenso, como se o tempo esperasse que ela, enfim, dissesse algo — nem que fosse para si mesma.
E disse.
Baixo. Sem força. Sem voz.
— O que foi que eu fiz?
A frase quase não se ouvia, mas ela a sentiu no corpo inteiro. Nos ombros pesados, no estômago que revirava, nos olhos que umedeciam sem autorização. Era como se tivesse dito a verdade em voz alta pela primeira vez em anos.
Era terrível.
E era libertador.
Ela colocou uma foto sobre o colo com as duas mãos, como se fosse um relicário. Fechou os olhos por um instante, sentindo a imagem pesar mais que qualquer sentença. O orgulho que carregava por toda a vida parecia, agora, um móvel inútil no meio de uma casa em chamas.
Quis correr até o telefone. Ligar para Thena. Ou para Zuras. Ou — quem sabe — para Hela.
Mas o corpo não se move.
Porque saber que se errou não é o mesmo que saber pedir perdão.
Porque pedir perdão exige abrir a guarda. E ela nunca aprendeu a fazer isso sem parecer que estava perdendo.
E talvez... era disso que Iolanda falava. Que por tanto tempo ela tentou vencer uma batalha imaginária, quando tudo o que a filha queria era paz.
Cibele suspirou. Longo. Devagar.
Olhou novamente para o porta-retrato.
A voz de Iolanda ainda ecoava, agora mais suave, como se morasse ali dentro desde sempre:
"Se quiser voltar... comece pedindo desculpas. Não pra mim. Não pro Zuras. Pra Thena. E principalmente... pra Hela."
Ela passou a mão pelos cabelos, afrouxou o laço do roupão. Pela primeira vez em dias, enviou-se com a coluna curva, os ombros baixos. Sem pose. Sem defesa. Sem máscara.
E, com os olhos ainda presos na foto, murmurou:
— Senhora... senhora coisa nenhuma.
Foi quase uma frase sussurrante. Mas era o começo de algo. Um gesto mínimo. Um ensaio de mudança.
Longe dali, nenhuma ponte estava sendo reconstruída ainda.
Mas pela primeira vez... Cibele se perguntou como se fazia parte das fundações.
Chapter 29: Επίλογος/Epílogo
Chapter Text
O quarto da pensão era sempre o mesmo, mas mudava com ela a cada dia. A colcha azul desbotada já não a incomodava — agora era quase um conforto. Os cantos removidos da parede parecem espelhos do que ela própria sentiu internamente: gasta, trincada, exposta. Ela estava acostumada ao ritual matinal de acender a luz fraca, abrir a janela de madeira emperrada e ouvir a cidade acordando sem pressa. O som dos carros, das vassouras nas calçadas, do rádio da recepção tocando bossa nova antiga. Tudo acontecia do lado de fora. Do lado de dentro, tudo parava.
Cibele sentado boa parte do tempo sentada à mesa pequena, de frente para a janela, com a caneca de chá esfriando entre as mãos. Não mais café. Café era dele. Chá era neutralidade. Às vezes abria o caderno e escrevia. Às vezes só olhei para o nada, como quem esperava uma resposta do céu de concreto. Revia os gestos da última conversa com Zuras. Revia os olhos de Thena. Ó silêncio de Hela. Revivia falas como se tentasse editar uma peça de teatro já encenada e falida. E sempre voltava ao mesmo ponto: não havia mais como apagar. Só restava aceitar o papel que representava. E decidi se queria continuar ativo, ou — enfim — viver.
Descia para o café da manhã em horários alternados, só para evitar encontrar os mesmos rostos. Cumprimentava uma recepcionista com um aceno curto. Pegava pão seco, manteiga, fruta. Sentava-se sozinha no canto. E comia devagar, observando os outros hóspedes como se estudassem uma espécie distante. Casais riam. Viajantes mexiam no celular. Jovens conhecem de planos. Ela ouvia tudo, mas não escutava ninguém. Estava ali como se fosse uma sombra — visível, mas deslocada.
