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O canto mais silencioso da biblioteca da Academia Gotham, aquele onde a poeira dançava em raios de sol pálidos, testemunhou uma confissão disfarçada. Damian Wayne, de costuras impecáveis e posturalháveis, tenta catalogar seu conflito interno com a precisão de um arquivo. A voz, contida, traía uma frustração que nem ele mesmo compreendia totalmente.
— … e portanto, a estrutura é complexa — ele concluiu, os olhos fixos na estampa de couro de um livro antigo. — Os Al Ghul são uma dinastia com métodos… diretos . Os Wayne remodelaram através da influência. Meu pai precisa entender que ambos operam à margem do convencional. Que o fim, quando nobre, justifica o meio.
Ele não mencionou os instintos assassinos que teimavam em surgir nos treinos, nem o abismo entre a filosofia de sua mãe e a de seu pai. Esperava que Jean, inteligência cuja inteligência era tão afiada quanto sua língua, visse além das palavras. Que entendesse o peso de carregar dois legados tão opostos.
Jean, entretanto, mordiscava a ponta de um lápis, os olhos tão verdes, estranhamente vívidos, percorrendo seu rosto com uma análise quase tátil. Quando falei, foi com a doce conclusão de quem acabou de resolver um enigma.
— Soa menos como 'filantropia' e mais como Cosa Nostra.
Damian sentiu o ar faltar, como se tivesse levado a um golpe baixo e absurdo. — Isso é uma inferência absurda e reducionista — retorquiu, a voz mais áspera do que pretendia. — Não somos gângsteres, Jean
— Famílias — ela corrigiu, animando-se. — Duas dinastias poderosas com filosofias opostas. Purificação versus controle. É shakespeariano ! Só que com carros blindados e, imagino, armas mais interessantes. A questão é: quem é a máfia tradicional e quem é a Yakuza? Os Al Ghul têm toda uma pinta de Yakuza.
— Você consome entretenimento narrativo de qualidade duvidosa, Marceau, — disse Damian, passando os dedos no cabelo. Um tique nervoso adquirido de Grayson.
— Estou usando lógica! Bruce Wayne é um playboy que troca de namorada mais rápido que eu troco de caderno. Ninguém tão publicamente incompetente comanda algo. A menos… — Seus olhos arregalaram, iluminados por um êxtase dedutivo. — que seja um disfarce genial! Ou melhor: não é ele! É a prima! Uma Kate Kane! Ela tem a aura de quem dá ordens. É um Don da família Wayne!
— Pare. intermitente. — A ordem saiu cortante. — Você está seguindo uma linha de conjectura errônea e perigosa. -
Um sorriso vitorioso estampado no rosto de Jean, transformando suas características numa expressão de puro triunfo infantil. — Aaah! Os herdeiros ficam nervosos quando a verdade vem à tona! Toquei num nervo! A Kate Kane é a chefe, certo? Faz todo o sentido!
Damian fechou os olhos por um segundo. A teimosia dela era uma força da natureza, um vendaval contra o qual suas muralhas de lógica pareciam de areia. Por que persisto em interagir com alguém de uma obstinação que rivaliza com a de um asno?, pensou, atribuindo a culpa, como sempre, à Dick Grayson.
Foi então que o clima se transmutou. O brilho de descoberta nos olhos de Jean apagou-se. O sorriso esmaeceu, substituído por uma solenidade que não combinava com seus onze anos. Ela inclinou-se para a frente, e a biblioteca inteira pareceu conter a respiração.
— Olha, Damian — começou, a voz tão baixa que ele precisou se concentrar. — Eu não sei todos os detalhes. Tudo bem. Você não precisa me contar. A internet está cheia de teorias malucas sobre os Wayne, e sobre os Al Ghul… bem, há fóruns sombrios que sussurram sobre eles. — Ela fez uma pausa, prendendo seu olhar com uma intensidade perturbadora. — Mas eu só quero que você saiba uma coisa.
Damian não piscou.
— Se alguma dessas famílias poderosas e cheias de ‘códigos’ resolver te machucar… Se te usarem como peão nessa guerra fria… Eu juro por tudo. Vou ficar forte. Vou ficar esperta. Vou ficar rica, influente, o que for preciso. E vou te tirar de lá. Ou vou me vingar de quem te fez mal.
Ela não desviou o olhar. Uma fogueira verde ardia em suas íris, uma chama de lealdade feroz e absolutamente irracional. Era assuassustamente genuíno.
— Não importa o que eu tenha que fazer. Não importa com quem eu tenha que me aliar. Até mesmo… até mesmo com um maluco como o Coringa, se for preciso. Tudo para proteger meu melhor amigo.
O mundo de Damian Wayne parou. O zumbido distante da biblioteca, o cheiro de papel antigo, tudo se dissolveu. A teoria era ridícula. A menção ao Coringa, um risco de uma ingenuidade catastrófica. Mas o cerne da declaração, aquele juramento convicto… era a coisa mais comovente que alguém já lhe dissera. Não era a lealdade treinada da Liga, nem o dever esperado da Batfamília. Era algo bruto, nascido das ruas, do abandono, do único vínculo que ela escolhera forjar.
