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Rating:
Archive Warning:
Category:
Fandom:
Relationship:
Characters:
Language:
Português brasileiro
Stats:
Published:
2025-12-08
Words:
2,204
Chapters:
1/1
Kudos:
1
Hits:
51

Futuro-imaginário

Summary:

Uma social num dia de mormaço quente no Rio de Janeiro entre universitários em férias faz Lica encarar de frente sentimentos mal resolvidos por Samantha.

Notes:

Pessoal, escrevi essa drabble em fevereiro de 2018, ouvindo Love is Beginning do Imaginary Future. Recomendo a leitura ouvindo a música pra uma experiência sinestésica :)

Algumas observações, já que é AU:
- A história se passa no Rio porque eu não consigo conceber calor e Novos Baianos em nenhum lugar que não esse. Nem na Bahia, haha.
- Não consigo criar uma Samantha fancha sem piercing no septo hahahaha. Então tomei a liberdade de deixar o da Gi em cena nesses casos :p
- Não tem uma linha de canon nessa história além dos caminhões que essas duas arrastam uma pela outra.

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(See the end of the work for more notes.)

Work Text:

É senso comum, acordo geral assumir que tampos de abeto produzem som estridente em instrumentos de corda acústicos. Gente da minha idade prefere violões pretos. Mesmo que a tinta cubra o abeto. Talvez eu seja folk demais pra compactuar com isso. Madeiras amareladas são tão mais legais. Ela prefere os escuros. Eu tocaria violino se tivesse disciplina. Ela ri. Ela é só risada e piercing no septo, o cabelo castanho em cachos tampando os olhos sendo jogado de lado enquanto vira um gole do copo descartável. Não, nunca toquei num feito de faia. Pestana é difícil pacas no começo – muda em algum momento? Muda. Muda mas até lá é tortura mesmo. Ela diz que ama Novos Baianos. Embolo as palavras ao reconhecer um sinal do universo que na verdade nem é: todo mundo ama Novos Baianos e essa é só mais uma coincidência absolutamente banal. Todo mundo quer ser cool aos vinte e um.  Pra onde essa conversa vai nos levar, de todo modo? Ela ri de um jeito meio escandaloso quando Clara, minha irmã, tropeça e esbarra no player de música, mudando do clássico da MPB pra música indie mais tocada da minha playlist nos últimos dias. "Oh my love. Love is beginning now..." Imaginary Future. Samantha me olha e sorri. Estranho pensar nisso. Eu não faço a menor ideia do que esteja fazendo.  É como ter treze anos outra vez.

Nós demos as mãos ontem. De novo.

Samantha ama manhãs e madrugadas. Tem algo de tranquilizador em não dormir e ver o dia começar com cheiro de café, ela diz.

- Como Acabou Chorare no meio de uma crise de ansiedade.

- É. Como Acabou Chorare no meio de uma crise de ansiedade.

Eu concordo, de certa forma – quando ela assumiu o namoro com Anderson, cerca de um ano atrás, passei a noite em claro. Mas eu nunca tinha dito nada. Ela não sabia o que eu sentia. Vi o dia clarear com uma caneca de mate na mão, uma playlist de folk modernete tocando nos fones de ouvido enquanto Clara dormia. Uma espécie de paz melancólica.

Estávamos falando de perto. Ergui as mãos para amparar o celular da Clara do esbarrão e os dedos da Samantha se encaixaram nos meus como que disfarçando.

Ela está olhando pro outro lado e eu sei o que todo mundo está pensando. Samantha e Lica não saem nunca desse chove-não-molha. Como se eu mesma não soubesse ler por trás de suas caras de paisagem. É que falta coragem.

Alguém coloca Novos Baianos de novo e os dedos dela escorregam dos meus, os braços pro alto como quem vai dançar. Não sei me desprender do cheiro.

Me sinto tonta.

As luzes de pisca-pisca são quentes demais pro janeiro do Rio mas continuo falando sobre padrões cognitivos disfuncionais com Juca e MB enquanto Samantha escorrega de volta pro meu lado, dedos roçando os meus, um copo na minha mão. O cheiro me invade de novo. O cheiro invade tudo, porque ouço Juca e MB dizerem qualquer coisa como “porra, Sam, usou o vidro todo?”

Irrelevante.

Quero encostá-la na parede mais próxima.

A próxima playlist tem funk e eu sou pretensiosa demais pra encarar. Nerd demais pra encarar. Juca oscila entre tirar o Munchkin da mochila ou pegar outro copo e ir pro meio do tapete arriscar uns passos. Sei que ele está inseguro. Ergo as sobrancelhas e tomo um gole do meu copo ao cruzar os olhos com MB e sorrir tão discretamente quanto só alguém quem se conhece há tanto tempo consegue. Ele se junta a Juca no tapete que se fazia pista de dança, o sorriso largo e os tapas nas costas sendo obviamente incentivos. Samantha, porém, já está de pé, a pele de cappuccino semidourada pela luz de pisca-pisca, a boca entreaberta num riso de criança que é ela toda. Zero neuroticismo.