Às vezes se forçava a sair. Caminhava por ruas desconhecidas, evitava padarias onde sabia que seria confiável. Evitava roupas. Evitava tudo o que pudesse trazer de volta a Cibele que sustentava a si mesma com aparência. Passava por vitrines, por feiras livres, por barulhos de vida, mas andava como quem flutuava sobre as calçadas. Incompleto. Ausente de si. Só percebi o tempo pela luz do céu. E pelo cheiro das padarias às seis.
Voltar para o quarto era sempre o ponto mais difícil. Porque ali não havia ninguém além dela. Ninguém para perguntar se estava tudo bem. Ninguém para discutir. Ninguém para ouvir seus julgamentos. E, estranhamente, era isso que fazia mais: a falta da própria fricção. Descobria agora que o confronto com Zuras era, de alguma forma, o que a mantinha existia. Que havia feito da briga uma forma de se sentir importante. E agora, com o silêncio... vinha a verdade nua. Não havia plateia. Só ela e as ruínas.
Com o tempo, começou a observar outras pessoas da pensão. Uma senhora no quarto ao lado que falava com uma rádio antiga. Um homem de meia-idade que lia o mesmo jornal todos os dias no saguão. Pessoas solitárias, como ela. Mais diferentes. Elas são transferidas por perdas naturais. Ela, não. Sua solidão era esculpida. Construída a punho. E isso pesava mais. Saber que ninguém a tirou de casa. Que ela mesma construiu a estrada para aquela pensão. Tijolo por tijolo.
O telefone ao lado da cama permanece mudo. Ligava para ninguém. Esperava ligações que não viriam. Havia ensaiado tantas vezes o número de Thena. Chega a discar os primeiros dígitos e parar. Porque ainda não sabia o que dizer. Porque tudo o que eu sabia antes — com toda certeza — agora parecia venenoso. E as palavras, aquelas que usavam para controlar, agora são punhais sem propósito.
Tentei escrever uma segunda carta. Mais sincero. Rasgou. Depois tentei novamente. Rasgou de novo. A vergonha era maior que a culpa. E o amor... ainda era tímido demais para se chamar pelo nome. Ainda estava revestido por medo. Medo de exclusão. Medo de ver refletido nos olhos da filha o estrago que envolveu. E, principalmente, medo de presumir que tudo o que construiu, toda a rigidez com que sustentou a moral da família, era só... uma proteção frágil contra suas inseguranças.
Começou a falar sozinha. Às vezes em voz alta. Às vezes apenas incomoda os lábios. Perguntava coisas como "Onde foi que eu perdi?" ou "Por que ninguém me avisou?" — mas a resposta era sempre a mesma: alguém avisou. Iolanda avisou. Zuras ajudou. Até Hela, com seu silêncio digno, dizia tudo com um único olhar. Mas ela se encontrou a escutar. Porque ouvir era ceder. E ceder, para Cibele, sempre foi fracassar.
E então vinha a noite.
A pior parte do dia.
Porque na noite não havia barulho externo. Só os barulhos internos. As vozes que retornaram. Os cheiros que doíam. As lembranças que não tinham para onde ir. O corpo deitava, mas a mente ficou em pé — encostada no batente da culpa, observando tudo o que se perdeu.
Cibele se perguntou se Zuras dormia bem. Se Thena ainda usava o cabelo preso. Se Hela ainda a chamava de “senhora” mesmo quando estava a sós. Se algum dia — mesmo que um só — alguém chorou por sua ausência.
Mas o que mais a doía... era não saber se faria falta se nunca mais voltasse.
Porque pior do que ser rejeitada… era descobrir que, no fim das contas, talvez, ninguém sentiu sua falta.
Nem como era.