Ele soltou um longo suspiro, e seus ombros, sempre tão eretos, afundaram levemente. A resistência esvaiu-se.
— … Está bem, Jean.
— Está bem, o quê?”
— Está bem. Acredite no que quiser.— Ele a encarou então, com uma seriedade que espelhava a dela. — Só… guarde esse juramento. E nunca, nunca repita a parte sobre o Coringa. Para ninguém. É um nome perigoso. Nem em brincadeira.
Jean percebe que não é uma reprimenda. É um pedido. Um pedido de alguém que, talvez, leve a sério a promessa dela. Ela acena, séria.
— Combinado. Só entre nós.
Damian assentiu e começou a recolher seus livros. A teoria da máfia era um desvario. As conclusões dela, um pesadelo logístico. Mas aquele voto… era uma posse preciosa e terrível. Pela enesima vez desde que está aprendendo os meandros da aliança, Damian entendeu o fardo paradoxal da amizade: não se tratava apenas de ter alguém para lutar ao seu lado, mas de ter alguém por quem você precisava permanecer. Para que ela nunca precisasse cumprir uma promessa tão horrível. E, secretamente, para que ele não fosse tentado a fazer um juramento igualmente insano por ela.
Dias depois, o eco daquela conversa voltou para assombrá-lo de forma quase cômica. Na sala de estar leste da Mansão Wayne, ao passar pelo vão da porta, sua atenção foi capturada por um desabafo familiar.
— … e ele acha que temos um speakeasy no porão!”, lamentava Drake, atirado num sofá. “Chamou o Memorial dos Wayne de ‘fachada para lavagem de dinheiro emocional’!
Brown mordia o lábio para não rir. Cain, ao seu lado, sinalizou com sutileza — Medo e fascínio. No olhar dele.
Damian paralisou. A lógica falaciosa, a narrativa conspiratória… ecoavam com uma ressonância fantasmagórica. Sem conseguir conter um surto de reconhecimento macabro, as palavras escaparam-lhe antes que pudesse filtradas:
— Ele também?
Um silêncio repentino e denso caiu sobre o grupo. Três pares de olhos voltaram-se para ele, arregalados de espanto. Vendo a expressão de perplexidade genuína de Drake, uma emoção rara e não solicitada brotou em Damian: uma pontada de genuína simpatia. Eram companheiros de infortúnio, vítimas da mesma praga intelectual.
“Dowd… também subscreve a teoria da organização criminosa familiar? Compreendo. É uma epidemia.”
Ele disse isso com um tom de compreensão cansada, um olhar que, para Damian, significava solidariedade. Para Tim, foi a visão mais aterradora da semana. Um arrepio percorreu-lhe a espinha.
— Para com isso — gaguejou Tim, recuando um passo. — É assustador.
O momento frágil esvaneceu-se, dissipado pelo desconforto de Tim. A irritação habitual de Damian regressou, agora tingida de exasperação. — Apenas constato um fenômeno. Mas deixe claro, Drake: se seu namorado persistir nessa narrativa, mantenha-o a cinquenta metros de mim. Não, cem metros! Estou saturado de especulações sobre guerras de máfia entre Wayne e Al Ghul.”
— V-você?” — retorquiu Tim, agora ofendido. — E eu, não?
Foi quando Stephanie perdeu completamente o controle. Uma gargalhada explosiva ecoou pela sala. — Ah, pelos amores! Ele tá com pena de você, Tim! Pena! Porque o Bernard e a amiguinha dele têm a mesma teoria maluca!"
Cassandra cobria a boca, os olhos sorridentes. Damian, com um último olhar fulminante para Steph, ergueu o nariz e partiu, deixando Tim num turbilhão de emoções conflitantes, arrepiado, insultado e profundamente confuso.
— Que 'amiguinha' é essa, Steph?" ele perguntou, ainda atordoado.
— Ele falou sobre ela aqui e ali para Dick nos jantares, não lembra? — ela riu, enxugando uma lágrima. — Acho que ela é parecida com Bernard se Damian está tocando no assunto.
Enquanto os ecos da risada de Steph desapareciam pelo corredor, Tim ficou só. A frase de Damian, “Ele também?”, ecoava em sua mente, mais perturbadora e inexplicável do que qualquer teoria maluca que Bernard pudesse inventar. Em algum lugar nas profundezas de sua memória, Damian carregava o peso de um juramento feito em segredo, e a lembrança de que, para uma pessoa, a linha entre proteger um amigo e considerava uma aliança com o caos era tênue, real e selada com a mais absoluta seriedade. Este era o juramento mais perigoso e precioso que Damian Wayne guardava, selado no canto empoeirado de uma biblioteca, entre uma criança que carregava o mundo nos ombros e outra que prometeu incendiar o mundo por ele.