Alguém me passa um cigarro. Nossos olhos se encontram e eu sorrio, consciente do vermelho do meu rosto estar disfarçado pela iluminação rasa.

Quero pôr as mãos nas pernas dela. Não posso tirar os olhos de seu riso e algo em mim se afunda quando ela me vê por cima dos ombros. Coragem.

- Lica. Vai lá. Chega logo nela – minha irmã diz, revirando os olhos como quem não aguenta mais.

- Clara. Ela gosta do Anderson – respondo, meus olhos fixos no fim das costas da Samantha, o ar sumindo um pouco dos meus pulmões quando as mãos dela encontraram os ombros de Anderson e Tina. É verdade que o ciúme tem olhos verdes, afinal, e gosto de bile. Ela merece mais do que a bagunça que eu sou. Respiro fundo. 5/10. Inspiro pelo nariz. Solto pela boca. Preciso focar no aqui-e-agora.

- Ela e o Anderson não têm nada há meses. Sis, ela tá muito na sua – Clara completa, mas pra mim isso não faz o menor sentido. Sorrio da expressão adolescente de minha irmã e rio mais ainda de mim e dos meus amigos, e de toda a prepotência do universitário médio de Humanas, como se soubéssemos todos os segredos da vida e da existência e fôssemos superiores ao falar todos os nossos termos técnicos embebidos em narcisismo, embora eu mesma pronunciasse “na real” e “tá sussa” mais vezes do que gostaria de admitir.

Antes eu diria que gostaria de andar com ela por uma plantação de trigo, o vento batendo contra seu cabelo, tocar nossos instrumentos. Tocar até música ruim. Mas agora tudo isso é uma romantização da minha vontade de encostá-la na primeira parede que conseguisse. A gente é bicho. Isso é algo que minha arte abraça e paradoxalmente nunca admite.

Eu não entendo essa lógica estranha. A cada social, em algum ponto, a história se repete e a gente finge que esquece. Eu finjo que esqueço. Ela eu nem sei.

Ela sorri para Anderson e Tina, seus dedos escorregando dos braços deles e sorrateiramente encontrando os meus. Samantha é escorregadia. Come pelas beiradas, minha mãe diria. Samantha adora minha mãe. Quero escorregar meus dedos pelas pernas dela. Sinto meu corpo latejar, a cabeça aérea pelo cheiro.

- E aí Anderson, vai ficar só com a Tina mesmo, hoje? E a Sam? – MB pergunta, seus olhos indo de mim para o antigo namorado da Samantha como quem se diverte.

- MB. Samantha tá em outra – ouvi alguém dizer ao longe, mas não prestei atenção. A tontura aumentara quando o polegar de Samantha passeava pelas costas da minha mão, seu queixo encostando no meu ombro, seu nariz roçando na minha bochecha. Deslizo a mão livre para seu joelho e sorrimos juntas. Quero encostá-la na parede mais próxima. Respiro fundo, de olhos fechados, como quem se concentra para ficar imóvel. Seu braço livre circula meus ombros, os dedos dela mexendo nos cabelos da minha nuca. Gal pals. Gal pals. Repito esse mantra, mas fica mais difícil quando o nariz de Samantha encontra a curva atrás da minha orelha. Minha mão sobe por sua coxa, meu rosto se vira como que sozinho na direção do nariz dela. Piercing de septo. O cheiro doce e forte de morango com champanhe. Meu estômago dá uma cambalhota enquanto minha irmã sorri do lado oposto do sofá, e parece claro de repente que havia sido ela quem falara. 

- Lica? – ouço Samantha me chamar, seu braço descendo de meus ombros para a minha cintura, seus dedos me apertando contra ela. Tento reprimir um ofego sem muito sucesso. Todo mundo devia estar olhando. Fecho mais os olhos, meus lábios roçando em seu pescoço. Sua outra mão sobe pelo meu braço e encosta devagar na minha bochecha, a ponta de seu indicador atrás da minha orelha. Minha mão agora livre sobe por suas costas. – Lica-- Er. Você--

- Hum? – murmuro, minha respiração descompassada criando arrepios em sua nuca enquanto meu nariz sobe por seu rosto até encontrar o dela. Meu coração martela contra minhas costelas. Ansiedade: oitenta por cento.

- ‘Cê tá evitando – ela fala baixinho, seu rosto tão perto do meu que sinto o movimento de sua boca quase contra a minha quando ela pronuncia as palavras. - Tá vendo? 'Cê acha que eu vou embora e evita.

MB solta um grunhido exasperado. Quase sei que ele revirou os olhos.  Bando de nerds, sei que é o que ele diria. Ouço ao longe, como que por entre uma névoa, meus amigos darem risada.

- Aí galera, ‘bora dar privacidade pro casal... ‘Bora lá, ‘bora lá, vazando... – ele diz, e ouço passos, e barulhos de portas, e gente indo pra varanda do nosso apartamento, e gente indo pra fora, e gente indo na direção do quarto da Clara. Mas não vejo nada disso. Meus olhos só tem dourado de pele e calor e piercing de septo, e olhos castanhos gigantes, e um sorriso largo perto da minha boca.