Nem como poderia ter sido
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A casa parecia maior desde que ela saiu — não porque tinha mais espaço, mas porque o espaço que antes era necessário por tensão agora era descartável. Zuras nunca gostou de barulho, mas aquele silêncio era outro. Não era paz. Era ecológica. Um eco que repete tudo que não foi dito. Tudo que ele calou por anos para evitar choques, para manter o lar de pé, mesmo que fosse um lar sustentado pelas aparências, onde o afeto só entrou com hora marcada.
Ele acordou cedo. Mais cedo do que antes. Não por disciplina, mas por falta de sono. Dormir era difícil. As noites vinham longas, pesadas, e o colchão — mesmo confortável — parecia expor todos os espaços vazios que o corpo dela não mais ocupava. O travesseiro ao lado ficou intocado. Ele não mexia, não mudava a fronha. Era como um tipo estranho de respeito, ou talvez um tipo sutil de luto. Um luto sem corpo. Um luto de alguém que ainda estava vivo, mas já não habitava aquele lugar.
A rádio da cozinha segue em silêncio. Durante décadas, ela reclamou que ele ouvia a rádio AM alto demais. Agora, ele nem ligou. O rádio parecia olhar para ele com ressentimento, como quem pergunta "E agora, quem vai brigar comigo?"
Zuras preparava o café em silêncio, como fazia todos os dias. Mas agora só para um. A mesa era posta com um único prato. A toalha que Cibele tanto ocupava dobrada na gaveta. Ele usava um pano de prato como apoio, sem formalidades. A cadeira dela permanência vazia. Ele ainda olhou para ela às vezes, como se fosse possível que ela surgisse, de roupão, dizendo "Esse café tá fraco de novo, Zuras."
Mas não cirurgica.
A solidão dele não era ruidosa. Não era melodramática. Era a solidão do homem prático, do homem que carrega a dor sem mostrar. O tipo de dor que não explode — apenas vaza. Em pequenos gestos. Em inspirar mais tempo do que o necessário. Em olhar pela janela tempo demais. Em guarde um copo que não foi usado. Em ouvir os próprios passos como se fossem de outro.
Zuras passou a varrer o quintal todos os dias, mesmo que não houvesse folhas caídas. Era o que lhe dava uma sensação de movimento. Segurar o cabo da vassoura, sentir o arrastar sobre o chão, ver a linha limpa se abrindo entre as pedras do jardim... era como desenhar ordem onde tudo dentro dele era desordem. E ali, entre as plantas malcuidadas e a parede manchada, ele às vezes murmurava o nome dela. Só para ouvir como soava na boca. Só para lembrar que um dia ele a chamou com ternura.
O telefone tocava um pouco. Thena ligava às vezes. Breve. Correções práticas: "Pai, vai no cardiologista." ou "Já tomou o remédio?"
Ela não falou de Cibele. E ele também não perguntou. Entre pai e filha agora existia um pacto silencioso de não remoer. Mas também de não esquecer. Nas últimas ligações, ela disse:
"Eu estou bem. Hela também. Mas não consigo ainda falar dela sem doer."
Zuras apenas respondeu:
"Eu entendo."
Às vezes, durante as refeições, ele comia olhando para a janela. Viu o tempo mudando. A árvore da frente perdendo folhas, depois ganhando outras. O céu mudando de azul para chumbo, depois para noite. Era como se o tempo passasse só do lado de fora. Dentro dele, ainda era o dia em que Cibele saiu do carro sem olhar para trás.
Ele tinha raiva dela, sim. Mas era uma raiva triste. Uma raiva que nasce da frustração de saber que ela poderia ter sido tanta coisa. Poderia ter sido amiga da filha. Ter acolhido. Ter perguntado. Mas prefiro julgar. Preferiu vencer. E no fim, perdeu todos.
À noite, Zuras sentou-se na poltrona que sempre foi dele. Lia um pouco. Repetia velhos capítulos. Às vezes, nem lia. Apenas segurava o livro aberto, com os olhos fixos na parede, onde a sombra do abajur projetava o contorno de um tempo que não voltava. Ele sentiu falta de conversar. Mesmo das conversas ríspidas. Mesmo das perguntas dela que vinham com veneno. Porque faziam parte da vida. E agora tudo era... imóvel.
Começou a escrever também. Coisas simples. Frases em cadernos velhos. Memórias. Esboços de cartas. Não para ela. Ainda não. Mas para Thena. Para tentar registrar o que sente antes que o tempo torne tudo mais opaco. Escreveu: "Me arrependo de não ter falado mais alto quando vi que ela estava sufocando nossa filha. Me arrependo de ter escolhido a paz do silêncio, quando a justiça morava no barulho."
Limpe os armários dela. Não por vingança. Por necessidade. Chorou com o cheiro de alguns vestidos. Guardou os brincos numa caixa. Dobrou cada peça com um respeito absurdo. Como se dissesse, sem palavras: "Eu te vi. Mesmo quando você não me viu."
Zuras às vezes sonhava com ela. Mas nos sonhos, não brigamos. Estavam sentados, frente a frente, numa cozinha menor, mais modesta. Tomando chá, não café. E ela perguntou: "Você acha que ainda dá tempo?"
E ele respondeu:
"Eu não sei. Mas quero estar aqui caso você tente."
Quando acordava esses sonhos, ficava olhando o teto por minutos. Depois levantouva. Café Fazia. Dava comida ao cachorro da rua. Voltava para dentro.
E o silêncio o recebia como um velho amigo.
Não hostil.
Mas permanente.
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Com o tempo, os dias começaram a se embaralhar. Segunda parecia quarta. Sexta era apenas mais uma terça disfarçada. O calendário na parede da recepção acumulava dados riscados com caneta vermelha, mas na cabeça de Cibele, nada marcado. O tempo não passava — se acumulava. Sobre os ombros, sobre os olhos, sobre a pele. Ela dormia demais num dia e quase nada no outro. Sentia fome quando não havia comida e desprezo pelo prato quando tentava comer. Era como se o corpo estivesse desobedecendo uma rotina emocional que por décadas ela controlou com punho de ferro.
Começou a andar com um guarda-chuva, mesmo nos dias de sol. Um hábito sem função prática, mas que lhe dava a sensação de estar protegido de algo. Da clareza, talvez. Das pessoas. De si mesmo. Sentava-se às vezes em bancos de praça e fingia ler. Mas os olhos passam pelas linhas sem absorver uma única palavra. Não era mais questão de distração. Era como se a linguagem inteira não fizesse mais sentido. Como se todas as palavras do mundo foram esvaziadas depois que as dela feriram as que mais importavam.
Os outros hóspedes da pensão ficaram a olhar com curiosidade silenciosa. Alguns cochichavam no corredor. “A do quarto 4.” Uma mulher que nunca sorri. Que descia tarde, que não atendeu o celular, que parecia carregar o fim do mundo nos ombros. Ela ouvia. Não respondia. Não porque estava acima das coisas, mas porque não tinha forças nem para o orgulho. Certa manhã, uma senhora de óculos grossos mandou-se ao seu lado no café e disse, simplesmente:
— Você parece alguém que foi embora de casa… mas a casa não foi embora de você.
Cibele não respondeu.
Mas aquele comentário ficou dentro dela o dia todo, roçando as costelas, incômodo como um sussurro que não desaparece. Era verdade. Ela estava longe da casa, do marido, da filha, da rotina. Mas a casa estava dentro dela. O armário da cozinha. O som da máquina de lavar. Uma risada abafada de Zuras assistindo TV. O arrastar dos chinelos de Thena de madrugada. Estavam todos ali. E cada vez que ela tentava esquecer, o silêncio da pensão trazia tudo de volta.
Ela pensou em se confessar. Entrei numa igreja. Sentou no fundo. Observei. O padre falou de perdão como quem fala de pão. Algo simples, necessário, cotidiano. Mas para ela não era. Não porque não quis. Mas porque não sabia como. O que era pedir perdão? Era dizer “me desculpe” com lágrimas? Era esperar acessível? Ou era continuar, mesmo que não viesse? Ela saiu antes do fim da missa. Sentia-se deslocada até entre os pecadores.