- Lica? – Samantha me chama de novo. Ela pressiona seu corpo contra o meu. Suspiro baixinho. Ela respira fundo antes de continuar, sua boca traçando um caminho da minha bochecha até atrás da minha orelha. Minhas pernas tremem. – É parte das minhas metas de ano novo impedir que as coisas fiquem não ditas. Lica, eu quero te beijar agora. Eu vou te beijar agora, tudo bem?

Algo em mim apita como uma sirene. Metas não podem ser negativas. Se você quer parar de fumar, sua meta não pode ser parar de fumar. Sua meta tem de ser se engajar nos comportamentos que você teria caso não fumasse.

Ah. Que se danem as teorias.

Eu reprimo um sorriso mal e porcamente, assinto devagar e, antes que eu possa fazer qualquer coisa, seus lábios encontram os meus com firmeza.

Eu gostaria de poder dizer que as reações do meu corpo são comuns e não tão próximas a letras de pagode. Eu gostaria de poder dizer que fiquei quase imóvel, ou que o lance com a Samantha era puramente físico, ou que era explicado pela minha atração inexorável pela impossibilidade e que, sendo ela a melhor amiga da minha irmã e até poucos meses atrás apaixonada por um cara amigo nosso, fazia sentido que eu me atraísse.

Mas não era nada disso. Eu era louca pela Samantha. Eu amava o jeito como ela ouvia música séria. Eu sabia que o tipo preferido de festa dela era o que eu nunca ia, com MPB e incensos. Eu detesto todo tipo de cheiro esfumaçado que existe. Só consigo fumar quando estou bêbada. Eu não frequentava festas com incenso e samba tocando: Juca e eu nos metíamos em rolês que tocavam Smiths e Johnny Cash com todos os lib right tomando destilado e aturávamos gente como meu ex-namorado, Felipe, porque curtíamos a música. Mas nada disso importava muito porque era sempre divertido achar meios termos com a Samantha. As sociais em casa. As festas com pop e cerveja. Tocar bagaceira tipo Luan Santana. Eu amava suas mãos e seu jeito despreocupado, tão diferente do meu. Ela inspirava confiança e paz. Nada a abalaria. Como não dormir e ver o sol nascer com uma caneca de mate caseiro gelado na mão: era assim sua presença.

Samantha era o tipo de gente que escutava Maroon 5 a sério até hoje, mas só o Songs About Jane. Ela era Sunday Morning. Ela era a sensação de Sunday Morning tocando num dia preguiçoso. Seu cabelo castanho e as pontas claras, os cachos, caídos pelos ombros, não muito mais longos que as clavículas. O piercing de septo. A roupa de estudante de Arquitetura e o discurso sobre modos de ocuparmos a cidade. A vibe São Salvador mas nem tanto, porque a gente é de esquerda mas não é otário. Sua cor preferida é cinza. Suas unhas estão sempre pintadas de preto, contrastando com as minhas sem esmalte. Samantha não gostava da minha ex-namorada, Nina. Dizia que ela me preocupava muito. Nessa época ela me dava menos a mão nos nossos rolês e, quando acontecia, seu semblante tinha culpa. Mesmo que a Nina nunca aparecesse.

Minha irmã também fazia Arquitetura. Ela era um ano mais nova que eu, e foi na faculdade que conheceu Samantha. Eu e meus amigos éramos os quase-psicólogos, quase-antropólogos, quase cientistas-sociais. A gente vivia analisando tudo. Eu analisava muito e não tinha muito culhão pra tomar atitudes.

Na primeira vez, ela dormiu no meu quarto porque a Clara ia dormir com o Fio no quarto dela. Mas com o tempo as desculpas já nem eram consideradas. Em dia de festa, Samantha sempre acabava no meu quarto.

Sóbria, por outro lado, era uma piada aqui e outra lá, metros de distância, olhadelas cúmplices que também eram disfarces.

Eu gostaria de contar melhor essa história. Falar do modo como tudo fez sentido quando finalmente nos beijamos. O modo como seus dentes prenderam meu lábio e sugaram enquanto suas pernas cruzavam as minhas. Tonta. Morango com champanhe pelas minhas narinas. Dourado-cappuccino é tudo que eu vejo. É como se eu tivesse ao mesmo tempo dez braços e nenhum, e todos eles estivessem se movendo e paralisados simultaneamente.

- Quarto – Samantha diz contra a minha boca, as pernas bambas fazendo esforço para mantê-la de pé. – Vem.

Samantha me puxa para cima, as mãos escorregando outra vez pelos meus braços, os dedos encostando nos meus furtivamente, um sorriso bobo de quem sabe que está fazendo besteira.

Entro no meu quarto e encosto-a na parede.

Finalmente.

Notes:

Passando minhas histórias Limantha para cá após ficar nostálgica por conta de Lorena e Juquinha :)
Espero que gostem!
Escrevi faz tempo, não lembro nem os detalhes, mas fiquei saudosa.
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