À noite, passou a ouvir rádios antigas. Uma emissora de AM que tocou vozes de décadas passadas. Notícias de trânsito, músicas lentas, vinhetas com chiado. Aquilo a confortava. Não porque fosse bom — mas porque era familiar. Cresceu ouvindo rádio. A mãe dela ouvia também. Era como voltar para um tempo em que tudo era claro, dividido entre certo e errado, sem esse campo cinza onde agora ela tropeçava todos os dias. A rádio não julgou. Só tocava. Só preenchia.
Começou a se lembrar do casamento. Não das festas, das fotos. Mas das pausas. Dos dias comuns. Das vezes em que Zuras calava para não machucar. Em que ela fechava a cara para não dizer o que queria. Em que o amor existia… mas encurralado. Uma fera num canto. Nunca solto. Nunca aconteceu. Uma obrigação, não um descanso. E agora, longe dele, ela via aquela obrigação talvez fosse o que a mantinha inteira. E que, sem ele, havia apenas o eco de uma mulher que não sabia mais quem era.
Um dia, organizando seus poucos pertences, encontrei uma agenda velha. Nas últimas páginas, havia bilhetes guardados de Thena. Um com nove anos: "Mamãe, você é forte como pedra, mas às vezes pedra também precisa de flor."
Outro, já adolescente: "Eu queria te contar um segredo, mas acho que você ficaria com raiva, então só quero dizer: eu te amo mesmo assim."
Cibele leu os bilhetes com os dedos tremendos. Um calor subiu pelas bochechas. Não era vergonha. Era outra coisa. Era saudade. Não é filha de agora. Mas da menina que ainda achou que ela poderia ser flor. Que ainda acreditava não que hoje nem ela acredita mais.
Comprou um celular novo. O antigo havia deixado de carregar. Não salvou quase nenhum número. Começou do zero. Um dia, escreveu “Thena” na lista de contatos, mas não colocou o número. Só o nome. Como se fosse um ensaio. Um rascunho de coragem. Como quem prepara o terreno antes da semeadura. Ficou olhando aquele nome sozinho na tela. Depois apagou. Depois digitou de novo. Não ligado.
Cibele passou a assistir às famílias da praça como se fossem peças de teatro. Os gestos simples: uma mãe limpando o nariz do filho, um pai ensinando a criança a andar de bicicleta. E se perguntava: Em que momento deixei de ser parte disso? Quando foi que o amor virou correspondido? Quando foi que proteger virou punir?
As perguntas não tinham resposta. Mas começavam a criar sulcos. Como raízes quebrando o cimento por baixo.
Ela já não se via como vítima. Isso havia passado. Não senti pena de si. Sentia outra coisa, mais seca. Um vazio que não era fome. Era ausência. A ausência de uma vida verdadeira. De um amor vívido com coragem. De uma filha que, se voltasse hoje, encontraria uma mãe diferente — mas ainda sem nome. Ainda se moldando. Ainda imperfeita.
E era isso que mais doía.
Perceber que, se quisesse reconquistar alguma coisa… teria que começar de um lugar onde nunca esteve:
A humildade.
E talvez… a verdade.
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Nos primeiros dias após a partida de Cibele, Zuras manteve a casa como ela havia deixado — talvez por hábito, talvez por respeito. Mas, com o tempo, algo nele começou a se mexer. Não era revolta. Nem pressa. Era uma vontade tênue, quase invisível, de respirar diferente. Mudou o lado em que colocava o prato na mesa. Passou a abrir as janelas mais cedo. Tirou do armário uma colcha antiga, bordada por sua mãe, e colocou no sofá. Nada disso foi intencional. Eram movimentos pequenos, mas carregados de significado. Era como se, pouco a pouco, estivesse desalojando o fantasma do casamento que resistia nos detalhes.
Mesmo assim, ele ainda ouvia a voz dela por todos os cômodos. Não de maneira literal — mas em forma de lembrança. Cada frase dela parecia morar numa gaveta, numa cortina, num abajur. Às vezes, ao pegar o pano de prato, ouvia na mente: “Esse já está encardido, Zuras, pelo amor de Deus.”
E ele sorriu sozinho. Não com saudade leve, mas com uma ternura triste, a que só vem quando se percebe que até os incômodos fazem falta.
A rotina se torna repetitiva. Não por falta de opções, mas porque sair do automático deseja mais energia emocional do que ele tinha. Aposentado, os dias se esticavam como elásticos frouxos. Lia jornal cedo, fazia café, arrumava a louça, varria o quintal. À tarde, escrevia. Escrevia memórias. Não queria esquecê-las. Era a única forma de dar sentido ao silêncio.
Escreveu sobre Thena. Sobre quando ela caiu da bicicleta e Cibele, ao invés de acudi-la, disse: "Levanta. Não seja mole."
E ele, por instinto, escolheu a filha no colo escondido. Sem quarto. Com medo de que ela o visse como fraca.
Zuras, enfim, que passou grande parte da vida tentando equilibrar a balança entre a exigência da esposa e a sensibilidade da filha. Tentou mediar o mundo sem fazer barulho. E agora, o preço era esse: ninguém ouvia a verdade.
Ele mantinha uma pasta no computador com rascunhos de cartas nunca enviadas. Uma para Thena. Outra para Cibele. Nenhuma finalizada. Não sabia por onde começar. Não queria culpar. Mas também não queria poupar. Queria encontrar palavras que fossem verdadeiras sem serem cruéis. E isso, descobrira, era a parte mais difícil: dizer a verdade sem destruir.
Às vezes, à noite, pegava a última camisa que ela usava e deixava sobre o colo. Só para lembrar do peso. Só para ter algo entre as mãos. Havia dias em que o silêncio era suportável. Havia outros em que ele chegava a falar sozinho, apenas para ouvir uma voz.
Saía para caminhar pela vizinhança. Andava pelas ruas. Cumprimentava os mesmos vizinhos. Mas tudo parecia diferente. Como as pessoas sabiam. Não diziam, mas sabiam. Sempre houve um tipo de pena nos olhares. Ou de julgamento. Mas ele não se importava. Era um homem em fuga. Um homem em entullho. E eu sabia disso.
Ele não odiava Cibele.
Essa era a verdade mais dolorosa.
Não consegui odiá-la. Mesmo com tudo. Mesmo com a rigidez, a frieza, os anos em que ela calou os sentimentos da filha, dele, da casa. Mesmo com tudo isso — havia amor. Um amor distorcido, mas real. Porque ela parte fez da sua história. E porque, mesmo machucando, foi uma pessoa com quem ele dividiu o que tinha de mais íntimos: a construção de uma família. Mesmo que essa construção tenha sido feita de cimento grosso demais.
Às vezes, se pegava lembrando dos gestos pequenos. Do modo como ela ajeitava o colar antes de sair. Do jeito que dobrava os guardanapos nos jantares. Costuma deixar a escova de dente sempre voltada para o mesmo lado. Detalhes que ele nunca comentou — mas que agora voltavam como se pedissem para serem vistos.
Certa tarde, ao ver as plantas do quintal, uma das orquídeas floresceu. Era a que Cibele mais gostava. A única que não morreria. Zuras ficou parada, olhando para a flor como se ela falasse. Sentiu um aperto. E disse em voz baixa:
— Você ainda tá aqui, de alguma forma.
Guardou a flor.
Colocou num copo d'água e deixou na mesa da sala. Ao lado da rádio. Não como homenagem. Mas como um gesto. Um pedido. Um sinal de que talvez, mesmo que não volte a ser como antes, ainda havia espaço para alguma forma de cuidado. De escuta. A tentativa.
E nessa noite, antes de dormir, Zuras finalmente escreveu um parágrafo inteiro da carta para Thena. Escreveu:
"Se eu tivesse falado mais cedo, talvez você não tivesse chorado sozinha tantas vezes. Talvez sua mãe não tivesse criado muros onde pudesse haver janelas. Mas agora, filha... agora eu quero aprender a ser janela. Nem que seja tarde."
Fechou o caderno. Deixou o abajur ligado.
E deitou.
Na cama ainda grande demais para um só.
Mas, ao menos naquela noite, um pouco menos vazio.
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Enquanto Cibele dobrava a camisa que pegara do varal improvisado da pensão, ajeitando as costuras com dedos hesitantes, Zuras desdobrava uma camiseta velha dele — a preferida para dormir. Ela buscava ordem nas dobras. Ele encontrou memórias nos amassados. Ela tentou fazer parecer novo. Ele mantinha tudo como era. A ausência do outro se manifestava nas extremidades do gesto: ela escondia. Ele preservava.
No café da manhã, Cibele sentava sempre na mesa do canto, olhando para a parede. Pão, chá, um silêncio interior que nem as conversas alheias puderam furar. Já Zuras deixou a rádio ligada, alto, mesmo que não ouvisse realmente. Não queria silêncio. Precisava de barulho. Precisava que algo — qualquer coisa — ocupasse o espaço que antes era preenchido pela voz dela, pelas suas pacientes, pela presença física que preenchia mais do que os olhos admitiam.
Cibele passando as manhãs andando. Vitrines Olhava sem entrar. Olhava crianças sem sorrir. Procure alguma coisa que não sabia nomear. Zuras varria a casa. Passava pano. Organizou a gaveta de talheres três vezes na mesma semana. Ele não procurou — apenas se agarrou a uma rotina que disfarçava o buraco. Ambos fugiram. Mas de maneiras opostas. Ela andava para fora. Ele se agarrou ao dentro.
Ao entardecer, Cibele escreveua. Cartas que não enviava. Frases soltas, bilhetes para ninguém. Às vezes ensaiava o nome “Thena” no topo da página, só para ver como se sentia ao escrever. Mas sempre parava antes da primeira vírgula. Zuras, por sua vez, lia. Relia velhos livros. Marque trechos que mencionam falar com ele — ou dela. Subia para o sótão, pegava álbuns. Ficava com as fotos no colo como se esperasse que dali saísse alguma resposta.
À noite, ambos encaravam jantares solitários. Ela diante de uma sopa morna, numa tigela de porcelana barata. Ele diante de arroz com ovo e o som abafado da televisão ao fundo. Nenhum dos dois terminava o prato. Nenhum dos dois se levantava logo. Sentavam-se por longos minutos em frente aos restos — como se, naquele intervalo, a presença do outro pudesse ser evocada. Mesmo que só em silêncio.
Ela dormia com o cachecol que a filha lhe dera anos antes. Não por conforto, mas por vergonha. Era a única coisa dela que ainda a abraçava. Ele dormia com o travesseiro virado para o lado onde ela dormia. E, às vezes, no meio da noite, esticava o braço sem querer. Tocava o vazio. E recuava.
Ela evitou espelhos. Ele os encarava.
Ela temia ou reencontro. Ele temia o esquecimento.
Ela sonhava com a filha correndo, chamando “mãe”. Ele sonhava com Cibele dizendo “me desculpa” em sussurro.
Ela hesitou. Ele esperava.
Ambos estavam sós. Mas não estavam sozinhos. Porque o outro ainda vivia dentro. Nos gestos. Nas pausas. Nos olhares para o nada.
Cibele e Zuras — dois corpos distantes ocupando o mesmo tempo.
Como duas estações diferentes.
Mas sob o mesmo céu.

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aenldirot (isleliot) on Chapter 1 Thu 31 Jul 2025 08:33PM UTC
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